do Sul (UFRGS)
É inevitável entendermos que o Direito contemporâneo passa por uma formação acadêmica e, sobretudo, prática, que prioriza a técnica. Não é a téchne dos gregos, que em especial introduzia uma dimensão poiética, criativa, no ato de criar, fazer, manipular artefatos. Não era, portanto, um mero reproduzir, mas antes um conhecer. A nossa técnica é mais superficial, rasa, e muitas vezes podemos interpretá-la como mera reprodução. Portanto, a última instância do “saber jurídico” do “bom” operador (ou reprodutor) do Direito é saber manejar adequadamente a técnica, isto é, adequar o problema jurídico ao arcabouço legal, quase como se fosse um robô que possui uma precisão inigualável e que pode manusear um bisturi sem riscos de erros.
Aí o Direito se torna tecnocracia e robótica. Uma máquina parece perfeita nos seus movimentos repetitivos a partir da algoritmia matemática que a prescreve. O tecnocrata faz a mesma coisa, dado uma situação “X”, encontra na legislação o correspondente “Y”. E noutra vez o faz da mesma forma. Ele não pensa, não sente, não distingue, mas aplica com perfeição. Tornamos o direito, em partes, robótico, mecânico, artificial. O que os cursos pretendem ensinar é não errar o corte, que sejamos capazes de operar o paciente com uma precisão absoluta. Aconteceu isso, procedimento cirúrgico tal, aconteceu aquilo, cirurgia Y e assim vai... Claro que ter a técnica, entendida como a capacidade de realizar algo, e a precisão, são coisas que possuem um valor muito importante, afinal sem a técnica e o adequado manejo do Direito também não seria possível se falar em uma atuação jurídica que tivesse responsabilidade e que estivesse o foco na resolução dos problemas jurídicos.
Por outro lado, talvez melhor do que apostar 100% em uma técnica que fosse pautada na repetição da precisão, analogamente a um robô na execução de atos de forma reiterada e pré-determinada, seria melhor considerar as múltiplas variáveis e complexidades das problemáticas jurídicas, nas quais a gestão da própria inteligência enquanto sensibilidade estética pode nos dar respostas mais otimais ao resultado solicitado momento a momento.
Pensar o Direito é saber, inclusive, quando devemos combatê-lo, confrontá-lo. Em algumas circunstâncias a frieza da lei não ajuda em nada, especialmente quando estamos falando de uma hermenêutica da literalidade... Explico com um exemplo. Recentemente recebemos casos em que clientes foram excluídos de programas de parcelamentos fiscais com a Receita Federal por inadimplência. A situação é a seguinte: inúmeras pessoas, ao aderir uma transação fiscal, optam por parcelar o pagamento dos tributos mediante débito automático em conta. Para pessoas afetadas pelas enchentes do Rio Grande do Sul, a RF criou a Portaria PGFN nº 737, de 06 de maio de 2024, que prorrogou a cobrança tributária entre os meses de abril e junho de 2024. O problema é que após esse período, a Receita Federal que havia cancelado de ofício o débito automático, não notifica ou reinclui as parcelas mediante inclusão em débito em conta. Em suma, a RF alega que poderia cancelar o débito automático e que seria responsabilidade do contribuinte buscar meios de reincluir as parcelas. Portanto, os contribuintes que não buscaram assessoria para verificar como pagar os débitos prorrogados acabaram sendo excluídos dos parcelamentos por inadimplência, tendo os títulos protestados, com aplicação de correção e multa pelo fisco. Agora, a pergunta é: o propósito da prorrogação não seria justamente preservar a capacidade econômica do contribuinte atingido pelas enchentes? E mais, se o próprio Fisco cancelou o débito automático, não deveria, ao menos, reincluir o cidadão que, no mais das vezes, não possui a mínima condição de entender a complexa lógica fiscal aplicada no Brasil?
Não entende a dinâmica gestáltica do Direito, a contextualidade, a interação intra e extrassistemas. Nesse caso, muito bem poderia se valer o funcionário que deu o start de toda a legislação empresarial, da função social da empresa, da preservação da empresa.
Infelizmente a tecnocracia ensina que operar o Direito é dizer “a lei se aplica ou não”. Isso é absolutamente superficial e não considera a intersecção multissistêmica da qual o Direito faz parte. Não é o todo, mas certamente o afeta!
O que isso quer dizer? Quer dizer que muitas vezes talvez adotar uma precisão rigorosa (que se confunde com uma hermenêutica “literal”) e adotar especialmente algo que é pré-determinado, isto é, fazer exatamente aquilo que o “script jurídico” diz, não seja a melhor solução para os problemas que o Direito precisa enfrentar no contexto contemporâneo. Estamos formando operadores de scripts, de modelos, e não pensadores do Direito. Então ter a possibilidade de desenvolver uma capacidade de leitura global, ter repertório de formação multidisciplinar que englobe várias áreas do saber que não somente as matérias jurídicas e, especialmente, que tenha a possibilidade de proporcionar ao jurista uma leitura dinâmica e profunda da situação, pode ser um caminho que possibilite sair do roteiro pré-programado em que os nossos juristas e os nossos profissionais operadores estão fazendo.
A meu ver temos que repensar a formação da manufatura, isto é, profissionais treinados para reproduzir. Estamos lançando à sociedade juristas que não compreendem a lógica subjacente das esferas jurídicas. O Direito mais do que nunca precisa ser entendido como função e não como estrutura, como pensavam os positivistas. Significa ter a inteligência para buscar as soluções não precisamente previstas em roteiros, encontrar nas circunstâncias quais valores o Direito busca tutelar e o que isso pode significar para a sociedade. Sair do espectro coreografado significa ter a capacidade de criar cenários.
O Direito é o instrumento de liberdade da cultura de um povo. Oprime e liberta, cria e destrói. Precisa ser, justamente, uma possibilidade de ação concreta para que a inteligência humana seja cocriadora do próprio Direito, ou seja, co-criadora da própria realidade, de paz e prosperidade. Cada pessoa, cada situação, cada lugar, cada circunstância demanda uma resposta diferente. Talvez a letra fria da lei seja a mesma. O tecnocrata vai lê-la como se fosse sempre a mesma coisa, mas o Direito exige uma sensibilidade estética diversa. Exige, portanto, que o operador consiga ler, entender a situação de forma a dar a resposta que aquela situação exige.
O tecnocrata ignora a natureza multidimensional, sistêmica e transversal do Direito, acreditando ser desnecessário ampliar sua formação com conhecimentos de economia, filosofia, psicologia e outras áreas. No entanto, o Direito não pode se reduzir a um mecanismo de aplicação automática de normas; deve ser um campo de reflexão e criação, onde a inteligência humana vai além da mera execução da lei, compreendendo-a em sua função social e promovendo justiça de forma sensível às complexidades do mundo real.
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