Resumo: expõe situação concreta, recorrente, sobre escalação de atleta irregular por clubes não profissionais e faz análise em face dos princípios gerais de direito, dispositivos constitucionais, administrativos e civis que devem regular a espécie.
Palavras-chave: esporte não profissional – clubes – hipossuficiência – torneios – BID – Federação – atleta irregular – multa – perda de pontos – causas concorrentes – erro de tipo – ausência de culpa – responsabilidade objetiva
Uma das situações que muito acontecem no universo peculiar do esporte não profissional é a chegada a um clube de um garoto de 14 a 16 anos, acompanhado de seu pai ou responsável (tio, irmão mais velho às vezes), querendo se inscrever para um campeonato já em andamento, embora ainda no seu início.
O menor se submete a alguns testes, mostra grande habilidade com a bola e desperta o interesse da agremiação, que começa a solicitar dele algumas informações entre as quais se já não está vinculado a alguma outra entidade esportiva, o que se tornaria impedimento, se a inscrição se referisse àquele torneio. O clube recebe resposta negativa do menor, confirmada pelo responsável, maior, assina o contrato e passa a integrar aquela equipe.
Cumprindo o seu dever mínimo de cuidado, a diretoria do clube consulta o Boletim Informativo Diário, no site da Confederação Brasileira de Futebol[1] e recebe resposta de que o BID está temporariamente fora do ar, ou que as informações nele inseridas somente estão atualizadas até um determinado período, ou ainda, como soe acontecer em portais da rede, tem dificuldade em manejar as ferramentas de busca disponíveis. Algumas pesquisas dependem, inclusive, de número de inscrição do atleta, que ele pode omitir completamente ou fornecer de maneira incorreta, comprometendo o resultado pretendido. Quem está habituado a lidar com essa natureza de consulta sabe que esses transtornos eletrônicos são, mesmo, bastante comuns.
A entidade esportiva, que nem sempre possui computador na sua sede, ou tendo o personal computer não tem acesso à internet, fez aquela pesquisa em máquina alheia, na base do favor, passa a entender que a situação sugere normalidade e leva o contrato para os necessários registros junto à Federação de Futebol de seu Estado.
Algum tempo depois, com jogos realizados, inclusive com a participação do recém-inscrito, o clube é citado para responder, perante o Tribunal de Justiça Desportiva, imputação de infração ao artigo 214 do CBJD[2], cuja tipicidade é a de “incluir na equipe ou fazer constar da súmula ou documento equivalente atleta que não tenha condição legal de participar da partida, prova ou equivalente”.
Por isso e assim, o clube, através de seu presidente, levado a julgamento, faz as alegações supra especificadas, desconsideradas in totum, sendo implacavelmente condenado pela Comissão Disciplinar a eventual perda de pontos, acrescida de pena pecuniária. Alega-se, em inaceitável sofisma, o fundamento de que a infração administrativa gera responsabilidade por dolo ou culpa e, se porventura ausente aquele, com certeza a omissão do dirigente estaria configurada, fazendo jus à apenação.
Fatos desse jaez, repita-se, bastante costumeiros, incitam à reflexão que busca respostas para as seguintes indagações:
a)Por que responsabilizar somente o clube, se várias outras pessoas e entidades também, de alguma forma, contribuíram para a infração?
b) A CBF também não deve ser chamada à responsabilidade pelos defeitos de alimentação de seu sistema eletrônico, dificuldades naturais de lidar com seus instrumentos de busca e pesquisa, comprometendo a segurança das informações contidas no BID, fazendo desencadear atos jurídicos ilegais e ensejadores de providências nocivas aos clubes?
c) A Federação de Futebol regional não tem, também, sua parcela de culpa ao aceitar e formalizar inscrição de jogador que ela, sim, detentora de suficientes recursos materiais e humanos, poderia ter feito checagem de disponibilidade, impedindo a inscrição irregular pretendida, ao invés de fazê-la depois, para a revogar, quando já teria surtido seus efeitos danosos?
d) O responsável pelo jogador, que a tudo acompanhou e tudo viu, assinou compromisso tutelando os interesses do atleta, sabendo da irregularidade, apesar de não jurisdicionado da Justiça Desportiva, não é o maior responsável pelo transtorno causado ao sistema?
e) O atleta, júnior ou juvenil, não deveria também sofrer algum tipo de medida sancionadora, ainda que em atendimento à função meramente pedagógica?
Punir somente o Clube se revela uma das maiores injustiças, já que a falha aconteceu por uma sequência de atos e desdobramentos que indicam de forma meridiana responsabilidade solidária entre pessoas e entidades, com a sanção recaindo exatamente sobre aquele que a Ciência Jurídica chama de parte hipossuficiente, por sobreviver com mínimos recursos econômico-financeiros. É o real destinatário da Justiça Social, a quem se reclama maior atenção e auxílio, para que não seja esmagado pela pesada mão do Estado e da Administração Pública em suas relações com o administrado.
Por fim, nada mais injusto do que atribuir-se responsabilidade individual a alguém quando se tem certeza de que a infração foi praticada por condutas concorrentes e que todos os demais partícipes são perfeitamente identificados. Se há impedimento ético ou legal para aplicação de reprimenda aos demais, que não se puna, também, o lado mais fraco e menos culpado.
À guisa de especificar, ainda, tese jurídica também adequada pode-se afirmar a existência, no caso, de erro essencial de tipo, que Fernando Capez[3], citando Damásio de Jesus, define do seguinte modo: “é o que incide sobre as elementares, circunstâncias da figura típica, sobre os pressupostos de fato de uma causa de justificação ou dados secundários da norma penal incriminadora.”.
Para Luis Flávio Gomes[4] é “quando o agente erra por desconhecimento ou falso entendimento sobre os elementos objetivos – sejam eles descritivos ou normativos – do tipo.”.
Trocando em miúdos, o presidente não sabe da condição do atleta inscrito em outro clube e por isso o escala. Todas as circunstâncias apontam para essa situação: o pai do menino que confirma a hipotética liberação, o BID que não funcionou e a Federação que recebeu a inscrição indevida, quanto tinha meios para recusá-la.
Que é ilegal e que não é permitido escalar o atleta vinculado a outro clube, o presidente sabe, mas acredita piamente que esse impedimento não existe. Razão porque não se configura erro de proibição[5], como já algumas vezes sustentado no TJD, em argumentação de defesa. Para tanto, deveria desconhecer a proibição, o que não aconteceu de fato. Ele conhece a norma que proíbe, mas imagina que o impedimento não está presente. Foi o que sucedeu.
Sem sombra de dúvida que o clube, representado por seu dirigente, está sendo punido por conduta não intencional e para a qual não agiu com culpa, como demonstrado. Para situações como tais pode-se ter como referência a lição de Caio Mário da Silva Pereira[6]: “Filosoficamente, a abolição total do conceito de culpa vai dar num resultado anti-social e amoral, dispensando a distinção entre lícito e ilícito, ou desatendendo à qualificação boa ou má de conduta...”.
NUNES[7], com respeito à linha de hermenêutica constitucional moderna, ensina que
“No paradigma procedimental de Estado Democrático de Direito, impõe-se a prevalência concomitante da soberania do povo e dos direitos fundamentais em todos os campos, mas, especialmente, na esfera estatal, na qual existe a constante formação de provimentos que gerarão efeitos para uma pluralidade de cidadãos.”.
Forçoso, por essas razões, concluir que se trata de uma relação injusta com a agremiação, que sobrevive em situação de dificuldades extremas e variadas, figurando, inegavelmente, como parte frágil em face do Estado, quando não operou com falta de cuidado objetivo, sendo apenas concorrente em acontecimento irregular de múltiplas causas e é apenada em de situação que não sugere a menor culpa stricto sensu, mas, sim, por abominável e inaceitável responsabilidade objetiva. Sem dúvida que isso não pode, em casos como tais, continuar acontecendo!
[1] Disponível em http://www.cbf.com.br
[2] BRASIL, Código Brasileiro de Justiça Desportiva - Resolução n 29, de 10 de dezembro de 2009
[3] CAPEZ, Fernando. Curso de Direito Penal – vol.I – p 220 - Ed.Saraiva - 2008
[4] GOMES, Luiz Flávio. Erro de Tipo e Erro de Proibição – p 96 - Ed. Rev. dos Tribunais - 2007
[5] “O erro de proibição é aquele que recai sobre a ilicitude do ato, excluindo a culpabilidade do agente. O agente supõe que inexiste a regra de proibição. ANDREUCCI, Ricardo Antônio. Manual de Direito Penal – p 79 – Ed. Saraiva – 2008.
[6] PEREIRA, Caio Mário da Silva. Instituições de Direito Civil – vol III – p 562 – Ed Forense – 2006.
[7] NUNES, Dierle José Coelho. Processo Jurisdicional Democrático – p 216 – E Juruá - 2008
Delegado de Polícia (apos). Mestre em Administração Pública/FJP - Especialista em Criminologia, Direito Penal e Processual Penal - Professor do Centro Universitário Metodista de Minas - Assessor Jurídico da Polícia Civil. Auditor do TJD/MG
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: LOPES, João. JUSTIÇA DESPORTIVA: Atleta Irregular - Responsabilidade Solidária - Erro de Tipo Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 26 mar 2011, 07:06. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/artigos/23888/justica-desportiva-atleta-irregular-responsabilidade-solidaria-erro-de-tipo. Acesso em: 28 nov 2024.
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