1- ANÁLISE HISTÓRICO-SOCIAL
“JUS EST REALIS AC PERSONALIS HOMINIS AD HOMINEM PROPORTIO, QUAE SERVATA SERVAT SOCIETATEM; CORRUPTA, CORRUMPIT” .¹ ¾
O direito aspira à efetividade ou seja, à produção de efeitos sociais das normas jurídicas.
Paulo Nader esclarece o significado do vocábulo quando diz que “por efetividade nomeamos o fenômeno social de obediência às normas jurídicas. Por serem passíveis de transgressão, as normas nem sempre alcançam plena efetividade. O índice de adesão às regras depende de vários fatores, sendo certo que a coercibilidade–força a serviço do direito–atua como um dos estímulos da efetividade.”²
A vertente laboral do direito, por sua vez, nasceu, ao longo do século XIX, como uma natural reação da classe trabalhadora contra as péssimas condições de trabalho, em decorrência da Revolução Industrial, da formação do proletariado e da indiferença do Estado diante da questão social. Surgiu como um direito de caráter social, influenciando, ulteriormente, as áreas do pensamento social, político, jurídico e econômico.
Não há que se olvidar que o Direito do Trabalho se destina a resolver as relações entre trabalhadores e empregadores segundo um sentido social de melhoria das condições do obreiro, propósito para o qual o Estado atua não só elaborando normas, mas também facultando que, fora do seu mecanismo, os próprios interessados também elaborem, daí ganhar sentido para alguns doutrinadores, como Gurvitch (1927), a expressão “direito social”.
Neste passo, a hierarquização das normas jurídicas atua, como diz José María Martín Oviedo “na determinação da norma a aplicar; trabalho que, necessário é assinalar, está intimamente ligado com o da subsunção”³.
Hans Kelsen, mestre da Escola de Viena, deu uma conotação mais viva ao problema com a teoria escalonada da formação da ordem jurídica, que compara a uma pirâmide na qual as normas inferiores vão encontrar seu fundamento nas normas hierarquicamente maiores.
Diz ele: “Se partirmos de uma sentença, buscando não só sua validade como tambem as normas que a fundamentaram, chegaremos fatalmente à Constituição. Esta, por sua vez, provoca a questão de sua própria validade, a ser resolvida por uma Constituição mais antiga, até chegarmos a uma norma básica, origem de todas.”4
Nos dizeres de Amauri Mascaro Nascimento “É como se a formação da ordem jurídica fosse um desdobramento de normas, a partir da Constituição Federal, dela se irradiando para as leis ordinárias e assim sucessivamente, num procedimento de crescente individualização, até que no caso concreto é atingida a máxima concretude com a sentença do juiz ou o contrato entre as partes”5.
Num âmbito mais abragente, os direitos trabalhistas (e a percepção do crédito pelo obreiro) prevalecem sobre os direitos patrimoniais civis e comerciais, salientando assim efetividade dos direitos que regulamentam as pactuações inter-empresariais.
A concepção de que terceiros devem responder e cumprir obrigações contraídas por outro vem sendo introduzida na legislação vigente, decorrentes da noção de responsabilidade. Esta noção é também um dos instrumentos relevantes construídos pelo direito para garantir a efetividade de suas normas e diretrizes.
Todavia, o termo responsabilidade, segundo Paul Duez, “se não for cuidadosamente conceituado, poderá prestar-se a ambiguidades, em razão da
pobreza, sob muitos aspectos, do vocábulo jurídico”6.
Certo é que toda manifestação da atividade humana traz em si o problema da responsabilidade. Isso talvez dificulte fixar o seu conceito. Inúmeras são as espécies de responsabilidade, conforme o campo em que se apresenta o problema. A responsabilidade é um fenômeno que se liga a todos os domínios da vida social, não sendo exclusivo da esfera jurídica.
A responsabilidade jurídica envolve a pessoa que infringe a norma, a pessoa atingida pela infração, o nexo causal entre infrator e infração, o prejuízo ocasionado, a sanção aplicável e a reparação.
Conforme Zanobini, não haverá dúvida de que o termo “responsabilidade serve para indicar uma situação toda especial daquele que, por qualquer título, deva arcar com as consequências de um fato danoso”7.
Aguiar Dias estabelece com muita lucidez o termo responsabilidade “Mais aproximada de uma definição de responsabilidade é a idéia de obrigação. A noção de garantia, empregada por alguns autores, em hábil expediente para fugir às dificuldades a que os conduz ao seu incondicional apego à noção de culpa, como substituta da responsabilidade, corresponde, ela também, à concepção de responsabilidade. Digamos então que responsável, responsabilidade, assim como, enfim todos os vocábulos cognatos, exprimem idéia de equivalência de contraprestação, de correspondência. É possível, diante disso, fixar uma noção, sem dúvida ainda imperfeita, de responsabilidade, no sentido de repercussão obrigacional (não interessa investigar a repercussão inócua) da atividade do homem”8 .
Trazendo tais conceitos dos institutos civilistas para a esfera trabalhista, o estudo da responsabilidade pela quitação das verbas trabalhistas deriva, como bem acentuou Maurício Godinho Delgado “a princípio, da posição assumida pelo empregador na relação jurídica empregatícia, compondo o polo passivo dessa relação. Essa norma geral é recorrente do Direito do Trabalho, que não foge, assim, da conduta geral também prevalecente no restante do direito: o devedor principal (na hipótese justrabalhista, o empregador), integrante direto da relação jurídica entre as partes e beneficiário principal e imediato de seus efeitos, é que responde pelas obrigações resultantes dessa relação”9.
O que interessa, portanto, é aprofundar o tema na vida jurídica trabalhista. É investigar a posição diante da qual se encontrava o sujeito passivo no contrato laboral, sendo que muitas vezes situações fáticas vão estabelecer a responsabilidade derivada apenas e tão somente da relação de emprego, sem estabelecer o responsabilizado como sendo o empregador. Teremos assim, a extensão dos laços justrabalhistas ao tomador de serviços, que se preservam fixados com uma entidade superveniente.
Aliás, tal possibilidade de responsabilização do não empregador permeia o Direito do Trabalho, sendo que a doutrina e jurisprudênica tratam de modo distinto, sem contudo, descurar da fixação do responsável pelas verbas trabalhistas. A moderna doutrina denomina “coletivização da responsabilidade” (responsabilidade subsidiária ou ainda solidária).
Num sistema econômico liberal, onde há incentivo a concorrência comercial e multiplicação de contratos entre parceiros especializados, necessário que se investiguem os fundamentos e natureza da responsabilidade jurídica dos co-obrigados, inclusive nas relações triangulares.
Sabe-se que o risco empresarial confere, segundo Delgado, “pano de fundo de toda a questão da responsabilidade nesse ramo jurídico especializado, produzindo efeitos próprios ou circundantes ao contrato laboral firmado. O risco do empreendimento transparece como noção revestida de notável estatuto distintivo em todo o universo trabalhista (art. 2o , caput, CLT), conferindo consistência à idéia de responsabilidade objetiva, imperante nesse ramo do direito. Responsabilidade objetiva pelo risco empresarial – eis a mola mestra do instituto da responsabilidade no Direito do Trabalho.”10
O fenômeno da terceirização, definido como sendo aquele pelo qual se dissocia a relação econômica de trabalho da relação justrabalhista que lhe seria correspondente. Por tal fenômeno insere-se o trabalhador no processo produtivo do tomador de serviços sem que se estendam a este os laços justrabalhistas, que se prervam fixados com uma entidade interveniente, tem desafiado a hegemonia da clássica forma de relação bilateral, existente entre devedor e credor na ótica justrabalhista, estendendo a responsabilidade às relações triangulares de trabalho.
A tendência histórica, contrária ao individualismo jurídico, tem como uma de suas manifestações o instituto da responsabilidade por força da lei. Novas leis criaram regras que até pouco tempo atrás se acreditariam inconcebíveis. O primeiro exemplo refere-se aos casos existentes no Código do Consumidor (Lei 8078/90), nos quais os fornecedores de produtos também respondem pelas obrigações dos fabricantes diante dos consumidores. Encontramos ainda a prevalência dos direitos trabalhistas no CPC (art. 649, IV), no art. 449 da CLT e na Constituição da República, mormente no art. 1o , III e IV ; art. 7o , VI, VII e X XXI, XXII, XXIII.
Contudo, a jurisprudência e doutrina, traçando apenas linhas vacilantes, não sistematizaram claramente a responsabilidade trabalhista nas relações triangulares de trabalho e as hipóteses de não responsabilização.
2- DIFICULDADE DA INSTRUMENTALIZAÇÃO NAS RELAÇÕES TRIANGULARES DE TRABALHO
Escassos são os instrumentos precisos para análise e superação pacífica frente a complexidade do tema, haja vista que não existe teorização efetivamente abrangente sobre a questão.
A terceirização, por exemplo, não recebeu o devido tratamento normativo. O diploma normativo do Decreto-lei 200/67 possibilitou à Adminstração Pública (direta, autárquica e fundacional) recorrer à execução indireta, mediante contratação de empresas de prestação de serviços, desde que exista a capacidade de desempenhar os “encargos da execução”(art. 10, § 7o, Decreto-lei n. 200/67). A Lei 5645/70 veio exemplificar alguns desses encargos de execução.
Vasta produção jurisprudencial, todavia, formou-se em torno da extensa gama de hipóteses de subministração de mão-de-obra a baixo custo e de exploração da energia do trabalho, por um terceiro, como se mercadoria fosse (por isso chamada de Merchandage), burlando a legislação trabalhista. Assim, duas Súmulas do Tribunal Superior do Trabalho, o Enunciado 256 (de 1986) e o Enunciado 331 (de dezembro de 1993 – este uma revisão do Enunciado anterior), tentam delimitar a responsabilidade trabalhista na terceirização, tentando equacionar as hipóteses de burla.
Comentando o Enunciado 256, Pedro Vidal Neto não lhe opõe qualquer ressalva “quando aplicado para reprimir a mera intermediação na contratação de mão-de-obra. A autêntica terceirização implica a existência de empresas de prestação de serviços e não, simplesmente, fornecimento de mão-de-obra.”11
Em 1974, a Lei do Trabalho Temporário, de nº 6.019, veio regular o processo terceirizante, mas não de forma permanente. “A permissão concedida pela Lei 6019/74 para a contratação termporária pressupõe a ocorrência de real necessidade fugaz de utilização de mão-de-obra pela empresa tomadora de serviços.”12
Posteriormente, a Lei 7102/83 estendeu a terceirização aos seguranças bancários, de forma permanente, porém restrita àquela categoria. A Lei 8863/94 alterou a lei anterior, estendendo a terceirização a vigilantes de qualquer instituição, de pessoas físicas, transporte ou garantia de transporte de valores. Assim, a vigilância passou a ser também patrimonial e não só de instituições financeiras, mas ainda de outros estabelecimentos públicos e privados.
Finalmente, introduziu a Lei 8949/94 a hipótese de terceirização às relações próprias às cooperativas. Contudo, o modelo terceirizante das cooperativas, tendo em vista as suas particularidades e ainda a abrangência do debate, não será analisado com a consistência teórica necessária.13
Afora tais diplomas supra citados, não possue a terceirização normatividade estatal, em flagrante defasagem jurídica.
Desta forma, a jurisprudência também vacila em posições contraditórias. O pequeno número de normas autorizativas da terceirização induziu os nossos Tribunais do Trabalho a um esforço hermenêutico, buscando sempre estabelecer ou pelo menos esclarecer ou ainda encontrar a ordem jurídica aplicada ao fenômeno da terceirização.
A doutrina divide-se entre as interpretações restritivas e as extensivas acerca dos poucos dispositivos legais, ora abordando o tema sob a ótica da responsabilidade objetiva, subjetiva, solidária ou ainda subsidiária.
Atualmente, como já frisado, a teorização sobre responsabilidade nas relações triangulares de trabalho encontra-se ainda um pouco lacunosa. Encontramos artigos esparços, breves considerações em compêndios e manuais de Direito do Trabalho.
Tal laconismo levou nossos Tribunais a uma intensa atividade interpretativa.
A Súmula 256, editada nos anos 80, tentou limitar as hipóteses de contratação de empregados por empresa interposta.
As Leis 6019/74 e 7102/83 fixaram hipóteses terceirizantes.
O Decreto-lei n. 200/67 e Lei 5645/70 (não contemplados pela Súmula 256) consubstanciavam exceções ao Administrador Público. Mas a Carta Constitucional de 1988 trouxe a vedação ao reconhecimento de vínculo empregatício com entidades estatais sem concurso público (art. 37, caput e inciso II, CRF/88).
Acirrada polêmica judicial conduziu, assim, à revisão da referida súmula, editando-se o Enunciado 331 do TST.
Conforme Delgado, “O Enunciado 331, como se percebe, deu resposta a algumas das críticas que se fazia ao texto do Enunciado 256. Assim, incorporou as hipóteses de terceirização aventadas pelo Decreto-lei n.200/67 e Lei 5645/70. Ao lado disso, acolheu a vedação constitucional de contratação de servidores (em sentido amplo) sema formalidade do concurso público. Foi além, contudo, o novo enunciado : incorporou importante distinção em atividades-meio e atividades-fim do tomador de serviços no tocante à aferição da licitude ou ilicitude trabalhista da terceirização perpetrada. Firmou também com clareza a dualidade terceirização lícita e terceirização ilícita. Esclareceu, por fim, a súmula em exame a natureza e extensão da responsabilidade decorrente das relações jurídicas terceirizadas.”14
A referida dualidade entre atividade-meio e fim foi enfrentada pela jurisprudência, tendo o Enunciado 331 assimiliado o resultado deste processo interpretativo.
Todavia, responsabilidade no processo terceirizante não foi pacificada pela jurisprudência, até mesmo por que o referido enunciado não respondeu a algumas questões relevantes sobre a totalidade dos efeitos da terceirização ilícita praticada por entidades administrativas públicas, segundo jurisprudência dominante.
Tem sido analisado o abuso de direito e ato ilícito nos parâmetros do Direito Civil, trazendo à tona as hipóteses de responsabilidade subjetiva, objetiva, solidária e subsidiária na legislação, com fincas nos grandes tratados civilistas sobre o tema.
Assim, tentou-se estudar sistematicamente o Direito Civil, juntamente com as normas laborativas, sem contudo, conseguir fixar diretrizes mais uniformizantes, descurando-se ainda de enfrentar o debate sobre as hipóteses de não responsabilização.
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2 Nader, Paulo. Filosofia do Direito Forense. 7a ed, 1998.
3 Oviedo, José María Martín. Formacion y aplicación del derecho, Madrid, Instituto Estudios Políticos, 1972, p.100.
4 Kelsen, Hans. Teoria Pura do Direito. São Paulo: Martins Forense, 1987.
5 Nascimento, Amauri Mascaro.Curso de Direito do Trabalho.15ª ed, São Paulo, Saraiva, 1998, p.235.
6 Duez, Paul.La Responsabilité de La Puisance Publique en Dehors du Contrat,. 1927, p.7.
7 Zanobini, Guiso. Corso di diritto administrativo, 6.a ed., 1950, v. I, p. 269.
8 Dias, Aguiar. Da Responsabilidade Civil. 6a ed, Rio de Janeiro: Forense, 1979, vol I, p.1/3.
9 .Delgado, Maurício Godinho. Introdução ao Direito do Trabalho. LTR, 2a edição, 1999, p.362.
10 Delgado, Maurício Godinho, ob cit, p. 370.
11 Aspectos Jurídicos da Terceirização, Revista Direito do Trabalho, no 80, dez/92, ed. RT.
12 Arnaldo Sussekind, Délio Maranhão, Segades Viana e Lima Teixeira. Instituições de Direito do Trabalho, vol. I, 15a ed., 1998.
13 A propósito do referido tema, consultar o Capítulo IX da obra de Maurício Godinho Delgado, in Introdução ao Direito do Trabalho, 2a ed., São Paulo:LTR, 1999.
14 Delgado, Maurício Godinho, ob. cit., p.383.
Professora Universitária. Defensora Pública - MG e Mestre em Direito
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: SILVA, Isabel Cristina Raposo e. O dilema do Direito do Trabalho na determinação da responsabilidade pelas verbas contratuais Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 17 fev 2009, 00:23. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/artigos/16790/o-dilema-do-direito-do-trabalho-na-determinacao-da-responsabilidade-pelas-verbas-contratuais. Acesso em: 26 nov 2024.
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