Autonomia, em seus contornos mais basilares, indica a “liberdade de determinação consentida para um sujeito”.[1] Essa premissa inicial, quando transposta para o plano do Ministério Público, pode ser identificada no modo de ser da Instituição, vale dizer, nas suas características existenciais, ou no seu modo de agir, mais especificamente ao exercer as suas atribuições finalísticas. No primeiro sentido, enquadram-se as autonomias administrativa e financeira; no segundo, a autonomia funcional.
A evolução do Ministério Público brasileiro bem demonstra que a Instituição surgiu da ação isolada de agentes públicos, encartados na estrutura do Estado, quer do Judiciário, quer do Executivo, responsáveis pelo exercício das atribuições que lhe são características. No Brasil-colônia, com a criação, na Bahia, do Tribunal de Relação do Brasil, foi feita alusão ao Procurador dos feitos da Coroa, Fazenda e Fisco, que perante ele oficiaria (Alvará de 7 de março de 1609). Tratava-se de verdadeiro cargo isolado, não propriamente de uma estrutura orgânica dotada de características existenciais próprias. A Constituição Imperial de 1824 também não dispensava disciplina específica à Instituição; merece ser lembrado, no entanto, o teor de seu art. 48, situado no Capítulo “Do Senado”: “No juízo dos crimes, cuja acusação não pertence à Câmara dos Deputados, acusará o procurador da Coroa e Soberania Nacional”. O art. 163, por sua vez, determinou a criação do Supremo Tribunal de Justiça e dos Tribunais da Relação, sendo que, para funcionar junto a eles, era nomeado um de seus membros, que recebia a denominação de Procurador da Coroa. Nesse período, verifica-se a presença de uma autonomia funcional, isto apesar da constatação de que esses agentes deveriam observar as orientações do Governo, já que responsáveis pela defesa de seus interesses.
Assim, tanto no período colonial, como no período que sucedeu à proclamação da independência, não havia que se falar em autonomia administrativa e financeira do Ministério Público. Em relação ao recrutamento, por exemplo, os seus membros, os Promotores Públicos, eram nomeados e demitidos pelo Imperador ou pelos Presidentes das Províncias, isto sem olvidar a possibilidade de nomeação de interinos pelo juiz.[2]
Com a proclamação da República, foram dados os primeiros passos para a alteração desse quadro. O Decreto nº 848, que criou e regulamentou a Justiça Federal, tratou do Ministério Público no Capítulo VI, conferindo-lhe, ao menos formalmente, organicidade e perfil institucional. Esse Decreto manteve o sistema anterior, segundo o qual as funções do Ministério Público, em segunda instância, eram exercidas por um membro do Poder Judiciário, que seria o Procurador-Geral. Consoante o art. 23, “em cada seção da Justiça Federal, haverá um Procurador da República, nomeado pelo Presidente da República, por quatro anos, durante os quais não poderá ser removido, salvo se o quiser”, preceito que conferiu maior estabilidade ao cargo. O art. 24, por sua vez, dispunha que, entre as suas atribuições, estava a de “cumprir as ordens do governo da República relativas ao exercício de suas funções”, o que deixava claro o vínculo existente entre o Ministério Público e o Executivo. Esse Decreto, a exemplo do Decreto nº 1.030, é de autoria de Campos Sales, então Ministro da Justiça do Governo Provisório da República e que é considerado o patrono do Ministério Público brasileiro.
A Constituição Republicana de 1891 dispunha, na seção “Do Poder Judiciário”, sobre a escolha do Procurador-Geral da República dentre Ministros do Supremo Tribunal Federal (art. 58, § 2º), sistema adotado até 1934, e, em seu art. 81, § 1º, conferia atribuição a tal agente para a propositura de revisão criminal em favor do réu. Com a proclamação da República, cada Estado passou a disciplinar o critério de escolha do respectivo Procurador-Geral, que deveria ser integrante do tribunal estadual.
A Constituição de 1934, em que pese tê-lo associado ao Poder Executivo, conferiu individualidade própria ao Ministério Público, tendo-o inserido no Capítulo VI: “Dos órgãos de cooperação nas atividades governamentais” (arts. 95 a 98). O critério de escolha do Procurador-Geral da República foi alterado, não mais recaindo dentre os membros da Corte Suprema, passando a escolha a ser feita “entre cidadãos com requisitos estabelecidos para os ministros da Corte Suprema”, submetida a escolha à aprovação do Senado (art. 95). Além disso, previu a existência de Ministérios Públicos na União, nos Estados, no Distrito Federal e nos Territórios, a serem organizados por lei (art. 95); dispôs, ainda, sobre a estabilidade e as vedações incidentes sobre os membros do Ministério Público e a necessidade de prévia aprovação em concurso público para o ingresso na carreira.
A Carta ditatorial de 1937 não dispensou tratamento específico ao Ministério Público, somente se referindo à forma de escolha do Procurador-Geral, que seria de livre nomeação e demissão pelo Presidente da República (art. 99 – dispositivo inserido no capítulo concernente ao Supremo Tribunal Federal).
A Constituição de 1946 voltou a conferir título próprio ao Ministério Público, tendo estabelecido a sua disciplina básica nos arts. 125 a 128, dissociando-o dos demais poderes do Estado. Foram previstas a estabilidade, a inamovibilidade (relativa) e a necessidade de concurso público (art. 127). O Procurador-Geral da República era escolhido com a participação do Senado Federal, que deveria aprovar a escolha do Presidente da República. A representação judicial da União era realizada pelos Procuradores da República, podendo a lei transferi-las, nas Comarcas do interior, ao Ministério Público Estadual (art. 126, parágrafo único), o que mantinha as amarras com o Executivo.
A Constituição de 1967, sem introduzir alterações substanciais, referia-se à Instituição em seus arts. 137 a 139, inseridos no capítulo “Do Poder Judiciário”. A Emenda Constitucional nº 1/1969 disciplinou o Ministério Público em seus arts. 94 a 96, tendo incluído a Instituição no capítulo “Do Poder Executivo”, sofrendo, posteriormente, algumas alterações promovidas pela Emenda Constitucional nº 7/1977, que previu, pela primeira vez, a edição de uma lei nacional com o fim de uniformizar os alicerces estruturais da Instituição.
Com esteio no art. 96, parágrafo único, da Constituição então vigente, foi editada a Lei Complementar nº 40/1981, que estabeleceu as normas gerais a serem adotadas na organização do Ministério Público dos Estados. Dentre outros avanços promovidos por essa Lei Complementar, podem ser mencionados os seguintes: a) o Ministério Público foi considerado Instituição permanente e essencial à função jurisdicional do Estado; b) a fixação dos princípios da unidade, da indivisibilidade e da autonomia funcional; c) a outorga de autonomia administrativa e financeira à Instituição, com a previsão de dotação orçamentária própria; d) o redimensionamento do cargo de Procurador-Geral, que, até então, era considerado um cargo de confiança, sendo o seu ocupante demissível ad nutum pelo Chefe do Executivo; e e) a não inclusão, dentre as atribuições do Ministério Público dos Estados, da representação judicial desses entes federados. Neste particular, foi estabelecida uma clara distinção em relação ao Ministério Público Federal, que permaneceu com a obrigação de representar judicialmente a União, obrigação esta que, nas Comarcas do interior, deveria ser exercida pelos Promotores de Justiça (art. 95, § 2º, da EC nº 01/1969). Tal estado de coisas persistiu até o advento da Constituição de 1988, observadas as normas de transição por ela veiculadas.
A Constituição de 1988, por sua vez, diluiu por completo os vínculos outrora existentes com o Executivo, a começar pela vedação expressa de representá-lo e de exercer atividade de consultoria. À Instituição foi outorgada, de forma expressa, autonomia funcional e administrativa e, de forma implícita, autonomia financeira (art. 127). A autonomia funcional, também prevista no art. 3º da Lei nº 8.625/1993, indica que a Instituição está imune a qualquer influência externa no exercício de sua atividade finalística. Assim, poderá adotar as medidas contempladas no ordenamento jurídico, em face de quaisquer agentes, órgãos ou instituições, de caráter público ou privado, sempre que tal se fizer necessário. A autonomia administrativa assegura ao Ministério Público a prerrogativa de editar atos relacionados à gestão dos seus quadros de pessoal (v.g.: admissão, designação, exoneração, aposentadoria, disponibilidade etc.), à administração e à aquisição de bens,[3] isto sem olvidar a iniciativa legislativa nas matérias que lhe são correlatas. Diversamente ao que se verifica em relação ao Poder Judiciário, a Constituição da República não utilizou a expressão autonomia financeira ao dispor sobre as garantias do Ministério Público. Essa autonomia, no entanto, é incontroversa, dispondo o art. 127, § 3º, que a Instituição “elaborará sua proposta orçamentária dentro dos limites estabelecidos na lei de diretrizes orçamentárias”, podendo, ainda, empenhar as respectivas despesas.
Com a Constituição de 1988, o Ministério Público alcançou o apogeu de sua autonomia. Nesse momento, a Instituição possuía plena liberdade valorativa em relação às questões que lhe eram correlatas, somente se sujeitando ao controle financeiro realizado pelo Tribunal de Contas e, face ao princípio da inafastabilidade da tutela jurisdicional, às decisões do Poder Judiciário. Esse quadro, no entanto, passou por um profundo redimensionamento com a promulgação da Emenda Constitucional nº 45/2004, que criou a figura do Conselho Nacional do Ministério Público. Trata-se de órgão de controle externo que apresenta uma composição híbrida, na qual coexistem membros dos órgãos controlados e agentes estranhos aos seus quadros; possui atribuição para rever atos de cunho administrativo; tem poder disciplinar, podendo aplicar sanções que não a perda do cargo; será municiado com informações colhidas por ouvidorias a serem criadas e deve elaborar relatório anual sobre as suas atividades e a situação dos órgãos controlados no Brasil, relatório este que integrará a mensagem a ser encaminhada ao Congresso Nacional por ocasião da abertura da sessão legislativa.[4]
No seu primeiro biênio de atividades, constatou-se que a atuação desse órgão de controle externo foi tímida e recalcitrante em alguns aspectos, pouco ou nada fazendo em relação à adoção de medidas destinadas a “zelar pela autonomia funcional e administrativa do Ministério Público”[5], (1) amenizando as investidas ou apontando as omissões de outras estruturas de poder que atentavam contra ela, (2) aperfeiçoando as estruturas controladas, (3) oferecendo modelos de gestão e de controle interno que contribuíssem para o aumento de sua eficiência, (4) divulgando iniciativas bem sucedidas, com o conseqüente estímulo ao debate sobre a conveniência de serem generalizadas etc.
Em outros aspectos, no entanto, mais especificamente no que diz respeito ao controle dos atos praticados com base na autonomia administrativa e financeira, a atuação foi ampla, intensa e visceral. Ampla na medida em que todo e qualquer indivíduo, identificado ou não, por qualquer meio e escrevendo qualquer coisa (na verdadeira acepção da expressão, ainda que de modo ofensivo à honra alheia), tinha o seu arrazoado recebido e autuado, dali se originando um processo administrativo. Intensa por ser uma fiscalização ativa, em que se verificava a requisição de informações e de documentos, seguindo-se calorosos debates, muitas vezes sobre questões periféricas e com pouco apreço à técnica. Visceral em razão do não tracejar de uma linha limítrofe entre as noções de mérito e juridicidade do ato administrativo, não sendo incomum que o CNMP avançasse em juízos valorativos estranhos ao universo de atuação de um órgão de controle externo. Essa última característica, no entanto, ainda apresentava algumas peculiaridades. A principal e mais curiosa reside na constatação de que as incursões do CNMP no âmbito puramente valorativo eram mais intensas no plano geral que no concreto. A curiosidade deve-se a uma razão muito simples: considerando a excepcionalidade das incursões em juízos valorativos, somente as especificidades do caso concreto seriam aptas a justificá-las. No plano geral, por sua vez, deveriam prevalecer as regras basilares do sistema, que apontam para a preeminência da autonomia das Instituições controladas. Esse quadro, no entanto, sofreu algumas modificações com a nova composição do órgão, escolhida para o segundo biênio de funcionamento, que não mais recepciona o anonimato e já manifesta certa preocupação com a coexistência entre os atos regulamentares que expede e a lei.
A análise da sistemática constitucional permite afirmar que o poder reformador, ao criar o CNMP, outorgou-lhe, dentre outras, a atribuição de “zelar pela autonomia funcional e administrativa do Ministério Público”, e contemplou dois instrumentos: “expedir atos regulamentares, no âmbito de sua competência” e “recomendar providências”. Os dois instrumentos estão finalisticamente voltados à satisfação da atribuição que lhes está atrelada: o CNMP poderá fazer uso do regulamento, que não deve destoar da lei, e da recomendação. O regulamento é um ato normativo de caráter geral e de indiscutível imperatividade, a recomendação é um ato administrativo de caráter geral ou individual, com contornos essencialmente dispositivos, não vinculando os seus destinatários.
De qualquer modo, desde logo já se constata que a ratio do poder regulamentar do CNMP é proteger a autonomia das Instituições controladas, pois, de acordo com o léxico, “zelar” significa “tomar conta (de alguém) com o maior cuidado e interesse”.[6] Sem liberdade não há autonomia. Em conseqüência, o CNMP jamais poderia editar atos regulamentares que, longe de defender, restringissem a autonomia das Instituições controladas.[7]
Em prevalecendo o entendimento atualmente arraigado no âmbito do CNMP, no sentido de que suas resoluções podem se imiscuir livremente no plano administrativo, sem qualquer balizamento imposto pela autonomia das Instituições controladas, ter-se-ia de admitir, por identidade de razões, que seriam igualmente livres as incursões no plano da autonomia funcional, o que terminaria por afetar o próprio exercício da atividade finalística dos órgãos de execução. Esse argumento a fortiori decorre da constatação de que, na construção do inciso I do parágrafo 2º do art. 130-A da Constituição, os “atos regulamentares” instrumentalizam tanto o zelo pela autonomia administrativa, como pela autonomia funcional. Reconhecendo a sua aptidão para diminuir o raio de expansão da primeira, corolário lógico é admitir a retração da segunda.
O grande desafio a ser enfrentado é compatibilizar a autonomia duramente conquistada pelo Ministério Público brasileiro com o controle externo exercido pelo Conselho Nacional do Ministério Público, o que exige (1) responsabilidade e ética por parte das Instituições controladas, mantendo-se no plano da juridicidade e proscrevendo os abusos que costumam se manifestar em qualquer estrutura estatal de poder, e (2) uma postura de autocontenção por parte do órgão de controle, evitando que, ao invés de controlar, termine por substituir-se às Instituições controladas em juízos valorativos que lhes são próprios.
[1] Costantino Mortati, Istituzioni di Diritto Pubblico, tomo II, 7ª ed., Pádua: Cedam, 1967, p. 694.
[2] Lei nº 261, de 3 de dezembro de 1841, que reformou o Código de Processo Criminal de 1832, art. 22.
[3] O STF já reconheceu a constitucionalidade de preceito de Constituição Estadual – com redação semelhante a do art. 3º, IV, da Lei nº 8.625/1993 – que assegurava à Instituição a atribuição de “adquirir bens e serviços e efetuar a respectiva contabilização”, o que seria “corolário inafastável da autonomia administrativa e financeira de que é dotado o Ministério Público” (Pleno, ADI nº 132/RO, rel. Min. Sepúlveda Pertence, j. em 30/04/2003, Inf. nº 307).
[4] Para maior desenvolvimento do tema, vide, de nossa autoria, Ministério Público – Organização, Atribuições e Regime Jurídico, 3ª ed., Rio de Janeiro: Editora Lumen Juris, 2008, pp. 115 e ss.
[5] CR/1988, art. 130-A, § 2º, I.
[6] Novo Dicionário Aurélio da Língua Portuguesa, verbete zelar.
[7] Na Resolução nº 14/2006, que “dispõe sobre regras gerais Regulamentares para o concurso de ingresso”, o CNMP chegou ao extremo de definir que a Comissão de Concurso teria cinco membros (art. 3º) e que a prova preambular seria de múltipla escolha (art. 17, I).
Membro do Ministério Público do Estado do Rio de Janeiro. Ex-Consultor Jurídico da Procuradoria Geral de Justiça (2005-2009). Assessor Jurídico da Associação Nacional dos Membros do Ministério Público (CONAMP). Doutorando e Mestre em Ciências Jurídico-Políticas pela Universidade de Lisboa. Especialista em Education Law and Policy pela European Association for Education Law and Policy (Antuérpia - Bélgica) e em Ciências Políticas e Internacionais pela Universidade de Lisboa. Membro da International Association of Prosecutors (The Hague - Holanda)
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: GARCIA, Emerson. A autonomia do Ministério Público: entre o seu passado e o seu futuro Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 26 nov 2009, 08:53. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/artigos/18865/a-autonomia-do-ministerio-publico-entre-o-seu-passado-e-o-seu-futuro. Acesso em: 22 nov 2024.
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