É noite. De repente sinto a presença de pessoas atrás de mim, e não consigo identificá-las. Sou empurrada e sou imobilizado em cima de um balcão frio de mármore. Talvez sejam 3 ou 4 homens, não sei.
O homem que segura minhas pernas, com garras inalcançáveis, invade toda minha intimidade de uma só vez, estrangulando todo o meu ser em uma dor lancinante e além d’alma... Outro grita para que eu fique calada e pare de me debater, de tentar qualquer coisa... estou totalmente inerte, tenho medo até de respirar e causar mais fúria naqueles homens que não consigo ver os rostos... que agonia!
Se revezam. Me rasgam por inteiro: corpo, alma, moral, tudo, tudo... e não posso me virar... Meu Deus, me ajuda, peço mentalmente num fiasco de pensamento lúcido que transpassa minha mente nesse momento. Sinto vontade súbita de vomitar... é a mistura dos odores desses monstros com seus suores. O som das vozes dos meus algozes também estão gravadas na minha mente. Cheiro e som, são os únicos elementos que possuo para reconhecê-los.
Estou suada, tremendo, com medo, com raiva, com tristeza, com solidão, sem ajuda, sem ninguém próximo para me acalmar nessa agonia vivenciada...
Sim, sou vítima de abuso sexual (estupro) e acabei de acordar de mais um pesadelo que me faz reviver tudo aquilo. Me tornei o resultado daquele momento! Conseguiram, de fato, acabar comigo e me enterrar em vida...
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O texto acima, relatado por uma vítima de estupro/abuso sexual, demonstra o quanto são intensas as conseqüências advindas desse ato hediondo.
Existem quatro categorias distintas de abuso sexual: 1) a pedofilia; 2) o estupro; 3) o assédio sexual; e, 4) a exploração sexual profissional.
Neste artigo, iremos nos ater ao estupro e suas conseqüências, tendo como pano de fundo o ocorrido no relato acima apresentado.
No meio jurídico, o artigo 213 do Código Penal Brasileiro preconiza o seguinte:
“Constranger alguém, mediante violência ou grave ameaça, a ter conjunção carnal ou a praticar ou permitir que com ele se pratique outro ato libidinoso:
Pena – reclusão, de 6 (seis) a 10 (dez) anos.
Parágrafo 1º. Se da conduta resulta lesão corporal de natureza grave ou se a vítima é menor de 18 (dezoito) ou maior de 14 (catorze) anos:
Pena – reclusão, de 8 (oito) a 12 (doze) anos.
Parágrafo 2º. Se a conduta resulta morte:
Pena – reclusão, de 12 (doze) a 30 (trinta) anos.”
Mas o abuso sexual não é tão simples quanto parece na letra fria da lei, pois tem conseqüências vindouras e permanentes.
É evidente que em todos os tipos de abuso sexual, existe a necessidade de tratamento tanto dos abusadores, quanto das vítimas; entretanto nem sempre é possível realizar tal desiderato. E isso se dá por questões várias.
Qualquer mulher que passa pela experiência do estupro enfrenta duras realidades, que são difíceis de encarar tanto quanto o que acabou de passar; pois, enfrentar a realidade, após sofrer um ato violento, atinge-a no âmbito bio-psico-social e espiritual, e deflagra, conseqüentemente, vários e vários problemas e distúrbios.
Nesse momento, é muito importante o meio em que ela convive, as pessoas que compartilham sua vida, pois são elas que a acolherão e contribuirão para o enfrentamento daquele ato violento.
Se a vítima se cala, seu sofrimento se torna insuportável e jamais – veja bem – jamais conseguirão expressar o tamanho de sua dor.
Outra coisa importante é o atendimento profissional que essa vítima precisa receber, até mesmo prevenção de gravidez indesejada e o aborto que é garantido pela lei, caso haja gravidez e opção pela interrupção por parte da mulher. A mulher deve OPTAR por realizar o aborto.
Na área psiquiatra, temos os dizeres dos estudiosos Kaplan e Sadock (1990):
“... os sistemas de apoio disponíveis à mulher imediatamente após a agressão influenciam nas manifestações e no grau dos danos causados àquela vitimada pelo estupro, independente da violência do próprio ataque. Torna-se claro, portanto, a importância de uma rede de apoio capaz de amparar integralmente as mulheres vitimadas pelo estupro, contemplando suas necessidades e problemas advindos da violência experienciada. Essa rede de apoio foi assinalada pelos discursos das mulheres, e abrange a família, amigos, parceiro, trabalho, serviços de saúde, serviço policial, serviço médico-legal e DEUS.” (GRIFO NOSSO)
As conseqüências das reações psicológicas a um estupro (ou tentativa) conduz a síndrome de trauma do estupro, mas esse é um tema que falaremos dele em outro artigo, visto ser complexo e extremamente importante.
Assim, o crime de estupro traz conseqüências nominadas como fatores psicológicos:
A fase de desorganização aguda – período em que as vítimas podem vir a ter fadiga, cefaléias, dores, distúrbios do sono; auto-acusações; medo de ser assassinado; sentimentos de degradação e perda da auto-estima; sentimentos de despersonalização ou desrealização; pensamentos intrusivos recorrentes; ansiedade e depressão.
A fase da reorganização, que é um processo prolongado, que corresponde ao recomeço, quando vítimas podem buscar alterações em seus estilos de vida: mudança de endereço, números de telefones etc.
Segundo estudiosos da área, essas vítimas passam a ter “temor de andar ou ficar só; medo das pessoas atrás delas e de multidões; medo de ficar dentro de casa ou fora dela (dependendo de onde ocorreu o estupro); temores sexuais; pesadelos repetidos recapitulando o estupro”.
Em resumo, o impacto de um estupro pode ser devastador, pois se trata de uma experiência “extremamente desmoralizadora, despersonalizada e degradante”, segundo já mencionou o estudioso Charam (1997). E segundo Rose (1986) englobam “a percepção de morte iminente, violação dos limites do corpo, ferimento narcísico, subjugação das funções egóicas usuais, perda do controle, regressão, ativação de conflitos e fantasias em vários níveis, quebra de importantes relacionamentos interpessoais”. E as vítimas de estupro têm repetida tendência de virem a apresentar (a curto e longo prazo) transtornos psiquiátricos, especialmente o TEPT, depressão, transtornos fóbico-ansiosos, transtornos relacionados a abuso de substâncias psicoativas, transtornos de personalidade, transtornos dissociativos, transtornos de somatização e transtornos alimentares. Também trataremos desses assuntos num outro artigo.
Para o operador do direito lidar com esse crime é preciso o mesmo estar capacitado intelectualmente e psiquicamente, pois é um tema muito melindroso. Ademais, a obtenção de informações sobre o trauma sexual esbarra muitas vezes no silêncio da vítima, e isso atrapalha em demasia o trabalho técnico-jurídico profissional.
Segundo Kilpatrick (1983), existem quatro razões para a vítima do crime de estupro se calar. São elas: “1) experiência prévia do contar o fato e não ser adequadamente compreendida; rejeição; ser desacreditada ou ser acusada de agir de modo provocador e de ter estimulado o abuso quando não diretamente acusada como a responsável; 2) medo de, ao revelar o ocorrido, o agressor venha a tomar conhecimento e possa vir a ameaçá-la; 3) evitar o estigma de ‘estuprada’; 4) sentimento de poder a vir desapontar o interlocutor; achar que fora algo que não teria relação com o que estivesse sentindo agora; vergonha; culpa; pensar que ao final das contas, revelar o fato não iria lhe ajudar em nada; evitar a lembrança e a angústia associada; pensamento mágico – “Se eu não falar sobre isso, isso não ocorreu’ (Craine e cols., 1988); temor de ser colocada em posição de ‘bode expiatório’ algo a que família freqüentemente tende a fazer (Hilton & Mezey, 1996)”.
Desse modo, o profissional do direito deve, durante a entrevista e questionamento da vítima sobre sua história, utilizar termos mais descritivos e comportamentais e menos termos que envolvam noções conceituais.
Deve-se buscar a superação entre o jurídico e o sociológico. O julgamento não se resume apenas à estrita aplicação da lei. O crime fica então preso a quem o sofre e a quem o pratica; a pena não é aplicada a todos sem distinções sociais/morais. É preciso buscar o conhecimento desse tema em outras extensões do conhecimento científico.
Concluindo, podemos observar que o estupro é visto como um ato disfuncional da sociedade, ofensivo aos bons costumes; sendo por isso, veemente o repúdio a esse tipo de delito, com expressões contundentes e desqualificadoras em relação ao estuprador. Contudo, também há um certo desrespeito velado em relação à parte ofendida, levantando dúvidas quanto às suas declarações e à sua própria moralidade. E isso, com certeza, também fere de morte a alma dessa vítima, tornando-a mais problemática e mais insegura.
Advogada, especialista em Direito Público e Responsabilidades Fiscais; pós-graduada em Direito Constitucional e em Direito Processual Civil; e membro da Comissão de Direitos Humanos, Acesso à Justiça e Direitos Sociais da OAB/GO. ([email protected]).
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: MORAIS, Monica Simone de. O crime de estupro Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 05 nov 2009, 08:24. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/artigos/18702/o-crime-de-estupro. Acesso em: 28 nov 2024.
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