Comentava há poucos dias com um parceiro de tênis sobre a beleza da nossa transição democrática, em que um presidente eleito passou a faixa presidencial para outro chefe de governo também eleito pelo povo. Meu interlocutor lembrou que a presença de Fidel Castro na posse de Lula deveria fazer o Brasil pensar nas maravilhas do modelo cubano, que proporcionou tantas conquistas no campo da ordem social, tais como saúde, educação, desporto etc. Perguntei-lhe se sabia a diferença entre a forma e o sistema de governo que vigoram nos dois países. Diante do seu silêncio, expliquei-lhe que Cuba é uma ditadura, ou seja, um regime político no qual todos os poderes dependem da autoridade de uma só pessoa, e a República Federativa do Brasil, formada pela união indissolúvel dos Estados e Municípios e do Distrito Federal, constitui-se em Estado Democrático de Direito (preâmbulo e art. 1º).
A era absolutista durou na Inglaterra até meados do século XVII, na França até 1789 e em outros países europeus até o século XIX, por vários motivos. O primeiro foi a criação de novos órgãos de governo, acima de tudo aqueles que dirigiam a organização militar e a política exterior. Além disso, eram as guerras internacionais o que fortalecia o poder do Estado, possibilitando aos monarcas manterem exércitos permanentes, capazes de impor a paz tanto no âmbito nacional como no exterior. Por fim, a revolução protestante contribuiu para o incremento da onipotência real; rompendo com a unidade do cristianismo, aboliu a supremacia papal sobre os governantes seculares, fomentou o nacionalismo, reviveu a doutrina paulina de que “não há autoridade que não venha de Deus” (Rm 13, 1-2) e estimulou os governantes da Europa setentrional a estenderem sua autoridade sobre assuntos religiosos, tanto quanto sobre os civis.
Os soberanos não se submetiam a regra nenhuma. O rei não errava – the king can do no wrong. Dominava a vontade onipotente do monarca, cristalizada na máxima romana quod principi placuit legis habet vigorem, pois o que agradava ao rei tinha força de lei. O Estado sou eu (l’État c’est moi).
Henrique VIII e Elizabete I na Inglaterra, Francisco I e Luís XIV na França, Filipe II na Espanha, Frederico Guilherme I e Frederico II na Prússia, Pedro, o Grande, e Catarina, a Grande, na Rússia foram monarcas absolutos. Sua autoridade real era sagrada, paternal, absolutista e sujeita à razão.
A conduta autocrática desses governantes era sancionada pela filosofia política da época. Thomas Hobbes (1588-1679), no livro Leviatã, concebia o Estado como um monstro todo-poderoso. A condição primitiva da natureza humana foi a vida isolada e independente, em que os homens, profundamente egoístas e isentos de qualquer lei moral, viviam em perpétua luta com os seus semelhantes: “o homem é um lobo para o homem” (bellum omnium in omnes, homo homini lupus). Compreendendo porém que a guerra era inimiga do progresso e que a paz e a união seriam de maiores vantagens para os seus interesses, instituíram, por um pacto livre, a sociedade civil. A conservação deste novo Estado, continuamente ameaçado na sua existência pelos instintos egoístas, persistentes no fundo da natureza humana, exigia um Poder forte, capaz de reprimi-los energicamente. Semelhante poder só se encontra num tirano único, despótico e irresponsável. A monarquia absoluta é a única forma de governo que pode assegurar a paz social e impedir a volta à pior das condições da vida: o estado de guerra permanente. Tal a origem da sociedade civil. Leviatã era o monstro horrível que devora e absorve os direitos individuais. Hobbes leva o absolutismo ao extremo de fazer da vontade do príncipe a norma suprema da moral e da justiça, o árbitro das consciências e o juiz infalível da verdade em matéria religiosa.
Imensas injustiças foram provocadas por esse individualismo, o que permitiu que se tivesse consciência da necessidade da justiça social. O Estado Democrático de Direito é um conceito-chave acolhido pelo preâmbulo e pelo art. 1º da Constituição. Suas características básicas são: a) submissão ao império da lei, como ato emanado formalmente do Poder Legislativo, composto de representantes do povo; b) divisão de poderes, que separe de forma independente e harmônica os Poderes Legislativo, Executivo e Judiciário; c) enunciado e garantia dos direitos individuais (art. 5º) da pessoa humana.
O Estado Democrático de Direito incorpora um componente revolucionário de transformação do statu quo. Aí se demonstra a extrema importância do preâmbulo e do art. 1º da Constituição, quando afirmam que a República Federativa do Brasil se constitui em Estado Democrático de Direito, não como mera promessa de se organizar tal Estado, pois a Constituição aí já o está proclamando e fundando.
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