Resumo: Trata-se de artigo que tem por objetivo apresentar o debater do exercício do direito de privacidade do empregado no ambiente de trabalho frente às novas tecnologias do trabalho.
Palavras-chave: Poder de direção. Intimidade e privacidade do empregado. Revista íntima.
Abstract: This article intends to present the debate on the exercise of the employees’ right to privacy at the workplace against the new work technologies.
Key words: Employer control. Intimacy and privacy at the workplace. Personal survelaince.
1. Introdução
O assunto escolhido para este artigo “O conflito entre o poder do empregador e privacidade do empregado no ambiente de trabalho ” é polêmico e desafiador. O tema provoca calorosas discussões, pois não se trata somente de discutir os limites dos poderes do empregador no ambiente de trabalho. É necessário definir o novo conceito de “privacidade” no século XXI frente à introdução de novas tecnologias no trabalho de modo à assegurar a almejada dignidade da pessoa do trabalhador (art. 1º, inciso III, da CF).
Preliminarmente, antes de iniciarmos o debate jurídico, a primeira questão que se coloca é a análise do conflito existente entre empregado e empregador As empresas têm o direito de fiscalizar o trabalho dos seus empregados, já que estes são pagos pelo empregador e ao mesmo tempo podem colocar em risco o patrimônio da empresa? Os empregados têm direito à proteção de sua privacidade e intimidade no ambiente de trabalho, já que são acima de tudo cidadãos antes de trabalhadores?
A fim de analisar os limites do poder do empregador no ambiente de trabalho, estudaremos o direito constitucional de propriedade da empresa nos limites da sua função social. Por outro lado, será necessário discorrer também sobre o direito constitucional de privacidade e intimidade inserido dentro do contexto do contrato de trabalho, já que este tipo de contrato tem como um de seus elementos a confiança (fidúcia), sendo assim, é razoável que o empregador proceda fiscalizações diariamente sobre o caráter de seus empregados a pretexto de defender sua propridade?
Não há dúvidas que o assunto é atual e envolve uma ampla discussão, principalmente nos nossos tribunais. A jurisprudência trabalhista é recente e escassa. Portanto, a minha pretensão no presente artigo não é apresentar conclusões, mas contribuir para este apaixonante debate técnico e jurídico.
A legislação trabalhista confere a todo empregador o direito de admitir, assalariar e dirigir a prestação pessoal de serviço (artigo 2o da CLT[i])
Para Amauri Mascaro do Nascimento[ii], esse poder de direção nada mais é que uma “faculdade atribuída ao empregador de determinar o modo como a atividade do empregado, em decorrência do contrato de trabalho, deve ser exercida”.
O mesmo autor explica que o poder do empregador divide-se em: 1. poder de organização - parte do princípio que ordenar é ato inerente do empregador; 2. poder de controle ou de fiscalização - fiscalizar a execução das ordens conferidas ao empregado e 3. poder disciplinar - aplicar penalidade ao empregado que descumpra ordens gerais ou dirigidas especificamente a ele.
Segundo Ari Possidonio Beltran, a subordinação é o outro lado do poder diretivo do empregador no contexto do contrato de trabalho[iii]: “é da essência do contrato de trabalho a existência de um estado de dependência em que permanece uma das partes, o qual se não verifica pelo menos tão incisivamente, nos demais contratos de atividade [...] “.
Numa relação de emprego, ainda que o poder de direção do empregador seja incontestável, encontrando fundamento em outra das liberdades públicas, qual seja, o direito de propriedade, não há negar a ampla incidência dos mesmos, no que diz respeito aos trabalhadores. Mesmo que se encontrem em patamar hierarquicamente inferior em relação aos empresários, o poder de mando encontrará limites no exercício das liberdades públicas. (grifos nossos).
Segundo Ari Possidonio Beltran[v], o poder diretivo do empregador deve buscar um novo significado no século XXI:
O conteúdo desse elemento caracterizador do contrato de trabalho não pode assimilar-se ao sentido predominante na Idade Média: o empregado não é ‘servo’ e o empregador não é ‘senhor’. Há de partir-se do pressuposto da liberdade individual e da dignidade da pessoa humana do trabalhador.
O grande problema é que não há uma linha exata e distinta que estabeleça onde começa e termina o poder de subordinação do empregado e nem sempre é fácil distinguir tal poder com as novas tecnologias de trabalho e os novos meios de informação.
Apesar da expressão previsão constitucional do direito de propriedade da empresa que detém o empregador, a nossa Carta Magna não deixa de defender os direitos de personalidade dos empregados, pois garante a todo cidadão a proteção da sua intimidade e vida privada.
O direito fundamental de privacidade e intimidade do empregado amparado constitucionalmente (artigo 5o, inciso X, CF e arts. 20 e 21 do CC) representa um espaço íntimo intransponível por intromissões de terceiros, principalmente do empregador.
A maioria dos doutrinadores utiliza as expressões “intimidade” e “vida privada” de forma indistinta. Alguns autores procedem à diferenciação quanto a sua amplitude, visto que a vida privada seria mais extensa do que a intimidade.
Sandra Lia Simon[vi] apresenta a diferença entre as expressões “intimidade” e “vida privada”: “Vida privada seria tudo aquilo que o indivíduo quer ocultar do conhecimento público e intimidade seria tudo aquilo que ele quer deixar apenas no seu próprio âmbito pessoal, oculto, também de pessoas de seu convício mais próximo”.
A intimidade relaciona-se às relações subjetivas, de trato íntimo da pessoa, isto é, suas relações familiares e de amizade, além de também se relacionar com as relações objetivas, envolvendo as relações comerciais como, por exemplo, no trabalho. Por íntimo se deve entender tudo o que é interior ou simplesmente pessoal (“somente seu”, como se costuma dizer popularmente), e por privado, o caráter de não-acessibilidade às particularidades contra a vontade do seu titular.
De qualquer forma, a Constituição Federal atual procurou preocupar-se com a proteção ampla de ambos os direitos de forma indistinta: o direito a intimidade e à vida privada. Além disso, deixou claro que quaisquer conflitos que surgirem na relação de trabalho, referentes às violações dos direitos de personalidade dos empregados, tais como o direito à intimidade e à sua vida privada, poderão ensejar reparações por dano material, moral ou à imagem (art. 5º, incisos V e X, CF).
Sandra Lia Simon exemplifica uma situação de conflito no ambiente de trabalho[vii]:
Tome-se, por exemplo, o armazenamento e a divulgação, por parte da empresa, de dados pessoais do trabalhador. Se ele não tem acesso a tais informações, se essas informações são – sem sua autorização – repassadas para um possível futuro empregador, se dessas informações constam dados inverídicos ou imprecisos sobre a sua pessoa (que não puderam ser retificados, pois o trabalhador sequer teve acesso a eles), poderá não conseguir o emprego almejado. Lesando-se a intimidade e a vida privada, caracterizou-se o dano material.
A questão da revista no ambiente de trabalho (seja pessoal ou íntima) é um exemplo de possível conflito oriundo do poder de direção do empregado versus intimidade e privacidade do empregado.
De mão no bolso - Trabalhador revistado nu ganha indenização de R$ 13 mil. A transportadora de valores Transprev foi condenada a reparar um ex-empregado em R$ 13 mil por dano moral. Motivo: o ex-funcionário, que trabalhava como auxiliar de tesouraria, era obrigado a ficar totalmente nu para ser revistado. O trabalhador era colocado numa sala com paredes de vidro que proporcionava visão da revista para todas as pessoas que estivessem do lado fora. Para se defender, a Transprev alegou que a revista era um “meio inibitório” de eventuais furtos. O relator do Recurso, considerou ser irrelevante o fato de o empregado ter concordado com a revista “uma vez que a coação econômica à qual está submetido no curso do contrato o pressiona a admitir atos patronais que podem ser considerados abusivos”. Segundo o juiz, “o empregador detém o poder diretivo, que lhe permite traçar as diretrizes para o atingimento de suas metas. Todavia, esta prerrogativa não se sobrepõe jamais ao princípio da dignidade humana”. O relator considerou ainda que a “a revista do empregado não pode resultar em injustificada invasão de privacidade, pois são invioláveis a intimidade, a vida privada, a honra e a imagem das pessoas, direitos estes assegurados por norma de status constitucional, acrescentando que “o constrangimento causado por uma nudez infligida por terceiro, como provado no caso sob exame, é patente e impõe a correspondente reparação à vítima”. A decisão da 4ª Turma do TRT-SP foi unânime. (RO 01100.2004.054.02.00-6).
Em relação à revista pessoal, inclusive de pertences do empregado (bolsas, mochilas e etc), a polêmica ainda continua na jurisprudência trabalhista, conforme se percebe do teor da decisão destacada abaixo:
4. A solução de conflitos entre direitos fundamentais na relação privada de emprego
Os novos rumos de modernização que têm tomado nossas vidas nos últimos tempos têm se chocado com os direitos de preservação a intimidade com os direitos do empregador, quanto mais com a presença de máquinas, filmadoras, computadores, em todos os lugares. Não há como negar que o avanço da tecnologia nas últimas décadas vem fazendo grande revolução às relações e vínculos de trabalho.
Os Direitos Fundamentais preenchem espaço de grande responsabilidade no corpo constitucional e são tidos como importantes fundamentos para a base de todo o ordenamento jurídico. Não obstante, apesar da divergência de entendimentos sobre os direitos fundamentais, sabe-se que tal expressão ainda é a mais aceita pela doutrina.
Segundo Rodrigo de Lacerda Carelli[x], Direitos Fundamentais “são aqueles direitos do homem que determinada sociedade escolheu por bem inseri-los em seu direito positivo, sendo resguardados a Constituição.”
No tocante à posição do Estado em face dos direitos fundamentais, estes podem ser visualizados em dupla perspectiva: como direitos de defesa e como garantias à proteção do Estado contra a agressão de terceiros. Na primeira visão, os direitos fundamentais obrigam o Estado a respeitar os direitos de qualquer indivíduo em face de investidas do próprio Poder Público:atuam como direitos de defesa (Abwehrrechte). Na outra perspectiva, o Estado se obriga a garantir os direitos de qualquer pessoa contra a agressão perpetrada por terceiros, quando invocado o seu dever de proteção (Schutzpflicht des Staats).
Os princípios e regras de proteção à pessoa humana e ao trabalho constituem parte estrutural da Constituição da República brasileira. Sabiamente, a Carta Magna percebeu que a valorização do trabalho é um dos mais relevantes veículos de valorização do próprio ser humano, uma vez que a larga maioria dos indivíduos mantém-se e se afirma, na desigual sociedade capitalista, essencialmente, por meio de sua atividade laborativa.
Dinaura Godinho Pimentel Gomes afirma que é essencial que o Direito, através de princípios ético-morais e com o apoio da solidariedade social e luminosidade dos juristas preserve o homem “garantindo-lhe condições mínimas de existência digna, não só em ‘uma folha de papel’ (expressão historicamente utilizada por Lassale), mas de forma concreta e efetiva” e acrescenta grande reflexão com seriedade:[xx]
Urge, portanto, fazer valer a Constituição Brasileira – para que não seja vista como mera folha de papel, no dizer de LASSALLE – através da tomada de urgentes medidas, norteadas pela idéia de justiça, no sentido de efetivar a promoção e proteção dos direitos à vida, à saúde, e à dignidade da pessoa humana, tendo como vertente de correspondência a igualdade de oportunidades para todos os indivíduos, em oposição às graves e crescentes desigualdades sociais geradas pela globalização econômica. [xxi]
Enoque Ribeiro dos Santos entende que os direitos fundamentais são tão importantes que deveriam possuir no mundo jurídico “um papel semelhante a um título executivo constitucional, que uma vez não adimplido propicia a seu possuidor, exigir os eu efetivo cumprimento judicialmente, mesmo que seja em face da expropriação ou constrição dos bens do devedor, no caso o Estado.”[xxii]
5. Considerações finais
A preocupação dos doutrinadores e operadores do direito com o tema ora abordado, reflete uma nova realidade no cenário do direito do trabalho: que a proteção ao trabalhador suplantou patamares pecuniários e que a sociedade está preocupada com o meio ambiente do trabalho e com um dos direitos mais importantes da personalidade da humanidade, que é o direito à dignidade do trabalhador.
O ministro do STF Marco Aurélio M. F. Mello ressaltou bem: conscientizem-se os empregadores de que a busca do lucro não se sobrepõe, juridicamente, à dignidade do trabalhador como pessoa humana e partícipe da obra que encerra o empreendimento econômico”.
A minha singela conclusão é a seguinte: o artigo 2o da CLT deve passar por uma nova leitura constitucional no século XXI, ou seja, quando o legislador determina que o empregador “dirige” a prestação de seus empregados, deve-se interpretar que o empregador deve exercer os seus poderes de empresário, com boa fé objetiva, de forma ética e solidária, com respeito aos seus empregado como pessoa dotada de dignidade humana.
Por fim, coaduno com a opinião de André Franco Montoro: “não basta ensinar direitos humanos, é preciso lutar pela sua efetividade. E acima de tudo, trabalhar pela criação de uma cultura prática desses direitos.”[xxiv]
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[i] Art. 2º - Considera-se empregador a empresa, individual ou coletiva, que, assumindo os riscos da atividade econômica, admite, assalaria e dirige a prestação pessoal de serviço.
[ii] NASCIMENTO, Amauri Mascaro do. Curso de Direito do Trabalho, 18a. ed. São Paulo: Saraiva, 2003.
[iii] BELTRAN, Ai Possidonio. Dilemas do trabalho e do emprego na atualidade. São Paulo: LTr, 2001, p. 95.
[iv] SIMÓN, Sandra Lia. A proteção constitucional da intimidade e da vida privada do empregado. São Paulo: LTr, 2000, p. 101.
[v] Op. Cit., p. 95
[vi] SIMÓN, Sandra Lia. A proteção constitucional da intimidade e da vida privada do empregado. São Paulo: LTr, 2000, p. 101.
[vii] Op. Cit, p. 190.
[viii] Fonte: www.trt04.gov.br
[ix] Fonte: Revista Consultor Jurídico, 15/06/2004 . Site: www.conjur.com.br
[x] CARELLI, Rodrigo de Lacerda. Direitos Constitucionais sociais e os Direitos Fundamentais: são os direitos sociais constitucionais direitos fundamentais? Revista de Direito Constitucional e Internacional. São Paulo: RT, ano 11, v. 42, janeiro-março, 2003, p. 252.
[xi] ROMITA, Arion Sayão. Direitos Fundamentais nas relações de trabalho. São Paulo: LTr, 2005, p. 39.
[xii] AMARAL, Júlio Ricardo de Paula. Eficácia dos direitos fundamentais nas relações trabalhistas. São Paulo: LTr, 2007, p. 80
[xiii] Op. Cit, p. 83.
[xiv] NASCIMENTO, Amauri Mascaro. Iniciação ao direito do trabalho. 31.ed. São Paulo: LTr, 2005, p. 130.
[xv] DELGADO, Maurício Godinho. Princípios Constitucionais do trabalho Revista de Direito do Trabalho. São Paulo: RT, ano 31, n. 117, p. 167, janeiro-março, 2005
[xvi] Op. Cit, p. 93.
[xvii] Op. Cit, p. 95.
[xviii] Op. Cit, p. 95.
[xix] Op. Cit, p. 98.
[xx] GOMES, Dinaura Godinho Pimental. O processo de afirmação dos Direitos Fundamentais: evolução histórica, interação expansionista e perspectivas de efetivação. Revista de Direito Constitucional. São Paulo: RT, ano 11, n. 24, p. 110, outubro-dezembro de 2003.
[xxi] GOMES, Dinaura Doginho Pimental. Direitos Fundamentais Sociais: uma visão crítica da realidade brasileira. Revista de Direito Constitucional e Internacional. São Paulo: RT, ano 13, v. 53, p. 40, outubro-dezembro, 2005.
[xxii] SANTOS, Enoque Ribeiro dos. Direitos Humanos e meio ambiente do Trabalho – titulo executivo constitucional – tutela jurisdicional. Revista Justiça do Trabalho. Porto Alegre: HS, ano 22, n. 2258, p. 29, junho de 2005.
[xxiii] Op. Cit, p. 93.
[xxiv] MONTORO, André Franco. Cultura dos direitos humanos. I: Direitos Humanos: Legislação e Jurisprudência. São Paulo: Centro de Estudos da Procuradoria Geral do Estado. v.1, n. 12, p. 28, 1999 apud DE ALVARENGA, Rúbia Zanotelli. Direitos Humanos e Dignidade da Pessoa Humana no Direito do Trabalho Brasileiro. Revista Síntese Trabalhista. Ano XVII, n. 197, Editora Síntese, novembro 2005, p. 39.
Mestre em Direito das Relações Sociais pela PUC/SP, é advogada trabalhista e professora convidada em cursos de pós-graduação da ESA/SP, EPD, Cesumar/PR e PUC/PR e professora da Federal Concursos e Escola Federal de Direito. www.calvo.pro.br
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: CALVO, Adriana Carreira. O Conflito Entre o Poder do Empregador e a Privacidade do Empregado no Ambiente De Trabalho Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 02 nov 2008, 20:44. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/artigos/15327/o-conflito-entre-o-poder-do-empregador-e-a-privacidade-do-empregado-no-ambiente-de-trabalho. Acesso em: 25 nov 2024.
Por: PATRICIA GONZAGA DE SIQUEIRA
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