De[1] tudo ao meu amor serei atento
Antes, e com tal zelo, e sempre, e tanto
Que mesmo em face do maior encanto
Dele se encante mais meu pensamento.
Quero vivê-lo em cada vão momento
E em seu louvor hei de espalhar meu canto
E rir meu riso e derramar meu pranto
Ao seu pesar ou seu contentamento
E assim, quando mais tarde me procure
Quem sabe a morte, angústia de quem vive
Quem sabe a solidão, fim de quem ama
Eu possa me dizer do amor (que tive):
Que não seja imortal, posto que é chama
Mas que seja infinito enquanto dure.
Eis aí belos versos. Contudo, ouso afirmar que há uma peça legislativa que os superam; que causa regozijo na alma. Apresento-lhes o Código de Defesa do Consumidor, aqui poetizada em seus objetivos (art. 4º).
A Política Nacional das Relações de Consumo
Tem por objetivo o atendimento
Das necessidades dos consumidores
O respeito à sua dignidade, saúde e segurança
A proteção de seus interesses econômicos
A melhoria da sua qualidade de vida
Reconhecimento da vulnerabilidade do consumidor
Ação governamental no sentido de proteger efetivamente o consumidor:
Harmonização dos interesses dos participantes
Das relações de consumo e compatibilização da proteção do consumidor
Necessidade de desenvolvimento econômico e tecnológico
Viabilizar os princípios nos quais se funda a ordem econômica
Na boa-fé e equilíbrio nas relações entre consumidores e fornecedores;
E coibição e repressão eficientes
É uma obra literária, um louvor ao romantismo. Contudo, ainda que carregado de tom poético, não conseguiu afagar o que senti a menos de uma semana. Um misto de revolta e de pequenez.
No deleite do lar, resolvo adquirir um filme pela TV a cabo. Coisa fácil. Basta digitar a senha de acesso e degustar. Contudo, o programa não saiu como esperado. Apesar de a especificação da película deixar claro tratar-se de obra legendada, esta não marcou presença. Enquanto as cenas se passam, aciono a operadora com objetivo único: resolução rápida do problema com a correção deste. Depois de uns 20 (vinte) minutos, nada feito.
Passei então a um plano “B”: o cancelamento do pedido, pois havia falha do produto; nada mais correto e natural. Operação negada. Tal ocasião deu margem à alteração de meu estado de espírito, maximizada por uma frase, que em minha visão consumerista, irrita-me sobremaneira, qual seja “O sistema não permite”. No ato lembrei-me de uma sábia decisão de um juiz Federal de Pelotas/RS. Quando de posse da resposta de uma instituição financeira, a qual afirmava que o estorno não era possível “porque o sistema não permitia”, lavrou o seguinte despacho. “Vistos. Mude-se o sistema. Prazo de 24h, sob pena de multa diária de R$ xx”. Redundante dizer que o dito “sistema” permitiu a operação instantaneamente. No meu caso, como a sistemática não me foi favorável, necessário novas alterativas.
Encetei ao plano “C”. Sem uma solução técnica, nem o cancelamento do serviço, parti para a máxima: “vou procurar meus direitos”. Para tal necessitaria de prova. Nesse caso, o calvário se renovou. Com muita persistência, consegui, em tese, que me enviassem, por e-mail, o protocolo de atendimento, neste caso a gravação do diálogo com o (a) atendente. Para ingrata surpresa, o documento enviado não tinha qualquer áudio. Continha apenas o número do malfadado protocolo, coisa que eu já havia anotado inúmeras vezes.
Resolvi não percorrer mais o alfabeto. O plano “D” foi o reconhecimento da derrota. Fui vencido pelo cansaço. Reconheci que não sou páreo. Conformei-me. Mesmo que estivesse de posse das provas, considerando a morosidade da justiça, talvez levasse uns 10 (dez) anos para recuperar meus R$ 5.90 (cinco reais e noventa centavos), valor despendido na compra. Com muito esmero conseguiria reaver o montante em dobro (R$ 11.80), como manda o Código de Defesa do Consumidor.
Afora isso, deveria desembolsar, segundo cálculos, uns R$ 300 (trezentos) a título de custas judiciais. Ademais, qualquer reparação de danos morais resta abortada. A Sentença/Acórdão dirá tratar-se de meros aborrecimentos, frente aos quais não há nada a ser reparado. Mesmo o consumidor sendo espezinhado, rebaixado, diminuído frente a si mesmo, nada é devido. É quase legitimado um direito subjetivo das grandes corporações de lanharem aqueles que contratam seus serviços. A título exemplificativo seguem arestos:
APELAÇÃO CÍVEL. DIREITO PRIVADO NÃO ESPECIFICADO. INDENIZAÇÃO. CONSUMIDOR. BRASIL TELECOM. FALHA NA PRESTAÇÃO DE SERVIÇO. MERO DISSABOR. DANO MORAL NÃO CONFIGURADO. Em que pese o incômodo sofrido pelo autor, tal fato não desbordou dos limites comuns no enfrentamento de problemas da vida do cotidiano. Inviável, assim, a concessão da indenização vindicada, não passando os fatos narrados na inicial de meros dissabores ou aborrecimentos, incapaz de gerar dano de natureza moral. RECURSO DESPROVIDO (Apelação Cível Nº 70041205329, Décima Sétima Câmara Cível, Tribunal de Justiça do RS, Relator: Luiz Renato Alves da Silva, Julgado em 13/09/2012)
APELAÇÃO CÍVEL. DIREITO PRIVADO NÃO ESPECIFICADO. INDENIZAÇÃO. CONSUMIDOR. BRASIL TELECOM. NÃO CONTRATAÇÃO DE SERVIÇO. ARREC. TERC. DOAÇÃO LBV. REPETIÇÃO DE INDÉBITO DEVIDA. MERO DISSABOR. DANO MORAL NÃO CONFIGURADO. SUCUMBÊNCIA RECÍPROCA. REDISTRIBUÇÃO DOS ÔNUS SUCUMBENCIAIS. Em que pese o incômodo sofrido pela parte autora, tal fato não desbordou dos limites comuns no enfrentamento de problemas da vida do cotidiano. Inviável, assim, a concessão da indenização vindicada, não passando os fatos narrados na inicial de meros dissabores ou aborrecimentos, incapazes de gerar dano de natureza moral. RECURSO PARCIALMENTE PROVIDO. (Apelação Cível Nº 70049354178, Décima Sétima Câmara Cível, Tribunal de Justiça do RS, Relator: Luiz Renato Alves da Silva, Julgado em 30/08/2012)
Assim, a Justiça não se mostra o melhor caminho. É onerosa, lenta e, no mais das vezes, não faz jus ao nome.
Procurar o Procon é desaconselhável. É a Rainha da Inglaterra frente às grandes corporações. Um ente bem idealizado, mas estéril e decorativo. Precisa ser reformulado, abandonando-se o excesso de romantismo, de idealismo, munindo-se de ferramentas que venham a dar peso à esfera administrativa, especialmente nos contratos por adesão.
Buscar o Ministério Público[2] é deparar-se com um Poder com poder, mas de uma inércia absurda, cativo de ideias e correntes ultrapassadas. Nessa quadra, quando da abordagem dos abusos cometidos pelas pessoas jurídicas[3] e omissão do Fiscal da Lei, aduzi que:
Num ato quase psicodélico, cogitei a seguinte hipótese: se uma quadrilha ou bando que assalta bancos, ao invés de agir na informalidade, criasse uma pessoa jurídica, cujo objeto social fosse, suponhamos, a prestação de serviços gerais no ramo bancário. Na suposição, o objeto é lícito, não havendo óbice a sua constituição. Na sequência, supus mentalmente que esses mesmos integrantes fossem presos pelos assaltos praticados. Denunciados e, considerando o devido processo legal a todos conferido, suponhamos que aventassem em suas defesas a seguinte tese. Quem praticou eventual crime, com eventual desvio de finalidade, foi a pessoa jurídica e não as pessoas físicas; tais não se confundem. Há um véu que as separa. Eventual sanção deve ser direcionada àquela, limitando-se, neste caso, à esfera cível. Salvo melhor juízo, a argumentação seria motivo de chacota; uma oferenda à loucura. Agora, em um ato mais racional, suponhamos que esses mesmos meliantes depositarem valores (adquiridos de forma lícita) na mesma instituição que foi assaltada. Desses depósitos houve retenção e descontos estranhos ao contratado. Na espécie existiu, inicialmente, captação lícita de valores que, com o passar do tempo, pela retenção, convalidou-se em apropriação indébita (art. 168 CP). Em novo ato febril, forjei a seguinte cena: e se o mesmo Promotor de Justiça, que por um ato racional, denunciou o bando e não a pessoa jurídica a qual eles compunham, fizesse o mesmo com os representantes da instituição financeira? Não seria natural denunciar, a despeito do que aconteceu no primeiro exemplo, quem a compõe? Proceder de forma diversa não seria dar tratamento diferenciado a situações idênticas? Pode uma pessoa jurídica ser desconsiderada em um caso e não em outro? Sem margem para erro, o representante ministerial seria tachado, por muitos, de irracional. Contudo, é crível aceitar que pessoas se escondam atrás de instituições para apropriar-se, de forma indevida, de patrimônio alheio? Será que a toda e qualquer ação procedente na esfera civilista, condenando as instituições financeiras a devolver os valores solapados de forma ilegal, não deveria corresponder a uma ação penal, por apropriação indébita, em face dos seus componentes? Neste caso, o que falta para os doutos representantes do Ministério Público rasgarem o véu que separa a pessoa jurídica da pessoa física? Como tolerar que, por exemplo, um plano de saúde exija que seus médicos não solicitem determinados exames a um paciente, a fim de não onerar a prestadora? Pode existir crime mais odioso que isso? Eventual morte do paciente não seria um homicídio com dolo eventual? Será que eventuais reparações civis inibirão tais práticas? Será que quando um cidadão contrata prestação de serviços de internet e recebe, quanto muito 10% (dez por cento) do pactuado, ali não estaria ocorrendo um estelionato? Mais do que nunca, necessitamos de Fiscais da Lei que, de forma corajosa, caminhem para o âmbito penal. Que consigam abstrair que o instituto da pessoa jurídica tem apenas existência ideal, fruto de uma técnica jurídica utilizada para simplificar as relações institucionais/comerciais. A omissão que hoje ocorre acaba por dar vida a um ente inanimado. Enfim, é justo e necessário que o Ministério Público, através de seus representantes, “entrem em campo” e labutem em atos mais aprofundados, mormente no que toca à responsabilização penal de integrantes de pessoas jurídicas ligados a grandes corporações e, acima de tudo, consigam ver que, para fins penais, não há como separar os atos praticados pelas empresas daqueles praticados por seus representantes.
Outro fator bastante peculiar e que contribui para o insucesso da medida é o fator mediático. No jargão, tais atos “não dão ibope”. Aquilo que outrora virou característica própria do poder judicante, onde um Habeas Corpus era e é deferido ou indeferido, considerando o tratamento que a imprensa der ao caso (Ex. Caso Nardoni, Irmãos Cravinho, Caso Suzane Von Richthofen, Caso Eliza Samudio e outros), hoje contaminou o Ministério Público. Temáticas que estão em voga são atendidas com presteza, ao passo que aquelas do cotidiano, são relegadas. Certamente meu problema enquadra-se nos outros milhares que, como dito acima, já se encontram legitimados a ocorrer.
Enfim, enquanto não encontramos a solução, bebamos da literatura. Para apaziguar ou fecundar a alma, leiamos Vinícius de Moraes ou o Código de Defesa do Consumidor, este último um clássico a merecer compor a biblioteca da sonhada Pasárdaga, de Manoel Bandeira.
[1] Sonetos de Fidelidade
[3]BRESCOVIT, Leandro. A pessoa jurídica vence o Ministério Público por WO. Jus Navigandi, Teresina, ano 17, n. 3391, 13 out. 2012 . Disponível em: <http://jus.com.br/revista/texto/22803>. Acesso em: 22 out. 3912
Assessor Jurídico - Procuradoria Geral do Estado/RS,Caxias do Sul. Bacharel em Direito pela Universidade Federal de Pelotas.
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: BRESCOVIT, Leandro. Vinícius de Moraes e o Código de Defesa do Consumidor Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 27 out 2012, 05:15. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/artigos/32112/vinicius-de-moraes-e-o-codigo-de-defesa-do-consumidor. Acesso em: 25 nov 2024.
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