O crime de deserção é o crime militar por excelência, crime contra o dever militar, a verdadeira nota de destaque do direito penal castrense. [2]
Quanto à natureza do crime de deserção, autores e jurisprudência se alternam, ora entendendo ser crime formal, ora de mera conduta. Há mesmo quem entenda ser formal e de mera conduta ao mesmo tempo.
Da mesma forma, muitos questionam sobre o caráter permanente deste delito especial, já vi quem o classificasse como instantâneo, ou mesmo instantâneo de efeitos permanentes.
Estabelecida a controvérsia passo ao objetivo deste breve estudo, que é, exatamente, tentar dirimi-la.
Há necessidade de se volver ao início do estudo do direito penal em geral. Existem – até mesmo por uma questão de didática, várias classificações dos crimes (ou delitos): quanto à gravidade do fato; quanto à forma de ação; quanto ao resultado etc.
Irei examinar aquelas classificações que se referem a todas as infrações penais e, é lógico, comparando-as sempre com o crime objeto de análise, no caso a deserção.
Quanto a forma de ação (instantâneos, permanentes e instantâneos de efeitos permanentes), a deserção é um crime permanente, já que a consumação – que se deu após o oitavo dia de ausência injustificada – se prolonga no tempo. Não é crime instantâneo porque neste a consumação se dá em certo momento, não podendo mais ser cessada pelo agente, como por exemplo, o furto em que a consumação se dá pela subtração da res. Se o larápio restitui a coisa antes de iniciada a ação penal não desnatura o crime de furto, sendo apenas causa de atenuação da pena. Nem é a deserção delito instantâneo de efeitos permanentes porque neste, consumada a infração os efeitos permanecem, como no homicídio que se consuma com a morte da vítima e este efeito, morte, permanece para sempre e não pode ser desfeito. Diz-se, portanto, que a deserção é permanente, porque uma vez consumada esta consumação se prolonga no tempo, ou seja, a situação de desertor permanece, sendo que a principal característica do crime permanente é a possibilidade do agente poder fazer cessar sua atividade delituosa, o que não acontece com as outras duas espécies mencionadas. Trocando em miúdos, o desertor pode fazer cessar a permanência da deserção, apresentando-se voluntariamente ou, a permanência da deserção irá cessar também quando o trânsfuga for capturado. Mesma situação daquele que mantém alguém em cárcere privado, o crime é permanente, o agente pode cessar voluntariamente a permanência (o crime se consumou quando a vítima foi colocada em cárcere privado), ou ser preso em flagrante pela polícia.
Quanto ao resultado (crimes materiais, formais e de mera conduta) a deserção é crime de mera conduta (ou simples atividade) porque se configura com a ausência sem licença pura e simples do militar, além do prazo estabelecido em lei (oito dias). A deserção não pode ser formal, porque este tipo de delito traz implícito no tipo um resultado que não necessita acontecer para sua consumação, por exemplo, na ameaça não é necessário que a vítima sinta-se intimidada nem muito menos que o agente cause o mal injusto e grave propalado. Já nos crime materiais há necessidade de um resultado externo à ação, como a morte no homicídio, e a subtração no furto e roubo.
Posso continuar as classificações:
Entre crimes comissivos, omissivos puros e omissivos impróprios, diria que a deserção é um crime comissivo – exige uma atividade positiva do agente (ausentar-se é conduta positiva, dolosa, o militar se retira de sua Unidade porque quer). Não pode ser omissivo puro (caso da insubmissão) porque neste o tipo é descrito com uma conduta negativa, de não fazer o que a lei determina, deixar de apresentar-se o convocado à incorporação; nem muito menos omissivo impróprio – crimes comissivos por omissão, que são aqueles decorrentes da violação do dever jurídico de agir, cuja relevância da omissão está estampada no § 2º do art. 29, do Código Penal Militar e § 2º, do art. 13 do CP.
Entre crimes unissubjetivos e plurissubjetivos, o crime de deserção, sem sombra de dúvidas é unissubjetivo, já que pode ser praticado por uma só pessoa. Plurissubjetivo seria o crime de concerto para a deserção, previsto no art. 191 do CPM.
Quanto ao fato de ser simples, qualificado ou privilegiado, entendo que o crime de deserção propriamente dita e seus casos assimilados constituem delito simples, apresentando máximo e mínimo de pena. Casos de deserção privilegiada encontram-se nos §§ 1º e 2º do art. 190 do Código Penal Militar. Não existem casos de deserção qualificada, mas estão presentes causas de especial diminuição de pena no inciso I do art. 189 e, de especial aumento de pena no inciso II do mesmo artigo.
Àqueles que pretendem ver na deserção um crime progressivo respondo que não é possível tal classificação. É que no crime progressivo, um tipo abstratamente considerado contém implicitamente outro que deve necessariamente ser realizado para se alcançar o resultado. Cita-se o homicídio, para o qual é necessário que exista, em decorrência da conduta, lesão corporal que ocasione a morte e, por esta é absorvida. Os defensores da progressividade da deserção argumentam que para a consumação do crime militar, é necessário, a passagem anterior pela ausência injustificada de até 08 dias. Atente-se, todavia, que a ausência sem licença, de per si, caracteriza uma transgressão disciplinar, e não crime. Portanto, ainda que essa ausência sem licença esteja prevista para a consumação do crime de deserção, ela é, sem sombra de dúvidas, de natureza administrativa, e portanto, não é apta a qualificar um crime militar de progressivo.
Na categoria de crimes comuns e especiais, crimes próprios e crimes de mão própria, veremos que a deserção é um crime especial, porque enquanto os crimes comuns podem ser praticados por qualquer pessoa, os especiais somente por uma categoria delas, no caso os militares. Por outro lado, enquanto que os crimes próprios são aqueles que exigem ser o agente portador de uma capacidade especial, encontrando-se tanto em uma posição jurídica como o funcionário público (peculato), o médico (omissão de notícia de doença contagiosa), como em uma posição de fato como a mãe da vítima (aborto), pai ou mãe (abandono intelectual), os crimes de mão própria distinguem-se dos crimes próprios pois apresentam um plus a mais, em relação àqueles, como por exemplo, a omissão de oficial (somente o oficial ) em proceder contra desertor, sabendo, ou devendo saber encontrar-se entre seus comandados (art. 194, CPM).
Como visto até aqui, a classificação de um crime – inclusive a deserção – pode ser feita de várias maneiras. Não resta dúvida no entanto, que o crime não pode ser classificado, ao mesmo tempo, em duas espécies de uma mesma categoria. Assim, não pode ser simultaneamente material, formal e de mera conduta, porque as três hipóteses pertencem à análise feita quanto ao resultado do delito. Ou é material, ou é formal, ou é de mera conduta.
Pelo mesmo motivo, não poderá, simultaneamente, ser classificado como instantâneo, permanente ou instantâneo de efeitos permanentes, porque tal análise se faz quanto à forma de ação do agente. Ou é uma coisa, ou é outra!
Com isso se pode concluir pela classificação que melhor interessa em face dos efeitos que dela decorrem, em especial aqueles relacionados à prescrição do delito :[3] a deserção é crime de mera conduta e permanente, pois as duas classificações, como já demonstrado acima, podem coexistir.
Superada a fase da determinação da natureza do crime de deserção, passarei agora a um aspecto prático levado a efeito amiúde na Justiça Militar da União, qual seja, uma vez localizado o endereço do desertor, expede-se mandado de busca domiciliar para que a autoridade militar possa capturá-lo. Durante o V Encontro de Magistrados da Justiça Militar da União [4], acirrou-se o debate entre platéia e integrantes da mesa do painel dedicado à deserção e insubmissão, nos seguintes termos: a deserção é delito de mera conduta ou permanente? Se é permanente, o desertor está em contínua situação de flagrante delito, e assim, não é necessário o mandado de busca domiciliar para prender o desertor que estiver dentro de casa, o que se justificaria se o crime for apenas de mera conduta.
Conforme já demonstrado acima, a deserção é crime de mera conduta e também permanente, razão pela qual a dúvida remanesce à necessidade – ou não de expedição de mandado judicial de busca domiciliar para a captura do desertor portas adentro da casa.
Não tenho dúvidas – e assim tem sido feito na área da 3ª Auditoria da 3ª Circunscrição Judiciária Militar – que o mandado de busca domiciliar é necessário. Explico:
A uma, porque o que efetivamente autoriza a captura do desertor sujeito à prisão é a lavratura do Termo de Deserção (art. 454 do CPPM). Sendo um crime militar próprio, apesar de ser permanente, não há que, necessariamente falar-se no típico estado de flagrância (art. 244 do CPPM), visto que a própria Constituição Federal encarregou-se de fazer a distinção, em seu art. 5º, inciso LXI, quando excepcionou a prisão decorrente da deserção, da ordem escrita e fundamentada da autoridade judiciária competente e também do estado de flagrante delito.
A duas, porque, ainda que se tivesse em vista o aludido estado de flagrância do desertor, que justificaria a entrada portas adentro da casa sem ordem judicial (art. 5º, XI, CF), há que se considerar que a Carta Magna não apresenta textos antagônicos, devendo sempre ser feita uma ponderação de valores frente ao caso concreto. Com certeza o delito de deserção não é daqueles que causa repulsa à sociedade, autorizando a violação do domicílio quando da flagrância de seu cometimento, como o homicídio, o estupro, roubo, etc. O próprio texto constitucional deixou claro quais seriam tais crimes a serem considerados inafiançáveis e insuscetíveis de graça ou anistia: a prática da tortura, o tráfico ilícito de entorpecentes e drogas afins, o terrorismo e os definidos como crimes hediondos (art.5º, XLIII, CF). Ad argumentandum tantum, o próprio estado de flagrância hoje se acha relativizado, nos crimes de menor potencial ofensivo (penas até dois anos) não se imporá prisão em flagrante nem se exigirá fiança, bastando a lavratura do termo circunstanciado pela autoridade policial (art. 69 e parágrafo único, da Lei 9099/95).
A três, por garantia constitucional o domicílio é inviolável (art. 5º, XI, CF), a cautela da autoridade militar em buscar a ordem judicial (não para prender o desertor mas sim para adentrar à casa) é louvável, evitando posterior alegação de eventual abuso, principalmente quando o desertor não é encontrado na diligência realizada.
Portanto – e já concluindo, a natureza do crime de deserção é a de ser delito de mera conduta e permanente. O que autoriza a prisão do desertor é a lavratura do competente Termo de Deserção, podendo ser capturado a qualquer tempo, independente de flagrante delito ou de ordem judicial de prisão. Verificando-se que o desertor se encontra dentro de casa, a autoridade militar deve acautelar-se em requerer o competente mandado judicial de busca domiciliar, não para a prisão propriamente dita, mas sim para adentrar portas adentro da casa, cuja inviolabilidade é garantida constitucionalmente . [5]
NOTAS:
1. Membro do Ministério Público da União. Promotor da Justiça Militar em Santa Maria-RS. Membro da Academia Mineira de Direito Militar. Autor de várias obras sobre direito militar publicadas pela Editora Juruá.
2. A deserção propriamente dita está prevista no art. 187 do CPM, os casos assimilados no art. 188 e, a deserção especial no art. 190, a deserção por evasão no art. 192, tudo do Código Penal Militar.
3. Art. 125, § 2º, letra 'c', do CPM: A prescrição da ação penal começa a correr, nos crimes permanentes, do dia em que cessou a permanência. Partindo dessa hipótese, constata-se que existe uma conciabilidade entre as regras dos artigos 132 (dirigido ao trânsfuga), com a do art. 125, VI do Código Penal Militar (dirigida ao réu do processo de deserção).
4. Realizado no Auditório do Superior Tribunal Militar, em Brasília-DF, de 11 a 15 de junho de 2007.
5. O mandado judicial de busca domiciliar será cumprido durante o dia.
Membro do Ministério Público da União. Promotor da Justiça Militar, exercendo suas atividades na Procuradoria da Justiça Militar em Santa Maria/RS. Oficial da reserva não remunerada da Polícia Militar do Estado do Paraná, lecionou na Academia Policial Militar do Guatupê e no Centro de Formação e Aperfeiçoamento de Praças. Foi também Promotor de Justiça do Paraná, entre os anos de 1995 a 1999. Sócio fundador da Associação Internacional das Justiças Militares e membro correspondente da Academia Mineira de Direito Militar. Articulista assíduo em várias revistas jurídicas e Palestrante do Direito Militar, em inúmeros eventos, destacando-se o 1º Encontro Internacional de Direitos Humanos, Direito Penal e Direito Militar, realizado em Brasília/DF, em novembro de 2000, e o II Encontro Internacional de Direito Humanitário e Direito Militar, realizado em Florianópolis/SC, em dezembro de 2003. Semana de Reflexão sobre a Justiça Militar, realizado na cidade de Praia, República de Cabo Verde, em março de 2008, aonde palestrou a convite do Chefe do Estado Maior das Forças Armadas daquele país, e o 3º Encontro de Direito Humanitário e Direito Militar, realizado pela Associação Internacional das Justiças Militares-AIJM, na cidade de Santiago, Chile, em maio de 2008, onde atuou na condição de Secretário Geral - Ad Hoc, da AIJM. Autor de livros relacionados a área militar. Site: www.jusmilitaris.com.br
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: ASSIS, Jorge Cesar de. Um exame minucioso sobre a natureza do crime de deserção Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 19 jan 2009, 09:45. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/artigos/16533/um-exame-minucioso-sobre-a-natureza-do-crime-de-desercao. Acesso em: 26 nov 2024.
Por: Gabriel Bacchieri Duarte Falcão
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