A implementação de políticas por determinação do Poder Judiciário é tema comumente discutido pela comunidade jurídica, principalmente diante de freqüentes decisões, inclusive do STF, determinado que o Poder Excecutivo adote medidas para tornar eficazes os direitos constitucionalmente assegurados. Verifica-se que houve uma mudança de paradigma, em que o juiz não é mais considerado como simples “boca da lei” (idéia que prevalecia no liberalismo clássico), mas passa a exercer o papel de um verdadeiro agente político, cuja principal função é assegurar os direitos os constitucionais. Tem sido cada dia mais comum ações propostas pelo Ministério Público para exigir do poder público o oferecimento de creches, escolas, medicamentos etc.
Muito se questiona se a implementação de políticas por determinação judicial ofende o princípio da separação dos poderes, prevalecendo o entendimento de que, ao implementar políticas públicas previstas na Constituição, o Poder Judiciário nada mais faz do que cumprir sua função de dar efetividade às normas constitucionais. Registre que o papel do juiz não é criar politicas públicas, mas apenas implantá-las quando previstas constitucionalmente, razão pela qual a judicialização das políticas públicas deve ser vista como um dos meios de exercício o conhecido sistema de “freios e contrapesos” (checks and balances), no qual se reconhece a possibilidade de um poder controlar a atuação do outro quando houve abuso no exercício das competências.
Ressalte-se que o fato de a norma ter caráter programático “não pode converter-se em promessa constitucional inconseqüente, sob pena de o Poder Público, fraudando justas expectativas nele depositadas pela coletividade, substituir, de maneira ilegítima, o cumprimento de seu impostergável dever, por um gesto irresponsável de infidelidade governamental ao que determina a própria Lei Fundamental do Estado" (RTJ 175/1212-1213). Ademais, não se pode falar em discricionariedade quando a política pública é estabelecida pela Constituição, sob pena de tornar sem eficácia direito e garantias fundamentais do indivíduo.
É certo, porém, a existência de limites à atuação do juiz na implementação de políticas pública, sendo que o principal deles é cláusula da reserva do possível, que significa restrições orçamentárias à atuação estatal. Predomina o entendimento de tal limitação não pode ser imposta como forma de furtar-se ao cumprimento do dever de efetivar direitos fundamentais, ou seja, um núcleo mínimo dos direitos deve ser respeitado sem a possibilidade de opor a referida cláusula.
Em diversas oportunidades o STF manifestou-se sobre o tema, valendo a pena transcrever trecho de decisão que muito bem retrata a importância do Judiciário na implementação de políticas públicas, sem que se vislumbre qualquer ofensa o principio da separação dos poderes:
“Nesse contexto, incide, sobre o Poder Público, a gravíssima obrigação de tornar efetivas as prestações de saúde, incumbindo-lhe promover, em favor das pessoas e das comunidades, medidas - preventivas e de recuperação -, que, fundadas em políticas públicas idôneas, tenham por finalidade viabilizar e dar concreção ao que prescreve, em seu art. 196, a Constituição da República. O sentido de fundamentalidade do direito à saúde - que representa, no contexto da evolução histórica dos direitos básicos da pessoa humana, uma das expressões mais relevantes das liberdades reais ou concretas - impõe ao Poder Público um dever de prestação positiva que somente se terá por cumprido, pelas instâncias governamentais, quando estas adotarem providências destinadas a promover, em plenitude, a satisfação efetiva da determinação ordenada pelo texto constitucional. Vê-se, desse modo, que, mais do que a simples positivação dos direitos sociais - que traduz estágio necessário ao processo de sua afirmação constitucional e que atua como pressuposto indispensável à sua eficácia jurídica (JOSÉ AFONSO DA SILVA, “Poder Constituinte e Poder Popular”, p. 199, itens ns. 20/21, 2000, Malheiros) -, recai, sobre o Estado, inafastável vínculo institucional consistente em conferir real efetividade a tais prerrogativas básicas, em ordem a permitir, às pessoas, nos casos de injustificável inadimplemento da obrigação estatal, que tenham elas acesso a um sistema organizado de garantias instrumentalmente vinculadas à realização, por parte das entidades governamentais, da tarefa que lhes impôs a própria Constituição. Não basta, portanto, que o Estado meramente proclame o reconhecimento formal de um direito. Torna-se essencial que, para além da simples declaração constitucional desse direito, seja ele integralmente respeitado e plenamente garantido, especialmente naqueles casos em que o direito - como o direito à saúde - se qualifica como prerrogativa jurídica de que decorre o poder do cidadão de exigir, do Estado, a implementação de prestações positivas impostas pelo próprio ordenamento constitucional. Cumpre assinalar, finalmente, que a essencialidade do direito à saúde fez com que o legislador constituinte qualificasse, como prestações de relevância pública, as ações e serviços de saúde (CF, art. 197), em ordem a legitimar a atuação do Ministério Público e do Poder Judiciário naquelas hipóteses em que os órgãos estatais, anomalamente, deixassem de respeitar o mandamento constitucional, frustrando-lhe, arbitrariamente, a eficácia jurídico-social, seja por intolerável omissão, seja por qualquer outra inaceitável modalidade de comportamento governamental desviante” (RE - 393175)
No que diz respeito ao cumprimento da decisão judicial visando à implementação de política pública, por se tratar de obrigação de fazer, a imposição de pena de multa é admitida como forma de coerção para o cumprimento da obrigação, ainda que se trata da Fazenda Pública. Entende-se que a tutela do equivalente deve ser garantido por todos meios necessários (art. 461 do CPC), não havendo restrição por se tratar da Fazenda Pública.
Nesse sentido:
“PROCESSUAL CIVIL. RECURSO ESPECIAL. FORNECIMENTO DE MEDICAMENTOS PELO ESTADO A PESSOA HIPOSSUFICIENTE. ANTECIPAÇÃO DE TUTELA. OBRIGAÇÃO DE FAZER DO ESTADO. INADIMPLEMENTO. COMINAÇÃO DE MULTA DIÁRIA. ASTREINTES. INCIDÊNCIA DO MEIO DE COERÇÃO. PROTEÇÃO CONSTITUCIONAL À SAÚDE, À VIDA E À DIGNIDADE DA PESSOA HUMANA. PRIMAZIA SOBRE PRINCÍPIOS DE DIREITO FINANCEIRO E ADMINISTRATIVO.(...)
4. Consoante entendimento consolidado neste Tribunal, em se tratando de obrigação de fazer, é permitido ao juízo da execução, de ofício ou a requerimento da parte, a imposição de multa cominatória ao devedor, mesmo que seja contra a Fazenda Pública." (AGRGRESP 189.108/SP, Relator Ministro Gilson Dipp, DJ de 02.04.2001). 5. Precedentes jurisprudenciais do STJ: REsp 775.567/RS, Relator Min. TEORI ALBINO ZAVASCKI, DJ 17.10.2005; REsp 770.524/RS, Relatora Min. ELIANA CALMON, DJ 24.10.2005; REsp 770.951/RS, Relator Min. CASTRO MEIRA, DJ 03.10.2005; REsp 699.495/RS, Relator Min. LUIZ FUX, DJ 05.09.2005. (...) Outrossim, a tutela jurisdicional para ser efetiva deve dar ao lesado resultado prático equivalente ao que obteria se a prestação fosse cumprida voluntariamente. O meio de coerção tem validade quando capaz de subjugar a recalcitrância do devedor. O Poder Judiciário não deve compactuar com o proceder do Estado, que condenado pela urgência da situação a entregar medicamentos imprescindíveis proteção da saúde e da vida de cidadão necessitado, revela-se indiferente à tutela judicial deferida e aos valores fundamentais por ele eclipsados. 8. Recurso especial provido(REsp 771.616/RJ, Rel. Min. LUIZ FUX, Primeira Turma, DJ 01.08.2006”.
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