O Supremo Tribunal Federal, recentemente, ao julgar o Habeas Corpus n° 97.256, declarou inconstitucional o texto do artigo 33, § 4°, da Lei n° 11.343/2006, que vedava a conversão da pena privativa de liberdade em restritiva de direito àqueles cidadãos condenados por tráfico ilícito de entorpecentes, cuja pena final restasse fixada em quatro anos ou menos de reclusão.
Conforme se depreende do voto de minerva proferido pelo eminente Ministro Cezar Peluso naquele julgamento, a Corte Constitucional entendeu que a mera vedação legal de conversão da pena restritiva de direito em pena privativa de liberdade, em razão da natureza do crime, usurparia as funções do Poder Judiciário, impedindo o magistrado de individualizar em cada caso a aplicação da pena, constituindo, assim, manifesta ofensa ao artigo 5°, inciso XLVI, da Constituição Federal.
Segundo o Presidente do Supremo Tribunal Federal, a vedação do artigo 33, § 4°, da Lei n° 11.343/2006 iria de encontro ao ordenamento jurídico pátrio, eis que este hospeda um sistema de alternativas condicionadas de pena, “ou seja, o sistema prevê como tal uma série de penas condicionadas a um conjunto de requisitos, diante dos quais o Juiz deve decidir pela aplicação da pena adequada ao caso concreto”, concluindo, ainda, o eminente Ministro, que “a lei não pode, sem alterar todo o sistema, impedir a escolha judicial pela só referência à natureza jurídica do crime”, pois “a natureza do crime não compõe o âmbito dos critérios de individualização da pena”.(1)
Como se vê, o Supremo Tribunal Federal declarou a inconstitucionalidade da vedação legal de substituição da pena privativa de liberdade por restritiva de direito prevista na Lei de Tóxicos, reconhecendo a ofensa daquela norma ao princípio da individualização da pena.
Tal princípio, consagrado expressamente em nossa Constituição Federal no artigo 5°, inciso XLVI, surge no ordenamento jurídico, em uma primeira fase, quando o legislador delimita aquelas condutas positivas ou negativas que irão fazer parte do pequeno âmbito de abrangência do Direito Penal.(2)
Nesse primeiro momento, o legislador, observando o princípio da fragmentariedade, escolhe aquelas condutas que serão protegidas pelo Direito Penal, criando um tipo penal, escolhendo as penas mínima e máxima abstratamente aplicadas ao delito.
Já em um segundo momento, o princípio da individualização da pena norteia o Poder Judiciário na aplicação da sanção no caso concreto, sentenciando, de forma justa, o condenado. Ou seja, a individualização, quando da fixação da pena final, constitui justa aplicação da sanção penal, “evitando-se a intolerável padronização e o desgaste da uniformização de seres humanos, como se todos fossem iguais uns aos outros, em atitudes e vivências”.(3)
A “individualização legal”, portanto, se restringe a prever espécies de crime, enquanto a individua lização judicial conhece e diferencia o condenado.(4)
É em atenção ao princípio da individualização da pena que cidadãos e situações diferentes são tratados de forma diferentes perante o direito penal, caracterizando, assim, a expressão do princípio da isonomia substancial.
No caso, o Supremo Tribunal Federal, ao reconhecer a possibilidade de substituição da pena privativa de liberdade por restritiva de direito para aqueles condenados por tráfico de droga e beneficiados pela causa de diminuição do artigo 33, § 4°, da Lei n° 11.343/2006, nada mais fez do que reconhecer a inconstitucionalidade da (não)individualização da pena feita pelo legislador quando da elaboração da Lei de Tóxicos.
Ora, não é dado ao legislador se arvorar na condição de juiz e criar uma vedação legal genérica e abstrata que desconsidera as circunstâncias específicas do caso concreto, impedindo, assim, o Poder Judiciário de exercer suas funções de controle e individualização da pena.
Note-se que o posicionamento firmado pelo egrégio Supremo Tribunal Federal no julgamento do Habeas Corpus n° 97.256 há muito já vinha sendo adotado por outros juízos, como, por exemplo, pelo r. Juízo da 1ª Vara Criminal de Tabatinga,(5) no qual a questão do tráfico de drogas é endêmica e seria inconstitucional dar tratamento idêntico ao cidadão que vendeu uma “trouxinha” de droga - que contém cerca de um grama de cocaína - e àquele indivíduo que transportou toneladas de entorpecentes pela fronteira de outro país.
Com muito acerto, portanto, a decisão tomada pelo colendo Supremo Tribunal Federal ao diferenciar o traficante contumaz daquele que se viu eventualmente envolvido na mercancia de entorpecentes, possibilitando, portanto, a ressocialização do condenado e o efetivo cumprimento dos pilares da pena.
A questão, então, é saber qual o alcance da decisão proferida pelo egrégio Supremo Tribunal Federal no julgamento do Habeas Corpus n° 97.256. Estaria esta restrita à substituição da pena privativa de liberdade por restritiva de direito e, por conseguinte, àqueles cuja pena restou fixada no patamar igual ou inferior a quatro anos de reclusão?
Entendemos que não. De fato, a substituição da pena privativa de liberdade por pena restritiva de direito só é possível aos condenados à pena de segregação corporal igual ou inferior a quatro anos, pois assim dispõe o artigo 44 do Código Penal.
Contudo, há que se levar em consideração que o Supremo Tribunal Federal, ao julgar inconstitucional a referida vedação legal, permitindo o “mais” - a substituição da pena privativa de liberdade pela restritiva de direito - para os condenados pela prática do crime previsto no artigo 33, caput e § 4°, da Lei n° 11.343/2006, indiretamente também permitiu o “menos”, ou seja, a fixação de um regime inicial de cumprimento de pena diferenciado para todos aqueles condenados nesses termos por esse crime.
Ora, se aquele cidadão condenado, nos termos do artigo 33, caput e § 4°, da Lei n° 11.343/2006, poderá cumprir a sua pena em liberdade, seja prestando serviço à comunidade, seja mediante o pagamento de pecúnia, com muito mais razão poderá cumpri-la em regime aberto ou semiaberto, eis que, quem pode o “mais”, pode o “menos”.
Dessa forma, a despeito do que dispõe o artigo 2°, § 1°, da Lei n° 8.072/90, a decisão do Supremo Tribunal Federal nos autos do Habeas Corpus n° 97.256, privilegiando o princípio da individualização da pena nos casos de condenados pelo crime previsto no artigo 33, caput e § 4°, da Lei n° 11.343/2006, não apenas possibilita a substituição da sanção corporal pela restritiva de direito, como também permite ao juiz, em atenção ao mencionado princípio e às demais garantias constitucionais, individualizar o regime inicial de cumprimento de pena para cada cidadão condenado pela prática do referido crime.
Frise-se que não se discute, aqui, a constitucionalidade do artigo 2°, § 1°, da Lei n° 8.072/90, mesmo porque essa já foi reiteradas vezes confirmada pelo Supremo Tribunal Federal.
O que se nota é que, a partir do julgamento do Habeas Corpus n° 97.256, a Corte Constitucional criou a figura do “tráfico privilegiado” que, tal como o homicídio privilegiado-qualificado, não se rende aos rigores da lei dos crimes hediondos diante da sua manifesta incompatibilidade axiológica.(6)
Mas ainda é possível ir mais além com a decisão do Supremo Tribunal Federal.
Ora, uma vez se permitindo a substituição da pena privativa de liberdade por restritiva de direito, a fixação de regime inicial diferente do fechado e afastando, por conseguinte, a hediondez do crime previsto no artigo 33, capute § 4°, da Lei n° 11.343/2006, é incontroverso que a recentíssima decisão proferida pelo Pretório Excelso alterou, também de forma reflexa, a execução da pena dos condenados pela prática desse delito, mormente no tocante à progressão do regime.
No caso, a progressão do regime inicial de cumprimento de pena não mais se regulará pelo artigo 2°, § 2°, da Lei n° 8.072/90 - a qual dispõe que a progressão de regime, no caso dos condenados aos crimes hediondos, dar-se-á após o cumprimento de 2/5 (dois quintos) da pena, se o apenado for primário, e de 3/5 (três quintos), se reincidente - mas sim pelo artigo 112 da Lei de Execuções Penais, o qual dispõe que “a pena privativa de liberdade será executada em forma progressiva com a transferência para regime menos rigoroso, a ser determinada pelo juiz, quando o preso tiver cumprido ao menos um sexto da pena no regime anterior e ostentar bom comportamento carcerário”.
É incontroverso, portanto, que, interpretando-se dessa forma os efeitos da decisão do Supremo Tribunal Federal, esta não apenas se atentou ao princípio da individualização da pena, como também à própria função social da sanção, eis que o chamado “traficante eventual” sofrerá de forma menos intensa os efeitos danosos do falido sistema carcerário, aumentando-se, assim, suas chances de ressocialização.
Merece aplausos, portanto, a decisão do Supremo Tribunal Federal que, respeitando o princípio da individualização da pena, constitucionalmente garantido, conseguiu dar tratamento distinto aos diferentes casos de cidadãos condenados por tráfico, permitindo, assim, diferenciar o traficante eventual daquele mercador contumaz de entorpecentes.
Resta agora torcer para que os magistrados de primeiro grau e desembargadores apliquem a referida decisão, em todos os seus efeitos, diretos e indiretos, dando um suspiro de garantismo ao direito penal brasileiro.
Notas
(1) Voto preferido pelo eminente Ministro Cezar Peluso nos autos do Habeas Corpus nº 97.256, disponível emwww.stf.jus.br. Grifos nossos.
(2) GRECO, Rogério. In: Curso de Direito Penal, Parte Geral, Impetus, 7. ed., 2006, p. 74.
(3) NUCCI, Guilherme de Souza. In: Princípios Constitucionais Penais e Enfoques Processuais Penais, RT, 2010, p. 159.
(4) SALEILLES, Raymond. In: A Individualização da Pena, Rideel, 1ª edição traduzida, p. 185.
(5) Processo nº 33/2010 (Inquérito nº 56/2010), entre outros.
(6) STJ, HC nº 153.728/SP, Rel. Felix Fischer, DJ 31.05.2010.
Especialista em Direito Penal Econômico pela Universidade de Coimbra. Secretário-Geral do Instituto de Garantias Penais. Coordenador de Processo Penal da Escola Superior da Advocacia da OAB/DF. Advogado.
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: FIGUEIREDO, Ticiano. Os efeitos reflexos da decisão proferida pelo STF que permitiu a substituição da pena para os condenados por tráfico de entorpecente Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 25 nov 2010, 08:20. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/artigos/22174/os-efeitos-reflexos-da-decisao-proferida-pelo-stf-que-permitiu-a-substituicao-da-pena-para-os-condenados-por-trafico-de-entorpecente. Acesso em: 27 nov 2024.
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