Os sistemas de controle de constitucionalidade, longe de refletirem uma uniformidade de cunho orgânico-funcional, ostentam profundas dissonâncias entre si, tendo seus contornos delineados consoante a influência dos referenciais de espaço e tempo utilizados. Podem ser individualizados três sistemas básicos: a) sistema de controle político ou do tipo francês; b) sistema de controle judicial (judicial review) ou do tipo norte-americano, desenvolvido a partir do caso Marbury v. Madison (1 Cranch 137, 1803); e c) sistema de controle concentrado ou do tipo austríaco, introduzido na Constituição pela 1920 e que se estendeu por toda a Europa (Cf. Miranda, Manual de Direito Constitucional, T. VI, 2005, p. 114). Observadas as peculiaridades locais, cada Estado desenvolve o seu próprio modelo, sendo freqüente a combinação dos sistemas existentes.
No sistema político, o controle pode ser realizado pelo próprio órgão legislativo, modelo ainda adotado na Holanda, cuja Constituição veda a intervenção dos tribunais (art. 120 – “A constitucionalidade dos tratados e Atos do Parlamento não pode ser revista pelos tribunais”), ou por um órgão político especialmente constituído para esse fim, quer ligado ao Parlamento (v.g.: o Comitê Constitucional francês na IV República), quer independente, como ocorre com o Conseil Constitutionnel francês, criado pela Constituição de 1958 e que iniciou suas atividades em abril de 1959, o que termina por aproximá-lo do sistema de jurisdição constitucional prevalecente na Europa.
O sistema francês atual, com destacada atuação do Conselho Constitucional, é o resultado de um processo evolutivo que pode ser subdividido em três ciclos: a) de 1715 a 1814 – germinar do entendimento de que as leis fundamentais deveriam ser observadas, sendo o período marcado pela ineficácia dos mecanismos existentes, como o controle senatorial inserido na Constituição do ano VIII (1799) por influência de Sieyès; b) de 1814 a 1875 – marcado pela intervenção da jurisdição comum, isto apesar do silêncio das Constituições da época; e c) de 1875 a 1958 – caracterizado pela resistência ao controle realizado pelos juízes e por um controle simbólico a cargo do Comité Constitutionnel criado pela Constituição de 1946, isto em razão da onipotência do legislador (Cf. Favoreu et alii, Droit Constitutionnel, 2003, pp. 255/271).
O Conselho Constitucional, cujo Presidente é nomeado pelo Presidente da República, tem uma composição variável: três membros são discricionariamente nomeados pelo Presidente da República, três pelo Presidente da Assembléia Nacional e três pelo Presidente do Senado, a eles se somando os antigos Presidentes da República (em 07/05/2006, além dos nove membros nomeados, havia um único membro de direito, o Sr. Giscard D´Estaing, Presidente da República de 1974 a 1981). Enquanto os membros de direito são vitalícios, os nomeados, que não podem ser escolhidos entre Ministros e integrantes do Parlamento (além de outras vedações previstas na lei orgânica), têm um mandato de nove anos, não renovável, sendo a composição do Conselho renovada em um terço a cada três anos (arts. 56 e 57 da Constituição). No período de exercício de suas funções, não podem assumir uma posição pública sobre as questões submetidas (ou que possam vir a ser) ao Conselho (obligation de réserve).
Face à importância das atividades que desenvolve, o Conselho é dotado de autonomia regulamentar, administrativa e financeira. O Conselho já editou dois regulamentos, voltados à disciplina das reclamações nos referendos e ao contencioso nas eleições de deputados e senadores; dispõe de uma administração própria sob a autoridade do Presidente; ordena suas próprias despesas e submete a proposta orçamentária ao Parlamento, que a aprova sem modificação ou discussão (Cf. Favoreu et alii, op. cit., pp. 277/278).
Compete ao Conselho: a) responder as consultas do Presidente da República sobre as medidas a serem tomadas no estado de exceção; b) velar pela regularidade da eleição do Presidente da República, examinando os recursos e proclamando o resultado; c) decidir, em caso de contestação, sobre a regularidade da eleição dos deputados e senadores; d) velar pela regularidade da organização do referendo, proclamando o resultado; e) analisar a constitucionalidade dos acordos internacionais anteriormente à sua ratificação ou aprovação e dos diplomas normativos anteriormente à sua promulgação (arts. 16, 54, 58, 59, 60 e 61 da Constituição).
O controle preventivo de constitucionalidade, realizado no plano abstrato, pode ser classificado em obrigatório ou facultativo. Enquanto as leis orgânicas (leis reforçadas pelo procedimento) e os regimentos das assembléias parlamentares devem ser necessariamente submetidos ao Conselho anteriormente à sua promulgação, a submissão das leis é facultativa, podendo ocorrer por iniciativa do Presidente da República, do Primeiro Ministro, do Presidente da Assembléia Nacional, do Presidente do Senado ou de sessenta deputados ou senadores (art. 61 da Constituição), não sendo cogente a motivação ou possível a desistência (Cf. Hamon et alii, Manuel de Droit Constitutionnel, 2001, p. 715). Ao assegurar que grupos de parlamentares solicitem o pronunciamento do Conselho, o sistema francês privilegia as minorias organizadas e em muito contribui para o evolver da democracia. Note-se que o controle realizado pelo Conselho não tem alcançado as leis constitucionais, o que decorre da especial deferência conferida à soberania popular, já que as propostas de revisão somente são definitivas após aprovadas por referendo (art. 89 da Constituição) – vale lembrar que o Conselho, apesar da ausência de restrição constitucional, não examina as leis referendadas pela população (Decisão 62-20 DC, j. em 06/11/1962, Rec., p. 27). Promulgado o diploma normativo, não há mais espaço para a atuação do Conselho.
Recebida a solicitação de exame da disposição (mémoire de saisine), que não precisa ser subscrita por advogado (avocat), o Conselho solicita ao Secretário-Geral do Governo a apresentação de resposta, intervenção justificável na medida em que a maior parte dos diplomas normativos é de iniciativa do Governo (Cf. Hamon et alii, op. cit., p. 725). Ato contínuo, os autores da saisine são cientificados da resposta, tendo a faculdade de apresentar uma réplica, desenvolvendo-se o processo (objetivo) com estrito respeito ao contraditório. A crescente solicitação de pronunciamentos do Conselho e a noção de bloco de constitucionalidade (bloc de constitutionnalité), ampliando o paradigma de confronto (as normes de référence), tem conferido um papel de destaque ao órgão, cujas decisões, que podem alcançar mesmo as disposições não impugnadas, desde que inseridas no “conjunto da lei”, tem gerado uma profunda repercussão sobre todos os ramos do poder estatal (Cf. Hamon et alii, op. cit., p. 715).
Quanto às decisões, que são irrecorríveis, devem ser proferidas no prazo de um mês, salvo se formulado requerimento de urgência pelo Governo, o que reduz o prazo a oito dias (arts. 61 e 62 da Constituição). São quatro os tipos de decisão do Conselho: a) qualificação ou desqualificação (reconhecimento do caráter regulamentar de um texto, o que autoriza sua modificação por decreto); b) inconstitucionalidade parcial ou total, o que impede a promulgação ou aplicação da disposição; c) simples rejeição; e d) conformidade sob reserva (interpretação conforme a Constituição). (Cf. Favoreu et alii, op. cit., pp. 277/278). Declarada a inconstitucionalidade de uma disposição, ela não pode ser promulgada (art. 62 da Constituição).
A exemplo do que ocorre na Itália, mas diversamente dos paradigmas alemão e norte-americano, as decisões do Conselho não são acompanhadas de opiniões dissidentes (votos vencidos) ou concorrentes (votos com fundamentação diversa), sendo que somente a partir de 1995 passou a ser divulgado o nome dos Conselheiros que participaram da deliberação (Cf. Hamon et alii, op. cit., p. 715).
O Ministère Public, que possui características existenciais próprias e indivisíveis - apesar da possibilidade de transposição para a carreira judicial e de seus membros estarem sujeitos à supervisão do Ministro da Justiça (Garde des seaux) – não tem legitimidade para deflagrar o controle de constitucionalidade realizado pelo Conselho Constitucional. À Instituição compete a defesa do interesse público e de alguns interesses específicos do Governo, o que gera a estranha situação de os seus membros, ao mesmo tempo, serem considerados funcionários, o que explica a subordinação (ao Executivo), e magistrados, o que lhes assegura uma certa independência (Cf. Michele-Laure Rassat, Le Ministère Public entre son Passé et son Avenir, 1967, pp. 247-248).
Membro do Ministério Público do Estado do Rio de Janeiro. Ex-Consultor Jurídico da Procuradoria Geral de Justiça (2005-2009). Assessor Jurídico da Associação Nacional dos Membros do Ministério Público (CONAMP). Doutorando e Mestre em Ciências Jurídico-Políticas pela Universidade de Lisboa. Especialista em Education Law and Policy pela European Association for Education Law and Policy (Antuérpia - Bélgica) e em Ciências Políticas e Internacionais pela Universidade de Lisboa. Membro da International Association of Prosecutors (The Hague - Holanda)
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: GARCIA, Emerson. O Processo Constitucional Francês e a Atuação do Ministério Público Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 06 nov 2009, 08:48. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/artigos/18708/o-processo-constitucional-frances-e-a-atuacao-do-ministerio-publico. Acesso em: 22 nov 2024.
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