RESUMO: Este artigo analisa a constitucionalidade da Lei Estadual nº 14.946/2013, julgada pelo Supremo Tribunal Federal na Ação Direta de Inconstitucionalidade nº 5.465, como instrumento de combate ao trabalho escravo. A norma impõe sanções administrativas a empresas que comercializem produtos oriundos de práticas análogas à escravidão. Discutem-se a competência legislativa dos entes federativos, os princípios constitucionais envolvidos e o devido processo legal. Fundamenta-se em doutrina, jurisprudência e tratados internacionais ratificados pelo Brasil, concluindo-se pela compatibilidade da norma com a Constituição Federal de 1988.
Palavras-chave: Trabalho escravo; Constitucionalidade; Direito administrativo sancionador; STF; ICMS.
1. INTRODUÇÃO
A erradicação do trabalho escravo constitui prioridade nacional e internacional, em consonância com os princípios da dignidade da pessoa humana e da valorização do trabalho. A Constituição Federal de 1988 insere esses valores entre os fundamentos do Estado Democrático de Direito (art. 1º, III e IV). A Lei nº 14.946/2013, do Estado de São Paulo, emerge como tentativa normativa de responsabilização indireta de empresas que se beneficiam dessa prática. O objetivo deste trabalho é analisar a constitucionalidade da norma, à luz do julgamento da ADI 5.465, e seu papel como instrumento jurídico-administrativo legítimo de combate à escravidão contemporânea.
2. CONTEXTO NORMATIVO E FÁTICO
A norma paulista dispõe sobre o cancelamento da inscrição estadual de empresas que, de forma consciente, comercializem produtos oriundos de trabalho escravo ou condições análogas à escravidão. A sanção só pode ser aplicada após a comprovação da infração por autoridade federal competente, como o Ministério do Trabalho e Emprego. A lei também prevê a publicação de uma “lista suja” e a proibição de que os sócios das empresas punidas atuem no mesmo ramo por até dez anos.
A Confederação Nacional do Comércio (CNC) ajuizou a ADI 5.465 questionando a competência legislativa do Estado de São Paulo e apontando possíveis ofensas ao devido processo legal e ao princípio da proporcionalidade.
3. COMPETÊNCIA LEGISLATIVA E DIVISÃO FEDERATIVA DE PODERES
A Constituição Federal, em seu artigo 24, inciso I, autoriza os Estados a legislar concorrentemente sobre direito tributário, financeiro, penitenciário, econômico e urbanístico. No artigo 23, inciso X, confere competência comum aos entes federativos para combater as causas da pobreza e da marginalização.
A Lei nº 14.946/2013 não interfere na relação de trabalho — matéria de competência privativa da União —, mas regula uma consequência administrativa no âmbito do ICMS, tributo de competência estadual. Assim, como destacou o relator Ministro Nunes Marques, “a norma paulista não legisla sobre relações de trabalho, mas sobre a incidência de tributo e sobre a responsabilidade empresarial na cadeia de produção” (BRASIL, STF, ADI 5.465, 2025).
4. PRINCÍPIOS CONSTITUCIONAIS ENVOLVIDOS
A dignidade da pessoa humana (art. 1º, III) e a vedação ao tratamento desumano ou degradante (art. 5º, III) são princípios fundamentais que justificam medidas severas contra o trabalho escravo. A norma também respeita os princípios do devido processo legal (art. 5º, LIV), contraditório e ampla defesa (art. 5º, LV), ao exigir processo administrativo prévio com garantia de defesa.
Como leciona Sarlet (2020, p. 115), “a dignidade da pessoa humana constitui núcleo axiológico do ordenamento jurídico, irradiando seus efeitos sobre todo o sistema normativo”. Portanto, medidas voltadas à proteção da dignidade devem ser não apenas toleradas, mas estimuladas pelo Estado.
5. DIREITO ADMINISTRATIVO SANCIONADOR E PROPORCIONALIDADE
O STF reconheceu que a sanção prevista na Lei 14.946/2013 está em consonância com os princípios da razoabilidade e proporcionalidade. A norma exige prova de que o empresário sabia ou tinha razões suficientes para desconfiar da origem ilícita dos produtos (BRASIL, STF, ADI 5.465, 2025), vedando assim a responsabilização objetiva.
Di Pietro (2022, p. 623) observa que “as sanções administrativas, embora mais leves que as penais, devem observar os princípios constitucionais, especialmente a proporcionalidade, a individualização e o devido processo legal”.
6. TRANSPARÊNCIA E LISTA DE EMPRESAS PUNIDAS
A divulgação da chamada “lista suja” não constitui sanção autônoma, mas instrumento de publicidade dos atos administrativos, conforme já reconhecido pelo STF na ADPF 509. A Corte entendeu que a lista fortalece a transparência e não viola direitos fundamentais, uma vez que decorre de decisão administrativa com trânsito em julgado.
Medauar (2018, p. 298) explica que “a transparência administrativa é expressão do princípio da publicidade e instrumento de controle social, essencial para a prevenção de abusos e a responsabilização de agentes públicos e privados”.
7. COMPROMISSOS INTERNACIONAIS DO BRASIL
O Brasil é signatário das Convenções nº 29 (1930) e nº 105 (1957) da Organização Internacional do Trabalho (OIT), que proíbem o trabalho forçado ou compulsório. Conforme decidido no RE 466.343/SP, tais tratados de direitos humanos possuem status supralegal, obrigando o Estado brasileiro a adotá-los plenamente.
Portanto, políticas públicas e medidas legais como a Lei nº 14.946/2013 contribuem para o cumprimento dessas obrigações internacionais, legitimando a atuação dos entes subnacionais no enfrentamento ao trabalho escravo.
8. CONSIDERAÇÕES FINAIS
A Lei Estadual nº 14.946/2013 representa um importante avanço na responsabilização indireta de empresas que se beneficiam do trabalho escravo. Seu conteúdo está em conformidade com a Constituição Federal, respeitando os princípios da legalidade, proporcionalidade e devido processo legal. A decisão do STF na ADI 5.465 fortalece o pacto federativo e sinaliza que o combate ao trabalho escravo deve ser um esforço conjunto de todos os entes federativos, em alinhamento com os direitos fundamentais e tratados internacionais.
REFERÊNCIAS
BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil de 1988.
BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Ação Direta de Inconstitucionalidade nº 5.465. Rel. Min. Nunes Marques, Tribunal Pleno, julgado em 09 abr. 2025. Disponível em: https://portal.stf.jus.br/. Acesso em: 18 abr. 2025.
BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental nº 509. Rel. Min. Marco Aurélio, julgado em 15 set. 2020.
BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Recurso Extraordinário nº 466.343/SP. Rel. Min. Gilmar Mendes, julgado em 03 dez. 2008.
DI PIETRO, Maria Sylvia Zanella. Direito administrativo. 34. ed. São Paulo: Atlas, 2022.
MEDAUAR, Odete. Direito administrativo moderno. 20. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2018.
SARLET, Ingo Wolfgang. Dignidade da pessoa humana e direitos fundamentais. 13. ed. São Paulo: Atlas, 2020.
SILVA, José Afonso da. Curso de direito constitucional positivo. 41. ed. São Paulo: Malheiros, 2019.
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