RESUMO: O artigo versa sobre alguns aspectos polêmicos, materiais e processuais, decorrentes da interpretação da Súmula Vinculante n. 13 do STF e da utilização da ação civil pública como veículo de combate a nomeações ilegais de familiares de Prefeito para o cargo de Secretário Municipal.
Segundo a doutrina clássica, súmulas traduzem enunciados sintéticos da jurisprudência de um tribunal, nos quais se refletem linhas de decisões reiteradamente tomadas sobre determinados pontos de direito. “São máximas da jurisprudência, úteis para orientar as partes, advogados e tribunais subordinados, dada a disposição, que o tribunal enuncia ao emiti-las, de prosseguir decidindo conforme o enunciado nelas contido”[1].
No entanto, diante de fortes pressões em prol da atribuição de efeito obrigatório a referidos enunciados com o escopo de otimizar os julgamentos, a originária idéia de genérica orientação foi drasticamente alterada na Constituição Federal, após a sobrevinda da Emenda n. 45, acrescendo à lex legum o art. 103-A e materializando entre nós a Súmula Vinculante, nos seguintes moldes: “O Supremo Tribunal Federal poderá, de ofício ou por provocação, mediante decisão de dois terços dos seus membros, após reiteradas decisões sobre matéria constitucional, aprovar súmula que, a partir de sua publicação na imprensa oficial, terá efeito vinculante em relação aos demais órgãos do Poder Judiciário e à administração pública direta e indireta, nas esferas federal, estadual e municipal, bem como proceder à sua revisão ou cancelamento, na forma estabelecida em lei”.
Em três parágrafos atrelados ao preceito, o legislador conferiu ao instituto as seguintes regras: a) a súmula terá por objetivo a validade, a interpretação e a eficácia de normas determinadas, acerca das quais haja controvérsia atual entre órgãos judiciários ou entre esses e a administração pública que acarrete grave insegurança jurídica e relevante multiplicação de processos sobre questão idêntica; b) sem prejuízo do que vier a ser estabelecido em lei, a aprovação, revisão ou cancelamento de súmula poderá ser provocada por aqueles que podem propor a ação direta de inconstitucionalidade; e c) do ato administrativo ou decisão judicial que contrariar a súmula aplicável ou que indevidamente a aplicar, caberá reclamação ao Supremo Tribunal Federal que, julgando-a procedente, anulará o ato administrativo ou cassará a decisão judicial reclamada, e determinará que outra seja proferida com ou sem a aplicação da súmula, conforme o caso[2].
O Supremo não tardou em utilizar seu novo mister, deliberando a respeito de várias Súmulas Vinculantes, chegando a de n. 13[3], aprovada na sessão plenária de 21.08.2008 e publicada em 29.08.2008, dispondo que “A nomeação de cônjuge, companheiro ou parente em linha reta, colateral ou por afinidade, até o terceiro grau, inclusive, da autoridade nomeante ou de servidor da mesma pessoa jurídica investido em cargo de direção, chefia ou assessoramento, para o exercício de cargo em comissão ou de confiança ou, ainda, de função gratificada na administração pública direta e indireta em qualquer dos Poderes da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios, compreendido o ajuste mediante designações recíprocas, viola a Constituição Federal”.
Esse emblemático enunciado consolidou a tese de que o art. 37, caput, da Constituição Federal, estipulando a obediência obrigatória da Administração Pública, dentre outros, aos princípios da impessoalidade e moralidade, já seria suficiente, por si só, estreme de espécie normativa autônoma, para coibir peremptoriamente a prática do nepotismo, ou seja, do favorecimento ou patronato de familiar ou grupos familiares no âmbito público (leia-se, Poder Judiciário, Legislativo e Executivo), mediante facilitação de nomeações em comissão ou por designação de funções de confiança em detrimento dos vetores axiológicos precitos.
Respeitada a fronteira proposta no título desse breve estudo, mostra-se necessário analisar, com rigor e atenção, o conteúdo dos julgamentos causadores da edição da Súmula n. 13, providência imprescindível para uma acertada apreensão de seus exatos efeitos e de sua específica extensão no tocante à permissividade de nomeação de cônjuge, companheiro ou parentes de Prefeitos para o exercício da função de Secretários Municipais, tema denso e espinhoso, cuja solução jurisprudencial nem sempre, a nosso sentir, tem secundado o melhor caminho idealizado pela Constituição.
Fincadas tais advertências, conforme ressabido, a evolução de entendimento do STF no controle do nepotismo acentuou com a cognição da Medida Cautelar em Ação Declaratória de Constitucionalidade n. 12, ajuizada pela Associação dos Magistrados do Brasil – AMB, objetivando a declaração de imperatividade da Resolução n. 07/05 do Conselho Nacional de Justiça, dispondo sobre impedimentos para a nomeação de parentes de magistrados e serventuários em cargos de livre nomeação no Poder Judiciário. Neste processo, Relatado pelo Senhor Ministro Carlos Ayres Britto, o Colegiado Máximo, em sua composição mais recente, proclamou a efetividade ao art. 37 da CF, mormente no tocante à carga impositiva dos princípios da legalidade, impessoalidade, moralidade, publicidade e eficiência em relação à res publica.
Daquela feita registrou o Relator, de forma muito oportuna, que a referida Resolução do CNJ, ao explicitar os lindes para livres nomeações no Judiciário, só fazia tipificar expressamente o que já era proibido pela Carta Magna, “não se tratando de discriminar o Poder Judiciário perante os outros dois Poderes Orgânicos do Estado, sob a equivocada proposição de que o Poder Executivo e o Poder Legislativo estariam inteiramente libertos de peias jurídicas para prover seus cargos em comissão e funções de confiança, naquelas situações em que os respectivos ocupantes não hajam ingressado na atividade estatal por meio de concurso público”.
O debate quanto à autonomia do Executivo para atos de nomeação avançou ainda mais com a decisão do Recurso Extraordinário n. 579.951-4 – RN, Relatado pelo Ministro Ricardo Lewandowski, proferida em 20 de agosto de 2008, envolvendo a discussão sobre a possibilidade de parentes do Prefeito ou de Vereadores serem nomeados para o cargo de Secretários Municipais. Após intensas altercações, os Ministros entenderam que em tese essa faculdade configuraria ato eminentemente político, razão pela qual, não se aplicaria a vedação prevista no preceito 37 da CF ou o verbete vinculante n. 13. Aliás, atuando como vogal, o Ministro Ayres Britto destacou que o governo seria mais do que a Administração Pública, porque incorporaria ingrediente político. Prosseguiu ainda, consignando que o artigo 37 versaria sobre cargos e funções singelamente administrativas, não de cargo político tal qual o de Secretário Municipal, classificado como agente de poder.
Todavia, vale ressaltar que a maioria dos pares adotou essa linha com reservas e diante das especificidades exclusivas do precedente, abstendo-se de endossar a absoluta impossibilidade de ocorrência de nepotismo na aludida nomeação. Conforme bem pontuado pela Ministra Carmén Lúcia, aprioristicamente versaria o caso sobre agentes com regime jurídico realmente diferenciado, o que não excluiria o aproveitamento da via, em tese jurígena, como amparo espúrio a hipóteses destoantes dos princípios mais caros à administração. Essa ressalva voltou à tona, de modo inequívoco, na cognição do Agravo Regimental na Medida Cautelar na Reclamação n. 6650-9, em 16.10.2008, Relatado pela Ministra Ellen Gracie, onde o Ministro Ricardo Lewandowski, com extrema percuciência, assentou ser fundamental o exame caso a caso para verificar, a luz dos elementos fáticos concretos, se houve fraude à lei ou nepotismo cruzado, qualificando-as como duas exceções aptas a ensejar a anulação do ato por ofensa à Súmula Vinculante n. 13.
Solidificando essa exegese, merece destaque a recente e contundente decisão proferida pelo Ministro Joaquim Barbosa na Medida Cautelar em Reclamação n. 9098, julgada em 16/11/2009 e publicado em DJe-218 DIVULG 19/11/2009 PUBLIC 20/11/2009, na qual, enfrentando a insurgência de parentes de Prefeito, nomeados como Secretários e retirados do cargo por supostas práticas de nepotismo, condensou, com invulgar propriedade, os exatos contornos da questão:
“De fato, a não-aplicação da Súmula 13 ao caso concreto resulta dos elementos fáticos postos à consideração do julgador. Em nenhum momento esta Corte pré-excluiu a aplicação da Súmula Vinculante 13 aos agentes políticos. A vedação ao nepotismo é a todo cargo e função de confiança. No caso dos cargos de natureza política, a nomeação de parentes pode ser tolerada desde que realizada sem fraude a lei ou princípio... A referida súmula deixa claro ser manifestamente inconstitucional os atos que, praticados com desvio de finalidade, objetivam frustrar a imperiosidade dos princípios regentes da administração. No caso presente, conforme farta demonstração decorrente da prova documental acostada aos autos, ficou perfeitamente demonstrado o desvio de finalidade...Sem prejuízo de nova apreciação por ocasião do julgamento do mérito, parece-me que o acórdão reclamado está em consonância com o disposto na Súmula Vinculante 13. Os fatos relatados efetivamente indicam violações graves aos princípios da moralidade e da impessoalidade. Neste juízo cautelar, não verifico razão para aplicar a exceção do agente político...” (grifamos)[4].
Em face do exposto, é de todo incorreto afirmar que a Suprema Corte admite de forma irrestrita e livre de quaisquer questionamentos a nomeação de familiares de Prefeito para o cargo de Secretário Municipal. Isto porque, a devida investigação de seus precedentes leva às seguintes conclusões:
a) A Súmula n. 13 aplica-se aos casos de livre nomeação em cargos de comissão envolvendo a prática de nepotismo;
b) Pouco importa perquirir sobre a capacidade técnica do nomeado para a assunção da função, porquanto o verbete resguarda a isonomia e moralidade em seus lindes mais amplos e irrestritos, influenciada pela ótica de supremacia da probidade administrativa[5];
c) A priori, não incide o óbice em relação à nomeação de familiares dos Chefes do Executivo na qualidade de Secretários de Poder, eis que os mesmos ostentariam a virtual qualidade de agentes políticos adstritos a um regime administrativo diferenciado de vínculo estatal;
d) A abstrata previsão da alínea anterior não impede que os pormenores fáticos de um processo possam indicar a utilização espúria da nomeação de familiares para cargos adstritos a agente político como máscara ilícita de um reprovável nepotismo, ensejando a nulidade judicial do ato e responsabilização dos envolvidos por fraude à lei, violação a princípios ou troca de favores na modalidade cruzada ou transversa[6].
Malgrado a clareza dessas diretrizes, podemos encontrar alguns arestos emanados dos Tribunais Estaduais, os quais, deixando de atentar para as ressalvas da Corte Suprema, afastaram indiscriminadamente a oposição do verbete n. 13 à nomeação dos Secretários Municipais, descurando das restrições contidas nos julgamentos do STF. Nessa senda, separamos os seguintes excertos:
“Tratando-se de nomeação do filho do Vice-Prefeito do Município para o cargo de Secretário Municipal... cargo político – resta evidenciada, ante o recente e reiterado entendimento jurisprudencial da Corte Suprema, a inaplicabilidade da Súmula Vinculante n. 13 da mesma Corte ao caso...”
(TJ-PR – 4ª CÂMARA CÍVEL. AI N. 0592649-2. DJ: 18.06.09)
IMPROBIDADE ADMINISTRATIVA. Município de Ilhabela. Nepotismo. Esposa e irmã de Prefeito nomeadas Secretarias Municipais. Cargos políticos. Inaplicabilidade da Súmula Vinculante n° 13, conforme interpretação que lhe vem sendo dada pelo próprio Supremo Tribunal Federal. Decisão agravada que recebeu a petição inicial de ação de improbidade, em relação às duas nomeações e de outros servidores parentes do co-réu Prefeito. Pedido que, no tocante às duas nomeações, deve ser rejeitado desde logo. Decisão agravada que deve ser parcialmente reformada para tal finalidade, improcedente a alegação de nulidade feita pelo agravante. Agravo provido em parte.
(TJ-SP - SEÇÃO DE DIREITO PÚBLICO VOTO N° 192/09 10a CÂMARA DE DIREITO PÚBLICO AGRAVO DE INSTRUMENTO N° 868.308-5/4 COMARCA: ILHABELA. DJ: 2.03.09)
Delimitada a controvérsia, passamos a enfrentá-la diante de algumas hipóteses e soluções práticas no plano processual da ação civil pública, sempre com vistas a um correto controle judicial do nepotismo porventura existente em tais nomeações.
Já está pacificada pela melhor doutrina e pela jurisprudência a legitimidade do Ministério Público para o ajuizamento de ação civil pública como veículo de combate a atos de improbidade administrativa, haja vista tratar-se a tutela do patrimônio estatal de um interesse primacialmente difuso. Evidentemente, em pretensões tais, serão aplicados os procedimentos da Lei n. 7347/85 acrescidos das prerrogativas asseguradas pelo rito da Lei n. 8429/92, numa simbiose totalmente compatível com o ordenamento jurídico, denominada por renomados mestres de regime integrado de mútua complementariedade[7].
Portanto, nas ações civis públicas envolvendo imputação de atos de improbidade administrativa: a) a ação será instruída com documentos ou justificação que contenham indícios suficientes da existência do ato de improbidade ou com razões fundamentadas da impossibilidade de apresentação de qualquer dessas provas (art. 17, § 6º, Lei n. 8492/92); b) estando a inicial em devida forma, o juiz mandará autuá-la e ordenará a notificação do requerido, para oferecer manifestação por escrito, que poderá ser instruída com documentos e justificações, dentro do prazo de 15 (quinze) dias (art. 17, § 7º, Lei n. 8492/92); c) recebida a manifestação, o juiz, no prazo de 30 (trinta) dias, em decisão fundamentada, rejeitará a ação, se convencido da inexistência do ato de improbidade, da improcedência da ação ou da inadequação da via eleita (art. 17, § 8º, Lei n. 8492/92); d) somente após respeitados tais trâmites e recebida a petição inicial, será o réu citado para apresentar contestação, cabendo, da decisão de recebimento, o recurso de agravo de instrumento (art. 17, §§ 9º e 10º, Lei n. 8492/92) e e) em qualquer fase do processo, reconhecida a inadequação da ação, o juiz extinguirá o processo sem julgamento de mérito (art. 17, § 11º, Lei n. 8492/92).
Atendidas tais prescrições, podemos exemplificar circunstâncias nas quais, à luz das exceções previstas pelo Supremo Tribunal Federal, poderiam ser vislumbrados na nomeação de familiares do Prefeito ou de seu Vice para o Secretariado Municipal, atos contrários a probidade administrativa e passíveis de anulação e responsabilização.
As duas primeiras, umbilicalmente interligadas, seriam decorrentes de violação a princípio ou fraude à lei.
Na insuperável lição de Bandeira de Mello, violar um princípio, ou seja, conspurcar contra um mandamento nuclear de um sistema, “é muito mais grave que transgredir uma norma. A desatenção ao princípio implica ofensa não apenas a um específico mandamento obrigatório, mas a todo o sistema de comandos. É a mais grave forma de ilegalidade ou inconstitucionalidade, conforme o escalão do princípio violado, porque representa insurgência contra todo o sistema, subversão de seus valores fundamentais, contumélia irremissível a seu arcabouço lógico e corrosão de sua estrutura mestra”[8]. Portanto, qualquer nomeação em afronta aos princípios previstos no art. 37, assomados daqueles meramente exemplificativos espelhados na Lei n. 8429/92 e outros quiçá consequentes, explicita ou implicitamente, do ordenamento pátrio, será inválida e ensejará ataque na via judicial. No condizente a fraus legis, é imperioso conceber serem inúmeros “os meios ou processos de que lançam mão os infratores das normas jurídicas, a fim de se subtraírem ao seu império... Estes meios ou processos vão da violação direta, pura e simples, sem rodeios ou subterfúgios, às formas mais sutis, disfarçadas, ocultas e mascaradas, de maneira a dificultar a aplicação da lei...”[9].
Por estes ângulos, é plenamente possível que o Promotor se depare com uma situação onde o parente do Prefeito, nada obstante nomeado para o cargo de Secretário Municipal, atue, de fato, em insidioso desvio de função ou violação a princípio, na qualidade de mero assessor em comissão do alcaide. A apuração deste desvio, principiológico ou fraudatório, pode decorrer de indícios, tanto legislativos (atribuições exclusivas de puro assessoramento aos Secretários Municipais), quanto casuísticos (demonstração de que o nomeado não exerce de fato as funções que lhe foram cominadas)[10].
Uma terceira tela de antijuridicidade promana da incidência de nepotismo transverso ou cruzado (e.g.: Prefeito “A” nomeia filho de vereador “B” em troca de nomeação de seu parente “C”), passível de demonstração por via de provas, ainda que indicativas. Obviamente, em subversões de tal jaez devemos sempre ter que "a Lei tanto pode ser ofendida à força aberta como à capucha. No primeiro caso, o administrador expõe-se afoitamente à repulsa; no segundo, por ser mais sutil não é menos censurável. Vale dizer: a ilegitimidade pode resultar de manifesta oposição aos cânones legais ou de violação menos transparente, porém tão viciada quando a outra. Isto sucede exatamente quando a Administração, em nome do exercício de atividade discricionária, vai além do que a lei lhe permitia e, portanto, igualmente ofende"[11].
Aliás, para os domínios instrutórios previstos na Lei 8492/92, prova indiciária é aquela coligada à existência de elementos mínimos – portanto, elementos de mera suspeita e não de certeza – no sentido de que o demandado é partícipe direto ou indireto, da improbidade administrativa investigada[12]. Bem por isso, é descabido pretender que, na Ação Civil Pública baseada em acusações de improbidade administrativa, a petição inicial seja uma versão antecipada da sentença, uma espécie de bula de remédio que, de tão precisa e minuciosa, prescinde da instrução, tendo em vista que já antecipa tudo o que, em outras modalidades de ação, caberia descobrir e provar em juízo[13].
Quanto à delimitação do pedido e das causas de pedir abordados alhures, algumas observações mais aprofundadas merecem relevo.
Como regra geral, preconizada por correntes mais conservadoras, mesmo as ações civis públicas estão sujeitas à observância do primado da congruência, não sendo dado ao magistrado decidir aquém, além ou fora daquilo que foi relatado e pedido, dentro das balizas do requerimento inicial[14]. Segundo esse pensamento, seria imprescindível delimitar adequadamente a causa de pedir (seja por fraude à lei, seja por violação de princípio ou nepotismo cruzado) em relação à pretensão, restando vedada a complementação ou evocação posterior de fatos ou pleitos omitidos ou mal explorados na exordial. Entretanto, já existe avançada corrente instrumentalista, capitaneada pelo Desembargador paulista Roberto Bedaque[15], admitindo a validade do julgamento alusivo a fatos não descritos na inicial, mais descobertos no desenrolar do processo em juízo, desde que ocorra efetivo contraditório sobre os mesmos antes da prolação da sentença. Ratificando os ensinamentos do Professor da USP, já decidiu o STJ:
ADMINISTRATIVO E PROCESSUAL CIVIL. JULGAMENTO EXTRA-PETITA. OFENSA AOS ARTS. 128 E 460 DO CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL NÃO CONFIGURADA. SENTENÇA DE PRIMEIRO GRAU E ACÓRDÃO RECORRIDO EMBASADOS EM CAUSA DE PEDIR NÃO APRESENTADA NA PEÇA INAUGURAL, MAS SUBMETIDA AO CONTRADITÓRIO E À AMPLA DEFESA. ATENDIMENTO AOS PRINCÍPIOS CONSTITUCIONAIS DA CELERIDADE E EFETIVIDADE PROCESSUAIS. EMENDA CONSTITUCIONAL N.º 45/2004.
1. Em regra, configura-se a ofensa aos arts. 128 e 460 do Código de Processo Civil quando a sentença extrapola os limites em que a lide foi proposta, ou seja, quando a demanda é julgada com lastro em causa de pedir (fatos) não suscitada na exordial ou quando o conteúdo do provimento judicial é diverso do pedido formulado na inicial.
Precedentes.
2. Não obstante, em atendimento a celeridade e efetividade processuais erigidas ao nível de garantias fundamentais pela Emenda Constitucional n.º 45/2004, não viola o princípio da adstrição e da correlação, a sentença apoiada em fatos surgidos apenas na fase instrutória da demanda, mas submetidos ao contraditório e à ampla defesa. Precedentes.
3. Recurso especial conhecido e desprovido.
(REsp 899807/ES, Rel. Ministra LAURITA VAZ, QUINTA TURMA, julgado em 05/02/2009, DJe 09/03/2009)
Se o Tribunal da Cidadania excetuou o princípio da congruência em processo individual, cremos que, com mais razão, há de fazê-lo em processo de interesse transcendente, como sucede na ação civil pública em defesa da probidade administrativa. Destarte, é absolutamente legítima a consideração de fatos não dispostos na exordial, mas desdobrados na colheita da prova oral ou de documentos obtidos posteriormente ao ajuizamento, bastando que seja oportunizada a contradita aos réus, sem qualquer mácula ao devido processo legal.
De toda sorte, reputa-se aconselhável, diante de eventual denúncia permeada por provas perfunctórias, a antecedente instauração de inquérito civil, a expedição de ofícios e a colheita extrajudicial de depoimentos pelo Órgão Ministerial, visando tonificar e delinear a conduta antijurídica dos envolvidos, e municiar o Poder Judiciário de lastro eficiente para tomar as medidas cabíveis de prevenção e reparação.
Outrossim, é intuitiva a necessidade e viabilidade da concessão de liminar visando a exoneração do parente e a suspensão de seus pagamentos enquanto pender a lide (art.12 da Lei n. 7357/85), cabendo ao Ministério Público apresentar o fumus comissi da improbidade e o perigo na demora no atendimento da medida, tudo a luz do que já exposto, respeitando a livre convicção e o prudente arbítrio do julgador, sem amarras da exigência de prova cabal e definitiva dos atos, somente reclamada para prolação da final sentença de mérito[16].
Tema instigante e também digno de nota é o da extensão do agravo de instrumento contra a decisão que aprecia a liminar ou admite o ajuizamento da demanda. Ao revés do que sucede na dinâmica do processo comum, nos debates envolvendo a improbidade administrativa a simbiose com o mérito é verticalizada desde o início do feito por força de lei, não havendo falar em vício se o Relator do agravo, revalorando o mesmo material probatório já averiguado pelo juiz a quo e transportado em razão da interposição, reputar presentes ou ausentes os elementos de nepotismo para fins da outorga de urgência, ou decretar a ceifa imediata da contenda, lhe sendo dado conceder o que não houvera sido assegurado na origem, volver no que já se havia concedido ou mesmo extinguir terminativa ou meritoriamente o processo, mediante decisão com conteúdo próprio de sentença.
Resumindo, no universo da agressão ao público é inócuo cogitar de supressão de instância quando o Tribunal, em reinterpretação jurídica do mesmo acervo dantes disponibilizado em primeiro grau, estipula solução de direito diversa, ou atribui aos elementos constantes de prova maior ou menor poder de convencimento, corrigindo um mero equívoco de compreensão e enquadramento. Esse lídimo exercício de revisão passará ao largo da cognição per saltum, somente detectada quando a Corte invade questões dispositivas não submetidas ao crivo inferior.
Tudo isso decorre da análise do art. 17§ 8º da Lei 8492/92, regrando que, recebida a manifestação preliminar dos réus após a respectiva notificação da demanda, o juiz, no prazo de 30 (trinta) dias, em decisão fundamentada, rejeitará a ação, se convencido da inexistência do ato de improbidade, da improcedência da ação ou da inadequação da via eleita. Tal norma, a par de reportar à já disseminada extinção imediata do feito sem apreciação de seu objeto por razões de ordem formal, prevê a extraordinária possibilidade do juiz (e do Tribunal) proferir sentença liminar de mérito, capaz de produzir coisa julgada material, quando se convença da inexistência da improbidade ou da improcedência da ação, tratando-se de espécie sui generis de julgamento imediato da lide, independentemente da vinda de contestação ou instrução do procedimento[17].
Expondo as suscitadas particularidades do recurso de agravo de instrumento na Lei n. 8429/92, colacionamos importante aresto do STJ:
PROCESSUAL CIVIL. ADMINISTRATIVO. AÇÃO CIVIL PÚBLICA. IMPROBIDADE ADMINISTRATIVA. DESPACHO QUE RECEBE A INICIAL. AGRAVO DE INSTRUMENTO PREVISTO NO ART. 17, § 10 DA LEI 8429/92. EX-PREFEITO. INAPLICABILIDADE DA LEI Nº 1.079/1950. VIOLAÇÃO DOS ARTS. 165; 458, II E 535, I E II DO CPC. NÃO CONFIGURADA.
1. O exame das questões aduzidas no contraditório preliminar, que antecede o recebimento da petição inicial da ação civil de improbidade (§§ 8º e 9º do art. 17), assume relevância ímpar, à medida em que o magistrado, convencido da inexistência do ato de improbidade, da improcedência da ação ou da inadequação da via eleita, pode, inclusive, rejeitar a ação (§ 8º, art. 17), ensejando a extinção do processo. Precedente: REsp 901049/MG, Rel. Ministro LUIZ FUX, PRIMEIRA TURMA, unânime, julgado em 16/12/2008, DJ de 18/02/2009. 2. A decisão do Juiz Singular, que rejeita a manifestação apresentada pelo requerido, versando sobre a inexistência do ato de improbidade, a improcedência da ação ou a inadequação da via eleita e, a fortiori, recebe a petição inicial da ação de improbidade administrativa é impugnável, mediante a interposição de agravo de instrumento, perante o Tribunal ao qual o juízo singular está vinculado, a teor do que dispõe art. 17, § 10 da Lei 8.429/92 3. O Tribunal competente para o julgamento do agravo de instrumento, mediante cotejo das razões recursais e do contexto fático engendrado nos autos, vislumbrando a ausência de elementos de convicção hábeis ao prosseguimento ação de improbidade administrativa poderá, inclusive, determinar o trancamento da ação. Consectariamente, a conclusão do Tribunal acerca da existência ou não dos elementos essenciais à viabilidade da ação de improbidade administrativa, em sede agravo de instrumento, fundado no art. 17, § 10 da Lei 8.429/92, decorre justamente da valoração da "relevância gravosa" dos atos praticados contra a Administração Pública, mormente porque os §§ 7º e 8º da mencionada legislação permitem o exame do próprio mérito da ação na fase preliminar, isto é, existência ou não de ato de improbidade administrativa, bem como fato impeditivo do exercício de um direito, como soem ser a decadência e a prescrição...
(EDcl no REsp 1073233/MG, Rel. Ministro LUIZ FUX, PRIMEIRA TURMA, julgado em 13/10/2009, DJe 04/11/2009).
De outro giro, quid iuris se, após o ajuizamento de ação civil pública apontando o nepotismo de nomeação de parente do Prefeito como Secretário Municipal, com a sobrevinda da notificação prévia e da manifestação do requerido o magistrado de primeiro grau, interpretando indevidamente a Súmula n. 13, resolva indeferir de plano a inicial por improcedência do pedido? Tal decisão, fulminante do processo que é, desafiará de cara o recurso de apelo, dirigido ao respectivo Colegiado Local, com idênticas ponderações de profundidade já dispensadas ao agravo.
Estado de crise a recomendar alerta poderá eclodir no interregno entre a interposição deste apelo contra uma abrupta improcedência prima facie e a subida do recurso à Corte competente, onde presumíveis e intoleráveis vulnerações ao erário e a moralidade pública continuarão a grassar, razão pela qual, mostra-se prudente in casu o paralelo ajuizamento de ação cautelar inominada (art. 800 do CPC), preparatória da ascensão do recurso ao Tribunal, visando conjurar este vácuo temporal e jurídico, mediante o requerimento de medidas proativas de sobrestamento da situação periclitante (afastamento dos envolvidos do cargo, suspensão de pagamentos), tudo com base no poder geral de cautela conferido ao Pretor, evidenciados o periculum e o fumus[18] inerentes à espécie.
Numa rápida amostragem, são esses os principais aspectos que pretendíamos abordar nesse breve estudo, sem nenhuma intenção de esgotar a matéria, almejando apenas propiciar uma pálida contribuição para uma escorreita aplicação da jurisprudência da Suprema Corte na tutela dos interesses difusos exercitada pelo Ministério Público, em coibição a práticas obscuras de nepotismo no executivo.
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- TEIXEIRA, SÁLVIO DE FIGUEIREDO. Código de Processo Civil Interpretado. SP: Saraiva. 6ª. ed.
Especialista e Professor de Direito Processual Civil. Membro da Academia Brasileira de Direito Processual Civil<br>
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: PISSURNO, Marco Antônio Ribas. Nomeação de familiares de prefeito para o secretariado municipal - alguns aspectos polêmicos sobre a aplicação da súmula vinculante n. 13 e o controle de eventuais ilegalidades pela via da ação civil pública Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 11 dez 2009, 07:48. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/artigos/18966/nomeacao-de-familiares-de-prefeito-para-o-secretariado-municipal-alguns-aspectos-polemicos-sobre-a-aplicacao-da-sumula-vinculante-n-13-e-o-controle-de-eventuais-ilegalidades-pela-via-da-acao-civil-publica. Acesso em: 27 nov 2024.
Por: Heitor José Fidelis Almeida de Souza
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