RESUMO: A relação entre direito e moral é um dos temas nucleares da filosofia do direito, especialmente sobre o respeito à validade jurídica e à atuação dos princípios em zonas de penumbra. O texto discute a crítica à rigidez do positivismo, que propõe a busca por decisões judiciais pautadas em justiça substantiva, representadas por modelos de juízes deuses e semideuses que podem ou não ultrapassar a aplicação mecânica das normas. Sem embargo, questiona se tais decisões seriam as únicas possíveis, mormente diante de conflitos entre princípios e os direitos fundamentais. O desafio consiste em construir respostas adequadas apartadas da moral individual do julgador; sem, todavia, ignorar a complexidade e a flexibilidade dos princípios jurídicos. A ponderação se apresenta como tarefa central nesse processo, a demandar equilíbrio entre racionalidade argumentativa e a proteção de direitos. Em uma sociedade plural e democrática, a própria ideia de respostas jurídicas unívocas é posta em xeque, frente à natureza aberta e polissêmica da linguagem e do próprio direito. Assim, a partir da relação entre o direito e a moral, expõem-se os problemas candentes do choque entre princípios e como os modelos de juiz buscam coerência e justiça substantiva, em tensão com a realidade discursiva.
Palavras-chave: Direito e Moral. Princípios jurídicos. Modelos de juiz.
ABSTRACT: The relationship between law and morality is one of the core themes of the philosophy of law, especially regarding respect for legal validity and the action of principles in areas of penumbra. The text discusses the criticism of the rigidity of positivism, which proposes the search for judicial decisions based on substantive justice, represented by models of god and demigod judges who may or may not go beyond the mechanical application of norms. However, it is necessary to question whether such decisions are the only ones possible, especially in the face of conflicts between principles and fundamental rights. The challenge is to come up with appropriate responses that are detached from the individual morality of the judge; without, however, ignoring the complexity and flexibility of legal principles. Weighting is a central task in this process, requiring a balance between argumentative rationality and the protection of rights. In a plural and democratic society, the very idea of univocal legal answers is called into question, given the open and polysemic nature of language and law itself. Thus, based on the relationship between law and morality, the burning problems of the clash between principles are exposed and how the judge’s models seek coherence and substantive justice, in tension with discursive reality.
Key words: Law and morality. Legal principles. Judge Models.
Sumário: I. Introdução; II. O direito e a moral em H. L. A. Hart; III. A visão do modelo de regras dworkianiano; IV. A solução do juiz Hércules de Ronald Dworkin; V. Os caracteres capitais da teoria dos princípios em Alexy e a críticas clássicas à proporcionalidade; VI. A alternativa do juiz Hermes de François Ost; Conclusão
I - INTRODUÇÃO
Enquanto traço marcante da filosofia do direito, a relação entre o direito e a moral constitui ponto central para delimitar questões de validade. A discussão, porém, perpassa as meras preferências e encampa discernir seus desafios e implicações para as zonas de penumbra, a urgir reformulação do papel dos princípios jurídicos.
Nesse esforço, a contestação clássica à pretensa rigidez do positivismo se amolda a coerência argumentativa das decisões judiciais, em busca de justiça substantiva. Este é o modelo de juízes semideuses em oposição aos deuses – a morte ou permanência da onipotência, contudo, permanece. Isto porque os ideais teóricos partem de concepção sobre-humana na construção de modelos normativos que suplantem as balizas de coerência e segurança jurídica dos ordenamentos; sem, todavia, descambar apenas pelas preferências pessoais de cada julgador.
O desafio de integrar se faz, sobretudo, a partir da flexibilidade de princípios jurídicos, aptos a construir respostas em casos difíceis. Seriam as soluções dos semideuses, entretanto, as únicas e últimas possíveis? O contexto de colisão de princípios jurídicos, em especial pela possibilidade de choque entre direitos fundamentais sugere resposta diversa. Como encontrá-la sem imiscuir todos os meandros da moral no direito é indagação que merece considerações.
A tarefa ponderadora do sopesamento, lado outro, cria uma tensão considerável, na medida em que exige parcimônia frente à racionalidade argumentativa e à defesa dos direitos fundamentais. Nessa via, custa asseverar se é possível deter conhecimento integral do ordenamento, incluídas as suas práticas jurídicas e morais, no afã de construir uma resposta não necessariamente correta e única, mas, no limite, adequada.
Não só. Em uma sociedade democrática e, por conseguinte, plural, impõe-se a reflexão se um raciocínio ainda pode ser considerado unívoco. De frente à premissa que a linguagem é incompleta e admite polissemia, o papel do direito como sistema fechado está em xeque. Seriam possíveis respostas unas em embates entre princípios que não estão em espaço fechado, mas em rede discursiva que reinterpreta a si mesma? Uma proposta de percurso sobre os prolegômenos ao exame dos princípios, exige, pois, saber quem os aplica, de qual forma, e em quais condições.
II – O DIREITO E A MORAL EM H. L. A. HART
Afirma H.L.A. Hart que os juristas positivistas negam, equivocadamente, que exista uma interligação entre direito e moral (“ser” e “dever-ser”). Dentro desta grande vertente do pensamento, os utilitaristas se sobressaltaram para diferenciar com o máximo de precisão as esferas do ser e dever ser (2010, p. 53). Nesse sentido, aduz Hart que o utilitarismo foi o responsável pela ideia de que governo de leis deveria se tornar uma relação tênue entre obedecer e censurar, pois a confusão entre direito moral poderia levar o sistema jurídico à completa apatia (Ibid., p. 55).
O Direito, ao confundir-se com a moral pode enfraquecer sua autoridade e tornar-se eminentemente subjetivo; pode, não obstante, longe da moral, suplantá-la para fugir de críticas. Hart utiliza tal ponto de partida para ressaltar que há, destarte, uma conexão essencial entre os dois âmbitos. Um Estado puramente analítico, que apenas olha as normas apoia-se em grande medida na outra ideia utilitarista de que a lei é basicamente um comando. Para adequar-se a essa forma, as leis devem ser gerais e deve emanar que órgão político representativo (Ibid., p. 56). Os componentes deste também seguem preceitos para a criação de direito, que aceitam tais normas. Cria-se, assim, uma relação vertical de autoridade, o que manteria a sanção sempre presente, a quintessência do Direito. É preciso notar, todavia, que existem regras que apenas estabelecem condições para efetivar direitos, que não necessitam mérito ou demérito.
Os realistas, notando tal dissonância, elencam que a falta de clareza nas normas cria uma zona de penumbra, em que hipóteses múltiplas não podem ser descartadas, ainda que inexista sanção clara. Quem aplica o direito tem a responsabilidade de escolher qual é caminho que a decisão vai seguir, de forma racional. Segundo Hart, utilitaristas ignoram os “problemas de penumbra”, mas esta se desvincula da relação lógica, pois incutiria em erro de “formalismo” (Ibid., p. 60-64). Nesse panorama, as decisões dos juízes, admite Hart, têm impacto vital, já que o Direito não se apresenta como um sistema lógico fechado – existe um caráter aberto em que os juízes devem legislar.
Ainda que guiados pelo erro formalista, as escolhas que se dizem lógicas não estão cegas aos valores e consequências sociais. A zona obscura aponta que as premissas do esquema lógico podem ser interpretadas de diferentes formas nas convenções linguísticas para apontar a decorrência de uma conclusão. Hart denota que isto é exercer uma “escolha criativa entre alternativas”, recheada de pontos de vista próprios, às vezes por parâmetros que transcendem a lógica e atingem a moral (Ibid., p. 65).
O quadro referido ocorre porque existe uma diferença brutal entre o que é e o que, a depender dos olhos do observador, “deveria ser”. Essa mudança traduz um sentido crítico que deve orientar-se por parâmetros morais ou não. A escolha por qualquer uma dessas vias gera, consequentemente, uma dicotomia entre critérios autômatos e supostamente inteligentes. Esta última opção pode vir à baila para ocultar os objetivos mais cruéis possíveis – o autor chega a exemplificar a situação com a metodologia torpe do regime nacional-socialista alemão – caso não apoiados por princípios de justiça e posições morais. Hart afirma que, justamente por isso, leis são incompletas e que as decisões da zona obscura devem ser racionalmente orientadas por objetivos sociais (Ibid., p. 73-77). Para dar segurança ao sistema, mesmo nos casos mais dúbios, devem existir fronteiras que norteiem a aplicação normativa.
Mais além, Hart expõe que, na República de Weimar, Gustav Radbruch fez um apelo para que a separação entre o direito e a moral fosse desconsiderada nos termos utilitaristas (Ibid., p. 78). Para ele, a resistência à lei era eminentemente de cunho pessoal, de modo que não convinha a posição de que as leis humanas em embate com princípios da moral não são leis (Ibid., p. 79-80).
Posteriormente, ao examinar o slogan positivista “a lei como lei” (“Gesetz als Gesetz”), Radbruch pedia que a ciência jurídica alemã de seu tempo se abrisse aos anseios da moral, dados os horrores que a simples obediência aos ditames do regime nazista trouxe ao país, incontestadas por juízes e advogados (Ibid., p. 82-83). Estes deveriam denunciar não só leis imorais, mas também as que se chocassem com princípios fundamentais e destituídos de conteúdo jurídico. Radbruch, nas palavras de Hart, desceu ao próprio inferno, e, para evitar que se chegasse novamente naquele estágio, procurou um princípio moral essencial do humanitarismo dentro do Direito (Ibid., p. 85-88).
Hart não nega que exista uma conexão, ainda que escassa, entre o direito e a moral. Todavia, apoia apenas em parte o pensamento de Radbruch, pois é receoso quanto à sua relação indiscriminada para uso em casos concretos (Ibid., p. 89-90). A partir da ilustração casuística em que uma mulher que cometeu uma atrocidade no regime nazista apenas para se livrar do marido e foi punida retroativamente, Hart aponta que devem existir pontos-limites que barrem a aplicação cega que suplante a lei pela moral, dado que seria romântico admitir uma valoração moral única, perdendo-se a própria crítica da moral (Ibid., loc. cit.).
Admitir a concepção utilitarista de que o que é perverso não pode ser lei também parece ser simplório na visão de Hart, pois se pode afirmar que a existência de uma norma pode ser pleiteada ainda que seja aplicada em poucos casos, ou seja, a perversidade pode ser evidenciada em um caso, mas não em outro, perpetuando a lei (Ibid., p. 91). A alternativa exposta mostra um vínculo arbitrário entre lei e moral. Naturalmente, o que motiva cada um dos homens que se reúnem em sociedade pode ser extremamente díspar e conflitante, de modo que o direito reflete essa dicotomia. Deve-se, portanto, procurar que a aplicação do direito seja justa diante dos contrastes, não um ideal de justiça do direito, que naturalmente passa pela moral, dado ser impossível que o ordenamento seja neutro, influenciando a esfera processual (Ibid., p. 92).
A mera utilidade, ademais, não está em todas as leis. Hart enxerga que existem leis visivelmente banais ou atrozes que ainda são leis, bem como normas dotadas de todas as qualificações morais possíveis e ainda assim não são leis. O que ocorre na prática diária é que o sistema jurídico tem a tarefa de analisar tais casos com maior atenção pelo fato de ser impossível a tarefa dos legisladores em prever todas as situações que incidirão no mundo dos fatos jurídicos. Também seria pretencioso dizer qual o que legisladores mortos em tempos passados fariam na aplicação de casos concretos hodiernamente.
A escolha entre alternativas não deve simplesmente encobrir os fatos por falta de habilidade em separar o direito do que é e como deveria ser, tal qual desejavam os seguidores do utilitarismo. Fazê-la de tal forma, na constatação de Hart, seria uma tentativa de perpetuar dogmas aparentemente incontestáveis – dotados de propósitos – e não avaliar que a interpretação do direito também deve apontar para o que a norma guia perante objetivos comuns da sociedade, o que é importante para guiar escopos não previstos pelo legislador. Nesse cenário, as regras morais ou imorais permanecem jurídicas e oferecem um norte para a decisão (Ibid., p. 93-95).
III – A VISÃO DO MODELO DE REGRAS DWORKIANIANO
Na análise do positivismo, Ronald Dworkin parte do desenvolvimento teórico de H.L.A. Hart para qualificar seu esqueleto trino. Nessa acepção, o primeiro preceito chave é que o direito de uma comunidade se insere em um conjunto de regras especiais aceitas, cuja validade está subordinada ao teste de pedigree (2002, p. 23-24). Ademais, essa avaliação permite delimitar quais serão as sanções estipuláveis pelo poder público, distinguindo-as de outras categorias de regras sociais. O segundo ponto crucial confere ao conjunto de regras um caráter adjunto ao direito, de tal forma que se as regras não conseguem delimitar o escopo da decisão é preciso que o juiz exerça seu discernimento pessoal (Ibid., p. 25-26). Por fim, se por um lado alguém tem uma “obrigação jurídica” significa que a situação sobre a qual a decisão se debruça tem regras jurídicas válidas; por outro, se tal regra inexiste a obrigação jurídica seguirá o mesmo destino (Ibid., p. 26-28).
Em contrapartida, Dworkin aponta que regras e princípios diferem por quesito lógico. As primeiras incidem no critério tudo-ou-nada, a resposta que elas apresentam devem ser acatadas se válidas; os segundos conduzem a argumentação por um caminho ao enunciar uma razão cujo cerne é dar a dimensão da importância decisória a favor de um ou outro princípio (Ibid., p. 30-35). Ao entrarem em conflito duas regras, a invalidez de uma delas é certa; se princípios jurídicos, ambos devem ser investigados no caso concreto, pois são tipos particulares de padrões (Ibid., p. 35-37).
Na formulação de decisões jurídicas, que abarcam o conceito de obrigação jurídica, são apontados dois caminhos viáveis para o uso dos princípios. Por um lado, os princípios podem ser avaliados como possuidores de obrigatoriedade tal quais as regras jurídicas; por outro, os princípios podem ser enxergados como desprovidos de obrigatoriedade semelhante à das regras jurídicas (Ibid., p. 38-41).
O recorte teórico do modelo de Dworkin sugere duas estradas possíveis pelo uso de princípios e sua relação com obrigações jurídicas no caso de segmentação psicométrica apresentado. À semelhança do caso “Henningsen Vs. Blomfield Motors Inc.”, o juiz pode alegar uma imensidão de princípios – e inclusive políticas – que são fontes dotadas de autoridade para reger o caso e criar uma regra. Por essa trilha, os princípios, apesar de sofrerem ponderação, são tratados à maneira das regras (Ibid., p. 45-50).
Na continuação da análise da consciência dos positivistas, Ronald Dworkin afirma que estes costumeiramente usam a noção de poder discricionário de forma trivial, sem maiores meditações (Ibid., p. 51-52). Um dos sentidos possíveis para este conceito é o dito forte, no qual o seu executor não está limitado por padrões eminentes de autoridade particular; sem, todavia, desvencilhar-se da crítica que se pautará em arquétipos de lógica e eficiência. Naturalmente, a avaliação sobre os atos pautados por este delineamento não poderá afirmar que um ato desastroso é desobediente.
Ao evidenciar que algumas regras de direito têm “textura aberta”, H.L.A. Hart já denota que os próprios positivistas reconhecem o poder discricionário quando inexiste regra cristalina e pactuada à disposição (1986, p. 31-37). Quando este fato se verificava, os juízes não estavam mais presos – pura e simplesmente – a padrões, mas a padrões que eles mesmos normalmente usam, seguindo o que os tribunais devem fazer em sua virtude. É por esse diagnóstico que Hart não vê os padrões jurídicos aquém da regra como instituidores de obrigações. Dworkin difere radicalmente de seu mentor ao afirmar que por razão lógica os princípios são capazes de obrigar, pois, apesar de ser sempre questionável se um princípio obriga de fato, são padrões extrajurídicos (2002, p. 55-60).
Enfatiza Dworkin que um princípio, não opera na dialética de tudo-ou-nada como nas regras, mas residem intactos quando entram em confronto, de modo que autorizam a discricionariedade (Ibid., p. 61-63). A conjectura de um juiz sobre os princípios pode estar errada, porém isso não indica que possam ser submetidos a um teste, apenas que “não existe papel tornassol para testar a consistência” argumentativa (Ibid., p. 64-65). Na contramão, os positivistas os classificam como o oposto do “direito de nível superior” o que enxergam como compostos que tentam ser regras, mas distantes de possível teste de validade.
Nesse panorama, Hart assinala que a maioria das regras de direito são válidas por emanarem de alguma instituição competente. Princípios, entretanto, são descobertos no raciocínio do que é adequado, elaborado pelos juízes e pelo público através do tempo. Se os princípios evocados não forem consistentes não serão revogados, mas sofrerão a erosão de seus valores invocados. É por isso que estão em constante desenvolvimento e interação, mesmo que indetermináveis quanto à ordem de grandeza (Ibid., p. 66-72). Destarte, a gritante dicotomia entre validade e aceitação se corrói nesta esfera.
Os princípios não se juntam aos montes, segundo Dworkin, contudo podem se respaldar reciprocamente. A conexão, ainda que encontre um traço pela gênese intrínseca de atos oficiais, não está abalizada por critérios esmiuçados por uma regra suprema de reconhecimento (Ibid., p. 73-77). Este é um ponto delicado para a teoria positivista, dado que, em última análise, é a regra suprema que marca a transição da sociedade primitiva para a aquela chefiada pelo direito. Não obstante, caso uma regra suprema aponte como juridicamente obrigatória qualquer regra aceita pela sociedade como tal, desaba o próprio teste de reconhecimento. Existem, nessa via, pelo menos algumas poucas regras que são obrigatórias, a exemplo da regra suprema, pela sua aceitação da comunidade jurídica como tal, de modo que nem tudo é válido por causa da regra suprema.
É imutável a teoria de Hart para que os princípios sejam aceitos perante a regra de reconhecimento (1986, p. 209-216). A tendência positivista, querendo realizar esse afã quimérico, tentaria vislumbrar que os padrões são a regra de reconhecimento de determinado ordenamento. Porém, essa tautologia nada denotaria de concreto e, em derradeira instância, se debateria com a tarefa homérica de arrolar todos os princípios em vigor.
Uma das inquietações de Ronald Dworkin repousa sobre a possibilidade de condenação de uma pessoa inocente (1985, p. 72-73). Em um julgamento qualquer são estabelecidos processos sistemáticos que definem procedimentos pautados, na visão utilitarista, na relação entre economia de recursos públicos e interesse dos acusados. Destarte, não fica claro a qual nível de exatidão as pessoas têm direito, pois a análise dos recursos conduziria em boa medida o resultado dos processos (Ibid., p. 74-75). Mesmo em uma questão civil, na qual uma pessoa reivindica um direito, o argumento de que a comunidade ficaria melhor com o reconhecimento dos direitos envolvidos é sopesado com a fronteira estabelecida.
A saída para aquém desse limite baseia-se em argumentos de princípios, não de política (na qual se enseja economia processual). Fica nebuloso decidir que a redução de gastos pode ser apoiada pelo bem-estar geral. A dialética imiscuída nessa linha afirma que uma das partes deve ser vitoriosa, independente do ganho da sociedade (Ibid., p. 76-77). Isso não quer dizer que os juízes não devam levar em conta as consequências, mas antes que os princípios venham em primeiro lugar, destoando de uma visão política pura.
No fito de levar a investigação utilitarista à suas últimas consequências, Dworkin projeta no plano hipotético uma sociedade eficiente em custos que leva em conta o devido processo legal (Ibid., p. 81-82). Nela, mede-se o sofrimento estimado dos que seriam erroneamente condenados frente à disponibilidade de recursos para processos de maior exatidão. O valor moral, ainda assim, não desaparece, bem como os direitos políticos que norteiam as ações governamentais. Nesta sociedade, existe o incremento de uma categoria especial de dano, o moral (“moral harm”) – oriundo da simples ocorrência de injustiça na punição, de aspecto objetivo – em paralelo com o simples (“bare harm”) – aquilo que sofre através da punição, uma noção subjetiva. Isso ocorre, naturalmente, pelo fato de a violação de um direito – v.g., ser condenado injustamente – ser obliterada deliberadamente por terceiro (Ibid., p. 83-86).
Certamente, ainda que houvesse um ganho utilitarista de longo prazo, os membros do agrupamento hipotético rechaçariam condenações deliberadas que imputassem erroneamente um inocente. Ainda assim, seria penoso que nele fossem reconhecidas a importância e independência do dano moral, pois age sem consistência, na medida em que a condenação acidental de um inocente é consentida em benefício de suposto ganho em processos menores custosos (Ibid., p. 87). O ato deliberado envolve uma mentira, e por isso é desconsiderado, mas o acontecimento acidental é relativizado.
Consciente do déficit de interação entre esses dois polos quase antagônicos, Ronald Dworkin propõe dois pontos para atuação justa do governo (Ibid., p. 88-92): (i) que as ações políticas devem tratar todos como iguais, enraizadas a partir de princípios; e (ii) equidade na adoção de disposições. É por essa via que violações deliberadas produzem maior dano moral do que as acidentais, justamente por ferirem essas duas acepções.
Em uma sociedade cujas decisões por maioria são tidas como sociais, é política a justificativa do sacrifício da exatidão, influindo diretamente no dano moral. Nessa seara, é preciso averiguar que, sobretudo nos processos criminais, o dano moral tenha sua dimensão reconhecida e que o processo seja conduzido de forma coerente. É justamente neste último aspecto que residem os maiores transtornos, pois a força motriz desse viés é de cunho conservador, baseado em contingências históricas por vezes insolúveis do ponto de vista lógico. Sob outra perspectiva, é neste exato ponto que adormece o impulso reformista, dado que pode reconhecer erros através da investigação em processos antigos e presentes. Com efeito, poderá ser notado que uma norma de índole probatória é errônea frente o ordenamento como um todo por seu desinteresse à avaliação do dano moral.
Ronald Dworkin retoma sua linha de raciocínio reafirmando que as legislações devem estabelecer processos civis que consigam avaliar positivamente os riscos e os danos morais. De se ver, os casos difíceis são decididos através de provas e processos; sem, todavia, excluir de apreciação os danos envolvidos e os riscos de imprecisão.
Nessa perspectiva, os casos difíceis “hard cases” são aqueles em que o resultado não é claramente apresentado pela lei ou pelo precedente, a exigir, por conseguinte, uma resolução principiológica. Ao se depararem com essa situação, os juízes devem atuar como o legislador faria (“deputy to the legislature”) e não como se o substituísse na íntegra (“deputy legislature”) (1975, p. 1058). Argumentos de política justificam uma decisão ao apresentar que avançam ou protegem algum objetivo da comunidade como um todo; já os argumentos de princípio justificam uma decisão ao apontar que respeitam ou garantem algum direito individual ou de grupo – um programa legislativo geralmente se vale dos dois tipos de argumento, sem objeções de mesma ordem (Ibid., p. 1059-1061)
No afã de aclarar seus argumentos, Dworkin solicita a observação do caso “Spartan Steel” (Ibid., p. 1060-1065): empregados quebraram um cabo pertencente à empresa contratante, que ficou sem funcionar enquanto aconteciam reparos. Poderia a Spartan Steel pedir recuperação judicial por dano de outem, malgrado não existisse disposição legal expressa para tanto? Na via principiológica, qualquer empresa naquele estado poderia; na política, argumentar-se-ia pela racionalidade econômica do procedimento.
No patamar clássico, qualquer litigância deve se submeter à legislatura. A comunidade deve ser mantida por quem elegeu. Assim, vaticina Dworkin que se um juiz cria direitos, além é punido não porque violou um dever prévio, mas porque violou um dever ex post facto. Essa linha argumentativa é suscintamente contrária aos argumentos de princípio, pois estes não levam em conta considerações sobre a natureza e a intensidade das diferentes demandas e preocupações levas ao seio da comunidade (Ibid. p. 1066-1067). O problema central pode até se configurar na insegurança jurídica na via principiológica, mas não a criação de deveres per se, dado que estes estavam apenas implícitos no ordenamento.
Argui-se tradicionalmente que novas decisões se circunscrevem à moralidade do juiz e ao direito posto. No entanto, segundo Dworkin, a moralidade está em inúmeras decisões no passado – o melhor seria, então, enxergar a questão pela “rights thesis”, segundo a qual decisões judiciais apenas reforçam direitos políticos já existentes (Ibid., p. 1065-1069). Em paralelo, a doutrina da responsabilidade política se inclinaria por concluir que os agentes políticos somente devem tomar decisões políticas caso possam justificá-las com base em uma teoria política – sem forma isolada.
Nessa via, os argumentos de princípio são direcionados para solucionar uma tensão entre direitos individuais e coletivos, i.e., de política. Um objetivo é um fim político não individualizado, ou seja, um modo das coisas cuja especificação não traz a luma uma determinação ou aflige direitos individuais – não há detalhamento que diga de carto como deve ser aplicado em situação concreta contra direitos individuais ou mesmo elenca outros objetivos políticos (Ibid., p. 1071-1072).
Alguns direitos podem ser mais concretos (“concrete rights”) quando são melhor definidos para determinar que peso adquirem em situação concreta (Ibid., p. 1070). A “right thesis” postula que os juízes decidem casos difíceis negando os direitos concretos, conquanto sejam institucionais (“institucional rights”) ao invés de direitos de plano de fundo (“background rights”), e devem ser legalmente garantidos (Ibid., p. 1078).
O tribunal não pode, ainda que em análise utilitarista, rechaçar o uso de instrumentos de baixa despesa que promovam – mesmo que pouco – maior exatidão. Esta primeira via é axiomática, porém, o entrave advém dos instrumentos que provem alto grau de exatidão e, ao mesmo tempo, são dispendiosos, dado que adotá-los destoaria de uma estimativa razoável de cometer injustiça. Defronte tal hipótese, cabe ao tribunal indagar como a exatidão poderia ser alcançada – através da probabilidade – e, em seguida, arguir se em razões de política a medida deve ser efetivada.
A análise desguarnecida no parágrafo anterior, manifestamente exclui de apreciação os indivíduos que serão particularmente afetados por uma decisão aquém de suas vontades, além de rechear-se de discricionariedade potencialmente temerária (DWORKIN, 1985, p. 98-99). Mas, a lei na qual se baseia a tomada de decisão poderia considerar políticas de custo-benefício, prezando pela eficiência a despeito da capacidade ofensiva aos danos morais.
Logo, as decisões políticas que não se coadunam aos fins utilitaristas são consideradas injustas no escopo dworkiniano. Os erros das ações que emanam do governo incidem em seus cálculos de política da determinação dos custos processuais frente aos ganhos (Ibid., p. 100-101). O planejamento será conjecturado a partir da recomendação que reflete esse embate, ou seja, de uma análise prévia que leva em conta questões de política rondadas pelos princípios, a significar não é aberta uma brecha inexorável que denota a supremacia em eficácia dos processos mais dispendiosos na análise utilitarista: as avaliações permitem distinguir graus de primazia aos atos tomados para trazer à tona resultados presumidamente benéficos (Ibid., p. 102-103).
IV – A SOLUÇÃO DO JUIZ HÉRCULES DE RONALD DWORKIN
No fito de solucionar o impasse aludido, Dworkin cunha a figura do juiz Hércules, em alusão à mitologia grega, que irá construir a teoria usada nos casos difíceis, sob os princípios inerentes ao sistema (1975, p. 1080-1090). Esse semideus aceita as seguintes premissas: (a) as principais e incontroversas regras procedimentais e constitutivas do direito sob sua jurisdição; (b) que as leis têm o poder geral de criar e extinguir direitos legalizados; e (c) que os juízes têm a obrigação de seguir as decisões prévias de sua Corte ou de Cortes Superiores, cuja rationale se estenda aos casos apresentados a ele. Hércules, então, deve construir uma teoria constitucional, que reflita a filosofia política e as regras institucionais (Ibid., loc. cit).
Além disso, o desenvolvimento de sua teoria deve justificar o Estado, assim como o juiz de xadrez está incumbido de desenvolver uma teoria sobre o caráter de seu jogo (Ibid., p. 1089-1090). Hércules, porém, deve sempre se perguntar se uma norma tem a faculdade de alterar direitos já normatizados pelo Estado, bem como rechaçar a mens legislatoris e buscar uma teoria política especial que a justifique, à luz das responsabilidades mais gerais dos legisladores.
Na aplicação do precedente, a primeira pergunta que Hércules deve fazer é se o rationale estava certo, avaliar o que é “holding” ou dicta e se há “distinguishing” ou “overrruling” que afaste a força gravitacional (Ibid. p. 1100-1001). Isto porque, ao contrário da lei, a força gravitacional não se exaure em seus limites linguísticos, a significar que argumento para uma regra pode ser mais importante do que o argumento que vem daquela regra ao caso particular.
A força gravitacional dos precedentes advém da máxima de tratar casos iguais da mesma forma, mas o precedente deve sempre ser visto como um relatório de uma decisão política, em que a força se limita aos argumentos de princípio necessários para justificar a decisão (Ibid., p. 1093-1095). Hércules, dessa feita, deve escolher alguma teoria sobre o propósito da norma em questão, observado outros atos da legislatura que ajudem a explicá-lo. No caso dos precedentes, a concordância ocorre em casos similares, com as normas e, também, com outros “rullings”. A lei, na ótica hercúlea, insista-se, não pode ser apartada do resto do ordenamento, mas antes ser base para construção de um esquema concreto de princípios que dê azo a justificação dos precedentes e das demais normas em sintonia.
Problema central nessa visão é atribuir à Hércules a tarefa de pesar os argumentos dos precedentes. Para tanto, deve observar sua consistência, por meio de uma teoria dos erros (“theory of mistakes”), em duas frentes (Ibid., p. 1099): (i) distinguir entre autoridade específica de qualquer evento institucional e sua força gravitacional; e (ii) distinguir entre erros corrigíveis ou não e quais são os precedentes que podem sobreviver à perda de sua força gravitacional.
Caberá à Hércules demonstrar que a decisão de precedente prévio, por vezes, não se adequa ou não seria proferida no tempo presente; ou, ainda, que a decisão prévia é injusta e deve ser afastada. Importa salientar que a “rights thesis” tem dois aspectos principais: descritivo, que explica a presente estrutura da questão em litígio; e normativo, que oferece uma justificativa para a estrutura.
Descabe olvidar, porém, que a teoria política varia entre juízes, mas Dworkin defende que a teoria de Hércules não oferece espaço para que se escolha entre duas ou mais convicções políticas. A seu ver, sua teoria se identifica como uma concepção particular da moralidade enquanto decisiva nas questões legais. Dito de outro modo, Dworkin crê que a mitologia de Hércules encoraja o juiz a fazer seus próprios julgamentos apenas sobre direitos institucionais (Ibid., p. 1108-1109).
V – OS CARACTERES CAPITAIS DA TEORIA DOS PRINCÍPIOS EM ALEXY E A CRÍTICAS CLÁSSICAS À PROPORCIONALIDADE
Para Robert Alexy, uma teoria forte de princípios comporta, além destes, relações de prioridade abstratas e concretas que pudessem determinar sem sombra de dúvida uma decisão para cada caso, e, se fosse possível, comprovaria a tese de Ronald Dworkin (1988, p. 139-140). Nesse viés, as colisões entre princípios são, no seu âmago, colisões entre valores que atestam de maneira definitiva por seu aspecto deontológico. O grande problema se encontra em justamente tentar estabelecer um critério hierárquico entre tais valorações. Isso só seria passível de exatidão se as intensidades colocadas em jogo fossem mensuráveis em escala numérica (1988, p. 142-143).
Reconhecendo essa impossibilidade da teoria forte, Dworkin aponta que o procedimento matemático que mostre necessariamente a resposta correta só seria possível por obra de um juiz com atributos de Hércules, com habilidade e sabedorias sobre-humanas (1975, p. 1083-1087). Como essa medição cardinal enfrenta problemas inumeráveis de realização prática, Alexy também a rechaça (1988, p. 143).
Essa constatação, porém, não elimina a possibilidade de análise da teoria dos princípios por critérios de maior sistematicidade, pois ela continua passível de análise na teoria fraca dos princípios. Apesar de sua maior adaptabilidade, esta teoria também não oferece subsídios para resposta correta única: suas próprias condições de prioridade e sistema de estruturas de ponderação minam essa viabilidade (Ibid., p. 144).
Continua impassível de afastamento, a consubstanciação da ideia de única resposta correta que procura Alexy. O autor mostra duas linhas preliminares pelas quais é crível a manutenção dessa esperança (Ibid., p. 145): a primeira, é que afirmar que existe a resposta correta única não depende necessariamente de conseguir provar como obtê-la, ela existe, é imanente, ainda que não se prove – Alexy não segue essa corrente; a segunda compreende que os princípios, assim como as regras, não regulam por si mesmos sua aplicação.
Desse modo, verificar como se situam as regras e os princípios diante do ordenamento só seria possível através de uma teoria da argumentação jurídica que os nivele mediante decisão racional fundamentada. Esta é uma argumentação especial porque está vinculada à lei, aos precedentes e à dogmática (Ibid., p. 146-147).
Em segundo aspecto, a necessária racionalidade da fundamentação jurídica leva à teoria procedimental, mas sua variabilidade frente posições discordantes extremas quanto à subjetividade ou objetividade do procedimento, sobretudo quanto à moral, fazem com que prescinda da elaboração da teoria do discurso. A questão central desse novo desenvolvimento teórico é, mais uma vez, tentar fixar as sólidas bases para a decisão racional e da argumentação e de seus resultados práticos, em que Alexy busca formulação de um código de razão prática que complementa as regras do discurso e constitui sua base de justificação e crítica, servindo, mutatis mutandis, ao ordenamento jurídico (Ibid., p. 150).
Se o discurso prático leva a uma resposta correta para cada caso, necessariamente deveria garantir sempre um consenso de quem a encontra. Mas isso só pode ser verificado de maneira aproximada – naturalmente haverá percepções discrepantes sobre um mesmo caso no mundo jurídico, o que exclui um consenso para cada decisão. Alexy conclui que por essa via só seria possível uma resposta correta para cada caso se fossem cumpridas cinco idealizações: (i) tempo ilimitado; (ii) informação ilimitada; (iii) claridade linguística conceitual ilimitada; (iv) capacidade e disposição ilimitada para mudança de papéis; (v) carência de prejuízos ilimitada (Ibid., p. 151). Em suma, Alexy concebe que essa tentativa quimérica do Hércules de Dworkin só seria possível em um cenário cujas possibilidades pudessem ser verificadas ad infinitum.
Noutro giro, Matthias Klatt e Moritz Meister ressaltam que, apesar de ser considerada como um “critério universal de controle de constitucionalidade”, existe uma crítica pertinente à teoria da proporcionalidade (2015, p. 32). Esta aversão, primariamente, vem da concepção de que o exame de proporcionalidade pode colocar em ponderação interesses outros que não os fundamentais, levando à multiplicidade de interesses conflitantes. A natural objeção à essa posição de que os direitos fundamentais seriam enfraquecidos parte da premissa razoável de que estes não estão em paridade com outros interesses, conforme apontava Ronald Dworkin (1975, p. 1077-1079).
Por mais que a posição de soberania dos direitos fundamentais possa parecer reconfortante, Klatt e Meister reconsideram essa informação a partir de uma nova construção. A priorização tem viés duplo: soberania constitucional e superioridade prima facie frente à interesses de mesmo valor. Da primeira lei de prioridade (“Vorranggesetz”), decorre que como garantias constitucionais só podem ser afastados por outras considerações de mesma natureza jurídica; da segunda, decorre seu valor abstrato frente outros interesses constitucionalmente tutelados, de modo que quanto menos um direito fundamental é concretizado, maior seu valor que legitima a intervenção (2015, p. 37-38). Cabe ressaltar que seu maior peso abstrato não determina o resultado da ponderação, apenas que têm uma vantagem prévia (“Abwägungsvorsprung”) e que ela não é imutável – não há trunfos dworkinianos (Ibid., p. 39).
A proteção aos direitos fundamentais, ainda que a segunda Vorranggesetz não seja absoluta, um terceiro pilar sustenta maior proteção: não se deve afirmar que outras posições jurídicas protegidas pelos direitos fundamentais sejam passíveis de isolamento na ponderação. Klatt e Meister apontam que a essência de um direito fundamental – aquilo que sobra após a ponderação – não deve ser violada. Contudo, os críticos afirmam que essa construção é, no limite, um princípio de utilidade pública ou razão moral, ligação esta que o autor compreende.
Essa acusação parte de Tsakyrakis – que denota os efeitos deletérios de se dizer que uma opinião é encoberta de neutralidade – e G. Webber – que considera terrível a despolitização no debate (Ibid., p. 42-45). Klatt considera válidas as objeções em parte, pois não considera verdadeiro dizer que a moral seria encoberta pelo princípio da proporcionalidade de acordo com duas teses. A priori, tem-se a tese do caso especial, segundo a qual os objetos de análise da argumentação jurídica são os mesmos da filosofia, mas com limitações específicas – vide doutrina, normas e jurisprudência – o que enraíza sua construção como moral. A posteriori a aplicação do princípio requer argumentos de moralidade substancialmente política (Ibid., p. 49-53).
No exame de argumentação, diversos juristas arguem que se por um lado é impossível quantificar alguns princípios; por outro, nos possíveis, é impossível colocar todos em igual escala. Situações comuns em hard cases, Klatt denota que se pode adotar escala triádica para valorar sem abrir mão da racionalidade, pois do contrário seria penoso abdicar da ciência constitucional. Ademais, os quantificáveis não são privilegiados, apenas correspondem na exata medida daquilo que lhes foi atribuído. Essa objeção falha por não distinguir incomensurabilidade e incomparabilidade, sendo que a primeira não implica a segunda – pautada em princípios colidentes, sendo ponto de partida de ponderações (Ibid., p. 54-55). O processo, destarte, não é puramente mecânico, pois depende de justificação interna e externa a partir de embasamento jurídico racional e moral.
O sopesamento é um instrumento heurístico, de liberdade epistêmica que não têm precisão matemática absoluta, mas é antes um guia realista. Essa é precisamente a grande vantagem da adoção de definições amplas dos direitos fundamentais, pois os colore de transparência, estrutura adequada, ponderação fundamentação, por conseguinte, segurança jurídica. Tais razões a orientam na “linguagem unificada de um constitucionalismo global” (Ibid., p. 60).
Em oposição à Klatt, Meister e Alexy, Stravos Tsakyrakis sugere que os princípios de balanceamento diversos, usados em uma multiplicidade de casos, podem ser reunidos na metodologia do princípio da generosidade de definição (2009, p. 468-471). Nesse sentido, o intérprete assume uma ampla definição do que pode plausivelmente contar como um exemplo do exercício de certo direito, cuja intenção inicial é definir o escopo que pode ser salvaguardado por uma proteção (Ibid., p. 472-476). Não há; porém, segurança no conhecimento de que todas as questões normativas cruciais possam ser jogadas ao estágio de balanceamento, dado não ser possível circunscrever com precisão que existem certos direitos de proteção imanente.
O grande entrave está relacionado com as diferentes teorias acerca do interesse público. O comum é compreender que interesse público é o interesse da maioria e, destarte, basta decidir o que é esse interesse observando o que os eleitos do povo votaram. Tsakyrakis denota que essa concepção se fixaria em questões mais sentimentais do que racionais, de forma que seria preciso construir uma noção de interesse público que emanasse das normas que relacionam os indivíduos e a sociedade de sua importância anexa (Ibid., p. 479-482). Isto porque os valores no balanceamento são pesáveis, mas é difícil definir qual tem mais peso, ainda que de interesse público. Logo, o princípio exposto teria, no mínimo, uma falha em não dar atenção ao que é posto em balança.
De acordo com Tsakyrakis, o maior problema decorre da falha do princípio em não expurgar de seu exame as justificações ilícitas (Ibid., p. 483-484). A justificação ilícita colide com o que valorizamos no direito que se interpõe e, em regra, o balanceamento deveria servir para reduzir os conflitos entre direitos ou entre direitos e o bem comum. Sua posição deveria ser a de medir os pesos relativos, mas acaba relativizando o peso de argumentos ilícitos, ainda que este seja rechaçado por seu quantum baixo. Por essa via, tudo fica à mercê da pesagem, mesmo que se trate de valores caros como liberdade e igualdade.
A falta de restrições às reivindicações no princípio corrói a especificação de um direito humano, pois sua especificação deveria começar pela compreensão de sua importância que o torna único. A proteção destes se debruça não só diante do poder arbitrário do Estado, mas também de interesses coletivos. Não se confundem, por conseguinte, com interesses da maioria, nem podem ser deixados em segundo plano, como faz a perversão do balanceamento.
Logo, escreve Tsakyrakis que aplicação do princípio in concreto corrói qualquer noção de direitos humanos, à luz das tarefas de otimização de Robert Alexy (Ibid., p. 484-485). Nessa seara, os direitos humanos garantiriam certos graus de liberdade e quanto mais esta for garantida, mais àquele direito é afirmado. A decisão do caso, ao optar por esse caminho, deixou de considerar que direitos humanos não são meras quantidades de liberdade, mas uma forma de proteger os status básicos das pessoas, pois a editora turca censurada tinha o direito de não sofrer qualquer sanção por expor suas ideias.
Tsakyrakis arremata que seria danoso aos direitos humanos se seus litígios considerassem apenas o princípio da proporcionalidade em termos de adequação ou intensidade ao invés de certo ou errado (Ibid. p. 486-487). Essa aparente sutileza se torna uma válvula de escape para que os juízes tenham que usar um raciocínio puramente moral velado pela linguagem do balanceamento fazendo com que, sob o jargão da proporcionalidade, as cortes denotem a existência de núcleos invioláveis de um direito, ainda que em contradição ao próprio princípio (Ibid., p. 488-494). É justamente nessa essência que se encontra a dificuldade, pois a sociedade não deve se afastar de considerações morais indispensáveis que são acomodadas quando o princípio da generosidade de definição restringe direitos.
VI – A ALTERNATIVA DO JUIZ HERMES DE FRANÇOIS OST
De modo a suplantar tanto as críticas ao Hércules de Dworkin, quanto afastar receios sobre a proporcionalidade, François Ost põe à lume três modelos de juiz, a saber: (a) Júpiter, de essência kelseniana, em que o direito está marcado por sacralidade e transcendência; (b) Hércules, de feição iconoclasta; e (c) Hermes, um mensageiro dos deuses (1993, p. 169-171). O próprio Ost admite, porém, que o Hércules engendrado não é propriamente o dworkianiano, mas mais próximo do erigido pelos realistas, em que o código jupiteriano é substituído pelo dossiê hercúleo, na medida em que a singularização do caso se sobrepõe à abstração legal (Ibid., p. 172).
Escreve Ost que o modelo piramidal kelseniano traduz as exigências do Estado Liberal do século XIX, enquanto o modelo dworkianiano traduz o Estado Social do século XX. A continuação desse embate se caracteriza por uma combinação, variável a depender dos ramos jurídicos e suas racionalidades, dado que Júpiter e Hércules não se sobrepõem.
No afã de solucionar o impasse, Ost cunha o juiz Hermes, sempre em movimento entre o céu, terra e inferno: transita em três camadas distintas para ocupar o vazio entre os deuses, presidindo a dialética dos espaços, conectando mortos e vivos e superando caminhos destemidos (Ibid., p. 171). Sua lei, e a única que conhece, é a dos discursos, de modo que o direito é enxergado como uma rede conectada em um banco de dados, não mais em dossiê ou codex.
A epítome de Júpiter está figuras como Licurgo, Sólon, Justiniano e Napoleão (Ibid., p. 172-174): Articula-se de forma hierárquica e piramidal, em que o direito é construído por grades (“stufenbau”) – o direito não é um sistema jurídico composto de normas em vigor, justapostas, senão uma hierarquia de sobreposição, dinamizado por movimento lineal e unidirecional. A ideia política que o anima é o princeps legibes solutus, em laicização da forma tominiana, a redundar que a norma sempre expresse ato de vontade, não uma manifestação intelectual autônoma.
Daí porque, nas linhas kelsenianas, há sempre uma autoridade imaginária que quer a norma. Ost advoga que o modelo de código kelseniano leva a quatro corolários: (i) monismo jurídico, que reforça a sistematicidade da autoridade; (ii) monismo político, i.e., soberania estatal, que supõe centralização administrativa; (iii) racionalidade dedutiva e linear; e (iv) o tempo se orienta a futuro controlado, dado que a lei sempre antecipa um estado de coisas.
Hercules, lado outro, é aquele que liberou Prometeu da pena que estava condenado, sob os auspícios de Júpiter, por ter roubado o fogo dos deuses e tê-lo entregado aos humanos. Enquanto o juiz jupiteriano é um homem da lei, o hercúleo é um engenheiro social que constrói um dossiê, que se adapta ao gradiente de circunstâncias e necessidades para adaptar direitos e deveres (Ibid., p. 176-177). No modelo em debate, não é decisão que deriva da regra, mas a regra que deriva da decisão, pois àquela é previsão desta.
O direito, assim, não existe em parte alguma, seja na lei ou precedentes, pois se encontra em aparições casuais – ao surgir, expira. Defende Ost que dossiê, ao contrário do código, está baseado em outras características a saber (Ibid., p. 178-181): (i) proliferação das decisões particulares; (ii) dispersão das autoridades encarregadas de aplicar o direito; (iii) marcha indutiva, pois é do fato que surge a regra ao buscar o resultado; e (iv) implica tempo descontínuo, com interrupções frequentemente esporádicas e descartáveis.
Na acepção do juiz Hermes, por sua vez, o direito deve ser visto sempre em circulação no espaço público, sem monopólios (Ibid., p. 182-183). Enquanto signo linguístico, o direito pede à Hermes para ser interpretado; enquanto manifestação da vontade, pede para ser interiorizado e aceito, o que o faz ver quanto produto inacabado e indefinível a priori (Ibid., p. 184).
Contudo, resta indagar por que, exatamente, os modelos de Júpiter e Hércules entraram tanto em crise na pós-modernidade. Segundo Ost, são quatro as razões principais (Ibid., p. 183-185). Primus, pela multiplicidade dos atores jurídicos, sem que os códigos saíssem de moda. Secundus, por uma imbricação de funções desenvolvidas por atores nos campos público e privado (v.g., sindicatos, associações, ONGs, dentre outros). Tertius, por uma multiplicação de níveis de poder, de onde nascem a supranacionalidade e os mecanismos de autorregulação. Quartus, por uma multiplicidade de modalidades da ação jurídica, pois não estamos mais no campo só do que é permitido, proibido ou obrigatório, já que o Estado promete, incita e planifica.
Se a intervenção direta é ineficaz, o Estado atua pelo “Reflexives Recht”, i.e., limita-se a estabelecer um marco procedimental para canalizar a autonomia dos subsistemas suficientemente diferenciados e capazes de se autorregularem, em conluio a mecanismos de despenalização e desjudicalização (Ibid., p. 193-194). Por isso, o direito passa a ser líquido, intersticial e informal, como forma de ocupar o vazio.
A solução do impasse, para Ost advém do juiz Hermes, pois o direito é enxergado como logos, um discurso com significado em suspensão, como um jogo em que cinco traços são marcantes (Ibid., p. 186-188): (i) tem em si mesmo o seu próprio movimento e gera hábitos; (ii) aceita um número indefinido de jogadores, sem papel necessariamente definido e sem exercício fatal da última palavra; (iii) combina, em proporção variável, justiça e azar, contenção e invasão, abertura e fechamento; (iv) articula a distinção entre a representação a estratégia; e (v) comporta fronteiras móveis e paradoxais.
Logo, se Júpiter insiste em convenções e Hércules em invenções, Hermes busca um caráter hermenêutico não somente de mensagem e na mediação procedimental. Em outras palavras, o direito começa a ser enxergado como um procedimento de discussão aberto, sem coação de formas e procedimentos, ainda que respeite os direitos e garantias fundamentais (Ibid., p. 191).
A tarefa de Hermes, assim, é sempre se recordar que uma comunidade se alavanca em responsabilidades coletivas e intergeracionais, não somente procedimentais. Não surpreende que Hermes segue o princípio in dubiis abistine, de tal sorte que se algum dia seja instado a dar a resposta a erigirá por um debate aberto e público (Ibid., p. 192-194). Significa, também, que a interação deliberativa pode congregar potencial epistêmico, dado que a probabilidade de achar não a única, mas a melhor resposta possível nas condições da decisão, alcance o melhor resultado possível ao longo do tempo.
CONCLUSÃO
A investigação sobre a relação entre direito e moral, articulada a partir do diálogo entre o positivismo jurídico e suas principais críticas contemporâneas, permite reconhecer, a contrario sensu, que a racionalidade jurídica não pode ser compreendida de forma isolada, tampouco reduzida a uma técnica normativa desprovida de compromisso ético. O modelo proposto por H.L.A. Hart, ao estruturar o ordenamento jurídico com base em regras primárias e secundárias e ao introduzir a regra de reconhecimento como critério de validade, representou avanço significativo na teoria do direito ao conferir maior sofisticação ao positivismo jurídico.
No entanto, o modelo hartiano, em certo grau, guarda insuficiência para oferecer respostas justas diante da complexidade dos “hard cases”, emanados da tensão entre normas e princípios, além de ser colocado em xeque pela crescente demanda por decisões juridicamente fundamentadas e moralmente legítimas. A crítica de Ronald Dworkin, ao insistir na inseparabilidade entre direito e moral em determinadas situações, propõe um redesenho da função judicial, centrado na figura do juiz Hércules.
O ideal teórico hercúleo é construído para mostrar que o direito não é apenas um conjunto de regras, mas um sistema de princípios interligados, cuja aplicação exige do intérprete um esforço hermenêutico denso, profundo e coerente com a história institucional e moral da comunidade jurídica. O argumento dworkiniano é poderoso ao desafiar a noção de discricionariedade ilimitada, malgrado seja permeado pela ideia de fornecer uma única resposta correta em cada litígio, o que demanda racionalidade jurídica excessivamente exigente e idealizada.
Ao rejeitar a posição de dworkianiana, Robert Alexy busca a construção da teoria dos princípios e da ponderação, em busca de metodologia que equilibre a dimensão racional e prática da decisão jurídica, embora sem eliminar completamente a subjetividade inerente à escolha entre valores em conflito. A lógica de balanceamento, sem embargo, compreende o risco de relativizar o conteúdo essencial dos direitos fundamentais, de tal sorte que deve estar atenta ao risco constante de encobertar o decisionismo pessoal por meio uma retórica técnica, recheada de truísmos e eloquência.
Nesse diapasão, o modelo hermenêutico de François Ost surge como uma alternativa crítica aos modelos tradicionais de fundamentação judicial, na medida em que seu juiz Hermes, em contraste com Júpiter (juiz positivista) e Hércules (juiz dworkianiano), simboliza um tipo de racionalidade jurídica sensível à linguagem, ao diálogo e à pluralidade. O juiz hermenêutico não busca impor uma verdade absoluta, mas facilitar a construção coletiva de sentidos a partir de uma escuta atenta e de um engajamento com a complexidade social e cultural dos conflitos jurídicos.
Ao deslocar o centro da racionalidade do “dossiê” para a “rede”, Ost propõe um direito que se entende como processo discursivo, aberto e inclusivo, mais preocupado com a legitimidade comunicativa das decisões do que com a pretensão de certeza objetiva. O juiz Hermes não abdica da razão, mas a reinventa. No lugar de uma racionalidade dedutiva, hierárquica e vertical, propõe uma racionalidade dialógica, contextual e horizontal, capaz de reconhecer os limites do saber jurídico e de valorizar a contribuição de diferentes atores na construção da justiça.
Deveras, entre as promessas do positivismo, os ideais de coerência moral dworkinianos e os novos modelos discursivos da racionalidade jurídica, o que se revela é a necessidade de repensar o papel do direito em uma sociedade plural, conflituosa e em constante transformação. O direito na pós-modernidade se avizinha menos em respostas definitivas e mais comprometido com processos legítimos, menos fixado em verdades jurídicas universais e mais atento à multiplicidade de vozes que compõem o tecido social. Nesse horizonte, a justiça deixa de ser uma imposição e passa a ser um encontro — entre saberes, experiências, argumentos e valores. Um encontro que, embora jamais alcance a perfeição do juiz Hércules, pode, ao menos, aspirar à sabedoria prática e à sensibilidade democrática do juiz Hermes.
REFERÊNCIAS
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DWORKIN, Ronald. A Matter of Principle. Cambridge: Harvard University Press, 1985.
__________. Hard Cases. Harvard Law Review, v. 88, n. 6, p. 1057-1109, abr. 1975.
__________. Levando os Direitos a Sério. Trad. port. de Nelson Boeira. São Paulo: Martins Fontes, 2002.
HART, Herbert L. A. Ensaios sobre Teoria do Direito e Filosofia. Trad. port. de José Garcez Ghiradi, Lenita Maria Rímoli Esteves e Leonardo Gomes Penteado. Rio de Janeiro: Elsevier, 2010.
_________. O Conceito de Direito. Trad. port. de A. Ribeiro Mendes. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 1986.
KLATT, Matthias; MEISTER, Moritz. A proporcionalidade como princípio constitucional universal. Trad. port. de Philippe Seyfarth de Souza Porto. Revista Publicum, v. 1, n. 1, p. 30-70, 2015.
OST, François. Júpiter, Hércules, Hermes: tres modelos de juez. Doxa – Cuadernos de Filosofía del Derecho, v. 14, p. 169-194, 1993.
TSAKYRAKIS, Stavros. Proportionality: An Assault on Human Rights. International Journal of Constitutional Law, v. 7, n. 3, p. 467-493, jul. 2009.
Bacharel e Mestrando em Direito Constitucional na Universidade de São Paulo. Advogado tributarista em São Paulo
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: OLIVEIRA, Pedro Gabriel Barroso de. Os rudimentos do exame dos princípios: das bases aos modelos de juiz Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 06 maio 2025, 04:46. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/artigo/68502/os-rudimentos-do-exame-dos-princpios-das-bases-aos-modelos-de-juiz. Acesso em: 06 maio 2025.
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