1. INTRODUÇÃO
O Poder Judiciário brasileiro beira a situação de caos e grande parte da responsabilidade por esta situação está depositada nos ombros do Estado, pois não investe em infra-estrutura e recursos humanos capazes de abarcar a grande demanda de lides que a sociedade apresenta.
O Estado tomou para si a função jurisdicional, cabendo a ele dirimir conflitos, fomentando a paz social.
Entretanto, outra parte da responsabilidade pela ineficácia do Poder Judiciário cabe aos seus usuários, que muitas vezes fazem mau uso dos direitos processuais que lhes cabe.
É comum encontrar processos que tem seu fim postergado ao máximo por causa da atuação de um de seus pólos, pois, por vezes, é mais vantajoso custeá-lo do que satisfazer a pretensão da parte contrária.
Trata-se de latente abuso de direito, permeado pela intenção de prejudicar outrem.
Diante deste quadro torna-se lídima a necessidade de haver uma repressão a estas condutas, daí o porquê de o Instituto processual da Litigância de má-fé possuir grande importância para a sociedade e para o Poder Judiciário.
Representa uma tentativa legislativa de minimizar um dos principais problemas intrínsecos ao Poder Judiciário, que é a da efetivação da tutela jurisdicional pelo Estado.
O uso da máquina judiciária para a obtenção de fins escusos, reprováveis, permeia toda a história do processo civil.
Constitui a litigância de má-fé, um abuso de direito processual com o fito de se obter fins ilícitos e/ou retardar-impedir a concretização do direito cabível à parte lesada.
A atuação processual possui como pressuposto um dever de proceder com lealdade, sendo entendido como um princípio processual, presente no art. 14 do Código de Processo Civil.
O dever de proceder com lealdade requer da parte uma atuação proba, obedecendo a ditames ético-morais, que redundam no agir de boa-fé.
Desta forma, para que se entenda o instituto da litigância de má-fé, faz-se necessário que entendamos os conceitos de boa-fé (item 3), má-fé (item 5), moral (item 4.2) e ética (item 4.1), daí o porquê de termos abordado neste trabalho cada um destes conceitos. Além disso, estes conceitos corroboram para entendermos a idéia do dever de lealdade processual e sua antítese, a má-fé processual.
A teoria do abuso de direito é considerada pela doutrina como sendo a natureza jurídica da litigância de má-fé, desta feita seria impensável tratarmos do objeto deste trabalho sem abordarmos os institutos que, como este, fazem parte de sua estrutura jurídica.
A teoria do abuso de direito, originada num momento posterior ao auge da sociedade liberal, vem negar a idéia de que os direitos são absolutos, mas que na realidade há limites. Esta simplória conceituação já é suficiente para vislumbrarmos a estreita relação com o tema de nosso trabalho.
A litigância de má-fé representa um assunto árduo de ser abordado, devido a sua constituição complexa e a pouca abordagem por parte da doutrina.
O QUE VEM A SER BOA-FÉ E MA-FÉ PARA O ORDENAMENTO JURÍDICO
2.1 BOA-FÉ
Para se entender o que vem a ser a expressão má-fé, importante se faz entender o que seja boa-fé, tendo em vista que aquela é a negação desta.
Entende-se que a boa-fé é, antes de tudo, um conceito ético-social, o qual foi incorporado pelas ciências jurídicas, por ter-se mostrado necessário e útil para a valoração de condutas reguladas e estudadas por estas ciências.
Dentro embora, não se tratar de um conceito jurídico, em essência, trata-se de algo que penetrou nesta seara, encontrando terreno fértil para sua aplicabilidade.
O conceito de boa-fé cível, segundo Maria Helena Diniz, é o seguinte:
BOA-FÉ: 1. Direito Civil. A) estado de espírito em que uma pessoa, ao praticar ato comissivo ou omissivo, está convicta de que age em conformidade com a lei; b) convicção errônea da existência de um direito ou da validade de um ato ou negócio jurídico. Trata-se da ignorância desculpável de um vício de um negócio ou da nulidade de um ato, o que vem atenuar o rigor da lei, acomodando-a à situação e fazendo com que se dêem soluções diferentes conforme a pessoa esteja ou aja de boa ou má-fé, considerando a boa-fé do sujeito, acrescida de outros elementos, como produtora de efeitos jurídicos na seara das obrigações, das coisas, no direito de família e ate mesmo no direito das sucessões; c) lealdade ou honestidade no comportamento, considerando-se os interesses alheios, e na celebração e execução dos negócios jurídicos; d) propósito de não prejudicar direitos alheios1.
Na seara processual civil a mesma autora confere o seguinte conceito:
Direito Processual Civil. Qualidade da conduta exigida dos litigantes pela lei, qual seja a de atuarem no processo com probidade. As partes litigantes devem conduzir-se em juízo evitando a litigância de má-fé e as sanções pela inobservância do principio da boa-fé. O demandante de má-fé terá responsabilidade civil. Com isso alem de garantir o direito do lesado à segurança, protegendo-o contra exigências descabidas, haverá um meio de reparar o dano, exonerando o lesado do ônus de provar a ocorrência da lesão por dolo processual2.
Independente da seara onde será aplicado o conceito da boa-fé se verifica uma classificação básica, qual seja, boa-fé objetiva e subjetiva.
Para conceituar Boa-fé subjetiva e objetiva, citemos as palavras de Judith Martins-Costa.
A expressão boa-fé subjetiva denota estado de consciência ou de convencimento individual de obrar em conformidade co direito aplicável, em regra, ao campo dos direitos reais, especialmente em matéria possessória. Diz-se subjetiva justamente porque para sua aplicação, deve o interprete considerar a intenção do sujeito da relação jurídica, o seu estado psicológico ou intima convicção. Antitética à boa-fé subjetiva está a má-fé, também vista subjetivamente como a intenção de lesar a outrem.
Já por boa-fé objetiva se quer significar – segundo a conotação que adveio da interpretação conferida ao parágrafo 242 do Código Civil Alemão, de larga força expansionista em outros ordenamentos, e bem assim, daquela que lhe é atribuída nos países de common low – modelo de conduta social, arquétipo ou Standard jurídico, segundo o qual ‘cada pessoa deve ajustar sua própria conduta a esse arquétipo, obrando como obraria um homem reto: com honestidade, lealdade e probidade’.por este modelo objetivo de conduta levam-se em consideração os fatores concretos do caso, tais como o status pessoal e cultural dos envolvidos, não se permitindo uma aplicação mecânica do Standard, de tipo meramente subjuntivo3.
Com base nestes conceitos, conclui-se que na boa-fé subjetiva leva-se em consideração o animus do agente, enquanto que na boa-fé objetiva têm-se normas de conduta que devem ser seguidas, levando-se em consideração o contexto, sem se importar, precipuamente, com a intenção do agente.
Neste sentido, Brunela Vieira, considera a boa-fé objetiva como sendo ferramenta para a manutenção do equilíbrio que deve existir nos negócios jurídicos desde sua concepção até o seu desfecho, devendo, desta forma, possuir natureza integrativa e não mais valorativa.
Destarte, atenta-se para o princípio da conservação dos atos jurídicos, nos casos em que o fim econômico-social do contrato não é alcançado; para manter o vínculo contratual, o aplicador do direito lança mão da regra da boa-fé objetiva, integrando as cláusulas contratuais com outros elementos do contrato de forma a preservar sua economia, restabelecendo-se o sinalagma funcional (não o original, mas aquele que permite durante a execução do contrato a manutenção do equilíbrio entre direitos e deveres)4.
Estas classificações, supranumeradas e descritas, embora possuam grande importância técnica-jurídica, não conseguem fornecer subsídios suficientes para estabelecer o conteúdo de uma conduta eivada de boa-fé. Somente em cada caso concreto pode-se verificar o que cada um dos conceitos realmente representa, posto que conceitualmente não representam uma regra pronta e acabada.
Oscar Ivan Prux alerta que a boa-fé “embora portadora de elementos juridicamente definidos, encontrar seu sentido material exato, significa ter de verificar as soluções encontradas para os casos concretos enfrentados”. 5
Independente da classificação que a boa-fé possa se submeter é ela um princípio que norteia todo o ordenamento jurídico pátrio, e de outros paises. A lealdade e probidade, características precípuas da boa-fé devem estar presentes em todos os atos jurídicos, sob pena de padecer de algum vício.
Destarte, segundo Cunha Sá, constitui a boa-fé “... princípio pelo qual o sujeito de direito deve atuar como pessoa de bem, honestamente e com lealdade”.6
MA-FÉ
Maria Helena Diniz, em sua obra Dicionário Jurídico, conceitua a má-fé das seguintes formas: “MÁ-FÉ. 1 Direito civil. a) Dolo; b) intenção de prejudicar alguém ou de alcançar um fim ilícito; c) Conhecimento de vicio; d) Ciência do mal, do engano da fraude (...). 3. Direito Processual Civil. Animo do litigante de alterar a verdade”7.
Partindo destes conceitos básicos e sucintos, porém precisos, e conhecido o conceito e a função da boa-fé em nossa realidade jurídica, insta estudar sua antítese, alvo tangente a este estudo, verificando suas diversas peculiaridades, para que, conhecendo-as, seja possível analisar, na seara processual civil todas as suas facetas.
2.2.1 A má-fé como intenção
A má-fé, segundo Rui Stoco, “Decorre do conhecimento do mal, que se encerra no ato executado, ou do vício contido na coisa, que se quer mostrar como perfeita, sabendo-se que não é”.8
Um ato praticado com má-fé pode ser tido, também, como tendo sido realizado com dolo ou fraude. Estes dois conceitos estão estreitamente ligados, não sendo possível haver dolo sem que haja má-fé.
O conceito de dolo, trazido no livro “Programa de Responsabilidade Civil”, do doutrinador Sergio Cavalieri Filho, diz que é “(..) a vontade conscientemente dirigida à produção de um resultado ilícito. É a infração consciente do dever preexistente, ou do propósito de causar dano a outrem”. 9
Na experiência penal tem-se exemplo claro disso: uma pessoa que mata em legítima defesa, mesmo tendo a intenção de matar, não agiu com dolo, posto que sua conduta não está eivada de má-fé, tendo em vista que sua vontade era apenas a de defender-se, não havendo, portanto, crime, mesmo se tratando de conduta típica. A ausência de má-fé não permite que tal conduta seja considerada antijurídica, pois se verifica não a má-fé, mas a boa-fé.
A má-fé se opõe à boa-fé, sendo que esta se presume e aquela deve ser caracterizada ou, até, provada10.
Os atos praticados com má-fé não possuem respaldo jurídico que lhes confiram a legalidade que prescindem para serem válidos, tornando-se nulos ou anuláveis.
Há que se esclarecer que a litigância de má-fé é uma espécie do qual a teoria do abuso de direito é gênero. Passamos a estudar o abuso do direito.
3. O Abuso de Direito COMO ATO ILÍCITO
A teoria do Abuso de Direito está estreitamente ligada ao instituto processual da litigância de má-fé, pois esta, a grosso modo, não é nada senão o abuso do direito processual que tem por objetivo prejudicar outrem e/ou retardar a consecução da função jurisdicional.
Todo ato jurídico eivado de má-fé pode ser considerado ato ilícito. A má-fé retira do ato o manto da licitude e da legitimidade.
O abuso de direito representa o mal uso de uma prerrogativa por alguém, que, imbuído de má-fé, tem a intenção de prejudicar outrem.
Desta maneira por ser o abuso de direito uma manifestação da má-fé e esta ser a antítese do que prega o artigo 14, inciso II do CPC, o abuso é tido como ilícito, independente de haver norma expressa neste sentido.
O artigo 186 do Código Civil caracteriza o que vem a ser ato ilícito e recepciona no artigo 187 a teoria do abuso de direito, vejamos:
Artigo 186. Aquele que, por ação ou omissão, voluntária, negligência ou imprudência violar direito e causar dano a outrem, ainda que exclusivamente moral, comete ato ilícito.
Artigo 187. Também comete ato ilícito o titular de um direito que, ao exercê-lo, excede manifestamente os limites impostos pelo seu fim econômico ou social, pela boa-fé e pelos bons costumes.
Sendo a teoria do abuso de direito o lastro que justifica a responsabilização pela litigância de má-fé, não poderia ser apenas o direito de ação e de resposta possíveis de estarem maculados pela má-fé, mas sim todo e qualquer ato que seja manifestado com abuso de direito.
O que há que se levar em consideração é a distinção da gravidade entre a má-fé verificada no momento da propositura da ação ou no oferecimento de resposta e aquela verificada no decurso do mesmo.
No primeiro caso a má-fé macula todo o feito, o que está de acordo com a teoria dos frutos da árvore envenenada. Tal teoria aduz que os atos originados de forma maculada contaminam todas as suas conseqüências.
No segundo caso a má-fé pode contaminar apenas o ato que dela se originou e não todo o feito. Daí o porquê de se falar apenas na distinção quanto à gravidade, mas não de conceituação.
A má-fé no curso do procedimento pode constituir fato isolado que, em alguns casos, não contamina a higidez do processo como um todo, embora em alguns casos isso possa ocorrer.
Contudo o abuso do direito de demandar significa que a própria ação intentada é temerária, sem origem ou com suporte em fatos inexistentes ou diversos daqueles expostos. 11
Não importa, do ponto de vista fático, uma distinção entre o abuso do direito de demandar e a má-fé processual. Acreditamos que se trata da mesma coisa, apenas distinguindo quanto ao momento e a gravidade do ato maléfico. Redundam no sentido de que constituem, de fato, a mesma coisa, ou seja, a intenção dolosa de dificultar a prestação da tutela jurisdicional pelo Estado e/ou lesar a parte contrária.
Litigância de má-fé
O dever de lealdade processual deve ser verificado nos atos das partes envolvidas no feito, sendo necessário provar que determinado comportamento não respeitou este dever. O agir probo e de boa-fé deve estar presente em todo o processo.
A boa-fé é presumida, por este fato da má-fé deve ser provada. “Pode-se ainda acrescentar que a má-fé é a qualificação jurídica da conduta legalmente sancionada”12
Anne Joyce Angher define a litigância de má-fé da seguinte maneira:
(...) a litigância de má-fé é consubstanciada na ação ou omissão deliberada da parte ou terceiro interveniente que, abusando do seu direito de ação ou de defesa (latu sensu), tem o intuito de prejudicar sujeito processual que ocupe posição contraposta, tendo consciência do injusto ou da falta de razão.
Nelson Nery Junior e Rosa Maria de Andrade Nery, por sua vez apresentam o seguinte conceito:
É a parte ou interveniente que, no processo, age de forma maldosa, com dolo ou com culpa, causando dano à parte contrária. É o improbus litigator, que se utiliza de procedimentos escusos com o objetivo de vencer ou que, sabendo ser difícil ou impossível vencer, prolonga deliberadamente o andamento do processo procrastinando o feito”.13
Esta última posição doutrinária, nos parece, está um pouco equivocada, pois atribui a litigância de má-fé, também, ao ato culposo.
Nossa divergência se fundamenta no fato de que não se pode falar em ato de má-fé se este não for comissivo. Deve haver dolo para que se caracterize a má-fé, como já fora visto. Desta maneira, data vênia, não concordamos com tal posicionamento conceitual sobre a litigância de má-fé.
No nosso entender, a litigância de má-fé é todo e qualquer ato processual doloso de qualquer das partes (latu sensu) que tenha por escopo prejudicar o correto desenrolar do processo, desobedecendo ao princípio da lealdade processual, (artigo 14, II do CPC) lesando outrem ou a prestação da tutela jurisdicional.
4.1. QuEM PODE SER LITIGÂNTE DE MÁ-FÉ.
O artigo 14 do Código de Processo Civil estabelece os deveres das partes e de todos aqueles que de qualquer forma participem do processo.
Fazendo-se uma interpretação sistemática percebemos que segundo o artigo 14, todos que tenham qualquer tipo de participação no processo, seja ele advogado, autor, réu, serventuário, membro do Ministério Público ou magistrado, devem obediência ao dever de lealdade.
É o que entende Márcio Louzada Carpena, vejamos:
O diploma processual brasileiro, neste diapasão, foi extremamente feliz ao incluir expressamente a responsabilidade de terceiros no processo. A partir da redação do art. 14 do Código de Processo Civil, introduzida pela Lei 10.358/01, verifica-se que o dever de lealdade é não só daquele que pleiteia no processo (autor) como daquele a quem é pedido algo (réu), mas também de terceiros, pessoas estranhas à lide que, por qualquer razão, acabam participando do feito, isto é, advogados, procuradores, membros do Ministério Público, magistrados, oficiais de justiça, testemunhas, peritos, interpretes, escrivães, auxiliares da justiça, autoridades coatoras (em caso de mandado de segurança), entre outros. 14
O dever de lealdade é apontado como princípio norteador do dever ser comportamental das partes em juízo, serve de lastro para as condutas previstas no artigo 17 do Código de Processo Civil.
Para Anne Joyce Angher, “O dever de lealdade processual, também considerado princípio, impõe aos participantes do processo o dever de proceder com moralidade e probidade”. 15
Só a subsunção de uma das sete condutas presentes no artigo citado pode enquadrar a atuação do litigante como sendo de má-fé.
Desta feita, embora o dever de lealdade presente do artigo 14 cabe ser observado por todos que tenham qualquer tipo de participação no processo, a litigância de má-fé só pode ser imputada àqueles que praticam os atos previstos no artigo 17, ou seja, aqueles citados no artigo 16, também do Código de Processo Civil16.
A priori somente as partes de um processo (quem pede e de quem se pede) podem sofrer sanção por litigância de má-fé. Ocorre que o mencionado art. 16, fala do interveniente, o que pode ensejar alguma dúvida.
O conceito de parte, segundo Fredie Didier Júnior, “(...) deve restringir-se àquele que participa (ao menos potencialmente) do processo com parcialidade, tendo interesse em determinado resultado do julgamento. (...). Parte é quem postula contra quem se postula ao longo do processo, e que age, assim, passionalmente”. 17
Do conceito supra depreende-se a idéia que parte não é apenas os presentes no preâmbulo da petição inicial, mas aqueles que participem do processo, o que inclui os que nele ingressam no seu curso.
Assim os terceiros interessados podem intervir no processo, intervindo de maneira a defender direito seu que pode ser atingido com o resultado da lide.
Barbosa Moreira ensina que de “(...) três maneiras distintas pode alguém assumir a posição de parte num processo: a) tomando a iniciativa de instaurá-lo; b) sendo chamado a juízo para ver-se processar; C) intervindo em processo já existente entre outras pessoas”. 18
Destarte fica evidente que somente quem possui interesse processual e execute uma das três possibilidades acima transcritas pode ser imputado litigante de má-fé.
Vale informar que a sanção pela litigância de má-fé não se aplica aos advogados, por expressa vedação do parágrafo único do art. 14 do Código de processo Civil, o que não retira deles a necessidade de respeitar o dever geral de lealdade contido no mesmo artigo.
Ora, pela interpretação do parágrafo único do art. 14 em consonância dom outros artigos do CPC, conclui-se que há dever de lealdade, sim, dos advogados. O que não há é a possibilidade de serem eles diretamente punidos pelos magistrados caso atuem de maneira ímproba. A atitude de má-fé do causídico configura, não há dúvida, falta disciplinar, cujo palco de julgamento, todavia, será, a teor do que se verifica em outros ordenamentos, o seu órgão de classe que tem por função apreciar a conduta ética empregada no exercício da profissão. 19
Desta feita, podem ser condenados por litigância de má-fé apenas as partes do processo (o que incluem os intervenientes), não alcançando os advogados, membros do Ministério Público, procuradores, serventuários e magistrados, mas todos devem obediência ao dever de lealdade processual.
5. Sanções pela litigância de má-fé.
O acesso ao Poder Judiciário, o devido processo legal, o contraditório e a ampla defesa são direitos constitucionalmente previstos em nosso país.
A função jurisdicional, exercida com exclusividade pelo Estado, possui gigantesca importância em qualquer sociedade, pois possui como um dos principais escopos, qual seja, a tutela da paz social.
Para a consecução da tutela jurisdicional, o Estado outorga ao magistrado poderes para a sua efetivação.
O magistrado possui dois tipos de poder, vale dizer, poderes de polícia e poderes jurisdicionais.
“Por poderes jurisdicionais entendem-se os exercidos pelo juiz na sua função jurisdicional, como sujeito da relação processual, dentre os quais destacamos os poderes ordinatórios ou instrumentais, relacionados com o desenvolvimento do processo”. 20
O conceito de poder de polícia, mais utilizado no âmbito do Direito Administrativo, é a atribuição “(...) a que dispõe a Administração Pública para condicionar o uso, o gozo e a disposição da propriedade e restringir o exercício da liberdade dos administrados no interesse público ou social”. 21
Trazendo este conceito para a esfera do Direito Processual, poder-se-ia dizer que o poder de polícia conferido ao magistrado seria o de fiscalizar e garantir a efetividade dos trabalhos desenvolvidos pelo Poder Judiciário, com o objetivo de assegurar a efetivação do interesse público.
Neste sentido Anne Joyce Angher aduz que:
Já os poderes de polícia são exercidos pelo juiz não como sujeito da relação processual, mas como autoridade judiciária, com a finalidade de assegurar a ordem dos trabalhos forenses, evitando-se atos que comprometam a ordem e o decoro necessários ao regular andamento do processo. 22
O poder de polícia exercido pelos magistrados encontra lastro legal, por exemplo, no art. 125 do Código de Processo Civil, que informa as competências para se dirigir o processo, dentre elas a de velar pela rápida solução do litígio e de prevenir ou reprimir atos que atentem contra a dignidade da justiça.
Como o objetivo maior é assegurar a consecução do interesse público, mais precisamente a prestação da tutela jurisdicional como o objetivo de promover a paz social, diz-se que não se trata, meramente, de um poder, mas de um poder-dever, já que não pode o agente público (magistrado) dispor de direitos que não são seus, que pertencem à coletividade.
“Assim, a condenação por litigância de má-fé não é uma faculdade conferida ao juiz, mas um poder-dever de coibir os atos que infringem os deveres processuais e constituem abuso de direito de ação ou defesa”. 23
Humberto Theodoro Júnior afirma que a fiscalização e repreensão dos atos atentatórios contra a dignidade da justiça não constituem apenas poderes e deveres, mas, também, direito subjetivo da parte lesada. Vejamos:
O Código de Processo Civil elenca uma série de poderes e deveres do juiz, como o de assegurar o tratamento igualitário das partes, velar pela rápida solução do litígio, prevenir ou reprimir atos contrários à dignidade da justiça, etc. (...) Mas, como a jurisdição é função, e não simples poder, pois engloba poderes e deveres, a todo poder que lhe atribui a lei corresponde o direito da parte de exigir que a função seja regular e adequadamente exercida. Assim, por exemplo, a repressão ao ato contrário à dignidade da justiça, que se insere nos poderes do juiz, é também um direito subjetivo processual do litigante prejudicado pela conduta abusiva do adversário. Da mesma forma se passa com o cumprimento do contraditório e o tratamento isonômico dos contendores, que o juiz, de ofício, tem de promover, e que à parte cabe o direito de exigir. 24
Desta feita entende-se que além do poder-dever conferido ao magistrado de assegurar a correta prestação da tutela jurisdicional, pode a parte exigir providências neste sentido.
6. conclusão
O presente trabalho objetivou estudar o instituto da litigância de má-fé com o intuito de dirimir dúvidas decorrentes de sua complexidade e parca regulamentação legislativa.
Diante disso fora tratado de assuntos propedêuticos intrínsecos a este complexo instituto, vale dizer, a boa-fé, a moral, a ética, a má-fé, o abuso de direito, entre outros.
Cada um dos assuntos citados acima, diante de sua importância para o entendimento do tema deste trabalho, foi abordado em capítulos ou subcapítulos.
A boa-fé é um princípio que norteia todo o ordenamento jurídico brasileiro, sendo considerado um princípio, devido a sua importância. Constitui elemento de validade de negócios jurídicos. Encontra previsão expressa no artigo 14, II do CPC, que determina o dever das partes de agirem de boa-fé.
Restou claro em nosso estudo que a importância do agir de boa-fé no processo, entretanto era necessário que restringíssemos, dentro do possível, a subjetividade deste conceito, para facilitar seu entendimento. Neste sentido analisamos a moral e a ética que permeiam o agir de boa-fé.
Fizemos ainda uma distinção entre a boa-fé subjetiva e objetiva e afirmamos que a boa-fé não carece de ser provada, posto que é presumível.
A antítese ao dever de proceder com lealdade e boa-fé é, justamente, a má-fé. Esta representa a intenção maliciosa de lesar outrem, constitui, por si só, lesão ao Direito, passível de diversas formas de manifestação. A má-fé, ao contrário da boa-fé, não se presume, sendo necessário ser provada.
A teoria do abuso de direito, considerada a natureza jurídica do instituto da litigância de má-fé, é a manifestação, no plano fático, de um direito subjetivo exercido sem atenção a sua função social, em desconformidade com os fins a que ele se destina e com o intuito de prejudicar terceiros.
Representa um assunto precipuamente estudado na ceara do Direito Civil, e sua aplicação no âmbito do Direito Processual Civil encontrava certas dificuldades. A necessidade de se repelir o abuso do direito no Direito Processual levou à criação do instituto da litigância de má-fé.
Sua positivação e reformas resultou nos atuais artigos 16 a 18 do Código de Processo Civil, além de outras normas esparsas mais específicas e de aplicação mais restrita, que se valem deste mesmo instituto.
A importância deste tema reside na sua contribuição para a consecução de um processo civil mais justo, célere e equânime.
A aplicação das sanções pertinentes tem o condão de inibir o mal uso dos direitos processuais e da máquina judiciária.
Trata-se de uma maneira de proteger dois bens jurídicos distintos: a boa prestação da tutela jurisdicional pelo Estado e o direito, das partes, a um processo célere e justo. Daí o porquê de poder o magistrado aplicar suas sanções de ofício.
Esta foi a motivação que nos levou a aprofundar os estudos sobre este tema tão palpitante.
1 DINIZ, Maria Helena. Dicionário Jurídico. 2 ed., rev., atual. e aum. São Paulo: Saraiva, 2005. Vol. 1. P. 506 e 507
2 Iden, ibdem. P. 506 e 507.
3 MARTINS-COSTA apud STOCO, op. cit., p. 39 e 40.
4 VINCENZI, op. cit., p. 160.
5 PRUX apud STOCO, op. cit. p. 41.
6 SÁ apud STOCO, op. cit. p. 42.
7 DINIZ, op. cit., vol. 3, p. 207.
8 STOCO, op. cit., p. 44.
9 CAVALIERI FILHO, Sergio. Programa de responsabilidade civil. 6ª ed., rev., aum. e atual.São Paulo: Malheiros, 2006. P. 55 e 56.
10 “Na litigância temerária, a má-fé não se presume, mas exige prova satisfatória não só de sua existência, mas da caracterização do dolo processual a que a condenação cominada na lei visa compensar” (STJ – 1.ª T. – Resp. 76.234 – Rel. Demócrito Reinaldo – j. 24.04.1997 – DJU 30.06.1997, p. 30.890).
11 STOCO, op. cit., p. 77.
12 STOCO, op. cit., p. 87.
13 NERY JUNIOR, Nelson; Nery, Rosa Maria de Andrade. Código de processo civil comentado e legislação extravagante. 7ª ed., rev. e amp. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2003. p. 302.
14 CARPENA, Márcio Louzada. Da (Des) lealdade no processo civil. AMARAL, Guilherme Rizzo (coord.). Visões críticas do processo civil brasileiro. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2005. P. 37.
15 ANGHER, op. cit.. p. 43.
16 Art. 16. Responde por perdas e danos aquele que pleitear de má-fé como autor, réu ou interveniente.
17 DIDIER JÚNIOR, Fredie. Direito Processual Civil: Tutela jurisdicional individual e coletiva. 5 ed. Salvador: JusPODIVM, 2005. p. 268.
18 MOREIRA apud DIDIER JÚNIOR, op. Cit. p. 269.
19CARPENA, op. cit., 2005. P. 38.
20 ANGHER, op. cit., p. 153.
21 GASPARINI, Diógenes. Direito Administrativo. 9ª ed., ver. e atual. São Paulo: Saraiva, 2004. p.123.
22 ANGHER, op. cit., p. 153.
23 ANGHER, op. cit., p. 155.
24 THEODORO JUNIOR Apud ANGHER, op. cit., p.156.
Técnica Administrativa do MP/SE.
Por: Juliana Melissa Lucas Vilela e Melo
Por: Isnar Amaral
Por: LEONARDO RODRIGUES ARRUDA COELHO
Por: REBECCA DA SILVA PELLEGRINO PAZ
Precisa estar logado para fazer comentários.