Trabalho de conclusão de curso apresentado como requisito para obtenção do título de bacharel em Direito pelo Centro Universitário do Distrito Federal.
Orientador: Prof. Valdinei Cordeiro Coimbra
RESUMO
O tema “reserva legal no Brasil tem efeito de confisco” é levado a debate neste estudo que se justifica ante a problemática imposta. Respondendo esta questão através de uma metodologia voltada para a pesquisa bibliográfica em livros e artigos relevantes para o tema, é possível oferecer ao leitor um panorama geral sobre o direito de propriedade rural no Brasil e o instituto de reserva legal. O objetivo deste estudo é analisar se no Brasil a reserva legal tem efeito de confisco. Conclui-se que o direito de propriedade deve ser respeitado em igualdade com o direito e dever de proteção ambiental e sempre que evidente for o desfavorecimento do proprietário devera haver indenização, quando não, deverá então haver apoio econômico e financeiro do governo para que o próprio proprietário de terras rurais preserve o meio ambiente, de forma que a reserva legal não se torne um fardo para todos os proprietários rurais de terras e cercanias defendidas como áreas de preservação e cuidado ambiental.
Palavras-chave: confisco, direito de propriedade, reserva legal.
SUMÁRIO: INTRODUÇÃO; 1 HISTÓRICO DA LEGISLAÇÃO AMBIENTAL NO BRASIL; 2 RESERVA LEGAL; 2.1 Evolução histórica da reserva legal; 2.2 Conceito de reserva legal; 2.3 Reserva legal no direito comparado; 2.3.1 Preservação permanente e reserva legal; 2.4 Registro imobiliário; 3 O DIREITO DE PROPRIEDADE; 3.1 Direito de propriedade privada; 3.2 Função social da propriedade; 4 CONFISCO E RESERVA LEGAL; 5 A INDENIZAÇÃO DAS RESERVAS LEGAIS; 5.1 Visão do STF sobre o direito do proprietário rural à indenização; CONCLUSÃO; REFERÊNCIAS.
INTRODUÇÃO
Neste estudo tratar-se-á de dois direitos fundamentais, o de defesa do bem ambiental e do direito a propriedade. Colocar-se-á em voga o debate sobre o direito ambiental e a reserva legal como uma forma de confiscar terras no Brasil. O objetivo deste trabalho será analisar se no Brasil a reserva legal tem efeito de confisco.
Os objetivos específicos serão: evidenciar o conceito e a natureza da propriedade rural, mostrar a importância da defesa do bem ambiental, sem invadir o direito da propriedade, evidenciar a possibilidade de confisco no ato de reserva legal em propriedades rurais, mostrar a importância de se manter um acordo entre a proteção florestal amazônica e o direito de propriedade rural.
Este tema se justifica ante a problemática imposta na seguinte questão: no Brasil, reserva legal tem efeito de confisco?
Respondendo esta questão através de uma metodologia voltada para a pesquisa bibliográfica em livros e artigos relevantes para o tema, será possível oferecer ao leitor um panorama geral sobre o direito de propriedade rural no Brasil e o instituto da reserva legal.
Nota-se que, neste debate muitos acham que não é necessária a indenização aos proprietários de terras que tiveram suas propriedades consideradas como reserva legal, ao contrario de outros que defendem a indenização para que não seja a reserva legal caracterizada como confisco.
Logo surge a necessidade de maior analise de todos os pontos envolvidos nesta discussão, sem deixar de lado tanto a importância das reservas legais como do direito de propriedade.
Surge a hipótese a ser comprovada de que deve sim o Direito Ambiental se preocupara em proteger florestas e áreas evidentemente naturais e com riquezas ambientais, mas ao mesmo tempo devera o direito proteger a propriedade rural, onde o trabalhador que muitas vezes laborou anos na terra, tem sua propriedade legalmente reconhecida e em dado momento se vê desprovido de suas terras, de seu sustento em prol da reserva legal.
Para responder à problemática levantada nesta monografia utilizou-se a pesquisa bibliográfica.
O presente trabalho foi dividido em capítulos de forma que, primeiramente inicia-se com um histórico da legislação ambiental no Brasil, para, posteriormente, falar da reserva legal, desde a evolução histórica da reserva legal, seu conceito, assim como, a reserva legal no direito comparado e o registro imobiliário da mesma. Fez-se necessário também, para melhor compreensão do texto, conceituar direito de propriedade, direito de propriedade privada e a função social da propriedade, para, então focar o cerne dessa pesquisa que é o confisco e, por último, estuda-se sobre a indenização da reserva legal, e, também sobre a visão do STF sobre o direito do proprietário rural à indenização.
1 HISTÓRICO DA LEGISLAÇÃO AMBIENTAL NO BRASIL
A fim de melhor compreensão do tema proposto, faz-se mister iniciar esse trabalho com a história da legislação ambiental no Brasil.
Após o descobrimento do Brasil foram editadas por Dom Afonso IV as Ordenações Afonsinas que previam como crime, com a pena de açoite para os infratores, o corte de árvores frutíferas.[1]
Em 1521, Dom Manoel editou as Ordenações Manoelinas que tipificavam como crime a caça de determinados animais[2] com instrumentos que causariam a morte com dor e sofrimento.[3]
A partir de 1850, quando o Brasil passou ao domínio espanhol[4], foram editadas as Ordenações Filipinas onde se pôde encontrar o conceito de poluição. Nesse sentido, era proibido a qualquer pessoa sujar as águas dos rios e lagoas ou jogar material capaz de matar os peixes.[5]
Nas Ordenações Filipinas o corte de árvore de fruto continua a ser proibido e a pena para esse crime era o degredo definitivo para o Brasil. Nesse período foi dada maior proteção aos animais e a pena para aquele que os matasse era de degredo definitivo para o Brasil. “A pesca, com determinados instrumentos e, em certos locais e épocas estipuladas, era proibida nas Ordenações Filipinas, o que também está previsto na Lei 9.605/98, vigente no Brasil atualmente”.[6]
Desde a época do Brasil Colônia já havia a preocupação na preservação das matas nativas existentes nas propriedades privadas rurais.[7]
Contudo, somente com a promulgação do Código Civil de 1916, em 1º de janeiro de 1916, em vigor a partir de 1º de janeiro de 1917, é que começou a despontar a preocupação com o meio ambiente.
A corroborar:
O Código Civil Brasileiro, 'se constituiu no primeiro diploma legal genuinamente tupiniquim com preocupações ecológicas mais acentuadas. [...] O primeiro passo encetado pelo legislador brasileiro para a tutela jurídica do meio ambiente coincide, portanto, com a edição do Código Civil de 1916, que elencou várias normas de colorido ecológico destinadas à proteção de direitos privados na composição de conflitos de vizinhança'.[8]
Depois da edição do Código Civil de 1916 começaram a surgir no Brasil normas com regras específicas tutelando as questões ambientais.
No ciclo de governos da Revolução de 1964 começaram a aparecer as primeiras preocupações referentes a utilização dos recursos naturais de forma racional, compreendendo-se que tais recursos só se transformariam em riquezas se explorados de forma racional e que se deveria dar múltiplos usos a esses recursos, de tal forma que sua exploração para uma determinada finalidade, não impedisse sua exploração para outros fins, nem viesse em detrimento da saúde da população e de sua qualidade de vida. Dentre as leis desse período destacam-se a Lei nº 4.504, de 30.12.1964 (Estatuto da Terra), o novo Código Florestal (Lei nº 4.771, de 15.09.1965), a Lei de Proteção à Fauna (Lei nº 5.197, de 03.01.1967), Decreto-lei nº 221 (Código de Pesca), Decreto-lei nº 227 (Código de Mineração), Decreto-lei nº 289, (todos de 28.02.1967), que criam o Instituto Brasileiro de Desenvolvimento Florestal, com incumbência expressa de"cumprir e fazer cumprir" tanto o Código Florestal, como a Lei de Proteção à Fauna. Também foram instituídas reservas indígenas, criados Parques Nacionais e Reservas Biológicas.[9]
A Conferência das Nações Unidas para o Meio Ambiente em Estocolmo no ano de 1972, consistiu num grande marco e que acabou por repercutir de forma considerada sobre a legislação ambiental brasileira.
A participação brasileira nesta Conferência foi muito importante para os seus rumos, influindo fortemente nas recomendações da Declaração de Estocolmo sobre o Meio Ambiente, mas, no nível da mídia influindo na opinião pública, nacional e internacional, foi bastante mal compreendida, gerando-se conceito distorcido de que o Brasil preconizava o desenvolvimento econômico a qualquer custo, mesmo devendo pagar o preço da poluição em alto grau. Na verdade, o que a posição oficial brasileira defendia era que o principal sujeito da proteção ambiental deveria ser o Homem, sendo tão danosa para ele a chamada "poluição da pobreza" (falta de saneamento básico e de cuidados com a saúde pública - alimentação e higiene) como a "poluição da riqueza" (industrial). Esse mal entendido, entretanto, acabou por ser benéfico. A necessidade de dar uma prova pública de que o Governo Brasileiro tinha também preocupações com a poluição e com o uso racional dos recursos ambientais resultou na criação da Secretaria Especial do Meio Ambiente. Foi ela criada pelo Decreto nº 73.030, de 30 de outubro de 1973, como "órgão autônomo da Administração Direta" no âmbito do Ministério do Interior "orientada para a conservação do meio ambiente e uso racional dos recursos naturais".[10]
Entretanto, a primeira norma sobre o meio ambiente que se tem conhecimento, foi o Decreto nº 16.300, de 31 de dezembro de 1923, cujo texto regulamentava a Saúde Pública e, a segunda norma foi o Decreto nº 23.793 de 23 de janeiro de 1934 instituindo o Código Florestal, substituído, posteriormente, pela Lei nº 4.771 de 1965.[11]
Mas, somente na década de 1980 começou a haver uma preocupação de forma global e integrada com relação ao meio ambiente. A exemplo, pode ser citada a Lei nº 6.938 de 1981, dispondo sobre a Política Nacional do Meio Ambiente, cujo teor define conceitos, princípios, objetivos e instrumentos a serem utilizados na defesa do meio ambiente. O ano de 1985 foi marcado pela edição da Lei nº 7.347/85, disciplinando a Ação Civil Pública como instrumento de defesa do meio ambiente, assim como, dos direitos difusos e coletivos, fazendo com que os danos sofridos pelo meio ambiente chegassem ao Poder Judiciário. Posteriormente, a Constituição Federal de 1988 dedicou um capítulo ao meio ambiente, constituindo este num bem constitucionalmente protegido. Após esse evento, foi editada a Lei dos Crimes Ambientais (Lei nº 9.605/98).[12]
Hodiernamente, além da Constituição Federal e o Código Florestal, o ordenamento jurídico brasileiro conta também com o Decreto 6.514/2008 que modifica a lei dos crimes ambientais tornando-a mais rígida.
2 RESERVA LEGAL
O Código Florestal (Lei nº 4.771/65) foi sancionado um ano após o Golpe de Estado sofrido pelos brasileiros, ou seja, no ano de 1965.
Importa dizer que o manejo florestal já estava previsto de forma legal desde a criação da Lei 4.771/65[13].
Salienta Zanetti que o que mudou da época do golpe militar para os dias atuais foi a espécie de ditadura que de militar passou a ser ambiental. Ao invés dos militares, são os ambientalistas que espalham terror nos meios rurais.[14]
Hodiernamente, a matéria encontra previsão legal no art. 225, § 1º da Constituição Federal e ainda no art. 16 da Lei nº 4.771/65.[15]
Há uma necessidade eminente de se rever as formas de exigência da Reserva Legal no Código Florestal. Considerando as transformações que envolvem a sociedade, faz-se necessário um ajuste na Lei 4.771/65.[16]
Uma das maiores pressões exercidas sobre o agronegócio hodiernamente, diz respeito à recuperação de Reserva Legal e Área de Preservação Permanente por meio do plantio de espécies arbóreas nativas, conforme estabelece o Código Florestal de 1965, que foi modificado pela MP 2166/67.[17]
A questão é que, quando se estabelece um percentual fixo para as áreas de Reserva Legal ignoram-se os aspectos da qualidade do solo visando a produção agropecuária, assim como, as características relevantes das áreas naturais para a sua conservação. Diante dessa situação, continua o autor dizendo que: “ora são obrigatórias as reposições florestais em áreas de alta produtividade realizando perda de produtividade, ora são liberados desmatamentos em solos pobres, levando a um processo de degradação”.[18]
O que acaba por agravar o problema é o fato de que “Os mercados de compensação da Reserva Legal dentro de microbacias não são suficientes para compensar essas perdas e nem capazes de corrigir as distorções de uso da terra”.[19]
No tocante ao conceito de florestas vale mencionar dois dos principais conceitos adotados no cenário internacional: os conceitos da FAO[20] e da AND[21]. Para a FAO florestas são “porções do território com mais de 0,5 há, com uma cobertura florestal com mais de 10%, que não sejam prioritariamente utilizadas para a agricultura ou uso urbano”. Já a AND dá o seguinte conceito: “áreas com valor mínimo de cobertura de copa de 30%, estabelecidas em uma área mínima de 1 há, com árvores de pelo menos 5 m de altura”[22].[23]
A reserva legal tem como natureza jurídica o espaço territorial especialmente protegido e a limitação administrativa.[24]
2.1 Evolução histórica da reserva legal
O ordenamento jurídico brasileiro há muito tem se preocupado com a grande questão de preservação de parte das florestas em propriedades rurais. No período colonial, por exemplo, com a escassez de madeira próprias para a construção de embarcações, a Coroa Portuguesa se viu obrigada a expedir cartas régias[25] declarando de sua propriedade toda madeira naval[26].
O ano de 1920 marca o início das discussões sobre a edição do primeiro Código Florestal, momento em que Epitácio Pessoa, então presidente na época, instituiu uma subcomissão visando a elaboração do futuro Código.
Somente em 1934 o projeto foi transformado no Decreto nº 23.793, ficando conhecido como o “Código Florestal de 34”.[27]
No período compreendido entre 1934 e 1965 era permitida a derrubada de ¾ das terras cobertas com matas, assim como, “impunha-se a preservação de 25% da mata restante, incluindo-se, aí, as áreas de preservação permanente”. A norma se referia, então, às matas ou vegetação e não a área total do imóvel como ocorre hodiernamente.[28]
No período de 1965 a 1989, “no imóvel rural onde não houvesse florestas, nada havia a preservar”. A partir de 1989 até o ano de 2000 manteve-se os percentuais em 20%, porém, foi incluído o cerrado na área a ser reservada, nos termos do art. 16, § 3º da Lei 7.803/89[29], que alterou o Código Florestal, mas, acabou não sendo regulamentada.[30]
Do ano de 2000 até os dias atuais as áreas a serem reservadas expandiram-se, conforme o disposto no art. 16 do Código Florestal.[31]
2.2 Conceito de reserva legal
O termo Reserva Legal foi introduzido pela Lei nº 4.771/65, alterada pela Lei 7.803/89, incorporando também a exigência de averbação ou Registro da Reserva Legal à margem da inscrição da matrícula do imóvel, sendo vedada “a alteração de sua destinação, nos casos de transmissão, a qualquer título, ou desmembramento da área, segundo o art. 16, § 4º do Código Florestal a ser estuda mais adiante.
Considera-se, portanto, reserva florestal legal a área localizada no interior de uma propriedade ou posse rural, que não seja a de preservação permanente.[32]
Deste modo, conceitua o Código Florestal, em seu art. 1°, §2°, III, inserido pela MP n°. 2.166-67, de 24.08.2001, que reserva legal se trata de:
área localizada no interior de uma propriedade ou posse rural, excetuada a de preservação permanente, necessária ao uso sustentável dos recursos naturais, à conservação e reabilitação dos processos ecológicos, à conservação da biodiversidade e ao abrigo e proteção de fauna e flora nativas.
Significa dizer que os proprietários terão que reservar parte da vegetação natural em sua propriedade para que o ecossistema seja protegido.[33]
Existem três tipos de Reserva Florestal Legal: a) áreas do cerrado; b) reserva na região Norte e da parte norte da região Centro-Oeste; c) e a reserva em todas as outras regiões do Brasil, inclusive a parte sul da região Centro-Oeste.[34]
A reserva florestal legal advém de uma norma que limita o direito de propriedade, ou seja, o Código Florestal e é garantida constitucionalmente por meio do art. 225, § 1º, Inciso III da Carta Magna que assim preceitua:
Art. 225. Todos têm direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado, bem de uso comum do povo e essencial à sadia qualidade de vida, impondo-se ao Poder Público e à coletividade o dever de defendê-lo e preservá- lo para as presentes e futuras gerações.
§ 1º - Para assegurar a efetividade desse direito, incumbe ao Poder Público:
III - definir, em todas as unidades da Federação, espaços territoriais e seus componentes a serem especialmente protegidos, sendo a alteração e a supressão permitidas somente através de lei, vedada qualquer utilização que comprometa a integridade dos atributos que justifiquem sua proteção.
Os espaços protegidos de que trata a CF são, na verdade, unidades de conservação[35] que, de acordo com Paulo de Bessa Antunes citado por Freitas (2005), trata-se de espaços territoriais destinados ao estudo e preservação de exemplares da fauna e da flora. Essas unidades de conservação podem ser públicas ou privadas. Segundo Antunes, ao estabelecer essas unidades de conservação foi dado o primeiro passo concreto em direção à preservação ambiental.
Até então, podiam ser encontradas unidades de conservação apenas em leis esparsas. Entretanto, hodiernamente, tais unidades de conservação vêm regulamentadas pela Lei 9.985 de 18 de julho de 2000, cujo objetivo foi instituir o Sistema Nacional de Unidades de Conservação da Natureza – SNUC.
Duas observações importantes fazem-se necessárias: em primeiro lugar, diz o autor que as unidades de conservação podem ser constituídas pelo Poder Público através de lei, decreto ou resolução, entretanto, a extinção dessas unidades só pode ser concretizada através de lei; em segundo lugar, a referida lei protege “em vários dispositivos as populações tradicionais”, significando proteção às famílias que habitam o local há longo tempo[36] e os “não-proprietários ou posseiros recém-instalados na área”.[37]
A reserva florestal legal não se confunde com os Parques Nacionais, Estaduais e Municipais, assim como, com as Reservas Biológicas, vez que, estes são áreas exclusivamente de domínio público. Do mesmo modo, a reserva florestal legal não se identifica com as Florestas Nacionais, Estaduais e Municipais, pois, conforme o art. 5º, b, da Lei 4.771/65, são, também, exclusivamente de domínio público.[38]
A norma objetiva assegurar o direito a um meio ambiente ecologicamente equilibrado, assim como, garantir uma boa qualidade de vida à população do país. Para que isto corra, incumbe ao Poder Público definir nas unidades da Federação, espaços territoriais a serem especialmente protegidos.
A reserva florestal legal constitui um espaço territorialmente protegido e só pode ser alterado ou suprimido através de permissão legal e, acrescente-se a isso, lei federal. Isso significa que nem o proprietário privado nem o Poder Executivo podem consentir na diminuição ou supressão da reserva florestal legal.[39]
Conforme Machado, as modificações ocorridas em 1989 deram a essa reserva um caráter de inalterabilidade, sendo a reserva protegida não só por lei ordinária, como, também, pela Constituição Federal.[40]
A competência para legislar sobre florestas é da União, dos Estados e do Distrito Federal[41]. Entretanto, as normas que incidem sobre a reserva florestal legal – normas gerais são de competência da União[42]. Nesse caso, “os Estados podem suplementar a legislação federal sobre essas reservas, isto é, podem acrescentar normas mais severas, mas não podem exigir menos do que a norma federal”.[43]
Diante do exposto, verifica-se que não é competência exclusiva da União legislar sobre as reservas florestais legais, exceto no que concerne às normas gerais.
É sabido, por exemplo, que o IBAMA - Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e de Recursos Naturais Renováveis representa a União quando o assunto é reserva legal. Com a reforma de 1989 este Instituto manifestou sua vontade de intervir em toda exploração e manejo florestal. Isso mostra que o IBAMA vem exercendo grande poder de polícia ambiental. Entretanto, isso não é impedimento para que os Estados, ao mesmo tempo, venham a agir com o mesmo poder de polícia. Essa explanação representa que não há hierarquia na execução das normas protetoras da reserva florestal legal; havendo conflitos nesse caso, deverá o Poder Judiciário decidir, mas, vale ressaltar que o direito a ser levado em conta é aquele que melhor proteger, seja ele federal, estadual ou municipal (se houver interesse local).[44]
A reserva legal de que trata o Código Florestal não deve ser exatamente em áreas de florestas, podendo abranger também área degradada, segundo os moldes da Lei 8.171/91, que dispõe sobre a política agrária, que obriga a recomposição da reserva pelo proprietário rural.[45]
2.3 Reserva legal no direito comparado
A análise comparativa da legislação florestal brasileira com a legislação florestal de outros países, no que concerne ao instituto da reserva florestal legal não é tarefa simples. Não se trata, no caso, de simplesmente verificar se a legislação de determinado país obriga o proprietário rural a manter uma percentagem fixa de sua propriedade com vegetação nativa. Para uma comparação adequada é necessário verificar o que de fato se exige do proprietário rural em favor da conservação das florestas e demais vegetações nativas existentes na sua propriedade considerando o conjunto das normas florestais e ambientais do país em questão.
A título de exemplo vale citar o México e os Estados Unidos da América.
Inicia-se este estudo pela análise da legislação florestal mexicana, tendo em vista as semelhanças do México com o Brasil em termos de dimensão territorial, tamanho da economia e culturais. A escolha do México como caso inicial mostrou-se particularmente feliz, porque sua legislação florestal foi atualizada recentemente, é bastante completa e parece estar em sintonia com os mais recentes avanços observados no setor.
A conservação e uso das florestas no México é regulada pela Ley General de Desarrollo forestal sustentable, de 25 de fevereiro de 2003.
A lei florestal mexicana faz uma distinção entre “terreno florestal” e “terreno preferencialmente florestal”.[46] Terreno florestal “é aquele que está coberto por vegetação florestal”; terreno preferencialmente florestal “é aquele que já esteve mas não se encontra atualmente coberto por vegetação florestal mas, por suas condições de clima, solo e topografia, tem a mais aptidão para o uso florestal do que para outros usos alternativos”.
A lei proíbe a mudança no uso do solo nos terrenos florestais. Em outras palavras, a lei proibiu o corte de todas as florestas remanescentes do México. Essas florestas, entretanto, podem ser em princípio, manejadas, vale dizer, é possível explorar seus recursos madeireiros e não madeireiros de forma sustentável (de acordo com planos de manejo aprovados pela autoridade competente). Os terrenos florestais só podem ser usados para atividades não-florestais (agropecuárias) em casos excepcionais.[47] Isso significa que nas propriedades rurais formadas ou que contém “terrenos florestais”, o proprietário é obrigado a manter as florestas, podendo apenas explorá-las em modo sustentável.
A lei não diz claramente, mas, considerando que os “terrenos preferencialmente florestais” estão mais aptos para uso florestal do que para outros usos alternativos, espera-se que o proprietário seja simulado ou esteja, e alguma medida, obrigado a destinar esses terrenos para atividades florestais. A resposta a essa pergunta demandaria um estudo mais aprofundado.
A lei confere ainda, ao órgão ambiental competente, as seguintes competências:
a) formular e executar programas de restauração ecológica em terrenos florestais ou preferencialmente florestais nos casos em que forem observados nesses terrenos processos de degradação ou desertificação, ou graves desequilíbrios ecológicos. Nesses casos, os proprietários estão obrigados a realizar as ações de restauração e conservação necessárias e indicadas pelo órgão competente. Todavia, caso o proprietário demonstre carecer de recursos para executar as ações indicadas, o órgão competente providenciará sua execução às expensas do Governo;[48]
b) decretar, em caráter excepcional, “vedas forestales”, uma espécie de defeso, por meio do qual o órgão ambiental competente proíbe, por uma prazo determinado, a exploração de determinado terreno florestal, com o fim de assegurar a restauração da floresta ou a recuperação da população de espécies florestais ameaçadas. As “vedas forestales” devem ser decretadas com base em estudos técnicos, ouvidos os conselhos florestais e os proprietários dos terrenos afetados.
O Governo deve também adotar medidas para apoiar as comunidades afetadas;[49]
c) declarar como áreas de proteção as margens de cursos d’água e lagos, naturais ou artificiais, e áreas de recarga de aqüíferos. Os proprietários devem ser ouvidos previamente. As propriedades localizadas nas áreas de proteção são consideradas como estando dedicadas a uma função de interesse público. Se essas áreas estiverem desflorestadas, deverão ser recuperadas por meio de programas especiais;[50]
d) requerer, com base em estudo técnico que demonstre a existência de um risco para os recursos florestais, o meio ambiente, os ecossistemas ou seus componentes, aos proprietários de terrenos florestais ou preferencialmente florestais, a realização de atividades necessárias para evitar a situação de risco. Se o proprietário não realiza as atividades indicadas, o rgão competente deve fazê-lo, às expensas do proprietário.[51]
A lei estabelece, dentre os instrumentos da política florestal mexicana, o zoneamento florestal, a cargo do órgão ambiental competente. O regulamento da lei florestal mexicana (21 de fevereiro de 2005) estabelece três categorias para o zoneamento florestal: a)zona de conservação e aproveitamento restringido ou proibido; b) zona de produção; e c) zona de restauração.
Na categoria de zona de conservação e aproveitamento restringido ou proibido, o regulamento inclui as áreas naturais protegidas[52], as áreas de proteção (acima referidas) e, ainda, o seguinte:
a) áreas localizadas acima de 3.000 metros de altitude;
b) terrenos com inclinação superior a 45 graus;
c) áreas cobertas por vegetação de mangue ou florestas mesófilas de montanha;
d) áreas cobertas por matas ciliares; e
e) áreas cobertas por florestas altas perenifólias.
Note-se que as áreas de proteção e os cinco tipos de áreas acima listados classificadas como zona de conservação e aproveitamento restringido ou proibido guardam grande proximidade com as nossas “áreas de preservação permanente”.
Em suma, a lei florestal mexicana não estabelece uma percentagem fixa da propriedade rural que deve ser mantida com florestas ou outras formas de vegetação nativa, como faz o nosso Código Florestal. O que não significa dizer, entretanto, que a lei mexicana não imponha limitações ou estabeleça obrigações ao proprietário rural no que concerne à conservação e recuperação das florestas na sua propriedade. Saber, na pratica, em que medida essas limitações ou obrigações equivalem àquelas estabelecidas pela legislação brasileira exigiria um conhecimento mais profundo da legislação (em particular das normas infra-legais)[53] e da realidade mexicana.
Note-se que a lei mexicana proíbe, salvo em situações excepcionais, o corte das florestas remanescentes do país para o desenvolvimento de atividades agropecuárias. Todavia, para se avaliar o real impacto dessa forma sobre a propriedade rural seria preciso conhecer a extensão das florestas remanescentes mexicanas e como ela está distribuída pelas propriedades rurais.
Também no caso da matas ciliares é possível que a lei mexicana imponha uma limitação maior ao uso das florestas do que a brasileira, especialmente no caso dos cursos d’água menores, uma vez que, enquanto a lei brasileira estabelece uma faixa fixa de proteção de apenas 30 metros, a lei mexicana protege toda a extensão da mata ciliar.
O mais importante, entretanto, parece ser o fato de que a lei mexicana, em contraste com a brasileira, atribui ao órgão ambiental competente a responsabilidade por identificar, no caso dos chamados “terrenos preferencialmente florestais”, vale dizer, que eram originalmente cobertos por florestas, aqueles que devem ser protegidos e reflorestados (com a participação do proprietário, sempre que dispuser de condições econômicas para isso). Nesse sentido, a lei mexicana parece ser mais flexível, no bom sentido, que a brasileira, na medida em que permite a análise de cada situação em particular e a adoção de soluções específicas ajustadas à cada uma. Neste mesmo espírito, a lei mexicana assegura ao proprietário o direito de participar do processo de definição das áreas de proteção e obriga o estado a financiar a recuperação das áreas que precisarem ser recuperadas quando o proprietário não dispuser de recursos.
Convém anotar ainda que a lei mexicana criou um fundo florestal e estabeleceu as bases legais para a cobrança pelo serviços ambientais gerados pelas florestas e para o pagamento, aos proprietários que às detém, pela prestação desses serviços.[54]
Nos Estados Unidos, o poder de interferência ou controle dos órgãos ambientais sobre o uso dos recursos naturais pelo proprietário rural na sua propriedade parece ser, em princípio, bem menor do que no Brasil. Não encontrei, estudando a legislação americana, nada que se compare ao instituto da reserva florestal legal.
A limitação fundamental do poder do Governo de interferir na utilização dos recursos naturais na propriedade privada advém da Quinta Emenda à Constituição americana, que proíbe o Governo de se apoderar de uma propriedade privada para dar a ela algum uso público sem uma justa compensação. Para adquirir uma propriedade privada com fim de, por exemplo, criar uma unidade de conservação, o Governo tem que pagar ao proprietário um valor equivalente ao preço do mercado. Até aqui, em princípio, nada muito diferente do que a lei estabelece no Brasil. Entretanto, nos Estados Unidos, qualquer ação do Governo que prejudique excessivamente expectativas razoáveis do proprietário de retorno financeiro em função de investimentos feitos na sua propriedade é considerada inconstitucional, a não ser que o Governo compense o proprietário. Mais além, os tribunais americanos têm decidido que qualquer regulamento, qualquer norma, limitando o uso da propriedade, que vá “longe demais” (“goes too far”)[55] será considerada uma expropriação.
Adicionalmente, alguns Estados americanos têm aprovado leis que possibilitam ao proprietário rural processar os órgãos ambientais pela aplicação de normas que desvalorizem sua propriedade. Por exemplo, o Estado do Texas aprovou uma lei que exige dos órgãos ambientais que revoguem uma norma ou paguem uma compensação aos proprietários quando um tribunal determina que o valor da propriedade foi reduzido, em função da aplicação da norma, em 25 por cento ou mais.
O Governo Federal tem pouca autoridade sobre zoneamento ou planejamento do uso da terra. Na maioria dos casos, essa competência cabe aos estados ou aos municípios (poder local). Isso significa que, para conhecer melhor as limitações impostas aos proprietários rurais seria necessário conhecer as legislações estaduais.
No caso específico das florestas, o principal papel do Governo Federal é regular o uso das florestas localizadas nas terras federais. As florestas cobrem um terço do território americano. Cerca de 45% dessas florestas estão em terra pública (federais, estaduais ou municipais). No caso das florestas em terras privadas (55% do total), o papel do Governo Federal está limitado a prover incentivos indiretos e executar programas voluntários para encorajar o manejo ambientalmente correto dessas florestas.
Por exemplo, o Serviço Florestal americano estabeleceu parâmetros para o manejo florestal nas faixas que margeiam os rios, denominadas “Streamside Management Zones” (SMZs), com o objetivo de preservar a qualidade das águas[56]. A SMZ é dividida em primária e secundária. A SMZ primária abrange a vegetação que margeia diretamente um corpo d’água e, conseqüentemente, assegura proteção direta à qualidade da água, mantendo a estabilidade das margens e filtrando a água que corre para o rio ou lago. Nessa zona, apenas atividades florestais de baixo impacto devem ser desenvolvidas. O Serviço Florestal americano utiliza os seguintes parâmetros, baseados na inclinação do terreno e na largura do curso d’água:
Para encostas com inclinação inferior a 20%, a SMZ primária deve ter pelo menos[57]:
§ 10,5 metros de cada lado de um curso d’água com menos de 6,1 metros;
§ 15,2 metros de cada lado de um curso d’água de 6,1 a 15,2 metros, ou
§ A largura do curso d’água, até o máximo de 30,5 metros, para curso d’água com mais de 15,2 metros.
Para encostas com inclinação igual ou superior a 20%, a SMZ primária deve ter pelo menos:
§ Até o topo da encosta ou 45,7 metros, o que for menor, de cada lado do curso d’água, independente da sua largura.[58]
A SMZ secundária é uma zona de transição entre a SMZ primária e o restante da floresta. Ela reduz o volume de sedimentos e outros resíduos que impactam a SMZ primária. O tamanho da SMZ depende da inclinação média do terreno adjacente à SMZ primária. A SMZ secundária deve ter, no mínimo[59]:
§ 15,2 metros para encosta com inclinação superior a 7%, mas inferior a 20%;
§ 22,9 metros para encosta com inclinação superior a 20%.
A maioria dos Estados americanos dispões de padrões ambientais próprios sobre, por exemplo, reflorestamento, erosão dos solos, poluição hídrica e controle de fogo. Aqui também, para conhecer com maior precisão as limitações ao uso da propriedade privada seria necessário estudar as legislações e regulamentos estaduais.
Para completar o quadro geral das normas que incidem sobre o uso da propriedade rural nos Estados Unidos é fundamental analisar a legislação que protege as espécies ameaçadas e em perigo de extinção. A matéria é regulada pelo “Endangered Species Act”, de 1973.[60]
A Lei das Espécies em Perigo tem por objetivo proteger as espécies ameaçadas ou em perigo de extinção em função do desenvolvimento econômico mediante ações adequadas de conservação. O objetivo da lei é proteger as espécies, incluindo, o que é fundamental, os ecossistemas dos quais elas dependem. A lei abrange animais vertebrados e invertebrados, e plantas.
Os órgãos ambientais elaboram e atualizam permanentemente uma lista de espécies ameaçadas e em perigo de extinção. Em agosto de 2008, a lista continua 1.327 espécies. Para cada espécie listada os órgãos ambientais devem elaborar um plano de recuperação estabelecendo metas, custos e tempo necessário para recuperar sua população e retirá-la da lista.
Os órgãos ambientais devem também indicar as áreas que devem ser protegidas para garantir a sobrevivência e recuperação de cada espécie listada (“critical habitats”). Essas áreas protegidas devem incluir todas as terras, públicas ou privadas, necessárias para a conservação da espécie.
Os órgãos ambientais federais estão proibidos de autorizar, financiar ou executar ações que possam destruir ou prejudicar os “habitats críticos”. As proibições da Lei de Espécies em Perigo não podem ser aplicadas diretamente aos proprietários rurais privados. Entretanto, a exploração florestal em propriedade privada depende de licenciamento federal. Isso faz com que, indiretamente, as proibições e limitações estabelecidas pela lei ao uso dos recursos naturais nos habitats críticos também seja aplicadas a essas propriedades.
Dois terços das espécies que constam da lista federal ocorrem em terras públicas[61]. O número de “habitats críticos” é da ordem de várias centenas[62]. Entretanto, para se ter uma idéia mais precisa do que isso representa, seria necessário uma pesquisa mais profunda para conhecer, por exemplo, a extensão dos “habitats críticos” que cobrem propriedades rurais privadas. Entretanto algumas informações, como o numero de espécies que constam da lista federal e a redução observada na taxa de inclusão de novas espécies na lista durante a administração George W. Bush (que, como se sabe, foi responsável por um retrocesso nos programas ambientais federais), indicam que a Lei de Espécies Ameaçadas impõe consideráveis limitações ao uso dos recursos naturais em muitas propriedades privadas.
Convém lembrar ainda que os Estados também elaboram listas de espécies ameaçadas e em perigo de extinção nos seus territórios, com espécies não incluídas na lista federal.
Em análise da legislação sobre florestas da Argentina e da Colômbia, não foi encontrado nenhum instituto semelhante ao da Reserva Legal. Entretanto, para uma avaliação mais segura, sobretudo no caso da Colômbia, seria necessário uma avaliação mais abrangente da legislação ambiental e não apenas da legislação florestal.
2.3.1 Preservação permanente e reserva legal
Área de preservação permanente e área de reserva legal constituem-se em dois institutos jurídicos diversos.[63]
Faz-se necessário então, distinguir essas duas figuras jurídicas criadas pelo Direito Ambiental.
Conforme art. 1º, §2º, II do Código Florestal, Lei Federal n.º 4.771, de 15 de setembro de 1965, com redação dada pela Medida Provisória 2.166-67, de 24 de agosto de 2001, consideram-se área de preservação permanente:
área protegida nos termos dos arts. 2º e 3º desta Lei, coberta ou não por vegetação nativa, com a função ambiental de preservar os recursos hídricos, a paisagem, a estabilidade geológica, a biodiversidade, o fluxo gênico de fauna e flora, proteger o solo e assegurar o bem-estar das populações humanas.
Assim sendo, áreas de Preservação Permanente são aquelas áreas descritas nos arts. 2º e 3º da lei nº. 4.771/65[64], coberta ou não por vegetação nativa, com função ambiental de preservar os recursos hídricos, a paisagem, a estabilidade geológica, a biodiversidade, o fluxo gênico de fauna e flora, proteger o solo e assegurar o bem-estar das populações humanas.[65]
O termo “Área de Preservação Permanente” há bastante tempo vem sido usado por uma razão, qual seja, “se dá pelo fato de que a floresta ou a vegetação devem estar presentes no espaço territorial compreendido pela já citada Área de Preservação Permanente”.[66]
Analisando essa definição, vale enfatizar “que não estão abrangidas somente as florestas, mas também as demais formas de vegetação nativa, primitiva ou vegetação existente sem a intervenção do homem”.[67]
No que tange à área de Reserva Legal, diz-se mais uma vez que são aquelas localizadas no interior de uma propriedade ou posse rural, excetuada a de Preservação Permanente, necessária ao uso sustentável dos recursos naturais, à conservação e reabilitação dos processos ecológicos, à conservação da biodiversidade e ao abrigo e proteção da fauna e flora nativas.[68]
A expressão “Reserva legal” foi utilizada para a caracterização do regime jurídico florestal. “No entanto, a expressão anteriormente citada soa como insuficiente, devendo a ela ser agregado o termo 'florestal', ficando, com isso, 'Reserva Legal Florestal''.[69]
As Áreas de Reserva Legal Florestal somente incidem sobre o domínio privado e decorrem de normas legais que limitam o direito de propriedade, da mesma forma que “as florestas e demais formas de vegetação permanente”, previstas também no Código Florestal. De acordo com o art. 225, § 1º, III, da Constituição Federal as Áreas de Reserva Legal Florestal encontram-se protegidas, sendo sua alteração e supressão permitidas somente através de lei, adquirindo, com a promulgação da Constituição supracitada, um caráter de inalterabilidade.[70]
De volta às áreas de preservação permanente ressalte-se que estas podem se apresentar de dois tipos: legais (ope legis) e administrativas. O primeiro tipo é aquele estabelecido pela própria lei, enquanto que o segundo depende de um ato administrativo.
O art. 2º do Código Florestal prevê as áreas de preservação permanente ope legis ou legais, ou seja, florestas e demais formas de vegetação situadas:
a) ao longo dos rios ou de qualquer curso d’água de menos de 10 metros de largura;(...)
b) ao redor das lagoas, lagos ou reservatórios d’água naturais e artificiais;
c) nas nascentes, ainda que intermitentes e nos chamados “olhos d’água”, qualquer que seja a sua situação topográfica, num raio mínimo de 50 metros e largura;
d) no topo de morros, montes montanhas e serras;
e) nas encostas ou parte destas, com declividade superior a 45º, equivalente a 100% na linha de maior declive;
f) nas restingas, como fixadoras de dunas ou estabilizadoras de mangues;
g) nas bordas de tabuleiros ou chapadas, a partir da linha de ruptura do relevo, em faixa nunca inferior a 100 metros em projeções horizontais;
h) em altitude superior a 1.800 mil metros, qualquer que seja a vegetação.
O art. 3º, por sua vez, estabelece que se considere de preservação permanente, quando assim declaradas por ato do Poder Público, as florestas e demais formas de vegetação natural destinadas:
a) a atenuar a erosão das terras;
b) a fixar as dunas;
c) a formar faixas de proteção ao longo de rodovias e ferrovias;
d) a auxiliar a defesa do território nacional a critério das autoridades militares;
e) a proteger sítios de excepcional beleza ou de valor científico ou histórico;
f) a asilar exemplares da fauna ou flora ameaçados de extinção;
g) a manter o ambiente necessário à vida das populações silvícolas;
h) a assegurar condições de bem-estar público.
Machado[71] indaga o que se deveria fazer se
inexistirem essa formas de vegetação ao longo dos rios e cursos d’água, ao redor das lagoas e dos reservatórios, no topo dos morros, montes, montanhas e serras? E se essas formas de vegetação forem consumidas por doenças, por incêndios ou por derrubadas pela ação do homem? Continuariam estas terras com a obrigação de ser destinadas à vegetação de preservação permanente?
Para ele, o Poder Público poderá providenciar o reflorestamento, sem recorrer ao instituto da desapropriação, se não o fizer o proprietário e cobrar o valor correspondente.
“Ainda que não esteja textualmente previsto no Código florestal, é de se entender que possam ser cobradas pelo Poder Púbico as despesas efetuadas para implantar as florestas ou executar o reflorestamento[72]”.
Acrescenta ainda que o Poder Público terá o dever de providenciar o reflorestamento no caso das do art. 2º, por se tratar de APPs legais e a faculdade em relação às instituídas com base no art. 3º, em função de serem administrativas.
Ainda que não seja simples a solução, diverso tratamento jurídico há de ser dado às florestas de preservação permanente do art. 2º e às florestas de preservação permanente do art. 3º. As do art. 2º existem em razão do próprio Código Florestal, enquanto que as do art. 3º foram criadas por uma decisão que emanou do poder discricionário da Administração. Na constituição das florestas compreendidas no art. 2º não interveio a discricionariedade da Administração: são imperativas. Assim, parece-me que há uma obrigação para a Administração de arborizar ou reflorestar as APPS abrangidas no art. 2º do Código Florestal. Quanto às florestas de preservação permanente criadas conforme o art. 3º do mesmo Código, será a Administração quem decidirá da conveniência e da oportunidade de reflorestar as áreas atingidas, avaliando a questão através de adequada motivação[73].
Percebe-se, então, que o grande objetivo das áreas de preservação permanente é manter as áreas com sua vocação ambiental original, de forma que caso a vegetação tenha sido retirada, deverá ser replantada pelo proprietário, ou pelo Poder Público.
Cavedon[74] esclarece que a instituição das Áreas de Preservação Permanente beneficia o proprietário e toda a coletividade.
A proteção integral das Áreas de Preservação Permanente beneficia diretamente a coletividade e o proprietário, pois contribuem para a manutenção da integridade ambiental e das finalidades econômicas e sociais da Propriedade. A fixação, pelo Código Florestal, de determinada vegetação como de preservação permanente não se deu de forma aleatória. A vegetação é assim considerada pela função que desempenha para a proteção das áreas que reveste. Conseqüentemente, “sua natureza jurídica não é de simples restrição imposta pelo Poder Público, mas decorre de sua própria situação, de sua própria qualificação natural. São restrições, portanto, co-naturais à existência da floresta nas condições indicadas.
O art. 4º do Código, acrescentado pela referida MP, assevera que
a supressão de vegetação em área de preservação permanente somente poderá ser autorizada em caso de utilidade pública ou de interesse social, devidamente caracterizados e motivados em procedimento administrativo próprio, quando inexistir alternativa técnica e locacional ao empreendimento proposto.
O §1º do referido artigo dispõe que a supressão de que trata o caput deste artigo dependerá de autorização do órgão ambiental estadual competente, com anuência prévia, quando couber, do órgão federal ou municipal de meio ambiente, ressalvado o disposto no § 2º do mesmo artigo.
Com base na redação do artigo, resta claro que a Medida Provisória permite a supressão de vegetação em área de preservação permanente, legal ou administrativa, por meio de autorização do órgão ambiental competente. Ocorre que tal redação conflita com o texto constitucional federal, que no art. 225, III da CF/88, estabelece que a supressão dos espaços territoriais especialmente protegidos e de seus componentes só pode ser feita por meio de lei. Em função da dúvida existente foi, então, proposta Ação Direta de Inconstitucionalidade, tombada sob o n.º 3.540, pelo Procurador Geral da República, contra o art. 1º da referida Medida Provisória, na parte em que alterou o art. 4º, caput e parágrafos 1º ao 7º do Código Florestal.
Num primeiro momento, em julho de 2005, foi deferida liminar, pelo Ministro Nelson Jobim suspendendo a eficácia dos artigos questionados. Todavia, a suspensão dos artigos gerou a insatisfação de representantes de diversos Estados[75] da Federação, sob a alegação de que inúmeras obras teriam que ser paralisadas em função da medida.
A ADIN foi então julgada, em setembro de 2005, e o Supremo Tribunal Federal, por sete votos a dois, revogou a liminar anteriormente concedida e se pronunciou no sentido de que a interpretação dos artigos do Código Florestal e da Constituição Federal deve ser feita do seguinte modo: a supressão a que diz respeito a CF se refere ao próprio regime jurídico das áreas que deve, então, ser feito apenas por meio de lei.
No entanto, a supressão de vegetação de dentro dessas áreas pode ser feita por simples ato administrativo (autorização) desde que a possibilidade se subsuma a uma das hipóteses do Código Florestal, qualificadas como de utilidade pública ou interesse social, conforme redação dada pela Medida Provisória 2.166-67, de 24 de agosto de 2001.
Machado[76], antes do advento da ADIN n.º 3.504, se manifestou no sentido de que a supressão só poderia ser realizada por meio de lei, sendo “lei específica para cada caso”, conforme trecho a seguir:
Nem todos os espaços estão submetidos à mesma proteção jurídica. Os que gozam de uma especial proteção – como os destinados às florestas de preservação permanente e às reservas legais florestais – só poderão ser alterados e suprimidos através de lei. Lei específica para cada caso. A Constituição não está impedindo totalmente que a lei suprima ou altere esses espaços, mas indica procedimento específico para a transformação, que é o processo legislativo. Os constituintes manifestaram a vontade do povo brasileiro de que haja maior tempo e maior discussão quando se pretenda suprimir ou alterar os espaços protegidos e seus componentes[77].
No mesmo sentido Borges[78],
Entende-se que, diante do dispositivo constitucional do art. 225 1º, III, as áreas de preservação permanente do art. 3º só podem ser alteradas ou suprimidas através de lei, não por ato administrativo, como no caso da sua criação, apesar do que dispõe o art. 3º mencionado acima.
Com base no resultado do julgamento da ADIN n.º 3.504, as áreas de preservação permanente poderão ter sua vegetação suprimida simplesmente com a edição de um ato administrativo, sem passar pelo devido processo legislativo.
Tal resultado pode vir a ser extremamente prejudicial a tais espaços territoriais especialmente protegidos. O resultado implicou no verdadeiro esvaziamento do conteúdo das áreas de preservação permanente.
2.4 Registro imobiliário
O Código Florestal, modificado pela lei 7.803/89, acrescentou a averbação da Reserva Florestal Legal no Registro Imobiliário. Trata-se de uma limitação que incide sobre cada propriedade rural, nas coberturas florestais naturais e nos maciços frutíferos, ornamentais ou industriais.
Na área de Reserva Legal, “delimitada por técnico florestal, devidamente inscrito no CREA, em croqui ou planta, são delimitadas todas as divisas e confrontações, que demarcam o local exato onde se situa a reserva”.[79]
A averbação da Reserva Legal tem como fim “delimitar uma área de cobertura florestal que, além de ser preservada, não poderá ser cortada e/ ou explorada”. O momento de se fazer a averbação é na matrícula do imóvel, constituindo-se um ônus real que acompanhará sempre o imóvel, seja em alienações ou desmembramentos posteriores. “Quando a averbação se der em matrícula que tiver vários proprietários (co-propriedade), é necessária a apresentação de Carta de Anuência dos demais comunheiros”.[80]
Outro aspecto muito importante no momento da averbação é o lançamento das divisas e confrontações visando especificar na matrícula do imóvel onde foi locada a área de Reserva Legal, que terá sua utilização limitada, não podendo ser feito qualquer tipo de exploração, exceto com autorização do IEF.[81]
Segue abaixo um exemplo sugerido pelo autor[82] para procedimento de averbação:
Procede-se esta averbação nos termos do Termo de Responsabilidade de Preservação de Floresta, datado de .../.../...., no qual ...... declara como área preservada à reserva florestal a seguinte: A que está localizada (constar as divisas e confrontações), conforme planta, com a área de ... ha., não inferior a ....% do total da propriedade constante da presente matrícula e que fica gravada como de utilização limitada, não podendo nela ser feito qualquer tipo de exploração, a não ser mediante autorização do IEF. OBS: (Constar carta de anuência, quando for o caso).
A reserva legal deve ser averbada à margem da inscrição da Matrícula Imobiliária no Cartório de Registro de Imóveis, de acordo com os preceitos do art. 16, § 8º, do Código Florestal. In verbis:
Art. 16. [...]
§ 8º A área de reserva legal deve ser averbada à margem da inscrição de matrícula do imóvel, no registro de imóveis competente, sendo vedada a alteração de sua destinação, nos casos de transmissão, a qualquer título, de desmembramento ou de retificação da área, com as exceções previstas neste Código. (Incluído pela Medida Provisória nº 2.166-67, de 2001)
Averbada a reserva legal, o proprietário rural formaliza a criação da reserva legal, assumindo uma obrigação de fazer, de constituir a reserva florestal, suportando como custo do reflorestamento, o custo da fiscalização e da preservação da área, ficando até mesmo sujeito às severas penalidades da legislação ambiental, nada recebendo em troca.[83]
Entretanto, tal situação não está explícita na legislação, tampouco é esclarecida pelo Poder Público, mas as sanções estão previstas e são rigorosas. Deste modo, aduz o autor que o proprietário deve ter muito cuidado na hipótese de optar livremente pela averbação da reserva florestal legal porque estará assumindo um grande ônus: “plantio, replantio, fiscalização, preservação, impossibilidade de exploração econômica da área, etc”.[84]
O Decreto nº 6.514/08 estabelece sanções para quem não averbar a reserva florestal, segundo os preceitos de seu art. 55:
Art. 55. Deixar de averbar a reserva legal:
Penalidade de advertência e multa diária de R$ 50,00 (cinqüenta reais) a R$ 500,00 (quinhentos reais) por hectare ou fração da área de reserva legal. (Redação dada pelo Decreto nº 6.686, de 2008).
§ 1º O autuado será advertido para que, no prazo de cento e vinte dias, apresente termo de compromisso de averbação e preservação da reserva legal firmado junto ao órgão ambiental competente, definindo a averbação da reserva legal e, nos casos em que não houver vegetação nativa suficiente, a recomposição, regeneração ou compensação da área devida consoante arts. 16 e 44 da Lei nº 4.771, de 15 de setembro de 1965. (Redação dada pelo Decreto nº 6.686, de 2008).
§ 2º Durante o período previsto no § 1º, a multa diária será suspensa. (Redação dada pelo Decreto nº 6.686, de 2008).
§ 3º Caso o autuado não apresente o termo de compromisso previsto no § 1º nos cento e vinte dias assinalados, deverá a autoridade ambiental cobrar a multa diária desde o dia da lavratura do auto de infração, na forma estipulada neste Decreto. (Incluído pelo Decreto nº 6.686, de 2008).
§ 4º As sanções previstas neste artigo não serão aplicadas quando o prazo previsto não for cumprido por culpa imputável exclusivamente ao órgão ambiental. (Incluído pelo Decreto nº 6.686, de 2008).
De acordo com o Decreto 6.514/08, o prazo para criação da reserva legal era de 180 dias a partir de sua publicação em 23 de julho de 2008, o que expiraria em 23 de janeiro de 2009. Porém, com a alteração introduzida pela Decreto nº 6.686/08, o prazo passou para 120 dias, com a vigência do art. 55 prorrogada para 11 de dezembro de 2009, visto o que dispõe o art. 152 do primeiro decreto.[85]
Assim sendo, o prazo de 120 dias começa a contar a partir de 12 de dezembro de 2009.
3 O DIREITO DE PROPRIEDADE
Para se tentar definir qual o conteúdo do direito de propriedade e qual a natureza de tal direito, necessário se faz, primeiramente, entender o que etimologicamente significa.
No caso da Propriedade, o confronto etimológico não evidencia mudanças fundamentais com o correr do tempo. O substantivo Propriedade deriva do latino proprius e significa: “que é de um indivíduo específico ou de um objeto específico (nesse caso, equivale a: típico daquele objeto, a ele pertencente), sendo apenas seu”. A etimologia oferece os traços de uma oposição entre um indivíduo ou um objeto específico e o resto de um universo de indivíduos e de objetos, como categorias que se excluem reciprocamente. O conceito que daí emerge é o de “objeto que pertence a alguém de modo exclusivo”, logo seguido da implicação jurídica: “direito de possuir alguma coisa”, ou seja, “de dispor de alguma coisa de modo pleno, sem limites”. A implicação jurídica (de enorme importância sociológica) surge logo: ela é, com efeito, um elemento essencial do conceito de Propriedade, dado que todas as línguas distinguem como já fazia o direito romano, entre “posse” (manter “de fato” alguma coisa em seu poder, independentemente da legitimidade de fazê-lo) e Propriedade (ter o direito de possuir alguma coisa, mesmo independentemente da posse de fato).[86]
Dentre outros conceitos pode-se dizer que propriedade significa também para o Direito Civil: “b) imóvel rural ou urbano; bem de raiz;”.[87]
Rocha[88] observa que “propriedade não se confunde com direito de propriedade”. Uma coisa é o bem titularizado pelo sujeito e outra coisa é o regime jurídico a regular o uso, gozo e fruição de tal bem num determinado sistema jurídico.
Para os povos primitivos só havia propriedade individual para os objetos de uso pessoal, não havendo possibilidade de um indivíduo possuir bens imóveis já que o solo pertencia a toda coletividade. Entretanto, nesse sentido não existia a propriedade mas, sim a posse que já existia antes mesmo do direito.[89]
Continua o autor afirmando não ser possível identificar o momento exato do surgimento da propriedade. Porém, afirma que a Lei das XII Tábuas foi a primeira organização jurídica escrita entre os romanos que contemplou o instituto da propriedade. Nessa época, o indivíduo recebia uma porção de terra para cultivar; finda a colheita esse mesmo pedaço de terra voltava a ser de uso coletivo. Aos poucos foi criando-se o costume de conceder a mesma porção de terra à mesma pessoa por diversas vezes e por períodos prolongados. Esse fato levou os romanos a perceber a propriedade de maneira individual e absolutista.
Essa nova realidade trouxe dispositivos que vieram a caracterizar a propriedade, ou seja, o direito de usar, fruir e de dispor de forma ilimitada. Contudo, em determinada época se pode perceber o uso abusivo ao direito de propriedade, admitindo-se, com isso, sua reprimenda.[90]
Na Idade Média, por exemplo, a propriedade passou a ser sinônimo de poder, ligando-se de forma direta à questão de soberania nacional, vez que o direito de propriedade era confundido com a jurisdição política.[91]
Com o feudalismo adveio uma nova noção de propriedade, já que, não sendo esta unitária havia o exercício simultâneo de dois domínios, o dos senhores feudais ou eminente e o domínio útil, exercido pelos vassalos. Nesse caso, os senhores feudais recebiam dos vassalos uma indenização pelo uso da propriedade.[92]
Segundo Venosa, a Revolução Francesa foi um marco importantíssimo na história da propriedade, vez que repudiou o sistema feudal e aboliu privilégios da nobreza e do clero. Com essa mudança, a propriedade passou a ser concebida como um direito inviolável e sagrado o que acabou por gerar reações adversas, ou seja, a reação socialista, que deu um sentido social para a propriedade. Como conseqüência, a propriedade passaria a ser do Estado que dava ao cidadão o direito de usufruto e que, por sua vez, seria transmitido pelo direito sucessório.[93]
O desejo do homem de ser detentor de algum poder sobre a propriedade, desejo esse inerente à sua própria natureza, ressurgiu com a queda do mundo comunista.
Propriedade, então, pode ser entendida como alguma coisa que pertence a alguém e que, em função disso, pode ser oposta a uma universalidade de pessoas. Sempre foi tratada como um direito privado por excelência, uma vez que é a base de sustentação do regime liberal-burguês-capitalista. É uma noção inerente ao ser humano que se tem mesmo sem maiores explicações.
Nascida então a propriedade, cumpria impor-lhe normas jurídicas segundo as quais o seu exercício se tornasse fonte de direitos, não de conflitos. Havida a propriedade, sobreveio o direito de propriedade, assim entendido como a concepção e a definição daquela função e do domínio que se possa exercer sobre o seu objeto em determinado Estado por força do quanto posto e disposto no ordenamento jurídico.
Rocha[94] observa ainda que no estudo do direito de propriedade dois fatores devem ser levados em consideração: o fator político e o econômico.
Desse modo, analisar o direito de propriedade nos diversos ordenamentos jurídicos é tarefa que deve ser feita partindo destes fatores para entender melhor a opção jurídica adotada para a regulação de tal direito.
Não se poderia pensar e estudar o direito de propriedade senão engajadamente, a dizer, considerando-se o que cada sociedade, em dado período de sua história, estabelece como legítimo, justo, adequado e juridicamente obrigado em suas normas.
Importante ressaltar que o modelo adotado pelo sistema representa uma opção política adotada e que repercutirá em diversos outros setores e, por isso, é feita de forma clara na Carta Constitucional, podendo, no entanto, ser detalhada na legislação infra constitucional.
Rocha faz uma crítica interessante ao afirmar que curiosamente, a matéria relativa ao direito de propriedade não é tão relevada pelos estudiosos do direito constitucional como é pelos civilistas. Aqueles, não poucas vezes, no Brasil, desprezam – mais que desconhecem – os princípios e regras constitucionais relativos à matéria, cuidando do tema como se fosse uma questão prioritária, quando não exclusiva, de direito privado, o que, à evidência, não é. O pouco cuidado do tema pelos constitucionalistas e o não aproveitamento do tema nos programas de direito constitucional nas Faculdades de Direito são, em boa parte, explicação (mas não justificativa) para o estudo centradamente civilista do tema, o que conduz, em geral, a deturpações de definições jurídicas e a referências doutrinárias equivocadas.
Nesse sentido, falar em direito de propriedade não significa necessariamente falar em direito de propriedade privada, uma vez que esse é decorrente de uma opção política adotada pelos Estados (a maioria deles) que optam pelo sistema capitalista.
Direito de propriedade não significa direito de propriedade privada (ou direito à propriedade privada). O regime jurídico que incide sobre a propriedade pode partir de uma definição política fundamental, constitucionalmente plasmada, referente à propriedade pública ou à propriedade privada. A escolha feita define um dos princípios básicos da ordem econômica e revela a opção pelo modelo econômico posto como estrutura do Estado constitucionalizado. A propriedade marca e demarca, pois, não apenas a ordem econômica de um Estado, mas é esse elemento que define linhas mestras da organização socio-política, sendo também, e em caminho inverso e paralelo, impactada, constitucionalmente, pelo regime político adotado[95].
Além de se falar em propriedade e direito de propriedade como conceitos diferenciados, há também que se esclarecer o que pode ser entendido como direito à propriedade, uma vez que na técnica jurídica mais apurada, o direito de propriedade não se confunde com o direito à propriedade.
Direito à propriedade seria o direito que determinado sistema assegura a todos os que cumpram os requisitos e as condições previstos no ordenamento de virem a se tornar proprietários de bem, ou seja, de vir a titularizar o direito de propriedade[96].
Propriedade, então, é o próprio bem em si considerado, direito de propriedade é o regime jurídico que regula o uso do referido bem e direito à propriedade é o direito assegurado pelo sistema a aquisição de um determinado bem.
3.1 Direito de propriedade privada
A Lei Fundamental portuguesa consagra um direito à propriedade e um direito de propriedade privada, esclarecendo se tratar de um direito constitucional análogo aos direitos, liberdade e garantias e que, como tal, possui um conteúdo mínimo garantido constitucionalmente, de forma que, ao legislador ordinário não compete legislar de forma livre sobre a matéria.[97]
Quem, como nós, entende que o direito de propriedade privada é um direito análogo aos direitos, liberdades e garantias não pode deixar de pugnar pela estabilização de um conteúdo constitucional para este direito. Com efeito, a propriedade privada afigura-se uma propriedade positiva porque o seu regime se encontra pré-figurado na Constituição e configurado pela lei, o que não quer dizer que o legislador ordinário se encontre totalmente livre na tarefa de conformar o direito em apreço, ou seja, que a este caiba a determinação da totalidade do seu conteúdo. Na verdade, o legislador ordinário, conforme visto encontra-se, na tarefa de complementar o conteúdo deste direito fundamental, sujeito, por um lado, à garantia da propriedade, isto é, à utilidade privada ou exercibilidade prática que tal direito comporta e, por outro lado à função social que esta desempenha no actual quadro de Estado Social de Direito, cabendo-lhe ponderar de modo justo ou proporcional os interesses dos particulares e as exigências da comunidade. O facto de se tratar de um direito cujo regime a lei complementa não faz com que deixe de ser também um direito fundamental que, porque de natureza análoga aos direitos, liberdades e garantias, goza de um conteúdo pré-configurado no preceito correspondente da Lei Fundamental[98].
De uma forma geral, no entanto, a doutrina acaba misturando os três conceitos. O fato é que trata-se de um direito real que, como tal, recai diretamente sobre a coisa e que independe, para o seu exercício, de prestação de quem quer que seja.
Ao proprietário são asseguradas as faculdades de usar, gozar, dispor da coisa e o direito de reavê-la do poder de quem quer que injustamente a possua ou detenha, conforme estabelece o art. 1228 do Código Civil de 2002.
O parágrafo único acrescenta que
O direito de propriedade deve ser exercido em consonância com as suas finalidades econômicas e sociais e de modo que sejam preservados, de conformidade com o estabelecido em lei especial, a flora, a fauna, as belezas naturais, o equilíbrio ecológico e o patrimônio histórico e artístico, bem como evitada a poluição do ar e das águas.
O jus utendi, direito de usar, significa que ao proprietário é facultado utilizar a coisa conforme sua vontade, bem como de excluir estranhos de igual uso, “direito de usar da coisa é o de tirar dela todos os serviços que ela pode prestar, sem que haja modificação em sua substância”[99].
Jus fruendi é o direito de gozar de sua propriedade colhendo os frutos dela advindos, bem como explorá-la economicamente, de forma a aproveitar seus produtos, com base na regra de que o acessório segue o principal. O jus abutendi ou disponendi, direito de dispor da coisa, representa a possibilidade que o proprietário possui de se desfazer da coisa.
Equivale ao direito de dispor da coisa ou poder de aliená-la a título oneroso (venda) ou gratuito (doação), abrangendo o poder de consumi-la e o poder de gravá-la de ônus (penhor, hipoteca, servidão etc) ou de submetê-la a outrem[100].
Todavia, tal direito não significa a prerrogativa de abusar da coisa, destruindo-a gratuitamente. O direito de dispor da coisa não garante ao proprietário o direito de dela se desfazer de forma a prejudicar outras pessoas ou de forma abstrata, a própria sociedade.
Rodrigues observa que:
(..) se nem no Direito Romano se admitia a idéia de um uso anti-social do domínio, hoje tal noção é inconcebível, principalmente em um país como o nosso, cujas várias Constituições de há muito proclamam que o uso da propriedade será condicionado ao bem estar-social[101].
Por fim, ao proprietário também é garantida a prerrogativa de reivindicar o seu bem das mãos de quem injustamente o detenha. Tal prerrogativa existe até mesmo para garantir o exercício das faculdades anteriores.
A propriedade não é a soma desses atributos, ela é direito que compreende o poder de agir diversamente em relação ao bem, usando, gozando ou dispondo dele. Esses elementos podem concentrar-se num só indivíduo, caso em que a propriedade é plena, ou desmembrar-se, quando se transfere a outrem um de seus atributos, como na constituição do direito real de usufruto, em que o proprietário tem o domínio eminente, embora o uso da coisa passa ao conteúdo patrimonial de outra pessoa, que terá o domínio útil. O proprietário poderá até perder a disposição do bem, por força de inalienabilidade oriunda da lei ou de sua própria vontade.
Grande parte da doutrina[102] aponta que o direito de propriedade é um direito absoluto, exclusivo e perpétuo. Tais caracteres devem ser vistos com parcimônia, uma vez que sua feição original, baseada no direto romano não mais se sustenta perante o atual Estado de Direito.
O caráter absoluto se deve a oponibilidade erga omnes que possui o direito de propriedade e ao fato de ser o mais completo de todos os direitos reais que dele decorrem e, além disso, pelo fato de que o seu titular pode desfrutar e dispor do bem como quiser, sujeitando-se apenas às limitações impostas em razão do interesse público ou da coexistência do direito de propriedade de outros titulares.
Conforme observa Rodrigues,
Talvez se possa dizer que a evolução histórica do direito de propriedade se manifesta, em linhas gerais, no sentido de uma incessante redução dos direitos do proprietário. Realmente, a despeito de se haver, acima, afirmado seu caráter absoluto, o domínio sempre sofreu restrições e a evolução profunda que experimenta em nossos dias se marca por um considerável aumento de tais restrições[103].
O direito de propriedade já foi em outros momentos históricos considerado como o direito mais importante do ordenamento jurídico. E não se fala de distâncias de eras geológicas, mas de séculos que culminaram com uma profunda alteração na estrutura do pensamento ocidental e na mudança de paradigma do individualismo pleno para uma visão com cunho mais social.
Desta forma, dizer que a propriedade é considerada absoluta, não quer, de forma alguma, significar que ela está imune às restrições legais, muito pelo contrário, tal entendimento não mais se sustenta perante o sistema jurídico atual. Dizer que o direito de propriedade é absoluto apenas significa que pode ser oposto a todas as pessoas e que se trata do mais completo dos direitos reais.
A propriedade é um direito real absoluto, no sentido de haver plenitude nas faculdades de usar, gozar e dispor que o proprietário tem sobre o objeto de sua propriedade, enquanto, no caso dos direitos reais limitados, tais faculdades só podem ser exercidas respeitando-se os direitos de outro titular de direito real.
A exclusividade decorre do fato de não se admitir que mais de uma pessoa possa exercer o mesmo direito sobre determinado objeto. Exclusiva é então a propriedade porque somente um único sujeito pode exercer o mesmo poder jurídico sobre ela. Não há que se confundir tal situação com a do condomínio, uma vez que no caso do condomínio, o que ocorre não é a propriedade de diversas pessoas sobre o mesmo objeto, mas a de cada condômino sobre uma fração ideal do objeto com condomínio.
Diniz[104] esclarece que “a mesma coisa não pode pertencer com exclusividade e simultaneamente a duas ou mais pessoas. O direito de um sobre determinado bem exclui o direito de outro sobre o mesmo bem”.
A exclusivização da propriedade por um sujeito e a sua retirada do espaço de incidência da vontade de outrem faz com que este não possa ser titular do direito a esta mesma propriedade, pelo que se restringe, assim, o direito de todos os outros, que não o titular, pelo reconhecimento e garantia do direito de propriedade.
Se tanto poderia parecer uma restrição, num primeiro olhar voltado ao tema, por outro se tem que a propriedade privada e o direito que a submete são demonstrações da igual liberdade, assegurada a todos, de munirem-se de condições materiais e fazerem produzir o necessário para proverem as suas necessidades por meio de bens, cujo uso se condiciona segundo o querer e o agir de cada um.
Por isso é que se têm vinculadas as idéias e normas sobre o direito de liberdade ao direito de propriedade. Não porque sejam de igual natureza ou disponham de idêntica essência no direito, mas porque o direito de propriedade condicionaria ou possibilitaria o exercício do direito de liberdade segundo um sistema de normas juridicamente positivadas.
A terceira característica apontada para o direito de propriedade é a perpetuidade e se deve ao fato de que subsiste independentemente de exercício, enquanto não sobrevier causa extintiva legal ou oriunda da própria vontade do titular, não se extinguindo, portanto, pelo não-uso. A propriedade é tida como perpétua porque a tendência normal é que continue existindo, só tendo fim “pela vontade do dono, ou por disposição da lei.
Por fim, a propriedade também é apontada como elástica, uma vez que o domínio pode ser distendido ou contraído, no seu exercício, conforme lhe adicionem ou subtraiam poderes destacáveis[105].
A propriedade, enfim, é elástica, significando tal qualidade que, quando perde a sua plenitude, tende a recuperá-la com a extinção dos direitos reais limitados existentes sobre o objeto.
Assim, desaparecendo, por qualquer motivo, o direito limitado, a propriedade que era limitada ou onerada torna-se plena ou ilimitada. Assim a renúncia à servidão ou a morte do titular do direito vitalício de usufruto importa o restabelecimento da plenitude da propriedade em favor do nu-proprietário ou do titular da propriedade gravada, em virtude de sua elasticidade.
A propriedade nas constituições liberais era tratada como direito de natureza individual, absoluto e sagrado pelo ordenamento jurídico, influenciado pela Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão.
O Código de Napoleão foi o maior responsável por tal visão da propriedade, uma vez que era considerado o código da propriedade “fazendo ressaltar acima de tudo o prestígio do imóvel, fonte de riqueza e símbolo da estabilidade”[106].
De acordo com Borges[107], o direito subjetivo na concepção clássica é o poder jurídico conferido como faculdade, entregue ao titular, para que, com o seu exercício, atenda aos interesses individuais desse titular.
O direito de propriedade, ainda hoje, é tido como direito subjetivo por excelência, o mais amplo dos direitos reais, que subordina a coisa à vontade do proprietário.
O proprietário recebe a faculdade de exercer poderes jurídicos sobre a coisa. Entre esses poderes, estão os de excluir a intervenção indesejada de terceiros, usar o bem, fruir, dispor materialmente, dispor juridicamente, alterar a destinação econômica, destruir-lhe a substância e reivindicá-la de quem injustamente a possua.
Tudo isso é entregue ao proprietário para que ele exerça o direito visando a seu interesse individual.
A descrença no liberalismo clássico fez com que a premissa adotada para o direito de propriedade passasse a ser discutida e a própria natureza do direito até então considerada como individual, passou a ser criticada em prol do exercício de uma função, de acordo com a teoria de Duguit.
O fato é que a natureza do direito em questão passou a ser questionada, eis que havia de forma clara dois entendimentos sobre o assunto: um que afirma a natureza de direito subjetivo da propriedade, para o qual o proprietário pode então usar, gozar e fruir da forma como melhor lhe aprouver sem maiores problemas; outra que afirma que o direito de propriedade existe em prol de um benefício maior e para proporcionar um benefício maior, de maneira que deixa de ser visto como poder jurídico em prol de benefícios individuais para ser encarado como poder jurídico a ser empenhado em prol dos interesses da sociedade.
A Constituição da República Federativa do Brasil de 1988 aborda o direito de propriedade de duas formas diferentes: como direito fundamental, de acordo com a ótica clássica do direito, e como elemento da ordem econômica, de forma a enfatizar a função social. O art. 5o da Constituição de 1988 que trata dos direitos e garantias dispõe que: “XXII – é garantido o direito de propriedade; XXIII – a propriedade atenderá a sua função social”.
Além da previsão do art. 5o, a Constituição trata da propriedade no Capítulo destinado aos princípios gerais da atividade econômica, em seu artigo 170, no qual dispõe:
A ordem econômica, fundada na valorização do trabalho humano e na livre iniciativa, tem por fim assegurar a todos existência digna, conforme os ditames da justiça social, observados os seguintes princípios:
II – propriedade privada;
III- função social da propriedade;
VI- defesa do meio ambiente.
A respeito da discussão sobre a natureza do direito de propriedade Rocha esclarece que o entendimento adotado desde a Antiguidade é o de que a propriedade seria sim um direito subjetivo.
O direito à propriedade privada vem sendo considerado, desde a Antiguidade e, inclusive, no Estado Moderno, mais em razão do sujeito que o titulariza do que da função que o legitima. Daí ser ele estudado, enfaticamente, e anunciado, juridicamente, como direito subjetivo[108].
Guimarães Júnior[109] faz observação semelhante ao afirmar que,
Com o passar do tempo o status da propriedade na ordem jurídica passou por uma verdadeira revolução copernicana. Sua tradicional concepção “egoísta” transformou-se em concepção “altruísta”. Em outras palavras, verificou-se uma mudança de referencial: o direito de propriedade deixou de ser medido exclusivamente a partir do ponto de vista do proprietário, para ser delineado conforme interesses da coletividade. Diversos juristas apontam nessa evolução uma quebra da dicotomia ortodoxa que separava o direito público do direito privado.
Não obstante a afirmação de que o direito de propriedade foi considerado por muito tempo um direito subjetivo, o que excluiria uma função social, Rocha observa que essa visão é ultrapassada e que o fato de ser direito subjetivo não exclui a necessidade de desempenhar uma função social.
A natureza de direito subjetivo, predominantemente aceita para o direito de propriedade, não o torna incompatível com o desempenho de função social, inclusive, nos ordenamentos jurídicos que permitam a qualificação jurídica privada para a apropriação e a disposição do bem.
Há doutrinadores, portanto, que conseguem analisar o direito de propriedade de uma forma mais ampla e profunda sem desnaturar a questão do direito subjetivo, mas, também, sem deixar de lado a função social que guia sua utilização. Para essa corrente o conteúdo do direito de propriedade deve ser visto de forma aberta, dilatada, abrangendo tanto os interesses individuais quanto a função.
É o que faz, também, Fernandez[110] ao considerar que o conteúdo do direito de propriedade “assume natureza complexa, sendo qualificado, por via disso, como um direito fundamental de dupla face ou de duplo carácter”.
Com efeito, o direito de propriedade assume no seu conteúdo constitucional uma vertente ou dimensão objectivo-institucional (derivada da função social que cada categoria de bens se encontra obrigada a cumprir) e, simultaneamente, uma vertente subjectiva individual que integra o conteúdo essencial deste direito. Estas duas vertentes do direito de propriedade privada não se opõem uma à outra, antes pelo contrário, a determinação do aspecto objectivo não visa senão reforçar o aspecto subjectivo do mesmo. Existe uma igualdade de rango entre as duas vertentes, que se completa que se manifestam de modo simultâneo e que se correlacionam entre si constituindo uma garantia mútua[111].
O conteúdo do direito de propriedade teria duas dimensões ou vertentes: uma associada diretamente a função social e, por isso, chamada de objetivo-institucional e outra ligada ao exercício de um direito subjetivo individual e, por isso, denominada de subjetivo-individual.
Estas duas vertentes nada mais são do que as duas faces de uma mesma moeda, no caso o conteúdo de um direito que não pode ser analisado sob a ótica exclusivamente individualista, mas que também não pode ser enfocado apenas pelo interesse social sob pena de, seguindo unicamente quaisquer uma das duas orientações, cometer graves injustiças.
“A norma do artigo 62º da CRP não contém duas espécies diferentes de propriedades, mas contempla um único direito de propriedade privada com duas faces ou dimensões diferentes que funcionam como um todo[112]”.
Ao dizer que as duas dimensões se encontram em regime de igualdade, que elas se completam, nada mais se quer do que enfatizar que uma não é mais importante do que a outra e não pode se sobrepor sem razões efetivas. Há que se evitar uma “interpretação fraccionada (...) segundo a qual a propriedade entendida como direito subjetivo estaria muito limitada, enquanto que como instituição jurídica se encontraria no centro do sistema social, econômico e político”[113].
A vertente objetivo-institucional está diretamente ligada aos objetivos que o sistema jurídico estabelece para o exercício de determinado direito e que, como tal, podem variar de tempos em tempos com a própria evolução do conceito de Estado. Sendo assim, esta dimensão é integrada por princípios, ou seja, imperativos de optimização que devem ser realizados tendo em conta as possibilidades fácticas e jurídicas e que, consequentemente podem ser realizados em grau diferenciado.
A orientação da vertente institucional se faz, então, com base em princípios que, como se sabe, não possuem uma aplicabilidade equivalente à das leis que trabalham com a subsunção do fato à norma estabelecida. No caso dos princípios há que se ponderar a situação concreta e analisar qual o objetivo que está a orientar todo o ordenamento jurídico para se chegar a uma decisão.
Ademais, a vertente subjetivo-individual encontra-se composta por regras, normas caracterizadas pela lógica do tudo ou nada que alternam apenas entre a possibilidade do cumprimento ou do incumprimento.
A dimensão individual que aborda o direito subjetivo é realizada de maneira clara, com base em regras, ou seja, normas de conteúdo fechado que apontam claramente a decisão a ser tomada no caso da ocorrência da situação estabelecida. Isso ocorre para que o indivíduo tenha plena ciência dos poderes que lhe são atribuídos e também para que possa se proteger de quaisquer violações ao que a lei lhe garantiu. É esse o objetivo pelo qual o direito subjetivo é resguardado por regras, enquanto que o interesse do próprio sistema que pode ser alterado com a evolução dos temas se faz com base em princípios, de forma a se respeitar o direito individual, mas orientar a sua execução.
A vertente ou dimensão objectivo-institucional dirigindo-se exclusivamente ao legislador proíbe-o de afectar a propriedade privada enquanto instituto jurídico, ou seja, impede-o de eliminar ou de abolir o direito de propriedade privada e impõe-lhe o dever de produzir normas que permitam caracterizar um direito individual como “propriedade privada”, possibilitando a sua acessibilidade para todos, bem como existência e capacidade funcional, quer do ponto de vista material, quer do ponto de vista processual.
Por sua vez, a dimensão subjectivo-individual procura assegurar primariamente para o titular dos bens um conjunto de faculdades ou de “competências” concretas de valor patrimonial (garantia de estabilidade ou de posição jurídica) e secundária ou, subsidiariamente, garante a justa indemnização para o caso da propriedade sofrer diminuição (garantia de valor). Por isso, entendemos que, assim sendo, o conteúdo mínimo o direito de propriedade privada há-de corresponder, não só à faculdade de dispor plenamente dos bens de que se é proprietário, mas também à utilidade ou ao interesse privado que esta representa patrimonialmente para o seu titular ou, então faltando estas, o conteúdo da propriedade privada transfigurar-se-á ou substituir-se-á por outra garantia de tipo secundário constituída pelas garantias processuais e patrimoniais (justa indemnização) que decorrem de uma expropriação ou requisição por utilidade pública[114].
De acordo com Rocha,
A inclusão da propriedade privada vertida para o atendimento de função social configura um direito de propriedade de natureza diferenciada daquela antes considerada como direito individual subjetivado e intangível ao interesse de terceiro que não o proprietário. Não é mais o interesse deste que se faz proteger juridicamente, mas o da sociedade; é a função social que, cumprida, põe sob a tutela estatal o direito desempenhado pelo particular em benefício de todos, não do indivíduo. Não é a função individual que demarca o quanto estabelecido como direito do indivíduo, antes é a função social que assinala o conteúdo constitucionalmente provido no direito de propriedade, incluída aí a particular[115].
Para os seguidores mais radicais da teoria da função social o direito de propriedade não poderia mais ser considerado um direito subjetivo, mas sim uma função social.
Já os doutrinadores de outras correntes entendem que não há razão para se dizer que o direito de propriedade deixou de ser um direito subjetivo, mas sim que houve uma evolução em sua essência motivada pelos fenômenos históricos influenciadores da própria Carta Constitucional vigente que demonstram que a propriedade hoje deve ser entendida não mais apenas como um direito subjetivo, visão esta extremamente individualista e, portanto, retrógrada, ultrapassada e discordante dos princípios constitucionais vigentes.
A diferença é que hoje o direito de propriedade deve ser encarado sim como um direito subjetivo, mas não simplesmente isso, ele agora agrega um valor que antes não possuía, qual seja, a função social.
O que se quer dizer com isso é que a propriedade privada deve ser lida como direito subjetivo mais atendimento a função social para então ser considerada legítima.
O que fica claro, com essa discussão, é que não se quer defender um direito de propriedade totalmente liberto das influências de seu proprietário, de modo que a função social seria a orientadora integral.
No entanto, também não se pode mais defender que o proprietário possui total poder sobre sua propriedade sem ter que se importar com as alterações promovidas no Estado de Direito.
Sendo assim, há que se adotar uma posição conciliadora até mesmo para a natureza de tal direito, entendendo-se que possui sim uma dimensão individual, mas que há de ser guiada pela função social.
Alterou-se o entendimento constitucional, portanto, do sentido que inspira o direito de propriedade, cujo conteúdo é econômico e sociopolítico, sendo tratado, nos diplomas jurídicos fundamentais contemporâneos, nesta condição e não mais como direito absoluto do indivíduo, sujeito a seu exclusivo desejo de uso e fruição, como parte intangível do seu patrimônio, ainda que pudesse ser tocado pela necessidade mais humana do outro o conteúdo político-econômico reconhecido à propriedade socializou a compreensão do tema, atingindo-o em sua essência e modifcando-se para sempre.
As práticas político-constitucionais podem seguir, ou não, este ideário, mas a luta social que conduz à vivência experimentada é que concretiza o conteúdo plasmado nos textos constitucionais.
3.2 Função social da propriedade
A Constituição Federal de 1998 garante o direito de propriedade em seu art. 5.º, inciso XXII, ressalvando, contudo, que esta última "atenderá a sua função social" (inciso XXIII)[116].
Contudo, a função social da propriedade não grava todo e qualquer bem, indiscriminadamente.
Embora se considere que somente a propriedade dos bens de produção estaria adstrita ao cumprimento da função social, distingue, ainda, no tocante àqueles, determinadas circunstâncias nas quais a propriedade desempenha uma função individual, daquelas outras em que o cumprimento da função social poderá ser exigido, ao explicar:
... enquanto instrumento a garantir a subsistência individual e familiar – a dignidade da pessoa humana, pois – a propriedade consiste em um direito individual e, iniludivelmente, cumpre função individual. Como tal, é garantida pela generalidade das Constituições de nosso tempo, capitalistas e, como vimos, socialistas. A essa propriedade não é imputável função social; apenas os abusos cometidos no seu exercício encontram limitação, adequada, nas disposições que implementam o chamado poder de polícia estatal.[117]
A discussão sobre a função social da propriedade não é recente no âmbito do direito privado.
Em 1850, Augusto Comte já via na propriedade uma indispensável função social.[118]
Atribuindo-se à propriedade privada uma função social, destinando a seu titular um poder-dever que se traz para o direito privado algo que originariamente estava afeto ao direito público, que é o condicionamento do poder a uma finalidade.[119]
Conforme Grau, essa função social deve apresentar uma nuance ativa, consistente em prestações de fazer, de modo a impor ao proprietário o dever de exercer esse dever em benefício de outrem e não apenas de não o exercer em prejuízo de outrem.[120]
Diz a doutrina que: “A propriedade, enquanto bem, se configura como relação entre pessoa e coisa. Portanto, as coisas, ou bens, devem ser instrumento a serviço dos homens para a satisfação de suas necessidades”.[121]
Deste modo:
... já não é possível admitir que o titular empregue seu imóvel em atenção a fins puramente individuais. Cumpre-lhe, ao contrário, fazê-lo de uma forma útil à sociedade, usando-o como um instrumento de riquezas e visando à felicidade de todos. E, de fato, sendo escassos os bens naturais postos à disposição do homem, exige-se que seu uso se faça para proveito de todos, ainda que se deva respeitar a propriedade como um direito subjetivo individual, em contraposição às combalidas teorias marxistas. O predicado da função social, diz Trotabas, citado por Ribeiro da Cunha, não constitui uma ameaça ao direito do proprietário; antes, completa e enriquece a noção de propriedade.[122]
Nesse sentido, a propriedade se constitui num verdadeiro encargo social, criado para o bem estar da coletividade.
Como conciliar esta necessidade de se atender ao bem estar da coletividade, de um lado, com a inescondível concentração de terras nas mãos de uns poucos – fenômeno característico de nosso País –, de outro?[123]
No Brasil, a propriedade latinfundiária é admitida sem qualquer limitação para os cidadãos brasileiros.
Esta situação se explica, "pelo alarmante desconhecimento do verdadeiro alcance do princípio da função social da propriedade e sua integração com a própria estrutura do direito de propriedade".[124]
A função social da propriedade, princípio constitucional e não mera norma ordinária “é um importante aliado da democracia, a ponto de, se inobservado, possibilitar a utilização de 'instrumentos jurídicos aptos a promover os objetivos fundamentais da República consagrados pela Constituição'”.[125]
A função social da propriedade corresponde a uma "formulação contemporânea da legitimação do título que encerra a dominialidade". Assim sendo, é necessário estudar o Código Civil à luz da Constituição Federal e não ao contrário. A proteção ao proprietário deve, antes, passar pelo respeito da situação daquele que não pode usar, gozar e dispor, isto é, daquele que não é proprietário. “O direito de propriedade, como todos os outros direitos coletivos, deve ser assegurado e exercido em função da sociedade, que é o seu principal alvo”.[126]
Trata-se de um princípio da ordem econômica, assegurado no âmbito dos direitos e garantias fundamentais, sendo que a Constituição Federal garante o direito de propriedade, desde que atenda a sua função social.[127]
A propriedade será socialmente funcional desde que respeitada a dignidade humana, e que contribua para o desenvolvimento nacional e para diminuir a pobreza e as desigualdades sociais. Deste modo, a Constituição Federal delineia seus parâmetros.[128]
Para corroborar, o art. 186 da Constituição elenca quatro requisitos para que a propriedade rural tenha atendida sua função social: a) aproveitamento racional e adequado; b) utilização adequada dos recursos naturais existentes e preservação do meio ambiente; c) observância das disposições que regulam as relações de trabalho; e d) exploração da propriedade, desde que favoreça o bem-estar dos proprietários e dos que nela trabalham. Isso significa dizer que, somente a propriedade que atenda a todos esses requisitos terá atendido a sua função social. Por exemplo, mesmo que produtiva, a propriedade rural não atenderá a sua função social se a sua produção estiver baseada em violação das normas trabalhistas.
A propriedade, então, continua tendo seu conteúdo protegido e o proprietário segue mantendo sua característica de dono. Entretanto, vislumbra-se as mudanças no sentido de que, hodiernamente cabe à lei definir os modos de aquisição, uso, gozo e limites da propriedade, sempre com o objetivo de favorecer sua função social.[129]
Os doutrinadores fazem o seguinte questionamento: “A quem se destinaria, contudo, o mandamento constitucional de que a propriedade deverá cumprir a sua função social?”.[130]
A função social da propriedade cabe ao titular do direito de propriedade, o legislador e o juiz.[131]
Quanto ao primeiro, diz o autor acima que "a função social assume uma valência de princípio geral", ou seja, “o proprietário não pode perseguir, ao exercer seus atos e atividades, uma função anti-social ou até mesmo, antijurídica, ao passo em que deve ter garantido a tutela jurídica a seu direito”.
O legislador tornou-se destinatário da função social da propriedade por não poder “conceder ao titular do direito de propriedade, através de normas infraconstitucionais, poderes extravagantes ou em contrário ao interesse social previamente tutelado”.[132]
Em relação ao magistrado e demais operadores do direito, devem estes encarar a função social da propriedade como um "critério de interpretação e aplicação do direito, deixando de aplicar as normas que lhe forem incompatíveis".
Assim sendo, se a propriedade rural latifundiária não atender sua função social porque o proprietário não caminhe rumo ao seu aproveitamento racional adequado, assim como, não utilize adequadamente os recursos naturais disponíveis nem preserve o meio ambiente, desrespeite as normas que regulam as relações contratuais trabalhistas ou a explore de maneira que não favoreça o bem-estar do proprietário e dos trabalhadores, “deve o magistrado levar tais circunstâncias em consideração quando provocado, através de ação reintegratória de posse, pelo titular do respectivo domínio”.[133]
Conquanto o Código Civil Brasileiro atribua ao proprietário o direito de reaver a coisa de quem quer que injustamente a possua (art. 524), de se ver, em face de todas as ponderações desenvolvidas até agora, que a interpretação e a aplicação do citado dispositivo passará, necessariamente, pela conformação da situação fática respectiva às prescrições da Carta Magna, perquirindo-se, in concreto, sobre o cumprimento, ou não, da função social a que alude a CF/88.[134]
Seguem os autores afirmando que, caso a invasão do imóvel rural tenha sido provocada por pessoas carentes, que não disponham do mínimo necessário a uma existência digna, e que nele tenham, por exemplo, plantado lavoura de subsistência, a reintegração de posse, pleiteada pelo proprietário cujo comportamento se caracterize pelos atos descritos acima, não deverá encontrar êxito, seja porque o direito de propriedade fora exercitado fora dos limites traçados constitucionalmente, seja porque a par do direito fundamental de propriedade, conferido ao titular do domínio, um outro direito fundamental, a dignidade humana, conferido aos invasores do exemplo dado, com aquele primeiro colide, a reclamar o pronunciamento judicial.
4 CONFISCO E RESERVA LEGAL
A origem etimológica da palavra “confisco” vem do verbo latim "confiscare”, significando que, no ambiente jurídico, se trata de uma ação de força exercida pelo Estado visando transferir para si todos ou parte dos bens de um particular.[135]
Confisco pode ainda ser definido como "apreensão e abjudicação ao fisco de bens do patrimônio de alguém por violação da lei e como pena principal ou acessória".[136]
Ao analisar a definição é possível perceber a existência de elementos essenciais para a existência do confisco, ou seja, o Estado, comumente citado na definição como "fisco", o bem jurídico patrimonial objeto da lide, o detentor deste bem, que normalmente é um cidadão particular, e a violação de norma jurídica positivada.[137]
Em tempos remotos bastava somente a vontade do detentor do poder para a efetivação confiscatória, entretanto, isso não mais prevalece nos dias atuais. “Desta forma, nos Estados onde o Direito de Propriedade é garantido é necessária a violação da lei como pressuposto para a ação estatal”. Hodiernamente, para que haja confisco é preciso previsão legal de dois tipos: a negativa e a positiva. Ambas são dirigidas do Estado para o particular. A primeira consiste na tipificação de uma ação ou conduta proibida por lei. A segunda é a penalidade imposta ao transgressor, que consiste na perda do bem.[138]
O direito protegido constitucionalmente atingido pela ação confiscatória estatal tem sua sede material no próprio caput do art. 5º, no inciso XXII, e também no inciso II do art. 170.[139]
Existe, porém, na Constituição Federal uma previsão expressa de autorização para confiscar, prevista no art. 243, que assim prevê:
Art. 243. As glebas de qualquer região do País onde forem localizadas culturas ilegais de plantas psicotrópicas serão imediatamente expropriadas e especificamente destinadas ao assentamento de colonos, para o cultivo de produtos alimentícios e medicamentosos, sem qualquer indenização ao proprietário, e sem prejuízo de outras sanções previstas em lei.
Parágrafo único. Todo e qualquer bem de valor econômico apreendido em decorrência do tráfico ilícito de entorpecentes e drogas afins será confiscado e reverterá em benefício de instituições e pessoal especializados no tratamento e recuperação de viciados e no aparelhamento e custeio de atividades de fiscalização, controle, prevenção e repressão do crime de tráfico dessas substâncias.
Confisco ainda pode significar:
um princípio reconhecido por todas as nações que os direitos de propriedade não podem ser transferidos pela ação de autoridades públicas, de um particular para outro, nem podem eles ser transferidos para o tesouro público, a não ser para uma finalidade publicamente conhecida e autorizada pela Constituição.[140]
Confisco, então, pode ser definido “como a penalidade sancionatória, decorrente de transgressão de norma legal, que se aperfeiçoa com a transferência de um bem patrimonial de um particular para o Estado”.[141]
Conforme Andrade[142]
Sua origem etimológica vem do verbo latim "confiscare, que "é concebido, no ambiente jurídico, como ação de força exercida pelo Estado consistente em transferir para si todos ou parte dos bens de um particular" (MARTINS & DELGADO, 2000, p. 93).Com efeito, confisco pode também ser definido como "apreensão e abjudicação ao fisco de bens do patrimônio de alguém por violação da lei e como pena principal ou acessória" (PAULO, 2002, p. 82).
O mesmo autor complementa afirmando que:
O argumento de que em tempos antigos, como no absolutismo monárquico do século XVIII, bastava tão somente a vontade do detentor do poder para a efetivação confiscatória não mas prevalece nos dias atuais. Desta forma, nos Estados onde o Direito de Propriedade é garantido é necessária a violação da lei como pressuposto para a ação estatal.
Por conseguinte, para que haja confisco é preciso previsão legal de dois tipos: a negativa e a positiva. Ambas são dirigidas do Estado para o particular. A primeira consiste na tipificação de uma ação ou conduta proibida por lei. A segunda é a penalidade imposta ao transgressor, que consiste na perda do bem.
Ademais, o direito protegido constitucionalmente atingido pela ação confiscatória estatal tem sua sede material no próprio caput do artigo 5º, no inciso XXII, e também no inciso II do artigo 170.
Nogueira[143] revela que
CONFISCO: é um princípio reconhecido por todas as nações que os direitos de propriedade não podem ser transferidos pela ação de autoridades públicas, de um particular para outro, nem podem eles ser transferidos para o tesouro público, a não ser para uma finalidade publicamente conhecida e autorizada pela Constituição.
Logo neste ponto, já tendo analisado o direito de propriedade rural e seus fatores relevantes, abre-se uma porta para a análise da reserva legal tendo um efeito de confisco.
Primeiramente há de se frisar que o grande motivo da implementação das reservas legais foi a tentativa de se diminuir a destruição das florestas nativas brasileiras, uma vez que o uso era totalmente predatório.
A lógica da utilização da terra era a de que uma vez diminuída a produtividade, ela deveria ser abandonada, tendo em vista que
como o fator terra era abundante e barato, era mais racional do ponto de vista econômico, abandoná-la quando a produtividade diminuía, transferindo o capital para outras áreas, do que investir nas terras já desgastadas[144].
O instituto surgiu no Direito Brasileiro com o antigo Código Florestal que,
em seu art. 23, determinava que 25% da área da propriedade cobertas por florestas não poderia ser derrubada, a menos que fosse para a transformação de florestas heterogêneas em homogêneas, destinadas à exploração florestal[145].
No início, a reserva legal foi instituída com o objetivo de salvaguardar exclusivamente as florestas. Ocorre que com o passar do tempo, ela foi estendida para abrigar não apenas as florestas.
Ao longo do tempo, a função da Reserva Legal tendeu a expandir-se para poder cumprir melhor o seu objetivo de preservar o meio ambiente, e foram acrescidas às formações florestais, previstas no texto original do artigo 16 do Código Florestal, todas as demais coberturas vegetais nativas não florestais, como o cerrado. Expandiu-se também a sua função original, para incluir a função de recuperar a cobertura vegetal nativa nas áreas privadas, assim como, em última análise, da preservação e recuperação da biodiversidade[146].
O Código Florestal estabelece em seu 1º, §2º, III que Reserva Legal é a
área localizada no interior de uma propriedade ou posse rural, excetuada a e preservação permanente, necessária ao uso sustentável dos recursos naturais, à conservação e reabilitação dos processos ecológicos, à conservação da biodiversidade e ao abrigo e proteção de fauna e flora nativas.
Para Machado,
A Reserva Legal Florestal tem sua razão de ser na virtude da prudência, que deve conduzir o Brasil a ter um estoque vegetal para conservar a biodiversidade. Cumpre, além disso, o princípio constitucional do direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado para as presentes e futuras gerações. Importa dizer que cada proprietário não conserva uma parte de sua propriedade com florestas somente no interesse da sociedade ou de seus vizinhos, mas primeiramente no seu próprio interesse. O proprietário de uma Reserva olha para seu imóvel como um investimento de curto, médio e longo prazos. A Reserva Legal Florestal deve ser adequada à tríplice função da propriedade: econômica, social e ambiental. Usa-se menos a propriedade, para usar-se sempre. A existência de uma Reserva Florestal, mais do que uma imposição legal, é um ato de amor a si mesmo e a seus descendentes[147].
O art. 16 fixa os percentuais de reserva legal a serem adotados em cada propriedade, dependendo da região geográfica onde estiverem situadas. Estabelece que:
as florestas e outras formas de vegetação nativa, ressalvadas as situadas em área de preservação permanente, assim como aquelas não sujeitas ao regime de utilização limitada ou objeto de legislação específica, são suscetíveis de supressão, desde que sejam mantidas, a título de reserva legal, no mínimo:
I - 80%, na propriedade rural situada em área de floresta localizada na Amazônia Legal;
II – 35%, na propriedade rural situada em área de cerrado localizada na Amazônia Legal, sendo no mínimo 20% na propriedade e 15% na forma de compensação em outra área, desde que esteja localizada na mesma microbacia, e seja averbada nos termos do § 7º deste artigo;
III – 20%, na propriedade rural situada em área de floresta ou outras formas de vegetação nativa localizada nas demais regiões do País;
IV – 20%, na propriedade rural em área de campos gerais localizada em qualquer região do País.
O §2º do art. 16 expõe esclarece que:
a vegetação da reserva legal não pode ser suprimida, podendo apenas ser utilizada sob manejo florestal sustentável, de acordo com princípios e critérios técnicos e científicos estabelecidos no regulamento, ressalvadas as hipóteses no §3º deste artigo, sem prejuízo das demais legislações específicas.
Viu-se, então, que a reserva legal é uma área delimitada geograficamente dentro de propriedades rurais que se destina à preservação da biodiversidade. Sua delimitação dependerá da região geográfica do território brasileiro onde ela estiver situada, de forma que em área de campos gerais localizada em qualquer região do País, foi fixada em 20% da propriedade.
A proibição de corte raso era uma das características da Reserva Florestal Legal, eis que tal previsão constava, de forma explícita, do art. 44, parágrafo único, do Código Florestal (Lei 4.771/65).
Todavia, foi suprimida pela alteração implementada pela Medida Provisória 2.166-67/2001.
Contudo, Machado[148] enfatiza que o corte raso na Reserva Legal Florestal continua a ser ilícito administrativo. A Reserva Legal deve ser, conforme § 8º do art. 16, averbada à margem da matrícula do imóvel no Cartório de Registro Geral de Imóveis competente, sendo expressamente “vedada a alteração de sua destinação, nos casos de transmissão, a qualquer título, de desmembramento ou de retificação de área”.
Ocorre que pela ausência de uma fiscalização efetiva que alie órgãos ambientais e Cartórios de Registro Geral de Imóveis - CRGI, muitas são as propriedades rurais que não possuem averbação em sua matrícula delimitando a área de reserva legal, mesmo com a facilidade da gratuidade do ato para a pequena propriedade ou posse rural familiar, conforme § 9º do art. 16.
Há divergência doutrinária no que diz respeito a fixação da reserva legal, se ela deveria ser feita pelo Estado ou pelo proprietário. Isso porque o § 4º do art. 16 impõe que:
a localização da reserva legal deve ser aprovada pelo órgão ambiental estadual competente, ou mediante convenio, pelo órgão ambiental municipal ou outra instituição devidamente habilitada, devendo ser considerados, no processo de aprovação, a função social da propriedade, e os seguintes critérios e instrumentos quando houver:
I – o plano de bacia hidrográfica;
II - O plano diretor municipal;
III – o zoneamento ecológico-econômico;
IV – outras categorias de zoneamento ambiental;
V – a proximidade com outra Reserva Legal, Área de Preservação
Permanente, unidade de conservação ou outra área legalmente protegida.
Há quem sustente que enquanto o Estado não delimitar tal área, o proprietário não pode ser obrigado a fazê-lo. Já outros entendem que, como a preservação ambiental é dever de todos, deve o proprietário fixar a área de reserva legal e efetuar o efetivo registro no CRGI sem aguardar manifestação estatal.
Machado[149] é a favor de que a responsabilidade pela instituição da área de reserva legal deva ser compartilhada entre cidadão e Administração Pública, de maneira que aquele informe a esta a sua delimitação e aguarde resposta.
Não duvido dos bons propósitos da inovação – controlar a localização física da Reserva. Contudo, seria mais simples dar chance ao civismo ambiental do proprietário, determinando que este informe o órgão público de seu projeto de localização da Reserva (devendo o mesmo levar em conta os planos e zoneamentos referidos). A Administração teria um prazo para responder, e, findo esse prazo, o silêncio administrativo, neste caso, significaria a possibilidade de ser implantada a Reserva.
Paccagnella[150] entende que “o proprietário que não possui reserva legal tem a obrigação de demarcar e registrar a mesma, cessando exploração em sua área e possibilitando assim a regeneração natural”.
Além disso, ressalta que tal obrigação se prende ao bem e, portanto, mesmo que o proprietário tenha adquirido uma propriedade sem área de reserva legal florestada, caberá a ele o reflorestamento, uma vez que por força de princípios constitucionais ficou a cargo do proprietário rural o cumprimento da função social de sua propriedade, entre outras providências através da preservação do meio ambiente.
Acrescenta que “também ficou imposto a todos – ao proprietário rural inclusive – o dever de preservar o meio ambiente não só para as presentes, mas também para as futuras gerações”[151].
Há de se destacar que o eventual fato da aquisição do domínio e posse do imóvel rural, quando já não mais havia parte da cobertura vegetal na propriedade, não afasta a responsabilidade do adquirente. (...) É que além de tal responsabilidade ser objetiva e solidária, ela consubstancia uma obrigação real – propter rem – ou seja, uma obrigação que se prende ao titular do direito real, seja ele quem for, em virtude, tão – somente, de sua condição de proprietário ou possuidor. As obrigações de que ora se tratam se vinculam mais à coisa, daí ser caráter real e não pessoal. Isso por se tratar de norma geral, a todos imposta, não se tratando de obrigação assumida unilateralmente pelo devedor na sua origem, mas sim por força de lei[152].
Além da fixação percentual estabelecida pelo art. 16, caput e incisos, o § 5º traz a possibilidade de o Poder Executivo (após indicação pelo Zoneamento Ecológico Econômico e pelo Zoneamento Agrícola, desde que ouvidos o CONAMA, o Ministério do Meio Ambiente e o Ministério da Agricultura) determinar a redução e ampliação de área de reserva legal.
A redução pode ocorrer, para fins de recomposição, na Amazônia Legal, para até 50% da propriedade, excluídas, em qualquer caso, as Áreas de Preservação Permanente, os ecótonos, os sítios e ecossistemas especialmente protegidos, os locais de expressiva biodiversidade e os corredores ecológicos. Já a ampliação pode ser em até 50%, dos índices previstos em lei, em todo o território nacional.
Sobre a possibilidade de ampliação ou redução da área de reserva legal, Machado[153] julgou negativa, uma vez que “muda profundamente o sistema jurídico da Reserva Legal Florestal”.
A Reserva fora concebida com medidas idênticas para todos os proprietários de uma determinada região ou de um tipo de vegetação (como os cerrados). O critério possibilitava melhor acompanhamento da aplicação do princípio da igualdade de todos perante a lei, ao evitar que o tamanho da Reserva ficasse na dependência de ato do Governo. Como argumento favorável à alterabilidade das Reservas pode-se apresentar a flexibilização na sua prática. Faço reparos à inovação ao deixar os proprietários privados nas mãos da Administração, principalmente, sem a previsão de procedimento transparente e de ampla e permanente participação pública. Acaba-se implantando um sistema de desigualdade, que pode ferir a generalidade da limitação ao direito de propriedade, garantidora da gratuidade da própria limitação[154].
Tal entendimento se deve ao fato de que uma das características da Reserva Legal era que sua delimitação foi feita com base em dados objetivos, previstos na lei, de acordo com a localização geográfica.
5 A INDENIZAÇÃO DAS RESERVAS LEGAIS
A discussão principal sobre o tema centra-se na possibilidade, ou não, de o proprietário rural ser indenizado em função da existência de áreas de preservação permanente e de reserva florestal legal em sua propriedade.
Partindo do paradigma individualista, que eleva o direito de propriedade a sua máxima potência, qualquer interferência no exercício do direito de propriedade seria, então, considerada uma intervenção do Estado em um direito individual, e, por tal razão, ensejaria uma desapropriação e conseqüente necessidade de indenização do particular.
Todavia, deixando-se de lado o paradigma individualista e partindo para a evolução do direito de propriedade a luz da proteção ambiental, há que se entender que tal possibilidade somente seria possível se o estabelecimento das áreas de proteção florestal eliminasse totalmente o direito do proprietário de exercer qualquer tipo de atividade econômica, isso porque, a própria Constituição Federal assevera que o exercício de atividade econômica também deve ser orientado pelo objetivo da preservação ambiental, de maneira que, atividades econômicas praticadas em desacordo com tal orientação estarão sendo feitas em desacordo com a Carta de 1988.
Borges[155] questiona até que ponto deve ocorrer a proteção ambiental da propriedade rural e, principalmente, às custas de quem.
Discute-se até que ponto o meio ambiente deve ser preservado, à custa de que e de quem e até que ponto o ser humano pode explorar os recursos naturais da forma como tem sido feito atualmente, forma esta que se refere tanto a métodos pré-modernos, quanto aos adotados pela tecnologia contemporânea, ambos, em parte, prejudiciais ao meio ambiente, na medida em que não consideram que os recursos naturais são limitados e que sua exploração indevida pode ferir o equilíbrio ecológico, essencial para a sustentação da vida na Terra. Mas é necessário salientar que função social da propriedade e limitações administrativas são coisas diferentes e não podem ser usadas como pretexto para que se proceda a restrições desnecessárias ao exercício dos poderes do direito de propriedade.
A referida autora esclarece que as limitações administrativas são pacificamente entendidas, pela doutrina, como sendo gratuitas.
Todavia, apesar de gratuitas, são consideradas indenizáveis nos casos em que resultarem prejuízo considerável ao proprietário e caracterizarem um esvaziamento do conteúdo do direito de propriedade. Isso porque o abuso na imposição das limitações administrativas deve gerar o dever de indenização pela Administração.
O grande problema está em conseguir delimitar até que ponto a limitação é geral, não incidindo especialmente apenas sobre alguns proprietários.
Além disso, estabelecer no caso de limitação geral, “até que ponto ela, por ser demasiada, não acaba por tratar com desigualdade não os proprietários, mas os administrados entre si, podendo gerar ou não direito de indenização”.
Desta forma, seriam legítimas as limitações administrativas genéricas que não caracterizem esvaziamento do conteúdo do direito de propriedade.
As limitações não genéricas e, portanto, que caracterizem um ônus especial a alguns particulares gerariam direito de indenização ao proprietário. No entanto, se a limitação atinge apenas algumas faculdades que compõem o direito de propriedade, então a questão fica controvertida na teoria e, na prática, dever-se-á atentar para o caso concreto.
Para Borges, o problema pode ser assim resumido:
Assim, são legítimas e gratuitas as limitações que se dirigem a uma generalidade de proprietários, atingindo faculdades parciais do direito de propriedade. Mas quando dirigem-se a proprietários determinados, havendo outros que se encontram na mesma situação e que não são atingidos pela limitação, deslegitima-se esta, gerando direito de indenizar[156].
Ocorre que a delimitação de áreas de preservação permanente e de reserva legal não é considerada limitação administrativa, mas, sim, aplicação do princípio da função sócio-ambiental ao próprio conteúdo do direito de propriedade que, em sua essência, ou seja, em seu interior, foi orientado pela defesa do meio ambiente, de maneira que somente será legitimamente exercido conforme sua estrutura essencial.
Desta forma, resta a dúvida: há que se aplicar o mesmo entendimento da generalidade das limitações administrativas para o problema da necessidade ou não de indenização dos particulares ou deve-se simplificar o problema e entender que no caso da aplicação do princípio da função sócio-ambiental da propriedade, não há que se falar em indenização, uma vez que o proprietário não poderia exercer seu direito legitimamente de outra forma?
Para Canotilho,
A primeira Idea a realçar é a do reforço da vinculação social da propriedade por motivos ecológicos. Esta tendência desenha-se com nitidez a partir dos finais dos anos sessenta. A intensificação dos vínculos incidentes sobre a propriedade obriga, porém, a novos esforços dogmáticos no sentido de saber em que casos deve o proprietário suportar ‘medidas autoritativas de compressão ecológica’ sem qualquer direito a ‘compensações patrimoniais’. É neste contexto que se situa a recente fórmula da juspublicística alemã: “determinação do conteúdo da propriedade com o correspondente dever de indemnização”[157].
O referido autor não concorda com a adoção simplista da idéia de que os vínculos estabelecidos em decorrência da função sócio-ambiental da propriedade sejam imunes à necessidade de indenizar o proprietário.
Para ele, há necessidade de se delimitar o conteúdo do direito de propriedade, para então, analisar a viabilidade de uma indenização.
A doutrina mais recente, embora sem contestar a bondade da “presunção ecológica” conducente ao enquadramento de muitas delimitações da propriedade na categoria de “vinculação ecológico-social da propriedade”, contesta a conseqüência simplista e automática sistematicamente deduzida desta presunção da desnecessidade de uma “ponderação indenizatória”[158].
A delimitação do conteúdo seria, então, utilizada naqueles casos em que não ficou evidenciada a expropriação, mas, houve uma grande limitação, entendida como anormal, na possibilidade de uso da propriedade, de maneira que o proprietário teria tido um prejuízo econômico em decorrência da restrição.
J. J. Gomes Canotilho esclarece que:
O conceito de “delimitação do conteúdo de propriedade geradora de compensação” vem deste modo ocupar o espaço resultante de um regresso ao conceito de expropriação em sentido restrito. A “delimitação do conteúdo” constituirá uma “restrição do direito geradora de compensação” quando a medida delimitadora-restritiva tiver um peso econômico significativo na esfera jurídico-patrimonial do proprietário.
Borges[159], adotando o entendimento de J.J. Gomes Canotilho, explica que a solução apontada é importante no sentido de que o “ônus da proteção do meio ambiente seja repartido entre todos (a sociedade), indenizando-se ao proprietário os prejuízos pelo tratamento desigual”.
Acrescenta ainda que[160], “mesmo que não haja expropriação (ou desapropriação indireta), pode haver indenização pelo prejuízo que o proprietário sofrer, ainda que permanecendo com ele o domínio.” Conclui, desta forma, que a medida representa uma “alternativa à tradicional dicotomia entre função ambiental inindenizável e desapropriação indireta”.
Para Borges[161], com base em J. J. Gomes Canotilho, tais restrições decorrentes da função sócio-ambiental da propriedade que se consubstanciem em uma limitação anormal, mas que não são consideradas expropriação, poderiam ser caracterizadas como servidão administrativa e, assim, em razão do peso econômico significativo da medida estatal, a indenização estaria justificada.
Nesses momentos talvez se possa falar em servidão administrativa, no lugar de limitação, quando a intervenção se dá de forma específica e particular (não geral, como na limitação), sem que haja expropriação, mas estando presente uma restrição parcial, com relevância jurídica e econômica, do domínio de proprietários determinados. As servidões constituem um ônus parcial imposto a propriedades particulares determinadas. Embora a doutrina administrativista se manifeste pela indenizabilidade das servidões administrativas, Hely Lopes Meirelles lembra que nem sempre há indenização, apenas devendo ocorrer quando houver prejuízo para o proprietário em face da serventia pública. (...) Assim, não se vêem problemas em se considerarem servidões administrativas, por exemplo, as unidades de conservação de manejo sustentável, em que se permite o uso dos recursos naturais, mas desde que sejam obedecidas as regras que previnam os danos ao meio ambiente e a quebra do equilíbrio ecológico do ecossistema respectivo. Não é uma limitação administrativa, uma vez que atinge propriedades determinadas, mas também não é expropriação, visto que nem se transfere a propriedade para o patrimônio público nem se esvaziam completamente os poderes referentes ao direito de propriedade[162].
Sobre a questão da relevância econômica da restrição imposta pelo Estado, se faz importante acrescentar a observação de Benjamin sobre a não existência de direito do proprietário a integral exploração de sua terra e, também, de que existem outras formas de exploração econômica além da simples devastação da vegetação.
A Constituição não confere a ninguém o direito de beneficiar-se de todos os usos possíveis e imagináveis de sua propriedade. De outra parte, nenhum imóvel, especialmente, os rurais, tem, como única forma de utilização, a exploração madeireira ou o sacrifício integral de sua cobertura vegetal, remanescendo apenas a terra-nua (ou, melhor, a terra arrasada!). Só muito excepcionalmente, no mundo atual – com seu crescente mercado de plantas ornamentais, piscicultura, essências e ecoturismo -, vamos nos deparar com áreas em que a única possibilidade de exploração é o desmatamento integral e rasteiro, como forma de viabilizar a agricultura e pecuária. Além disso, se é certo que a ordem jurídica reconhece ao proprietário o direito de usar sua propriedade, nem por isso assegura-lhe, sempre e necessariamente, o melhor, o mais lucrativo ou mesmo o mais aprazível uso possível. No caso da propriedade rural, o “direito de exploração econômica” só é chancelado quando respeita o meio ambiente, nos termos dos arts. 170, inc VI, 186, inc, II e 225, todos da CF[163].
Antunes[164] também observa que há inúmeras maneiras de se explorar uma propriedade e que a instituição de algum título vinculado a proteção ambiental pode ser extremamente lucrativo para o proprietário, em função da valorização das atividades ecologicamente corretas.
Concordo, em tese, com a orientação jurisprudencial e doutrinária. Contudo, faz-se necessário lembrar que o momento atual é de valorização dos bens naturais e que, atualmente, está sendo desenvolvida uma poderosa indústria turística e de pesquisas científicas que, dependendo da forma de conservação a qual uma determinada região está sendo submetida, podem ser praticadas perfeitamente. Muitas vezes, é o próprio estabelecimento de áreas de preservação que irá servir de suporte para a valorização econômica do um bem. É necessário que os tribunais estejam atentos para o fato e que a análise do esvaziamento econômico leve em consideração as novas formas de atividade econômica. Evidentemente que o limite entre a “limitação administrativa” do direito de propriedade e o esvaziamento deste mesmo direito é extremamente tênue e precisa ser examinado em cada caso concreto[165].
Benjamin, parte do pressuposto de que a regra geral é que “a obrigação de resguardar o meio ambiente não infringe o direito de propriedade, não ensejando desapropriação”[166].
O referido autor lista as situações que seriam consideradas desapropriação indireta:
Logo de início, tenha ou não a restrição ambiental origem no Código Florestal, podemos afirmar que, em tese, há desapropriação indireta sempre que a Administração Pública, ao interferir com o direito de propriedade: a) aniquilar o direito de exclusão (dando ao espaço privado fins de uso comum do povo, como ocorre com a visitação pública nos parques estatais); b) eliminar, por inteiro, o direito de alienação; c) inviabilizar, integralmente, o uso econômico, ou seja, provocar a total interdição da atividade econômica do proprietário, na completa extensão daquilo que é seu. Nessas três hipóteses, o domínio, mediante justa indenização, há que passar para o Estado, sofrendo este o encargo daquela, como conseqüência de, por ato seu, na expressão apropriadíssima do Min. Celso Mello, “virtualmente esterilizar, em seu conteúdo essencial, o direito de propriedade”. Diferentemente, não cabe indenização, tout court, quando o Poder Público, procedendo em conformidade com o suporte constitucional da função sócioambiental, regrar a forma do uso, privilegiar – ou mesmo interditar – usança em detrimento de outras[167].
Aplicando-se tais orientações às ares de preservação permanente e de reserva legal, chegar-se-ia a conclusão que, em regra, tais áreas não ensejariam a necessidade de pagamento de indenização aos proprietários. Todavia, ter-se-ia algumas situações a serem consideradas.
Conforme Benjamin,
Em linhas gerais, nenhum dos dispositivos do Código Florestal consagra, aprioristicamente, restrição que vá além dos limites internos do domínio, estando todos constitucionalmente legitimados e recepcionados; demais disso, não atingem, na substancia, ou aniquilam o direito de propriedade. Em ponto algum as APPS e a Reserva Legal reduzem a nada os direitos do proprietário, em termos de utilização do capital representado pelos imóveis atingidos. Diante dos vínculos que sobre elas incidem, tanto aquelas como esta aproximam-se muito de modalidade moderna de propriedade restrita, restrita, sim, mas nem por isso menos propriedade. (...) Tanto as APPS ope legis, como a Reserva Legal são, sempre, limites internos ao direito de propriedade e, por isso, em nenhuma hipótese são indenizáveis. Integram a essência do domínio, sendo com o título transmitidas. Não importa, per se, novamente tomando por empréstimo as palavras do Min. Celso de Mello, “em esvaziamento do conteúdo econômico do direito de propriedade”. A desapropriação, sabe-se, “priva o particular do bem de que é proprietário”, ora, não é isso o que se dá com as APPs e Reserva Legal, pois o senhor dessas áreas não deixa de ser o proprietário original, o particular[168].
No mesmo sentido, Mangueira[169] observa que:
Em relação a instituição de reservas legais e as áreas de preservação permanente ope legis, ante a sua generalidade, não há como falar em afetação ao conteúdo econômico da propriedade. Na verdade, a exploração econômica da propriedade só pode dar-se dentro daquilo que o conteúdo do direito de propriedade permite e da forma também prevista em lei.
A instituição de área de preservação permanente legal somente enseja necessidade de indenização se faltar a característica da generalidade, não beneficiar em nada o proprietário e implicar na subtração da total possibilidade de utilização econômica.
Isso teria que ficar demonstrado por meio de uma análise econômica para então ficar cabalmente comprovado que a instituição da área, apesar de não importar na transmissão da propriedade para o Estado, representou a total inutilização pelo proprietário.
O referido autor lista os itens considerados necessários para a indenizabilidade das áreas de preservação permanente:
Já as APPs do art. 3º, conforme o caso, devem ser indenizadas, especialmente quando:
a) lhes faltar o traço da generalidade (afetar um ou poucos proprietários);
b) não beneficiarem, direta ou indiretamente, o proprietário; e,
c) sua efetivação inviabilizar, por inteiro, a totalidade do único (hipótese raríssima) ou de todos os possíveis usos da propriedade, respeitado, evidentemente, o lapso prescricional, que corre da promulgação do ato administrativo de regência[170].
Nos casos de área de preservação permanente administrativa, ter-se-ia uma situação diferente, uma vez que se trata de área que foi por meio de ato administrativo instituída como tal.
Para Cavedon[171],
Os principais expoentes da doutrina jurídica ambiental apóiam a corrente segundo a qual as Áreas de Preservação Permanente fixadas pelo art. 2º do Código Florestal não são passíveis de indenização por configurarem-se como limites internos ao Direito de Propriedade, que atingem todas as propriedades que possuam as características apontadas pelo Código, mantendo o proprietário o domínio sobre o bem. Já as Áreas de Preservação Permanente do art. 3º, instituídas pelo Poder Público, ensejariam direito à indenização, por serem limites externos ao direito de Propriedade, que têm sua origem em ato discricionário do Poder Público atingindo Propriedades individualizadas.
Mangueira afirma que as áreas de preservação permanente administrativas devem ser indenizadas, uma vez que lhes falta a característica da generalidade.
Entende Paulo Affonso Leme Machado que tais áreas, por afetarem apenas um ou alguns proprietários, devem ser indenizadas. Parte o autor da premissa que as áreas de preservação permanente são limitações administrativas, com as de ordem geral não ensejando indenização, o que não ocorre com as limitações específicas. De fato, numa primeira análise é fácil concluir que tais áreas só existem quando declaradas pelo Estado, o que afasta, em tese, a característica de generalidade dessas APPs. O argumento não deve ser tomado como uma regra única e geral, se considerarmos que as APPs não são limitações administrativas, mas, antes disso, constituem o próprio direito de propriedade. Mais importante ainda, é preciso saber se sua instituição vai inviabilizar a exploração econômica do imóvel e se não é possível realizar nenhuma outra atividade econômica no local[172].
Para o mencionado autor, mesmo se tratando de área de preservação permanente administrativa, a solução seria a aplicação dos itens estabelecidos por Benjamin, para decidir se haverá ou não direito a indenização[173].
O mesmo entendimento é esposado por Cavedon:
A simples instituição, por ato do Poder Público, de Área de Preservação Permanente prevista no art. 3º do Código Florestal não enseja direito à indenização, a não ser que deste ato decorra a inviabilidade total de uso econômico da Propriedade[174].
Azevedo[175] lista alguns pressupostos e critérios a serem considerados para a indenizabilidade de uma das áreas em análise, dentre os quais: especificidade da restrição, certeza quanto ao agente público da restrição, titularidade, temporalidade da aquisição, espacialidade da restrição e atividade econômica existente e/ou viável. Sobre o problema da repercussão econômica negativa para o proprietário o referido autor afirma ser necessário o levantamento das reais possibilidades de atividades a serem praticadas para o dimensionamento do efetivo dano.
É conveniente reafirmar que, atendidos os pressupostos anteriores, a indenização pressupõe a prova do dano efetivo, ou seja, não se deixa alguém indene de uma mera intenção de ocupação. Esta tem que se preexistente ou viável. É usual a alegação de atingidos por atos de proteção no sentido de que há interdição por impossibilidade de parcelamento do solo ou exploração madeireira. Pouco se questiona sobre a efetividade desta atividade econômica ou ainda sobre sua visibilidade. A viabilidade pressuposta, ademais, não é somente econômica (por exemplo, se o custo da extração de madeira numa determinada região é superior ao valor deste produto no mercado), mas também jurídica (no sentido da possibilidade legal da dita exploração, vedada em áreas de declividade acentuada ou de ocorrência de vegetação de preservação permanente ou permitida para algumas espécies vegetais).
Entende-se, portanto, que a regra geral aplicável à reserva legal é a da inindenizabilidade. Todavia, há que se levar em consideração os itens apontados por Antonio Herman V. Benjamin e a regra de J. J. Gomes Canotilho, de forma que se a limitação aplicada ultrapassar o normal há que se indenizar o proprietário para que não seja caracterizada a reserva legal como confisco de propriedade.
5.1 Visão do STF sobre o direito do proprietário rural à indenização
As alterações recentes na legislação ambiental obrigam a criação de reservas florestais legais nas propriedades rurais, mais especificamente no Código Florestal e no Decreto 6.514/2008.
É certo que isso causou grande impacto nos proprietários rurais, gerando grande debate a nível nacional no âmbito político, assim como, nas entidades que representam os ruralistas.
Vislumbra inconstitucionalidade dos dispositivos legais que, na verdade, impõem uma grave restrição ao uso economicamente viável do imóvel rural e uma violação ao direito de propriedade, vez que as medidas do Poder Público apresentam natureza de confisco de bens particulares, o que é proibido pela ordem constitucional vigente.[176]
Nesse sentido, ensina o autor:
O direito de propriedade e o direito ao meio ambiente equilibrado, como direito de todos, são direitos fundamentais consagrados na Constituição Federal que não se excluem, sendo que a interpretação do art. 225, § 4º da Constituição Federal deve ser feita de forma harmoniosa com o disposto no art. 5º, XXII que garante o direito de propriedade.[177]
Assim sendo, a propriedade rural em hipótese alguma poderá ser objeto de confisco, podendo somente ser objeto de apropriação pelo Poder Público, mediante a compensação financeira nos termos do art. 5º, inciso XXIII da CF/88.[178]
Segue o autor afirmando ainda que qualquer legislação ou medida administrativa imposta pelo Poder Público que venha a violar os direitos fundamentais assegurados pela Constituição Federal, especificamente, o direito de propriedade é ilegal e, portanto, inconstitucional.
Deste modo, o Código Florestal e o Decreto 6.514/08 no que se referem à obrigatoriedade de criação de reservas florestais são inconstitucionais.
Dutra[179] acredita que, para que o Poder Público possa concretizar as áreas de reservas legais nas propriedades rurais deve utilizar o instituto jurídico da desapropriação, mediante a justa compensação financeira, inclusive em danos emergentes e lucros cessantes.
A orientação do Supremo Tribunal Federal é no sentido de que a ordem constitucional dispensa tutela efetiva ao direito de propriedade, sendo que, na proteção outorgada pela Constituição Federal está reconhecido o direito de propriedade e a garantia da devida e justa compensação financeira, quando a pretensão do Estado, no exercício de sua competência jurídica, atingir o direito de propriedade em sua potencialidade econômica.
Não pode o Poder Público, justificando-se pela necessidade de preservação do meio ambiente, transferir o ônus e a responsabilidade pela criação das reservas legais exclusivamente aos proprietários rurais, em desconformidade com preceitos de ordem constitucional.[180]
Percebe-se, portanto, que a matéria é recente e promove diversas discussões jurídicas.
Contudo, observa-se que que há flagrante violação dos direitos e garantias fundamentais assegurados pela Constituição Federal, mais especificamente, no que se refere ao direito de propriedade.
Pode-se afirmar que a proteção ao meio ambiente não justifica a ação abusiva e ilegal, existindo outras formas de resolver a questão.
A corroborar com o exposto, é nesse sentido a jurisprudência do STF:
E M E N T A: RECURSO EXTRAORDINÁRIO - ESTAÇÃO ECOLOGICA - RESERVA FLORESTAL NA SERRA DO MAR - PATRIMÔNIO NACIONAL (CF, ART. 225, PAR.4.) - LIMITAÇÃO ADMINISTRATIVA QUE AFETA O CONTEUDO ECONOMICODO DIREITO DE PROPRIEDADE - DIREITO DO PROPRIETARIO A INDENIZAÇÃO - DEVER ESTATAL DE RESSARCIR OS PREJUIZOS DE ORDEM PATRIMONIAL SOFRIDOS PELO PARTICULAR - RE NÃO CONHECIDO. - Incumbe ao Poder Público o dever constitucional de proteger a flora e de adotar as necessarias medidas que visem a coibir praticas lesivas ao equilibrio ambiental. Esse encargo, contudo, não exonera o Estado da obrigação de indenizar os proprietarios cujos imóveis venham a ser afetados, em sua potencialidade econômica, pelas limitações impostas pela Administração Pública. - A proteção jurídica dispensada as coberturas vegetais que revestem as propriedades imobiliarias não impede que o dominus venha a promover, dentro dos limites autorizados pelo Código Florestal, o adequado e racional aproveitamento economico das arvores nelas existentes. A jurisprudência do Supremo Tribunal Federal e dos Tribunais em geral, tendo presente a garantia constitucional que protege o direito de propriedade, firmou-se no sentido de proclamar a plena indenizabilidade das matas e revestimentos florestais que recobrem areas dominiais privadas objeto de apossamento estatal ou sujeitas a restrições administrativas impostas pelo Poder Público. Precedentes. - A circunstancia de o Estado dispor de competência para criar reservas florestais não lhe confere, só por si - considerando-se os princípios que tutelam, em nosso sistema normativo, o direito de propriedade -, a prerrogativa de subtrair-se ao pagamento de indenização compensatoria ao particular, quando a atividade pública, decorrente do exercício de atribuições em tema de direito florestal, impedir ou afetar a valida exploração econômica do imóvel por seu proprietario. - A norma inscrita no ART.225, PAR.4., da Constituição deve ser interpretada de modo harmonioso com o sistema jurídico consagrado pelo ordenamento fundamental, notadamente com a cláusula que, proclamada pelo art. 5., XXII, da Carta Politica, garante e assegura o direito de propriedade em todas as suas projeções, inclusive aquela concernente a compensação financeira devida pelo Poder Público ao proprietario atingido por atos imputaveis a atividade estatal. O preceito consubstanciado no ART.225, PAR. 4., da Carta da Republica, além de não haver convertido em bens publicos os imóveis particulares abrangidos pelas florestas e pelas matas nele referidas (Mata Atlantica, Serra do Mar, Floresta Amazonica brasileira), também não impede a utilização, pelos proprios particulares, dos recursos naturais existentes naquelas areas que estejam sujeitas ao domínio privado, desde que observadas as prescrições legais e respeitadas as condições necessarias a preservação ambiental. - A ordem constitucional dispensa tutela efetiva ao direito de propriedade (CF/88, art. 5., XXII). Essa proteção outorgada pela Lei Fundamental da Republica estende-se, na abrangencia normativa de sua incidencia tutelar, ao reconhecimento, em favor do dominus, da garantia de compensação financeira, sempre que o Estado, mediante atividade que lhe seja juridicamente imputavel, atingir o direito de propriedade em seu conteudo economico, ainda que o imóvel particular afetado pela ação do Poder Público esteja localizado em qualquer das areas referidas no art. 225, PAR. 4., da Constituição. - Direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado: a consagração constitucional de um tipico direito de terceira geração (CF, art. 225, caput). (RE 134297 / SP - SÃO PAULO
RECURSO EXTRAORDINÁRIO; Relator(a): Min. CELSO DE MELLO; Julgamento: 13/06/1995; Órgão Julgador: Primeira Turma).[181]
Vale ainda destacar o entendimento do Ministro Celso de Mello[182]. Segundo as palavras do Ministro:
Entendendo que o dever constitucional que incumbe ao Poder Público de proteger a flora e de adotar medidas que visem a coibir práticas lesivas ao equilíbrio ambiental não exonera o Estado da obrigação de indenizar os proprietários cujos imóveis venham a ser afetados, em sua potencialidade econômica, pelas limitações impostas pela Administração Pública.
Na realidade, atos de desapropriação, ou de apossamento administrativo, ou, como na espécie, de imposição de restrições ditadas pela lei e por atos de índole administrativa, obrigam o Estado a ressarcir os prejuízos que se originem da atividade pública, quando esta importar – como no caso efetivamente importou – em esvaziamento do conteúdo econômico do direito de propriedade.
O STF, a quem cabe a última palavra em matéria de ordem constitucional, tem decidido no sentido de que a preservação do meio ambiente e das florestas não exonera o Estado da obrigação de indenizar os proprietários rurais dos imóveis em que forem instituídas as reservas florestais legais por impor restrição grave ao uso economicamente viável do imóvel rural e uma violação ao direito de propriedade.[183]
Esse entendimento decorre dos fundamentos constitucionais que garantem o direito de propriedade e a devida compensação financeira, segundo os incisos XII e XIV do Art. 5º da Carta Política Brasileira.
CONCLUSÃO
Identificou-se neste trabalho de pesquisa que, desde a época das Ordenações Afonsinas, logo após o descobrimento do Brasil, já havia penalidades para infratores do direito ambiental. Nesse sentido, sofria a pena de açoite aquele que cortasse uma árvore frutífera.
Contudo, descobriu-se que o instituto da reserva legal se constitui em tema muito recente no direito brasileiro. A primeira legislação nacional a tratar do assunto foi o Código Florestal de 1965. Nos dias de hoje, porém, a temática é largamente estudada não só no Brasil, mas a nível mundial. Atualmente, a matéria encontra previsão em vários diplomas legais, mas, sobretudo na Constituição Federal de 1988 no art. 225, § 1º, e, também art. 16 da Lei nº 4.771/65.
No terceiro capítulo deste trabalho, o assunto tratado foi a propriedade, o direito de propriedade, a propriedade privada, assim como a função social da propriedade. Esse último tema foi de vital relevância para este estudo, visto que a propriedade deve exercer a sua função na sociedade. Tal princípio se faz tão importante que está assegurado no âmbito dos direitos e garantias fundamentais, sendo que a Constituição Federal garante o direito de propriedade, desde que atenda a sua função social. Além do mais, através desse instituto, há que ser respeitada a dignidade humana na forma de desenvolvimento nacional, visando, principalmente, diminuir a pobreza e as desigualdades sociais.
Por fim, os dois últimos capítulos dizem respeito ao confisco e ao direito de indenização na reserva legal.
Esta pesquisa definiu confisco como uma espécie de penalidade decorrente de transgressão de norma legal, que se aperfeiçoa com a transferência de um bem patrimonial de um particular para o Estado. Segundo a problemática ora levantada, a reserva legal se constitui num verdadeiro confisco quando o proprietário é obrigado a dispor de parte de suas terras para o bem da coletividade e do Estado com uma agravante: deve arcar com todo ônus de preservação desta porção de terra “confiscada”.
Da forma como foi explanado durante o desenvolvimento desta monografia, elevado o direito de propriedade a sua máxima potência, uma pequena interferência no exercício desse direito seria considerada uma intervenção do Estado em um direito individual, e, por tal razão, ensejaria, em tese, uma desapropriação culminando com a conseqüente necessidade de indenização do particular.
É óbvio que constitui dever constitucional do Poder Público proteger a flora brasileira, adotando medidas que visem conter práticas lesivas ao meio ambiente. Entretanto, não pode olvidar os preceitos e princípios constitucionais.
O art. 225, por exemplo, deve ser interpretado em conjunto com o art. 5º, inciso XXII, ambos da Constituição Federal, garantindo e assegurando este último o direito de propriedade em todos os sentidos, inclusive no que concerne à compensação financeira devida pelo Poder Público ao proprietário alvo de atos imputáveis às atividades do Estado nos moldes do inciso XXIV do art. 5º do Diploma Constitucional.
Ademais a interpretação do art. 225 deve estar também em harmonia com o que dispõe o inciso LIV do art. 5º da CF/08 que veda o confisco de bens particulares.
Agindo assim, a Constituição Federal confere tutela efetiva ao direito de propriedade e garante compensação financeira caso a propriedade seja atingida em seu conteúdo econômico.
É evidente que um meio ambiente ecologicamente equilibrado é um direito de todo cidadão. Contudo, não se pode impor qualquer espécie de restrição ao direito de propriedade, especialmente, no que concerne ao conteúdo econômico da propriedade rural privada.
Ademais, o Direito é e sempre será fruto da atividade humana, e, como tal, não pode ficar estagnado no tempo, eis que tudo muda o tempo todo. As regras devem acompanhar a evolução dos tempos, mas, se não há tempo para que o legislador faça a devida atualização, há que se atentar para a utilização cada vez maior dos princípios para resolver tais problemas.
A Constituição da República Federativa de 1988 foi importantíssima na questão ambiental ao elevar a direito fundamental o direito ao meio ambiente ecologicamente preservado. Tal atualização constituinte foi fruto da evolução perpetrada na própria sociedade que culminou com a evolução dos direitos em diversas dimensões.
Direitos que eram reconhecidos como absolutos, imutáveis, passaram a ser flexíveis. Passou-se a entender que nada em direito é absoluto, tudo é relativo e deve ser orientado pelos princípios que são responsáveis pela lógica do sistema jurídico.
Como o meio ambiente está em tudo e em todo lugar, seus princípios influenciam todas as demais áreas jurídicas, de maneira a implementar uma releitura de antigos conceitos. Isso foi exatamente o que aconteceu com o direito de propriedade privada.
A propriedade privada passou a ser analisada sob a óptica da função ambiental que desempenha, de modo que o não atendimento pode ensejar conseqüências gravosas ao proprietário. No entanto, é mister também observar o direito do proprietário.
Os espaços territoriais especialmente protegidos a que a Constituição se refere podem muito bem recair sobre propriedades privadas e aí se inicia a discussão sobre a possibilidade ou não de tal proprietário ser indenizado por tal situação. Sendo que, uma vez o proprietário não sendo indenizado frente ao instituto de reserva legal poderá assim agravar a situação e constar como ação de confisco.
Partindo-se do paradigma eminentemente individualista que elevava o direito de propriedade a condição sagrada, qualquer interferência deveria ensejar o pagamento de indenização, do contrario estaria o governo e a lei confiscando propriedade particular.
A instituição da reserva legal não tem o condão de eliminar o direito de propriedade, ela é apenas resultado da aplicação do princípio da função sócio ambiental na propriedade privada, de maneira a estimular seu uso desgarrado do paradigma individualista e mais orientado ao coletivista.
Assim, o direito de propriedade devera ser legitimamente exercido e respeitar a defesa do meio ambiente e vice versa.
Todavia, não se pode concluir de forma simplista que toda vez que se invocar o princípio da função sócio ambiental da propriedade privada, não haverá necessidade de se indenizar o proprietário.
A solução do problema passa pela análise real de cada propriedade envolvida, de maneira a se avaliar se houve ou não esvaziamento do conteúdo do direito. Devendo o Estado, de certa forma, contribuir economicamente com o proprietário para que assim ele possa preservar as áreas de reserva legal e não cair sobre ele o ônus desta preservação.
Finalmente, vale enfatizar que a resposta ao problema ora levantado foi dada ao longo desta pesquisa, ou seja, ao questionar “se a reserva legal no Brasil tem efeito de confisco”, a resposta encontrada foi positiva.
Para agravar, verificou-se que, além das terras confiscadas o proprietário rural ainda tem o ônus de preservá-la em função do bem comum. Tendo a obrigação de averbar o percentual de terras determinado acredita-se tratar-se de uma desapropriação indireta, razão pela qual o proprietário deve ser indenizado. A solução, então, seria que o ônus da proteção do meio ambiente fosse repartido entre Estado e sociedade, indenizando-se ao proprietário os prejuízos pelo tratamento desigual.
Para que o proprietário seja indenizado, acredita-se que o Estado que já impõe vários ônus ao proprietário rural,obrigue-se a dar-lhe algum bônus pagando-o para que preserve a sua própria terra, a reserva florestal legal. Para isso, basta que o Estado na arrecadação de multas, de tributos, e de fundos que recebe para preservação, já traga em sua legislação uma porcentagem reservada para o pagamento de serviços ambientais ao produtor rural.
Por fim, acredita-se que esse estudo tenha dado sua contribuição para futuras mudanças nas leis que tratam do meio ambiente e, sobretudo, da reserva legal e, uma das possíveis mudanças que podem ocorrer é a contribuição pecuniária do Estado ao produtor rural a fim de que este possa preservar, de forma satisfatória, a reserva legal. Como amplamente mencionado, o Código Florestal é ainda do século passado. Ao longo de mais de 40 anos de vida muita coisa mudou e, acredita-se também que a legislação sobre o tema ora apresentado, deve ser revisto e reestruturado a fim de que o proprietário não seja atingido em seu direito de propriedade e que este venha a alcançar sua função social.
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Bacharel em Direito pela UDF
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: AGNOL, Maria Cristina Dall'. Ônus da Preservação e o Confisco na Reserva Florestal Legal Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 06 jul 2009, 08:50. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/Monografias-TCC-Teses-E-Book/17771/onus-da-preservacao-e-o-confisco-na-reserva-florestal-legal. Acesso em: 24 nov 2024.
Por: Sessuana Crysthina Polanski Paese
Por: Frederico Garcia Pinheiro
Por: STJ - Superior Tribunal de Justiça BRASIL
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