Numa primeira acepção, de largo curso na linguagem cotidiana, profeta é aquela pessoa capaz de prever o futuro.
Os textos bíblicos referem-se à capacidade de antecipar o que está para vir, como dote especial dos profetas. Mas essa antevisão não provinha de um poder mágico. Era fruto da sabedoria. Denunciando vícios e abusos os profetas anteviam o resultado dessas mazelas.
Os profetas irrompem, no meio do povo, como porta-vozes de Deus.
Se recorremos à Etimologia, a palavra profeta (nabi, do hebraico) quer dizer anunciador: o profeta anuncia.
No seu desenvolvimento histórico, o profetismo não surge do lado do poder, da ordem imperante, da instituição, do sistema. Surge do lado da poesia, do sonho, da mística, como observou Peter F. Ellis.
Em toda a tradição do Velho Testamento, o profeta foi aquele que contestou a ordem estabelecida, fundada na opressão, e advogou uma outra ordem que subverteria os valores dominantes.
O povo se identificava com o profeta e reconhecia nele o ideal que ele mesmo carregava dentro de si.
Segundo sublinha Carlos Mesters, o profeta Amós, um lavrador, vivia num tempo de progresso econômico promovido pelo rei Jeroboão, mas feito à base do egoísmo de grupos. Isto provocava uma divisão de classes, contra a qual levantou-se Amós.
No mundo de hoje, morreu a profecia?
De modo algum.
Neste artigo quero prestar reverência a dois profetas que anunciaram a Justiça nas terras capixabas: Dom João Baptista da Mota e Albuquerque e Padre Gabriel Maire.
Uma intercorrência de datas e fatos assinala essas duas vidas.
Em 1909 nasceu Dom João Baptista. Em 1936 nasceu o Padre Gabriel.
Em 1957 Dom João Baptista tomou posse como Bispo da Diocese, tornando-se Arcebispo em 1958.
Em 1980 o Padre Gabriel Maire, vindo da França, como missionário, chega ao Brasil. É recebido, de braços abertos, em Vitória, por Dom João Baptista.
Em 1984 morre Dom João Baptista. Celebra-se na Catedral Missa de Corpo Presente. Entre os concebrantes estava o Padre Gabriel Maire.
Em 1989 morre o Padre Gabriel, num crime que até hoje não foi devidamente apurado.
Em 2009 uma dupla celebração coloca, lado a lado, os dois Profetas: celebra-se o centenário de nascimento de Dom João Baptista da Mota e Albuquerque; rememoram-se os vinte anos do martírio do Padre Gabriel Maire.
Como se assinala o dom da profecia em Dom João e no Padre Gabriel?
Era o mês de fevereiro de 1979. Uma grande enchente do Rio Doce constitui-se em calamidade pública invadindo diversas cidades ribeirinhas mineiras e capixabas. No Espírito Santo, a cheia atinge dramaticamente a cidade de Linhares. Centenas de pessoas são desalojadas de suas casas. O socorro público mostrou-se ineficaz justificando a frase da sabedoria popular à face dessas situações: “Vá se queixar ao Bispo”. E foi mesmo o que o povo fez.
Sob a liderança da Igreja, voluntários de todo o Estado deslocaram-se para a cidade de Linhares a fim de atender aquela terrível emergência.
Diante daquele quadro duas categorias de protagonistas encaravam-se face a face, como se estivessem nas duas margens do rio:
de um lado, milhares de pessoas humildes, que viam escoar pelas águas todo o fruto do seu trabalho: alimentos, modestos móveis, roupas, colchões, berços de crianças;
de outro lado, centenas de voluntários que, movidos pelo amor cristão, estavam ali para socorrer e até para chorar junto.
Dom João disse então, às margens do Rio Doce, uma frase que teve a força de convocar, unir, encorajar: “Só o povo salvará o povo”.
Quem, senão um Profeta, pode dizer uma frase dessa?
Dom João participou do Concílio Vaticano II (1962-1965). Nessa oportunidade, junto com outros Bispos, percebeu a necessidade da conversão da Igreja à vocação dos primeiros tempos do Cristianismo.
Dom João, ele próprio, converteu-se. Abdicou de suas origens de família e quis viver do jeito que o povo vive. Trocou a bela residência do Bispo, na Praia do Canto, pela moradia modesta, no alto da Ladeira de São Francisco. Ali, os pobres sentiam-se no direito de entrar casa adentro. Renunciou ao carro de luxo, que os católicos ricos davam ao Bispo. Preferiu um fusquinha, que rodava por toda a Arquidiocese. (Trombou mais de uma vez). Aposentou a cruz de ouro e passou a usar uma cruz de madeira. Todas essas foram atitudes rigorosamente proféticas.
Padre Gabriel Maire, desde o início de seu ministério em Vitória, escolheu a causa dos pobres.
Abraçou, de corpo e alma, a luta do povo pela posse de um pedaço de terra no lugar denominado Barbados (hoje Bairro Padre Gabriel). Nesta luta por terra para os pobres, confrontou-se com interesses imobiliários de empresários e politicos. Ali começou a história de sua morte.
A busca de terra, em toda a história bíblica, foi feita de litígio, contrapondo interesses de poderosos e de fracos. Os profetas sempre bandearam para os fracos.
Na oportunidade dos confrontos de Barbados, o Padre Gabriel prestou depoimento perante a Comissão de Justiça e Paz da Arquidiocese, relatando que estava marcado para morrer.
Tudo isso chegou ao conhecimento do Poder Judiciário, das autoridades em geral e da opinião pública. Ninguém pode alegar que não sabia.
A luta do Padre Gabriel sempre foi uma luta inspirada na Fé. Nunca pretendeu cargos ou benesses políticas. Nunca pediu alguma coisa para si próprio.
Dom João Baptista da Mota e Albuquerque e Padre Gabriel Maire são dois profetas capixabas.
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