Antes de mais nada, para a adequada compreensão do tema a que nos propomos analisar, é necessário tecer alguma considerações sobre as duas categorias de pessoas admitidas pelo Código Civil.
Pessoa física ou natural “é o ser humano; qualquer que seja ele, independentemente de sexo, raça, cor, credo, nacional ou estrangeiro ou outra classificação que se possa pretender” (João Baptista de Mello e Souza Neto, Direito Civil – Parte Geral, Atlas, 2004, p. 35).
Pessoa jurídica ou moral são entes aos quais o ordenamento pátrio atribui personalidade própria, independente da personalidade de seus criadores, sendo, assim, sujeito de direitos e obrigações.
Preleciona a eminente civilista Maria Helena Diniz que “há a mais completa independência entre os sócios ou associados e as pessoas jurídicas de que fazem parte, inexistindo qualquer responsabilidade daqueles para com as dívidas destas, no que é confirmado pela 1ª parte do art. 596 do Código de Processo Civil. Somente em raríssimas exceções, previstas em lei, é que o sócio poderá ser demandado pelo pagamento do débito, tem direito de exigir que sejam primeiro excutidos os bens da sociedade (CPC, art. 596, 2ª parte)” (Curso de Direito Civil Brasileiro, Saraiva, 2004, v.1, p. 275).
Interessa-nos, por óbvio, verificar a atuação da “teoria da desconsideração da personalidade jurídica” sobre a autonomia que há entre os bens da sociedade e os bens particulares dos sócios.
Historicamente, na doutrina é citado o célebre caso Salomon Versus Salomon & Company, na Inglaterra, em 1897. Segundo consta, o comerciante Aaron Salomon constituiu uma companhia com seis parentes. Para cada parente distribuiu uma ação, e para si reservou 20.000 ações representativas de sua contribuição ao capital social. Salomon cedeu seu fundo de comércio à companhia e colocou-se numa posição de credor privilegiado em relação aos eventuais credores desta. Em suma, a companhia pouco depois começou a atrasar seus pagamentos e, num segundo momento, entrou em liquidação. O liquidante verificou que os bens eram insuficiente para satisfazer todas as obrigações garantidas, e nada sobraria aos credores quirografários. Para defendê-los, o liquidante sustentou que a atividade da companhia era a própria atividade pessoal de Aaron Salomon, de modo que este deveria ser responsabilizado pelos pagamentos. O juiz de primeira instância e a Corte de Apelação acolheram o requerimento e decidiram pela responsabilidade de Salomon. Posteriormente, a Casa dos Lordes reformou a decisão fazendo prevalecer a separação patrimonial e a irresponsabilidade dos sócios (cf. Amador Paes de Almeida, Execução de bens dos sócios, Saraiva, 2004, p. 189).
Este caso teve grande repercussão não somente na Inglaterra, como também nos Estados Unidos da América, Alemanha, França e Itália, originando pela via doutrinária a elaboração da disregard doctrine ou, entre nós, teoria da desconsideração da pessoa jurídica ou teoria da penetração, ou, ainda, superamento da pessoa jurídica..
Pela teoria da desconsideração, quando restar comprovada a ocorrência de golpes, fraudes ou abuso de direito para subtrair-se a algum dever, o credor da pessoa jurídica poderá avançar sobre o patrimônio pessoal dos sócios da empresa, para satisfazer o seu crédito.
O Código Civil de 2002 reza em seu art. 50 o seguinte: “Em caso de abuso da personalidade jurídica, caracterizado pelo desvio de finalidade, ou pela confusão patrimonial, pode o juiz decidir, a requerimento da parte, ou do Ministério Público, quando lhe couber intervir no processo, que os efeitos de certas e determinadas relações de obrigações sejam estendidos aos bens particulares dos administradores ou sócios da pessoa jurídica”.
O Código de Defesa do Consumidor (Lei 8.078/90) dispõe em seu artigo 28, caput, o seguinte: “O juiz poderá desconsiderar a personalidade jurídica da sociedade quando, em detrimento do consumidor, houver abuso de direito, excesso de poder, infração da lei, fato ou ato ilícito ou violação dos estatutos ou contrato social. A desconsideração também será efetivada quando houver falência, estado de insolvência, encerramento ou inatividade da pessoa jurídica provocados por má administração”.
Verifica-se, icto oculi que o dispositivo contido no CDC é muito mais abrangente do que o previsto do CC, e não poderia ser diferente, posto que este tem aplicação onde há relação de consumo e no estatuto protetivo do consumidor há a presunção de que este é parte hipossuficiente. Aqui, a legislação “permite a desconsideração não só em caso de fraude, mas até na hipótese de simples má administração (o que é ... um caso de responsabilidade objetiva)” (Rizzatto Nunes, Curso de Direito do Consumidor, Saraiva, 2004, p. 673).
Em atenção à função social da empresa, convém salientar que “a desconsideração da pessoa jurídica não atinge a validade do ato constitutivo, mas a sua eficácia episódica. Uma sociedade que tenha autonomia patrimonial desconsiderada continua válida, assim como válidos são todos os demais atos que praticou, a separação patrimonial em relação aos seus sócios é que não produzirá nenhum efeito na decisão judicial referente àquele específico ato objeto da fraude” (Fábio Ulhoa Coelho, Manual de Direito Comercial, Saraiva, 2003, p. 127).
O superamento da pessoa jurídica se dá nos autos de um processo através de uma decisão interlocutória, onde o magistrado expressamente declara que a personalidade jurídica está sendo desconsiderada e declina o motivo qu o levou a este posicionamento. No mais, incumbirá ao credor indicar os bens particulares dos sócios que pretende ver penhorados e daí por diante a execução segue o seu curso.
Como visto, pode-se concluir que a teoria da desconsideração da personalidade jurídica é um eficaz instrumento à disposição dos credores vítimas de atos fraudulentos ou abusivos perpetrados por pessoas jurídicas que não possuem patrimônio para saldar as suas obrigações.
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