A Constituição da Republica de 5 de Outubro de 1988, seguindo a linha da tradição do constitucionalismo brasileiro, tratou da organização do Judiciário no Capitulo III do Titulo IV, dedicado à Organização dos Poderes, como um Poder do Estado.
As determinações do atual texto constitucional marcaram, como se percebe claramente ao compará-las às pretéritas, uma forte autonomia e independência do Judiciário, garantindo a ele autonomia administrativa e financeira (art. 99). Essas garantias tipicamente atribuídas às funções do Estado parecem ter despertado uma nova missão e vontade política dos seus integrantes, que, induvidosamente, experimentaram uma nova realidade dentro do Estado de Direito.
Afinal, juiz dependente seria a negação da própria justiça.
Ao Judiciário coube, portanto, em linhas bem gerais, a precípua tarefa de exercer a jurisdição, ou seja, de exercer a atividade preordenada à concreção terminal do direito[1]. A ele, destarte, cabe precipuamente a tarefa de aplicar a norma jurídica abstrata e geral ao caso concreto, resolvendo conflitos individuais e sociais, numa atuação voltada para pacificação social, que lhe é bem própria.
1.2 A tradição brasileira de desprestigio do Poder Legislativo e da ascensão do Judiciário.
No atual Estado moderno vem se percebendo a falta de solidez com relação às instâncias políticas. O cidadão, dessa feita, acaba se defrontando com o estiolamento dos ideais políticos-institucionais que haviam balizado o Estado moderno. Soma-se a isso a gritante falta de princípios éticos basilares da atuação política, verificados diariamente em todos meios de comunicação social quase que diariamente. De logo, inegável a desesperança que circunda toda a população brasileira, que não se vê, ainda que minimamente, atendida em suas necessidades humanas.
Tudo sso causa, naturalmente, certa desilusão com a política majoritária, em razão da crise patente de representatividade e de funcionalidade dos parlamentos em geral.
De conseguinte, percebe-se uma clara transferência de expectativa, até então dirigiria aos seus representantes políticos, para o Judiciário, com a finalidade de resgate dos ideais de Justiça. Aposta-se, dessa forma, no juiz como o principal responsável pela efetivação e garantia dos direitos, como também pela recuperação da democracia, onde a força da vontade popular dita os parâmetros de atuação do Estado.
O Judiciário, dentro desse cenário, acabaria por ser a última centelha de esperança dos cidadãos, o que implica dizer que as decisões judiciais, notadamente do Supremo Tribunal Federal, como intérprete maior da Constituição, são consideradas como a real possibilidade de reabilitação da ética e da plena concretização dos direitos fundamentais.
Quando se fala em ética, já que o tema de direito fundamentais se examinará mais adiante, fica evidente que os atores políticos, muitas vezes, preferem que o Judiciário seja a instância decisória de certas questões polêmicas, em relação às quais exista desacordo moral razoável na sociedade. Afinal tais decisões impõem consequências e nunca agradam todos os envolvidos, gerando desgaste perante os seus eleitores.
Logo, no Judiciário, onde seus membros não são conduzidos mediante o voto popular, seria o ambiente mais adequado para as figuras políticas, que bem procuram aparecer perante o seu eleitorado. Assim se verificou em temas recentes e polêmicos, como uniões homoafotetivas, interrupção de gestação ou demarcação de terras indígenas.
Curioso ver, em outro viés, a repercussão da atuação positiva do Supremo Tribunal Federal no campo político. Vejamos o caso recente do julgamento do “mensalão”, onde houve claro destaque da figura do presidente daquela Corte, que externou uma postura determinada a condenar as figuras políticas envolvidas, - aqui não se pretende adentrar no mérito do julgamento.
De imediato se viu uma aclamação popular pela figura daquele ministro, tendo sido, inclusive, levantada a possibilidade de sua filiação partidária e disputa pela presidência da República.
Como já registramos, esse fato só deixa ainda mais claro o desprestígio que vivencia o Legislativo, carecendo o povo brasileiro de figuras políticas que se proponham, verdadeiramente, a atender e materializar os anseios populares – note-se que o judiciário, nesse aspecto, sequer tem a sua ação voltada para atender anseios populares, mas sim a aplicação da lei, agrade ou não o resultado de seu julgamento; esse papel é, ou deveria ser, desempenhado pelos eleitos como representantes do povo, não por magistrados.
É de refletir que se de um lado o enfrentamento de questões polêmicas pode despertar indignação coletiva, de outro pode, quando o desfecho é positivo para o cidadão, renascer a credibilidade e esperança do sistema representativo. Isso é o que devia servir de reflexão para todos os agentes políticos eleitos nesse país.
De outro lado, não se pode deixar de registrar que na história política brasileira sempre se constatou uma disputa pelo princípio da divisão de poderes e esvaziamento ou aprofundamento do conteúdo da soberania popular. O Legislativo tradicionalmente sempre gozou de desprestígio em face dos demais poderes, o que iria de encontro aos ditames democráticos e ao legado da filosofia racionalista que enxergam naquele o mais legítimo representante da soberania popular.
Contudo, o que vem se percebendo é a alternância, ou até mesmo a substituição, da supremacia que sempre foi do Executivo, para o Judiciário, principalmente pelo exercício da jurisdição constitucional.
No sistema americano, desde o emblemático caso Marbury X Madison, que garantiu o poder da Suprema Corte dos Estados Unidos, ainda que sem previsão da Constituição, de declarar nulas as normas constitucionais, a supremacia da constituição deu lugar à supremacia judicial, e, diferentemente da tradição da Europa continental, na qual a lei é exclusivamente produto do legislador, na tradição americana o juiz é uma fonte independente do direito e um freio com as leis do legislador.
O Brasil, influenciado mais diretamente pelo sistema americano, incorporou à sua tradição, dessa sorte, o desapego pela soberania popular, o que ensejou a supremacia do Executivo e do Judiciário, em detrimento do Legislativo, o que explicaria em parte o déficit de legitimidade de origem da jurisdição constitucional brasileira.
Cynara em obra muito interessante sobre o tema adverte o seguinte:
Esse desprestígio do Legislativo, contudo, não é salutar à democracia, pois, uma vez que nesta o povo é o legítimo titular da soberania, seus representantes, portanto, é que integram a instancia de poder que possui mais legitimidade para atuar em defesa de seus interesses e direitos.[2]
Não há dúvidas, e aqui se põe o propósito de todo o trabalho, que essa ascensão e supremacia do Judiciário sobre a função legiferante, notadamente por essa ser a legítima expressão da vontade dos detentores do Poder, comprometem o equilíbrio estatal, na medida em que retira cada vez mais daquela a sua legitimação dentro da estrutura organizacional do Estado, substituindo a vontade popular pela subjetividade dos julgadores, que transferem aos seus julgados suas próprias experiências e convicções íntimas, ainda que absolutamente alheias à normatividade posta – essa realidade, felizmente, ainda não é regra.
Acaba, portanto, prevalecendo, ao menos na mentalidade dos magistrados, a ideia de poder fazer tudo que sua íntima convicção imaginar e determinar, sob a falsa premissa de que pode decidir conforme sua consciência - no caso da concessão de benefícios previdenciários, que é o objeto precípuo do trabalho, a convicção é de que pode e deve fazer justiça social a qualquer custo.
Eis, sem dúvida, o grande desafio a ser vencido pelo sistema de tripartição de poderes, tendo em conta que seu espírito é exatamente evitar a concentração de “poderes” em único ente; no caso brasileiro, o Judiciário vem se sobrepondo, lenta e estrategicamente, sobre o Executivo, quando interfere na opção do gestor da coisa pública, como veremos adiante, e sobre o Legislativo, quando se substitui à lei.
É bem verdade, não podemos deixar de dizer, que essa exacerbação da atuação do Judiciário deve-se também ao reconhecimento da importância de um Judiciário forte e independente, como elemento essencial para as democracias modernas. De consequência, teria havido uma vertiginosa ascensão institucional de juízes e tribunais, assim na Europa como em países da América Latina, particularmente no Brasil. Essa razão, entretanto, para nós não justifica essa dominação crescente do Judiciário.
No Brasil, aliás, o fenômeno assumiu proporção ainda maior, em razão da constitucionalização abrangente e analítica – constitucionalizar é, em última análise, retirar um tema do debate político e trazê-lo para o universo das pretensões judicializáveis – e do sistema de controle de constitucionalidade vigente entre nós, em que é amplo o acesso ao Supremo Tribunal Federal por via de ações diretas. [3]
Por esses alinhados fatos e razões, não se pode ignorar a conclusão de que o Judiciário, atualmente, superou a sua típica função constitucional, incorporando na novel sistemática do Estado, outras, de sorte a manter a ordem e a garantia dos direitos fundamentais.
1.3 – Funções do Poder Judiciário moderno
Pois bem. Feitas as observações preliminares, indispensáveis para tratar do tema, analisaremos as mais destacadas funções do Poder Judiciário no atual estágio do nosso sistema constitucional.
Eugenio Raúl Zaffaroni, em sua obra sobre o tema, identifica três funções do Poder Judiciário contemporâneo: decidir os conflitos, controlar a constitucionalidade das leis e realizar seu autogoverno.[4]
Luiz Flávio Gomes, indo mais além, amplia o leque, afirmando serem cinco as funções do Poder Judiciário:
1. a) aplicar contenciosamente a lei aos casos concretos;
2. b) controlar os demais poderes;
3. c) realizar seu autogoverno;
4. d) concretizar os direitos fundamentais;
5. e) garantir o Estado Constitucional Democrático de Direito.
Tais funções estão relacionadas à construção de um modelo democrático e independente de Poder Judiciário – esperamos que essa independência não resulte ou se confunda em usurpação de poderes. Vejamos individual e rapidamente cada uma delas.
1.3.1 - Aplicar Contenciosamente a Lei aos Casos Particulares
Trata-se da mais antiga função do Poder Judiciário. Ao juiz, não se reservava outra tarefa que não fosse identificar no ordenamento jurídico a norma incidente, aplicá-la ao caso concreto e solucionar o litígio levado à sua apreciação.
Essa concepção recebeu marcante influência do pensamento de Montesquieu, para quem os juízes nada mais eram do que “a boca que pronuncia as palavras da lei; são seres inanimados que não podem moderar nem sua força, nem seu rigor”.
É claro que essa concepção não mais vigora modernamente, por simplificar o exercício da jurisdição a um fenômeno estritamente mecânico e reduzir a figura do magistrado a mero aplicador da lei (como veremos mais adiante, esse papel é apenas uma das ocupações institucionais do magistrado).
Para CARLOS MAXIMILIANO, um dos maiores expoente da ciência hermenêutica,
a aplicação do direito consiste no enquadrar um caso concreto em a norma jurídica adequada. Submete às prescrições da lei uma relação da vida real; procura e indica o dispositivo adaptável a um fato determinado. Por outras palavras: tem por objeto descobrir o modo e os meios de amparar juridicamente um interesse humano.[5]
Pedro Lessa, em 1915, sintetizou bem a questão: “O poder judiciário é o que tem por missão aplicar contenciosamente a lei aos casos particulares”.
Hodiernamente, não se pode negar, que com as demandas plurissubjetivas, onde se buscar dar mais celeridade efetivada ao processo, aplicar a lei contenciosamente aos casos particulares continua sendo missão do Poder Judiciário, rendendo ensejo a uma clara ampliação de sua missão constitucional.
A função ora examinada, dado o propósito do trabalho, não pede maiores aprofundamentos, pois se trata da função mais elementar e tradicional do Poder Judiciário, e, portanto, não aprofundaremos alguns conceitos e elementos que circundam essa temática. Mais adiante, quando adentramos a questão da analogia aplicada no Amparo social (art. 34 do Estatuto do Idoso), faremos uma breve introdução aos meios de interpretação e integração da norma jurídica.
1.3.2 - Controlar os Demais Poderes - a chamada “Judicialização da Política”
A doutrina da tripartição de poderes concebeu Legislativo, Executivo e Judiciário independentes e harmônicos entre si. Nessa arquitetura de poder, ou de funções, reservou-se ao Poder Judiciário, além da tarefa de solucionar os conflitos levados à sua apreciação, como já se registrou anteriormente, o papel de controle sobre os demais Poderes que integram as funções estatais.
É claro, como é de comezinho conhecimento para os estudiosos do Direito, esse controle é ditado pelo texto constitucional, que, de modo a ensejar reciprocidade de controle, desenhou uma estrutura em que, harmonicamente e de forma a evitar concentração de “poder” numa única instituição, se permitia a integração das ditadas funções estatais.
Como se sabe, vale o registro, a ideia da separação de poderes era, grosso modo, de evitar a concentração absoluta de poder nas mãos do soberano, comum no Estado absoluto que precede as revoluções burguesas, fundamentando-se com as teorias de John Locke e de Montesquieu. Imaginou-se, assim, um mecanismo para evitar esta concentração de poderes e estabelecer uma espécie de controle mútuo, que garantia um equilíbrio dentro do sistema.
Nesse contexto, a Constituição de 1988 atribuiu ao Poder Judiciário legitimidade para controlar o arbítrio dos demais poderes, ou seja, trazer as outras funções para dentro de sua seara de atuação e legitimidade. Nesse sentido, resumidamente, caberia aos juízes: o poder e o dever de anular atos administrativos ilegais; invalidar atos praticados com abuso de poder; declarar a inconstitucionalidade de leis e atos normativos.
Ensina Eugênio Zaffaroni faz precisa anotação quanto a essa função judicial, afirmando que:
Certamente que o judiciário presta o serviço de resolver conflito entre pessoas, mas também presta outro serviço, que consiste em controlar que, nessas realizações normativas entre Estado e pessoas, o primeiro respeite as regras constitucionais, particularmente quanto aos limites impostos pelo respeito à dignidade da pessoa humana. (ZAFFARONI, 1999, p.107)
Podemos, assim, ante a clara determinação constitucional, concluir que todos os atos lesivos (por ação ou omissão) praticados pelos demais poderes estão sujeitos ao controle jurisdicional. Nenhuma entidade pública, assim como nenhuma autoridade ou agente público, está imune a esse controle.
Destarte, o Controle judicial é aquele exercido privativamente pelos órgãos do Poder Judiciário, sobre os atos administrativos do Poder Executivo, do Legislativo e do próprio Judiciário quando este realiza atividades administrativas.
Em regra, trata-se de um controle a posteriori, de legalidade, adstrito à conformidade do ato com a norma legal que o rege. É, sobretudo, um meio de preservação dos direitos individuais, uma vez que visa impor a observância da lei em cada caso concreto, quando reclamada por seus beneficiários.
No nosso sistema jurisdicional, consagrado pelo preceito constitucional de que não se pode excluir da apreciação do Poder Judiciário qualquer lesão ou ameaça de direito, individual ou coletivo (art. 5° XXXV CF/88), a Justiça Ordinária tem a faculdade de julgar todo ato da administração praticado por agente de qualquer órgão ou Poderes do Estado, limitando-se apenas quanto ao objeto do controle, que há de ser unicamente a legalidade, sendo-lhe vedado, a rigor, pronunciar-se sobre a conveniência, oportunidade ou eficiência do ato em exame, ou seja, sobre o mérito administrativo.
De outro lado, se percebe o exercício desse controle além das barreias estritamente de legalidade. Luiz Werneck Vianna, citando Antoine Garapond, aponta as razões de uma maior participação do Judiciário na vida política, razões que bem se amoldam à realidade brasileira:
Da perspectiva de Garapon, o redimensionamento do papel do Judiciário nas sociedades contemporâneas seria conseqüência da ruína do edifício mental e institucional da modernidade, revestindo-se dos sombrios contornos de uma crise monumental do paradigma político da democracia e da sua expressão dogmática – a soberania popular - , construído a partir da Revolução Francesa. Assim, segundo ele, o Judiciário tem avançado o campo da política onde prosperam o individualismo absoluto, a dessacralização da natureza simbólica das leis e da ideia de justiça, a deslegitimação da comunidade política como palco da vontade geral, a depreciação da autonomia cidadã e sua substituição pela emergência do cidadão-cliente e do cidadão-vítima, com seus clamores por proteção e tutela, a racionalidade incriminadora e, afinal, o recrudescimento dos mecanismos pré-moderrnos de repressão e manutenção e da ordem.[6]
Daí mister se reconhecer que o Judiciário acaba por exercer poder político mesmo dentro da sistemática de separação de poderes. Resta saber em que sentido essa atividade ganharia feição política. Dalmo de Abreu Dallari sustenta que “Os juízes exercem atividade política em dois sentidos: por serem integrantes do aparato de poder do Estado, que é uma sociedade política, e por aplicarem normas de direito, que são necessariamente políticas”. [7]
Acredito que essa feição política hoje vai mais além desses dois sentidos apontados pelo renomado autor. Assim sendo, o fenômeno que desponta no Judiciário Moderno é o apelidado de “judicialização da política”. Vejamos, rapidamente, o que ele representa e a sua relevância para o desenvolvimento do presente trabalho.
Sigamos, então. Não é fácil imaginar atualmente alguma questão política, moral, econômica, científica ou ambiental que não possa ser levada à apreciação pelo Supremo Tribunal Federal. Portanto, esse contexto de uma presença mais efetiva do direito cria, como conseqüência lógica, um processo de judicialização de demandas sociais, preocupadas com a concretização do amplo elenco de Direitos Fundamentais. As conseqüências para a teoria processual não são pequenas. Tal processo é denominado, como antevemos, de “judicialização da política”. Ele consiste em uma nova atribuição de papéis à prestação jurisdicional, com o objetivo de resolver conflitos sociais em meio a uma sociedade repleta de novas formas de proteção jurídica.
A análise desse quadro do direito pós-1945 mereceu de autores como Tate e Vallinder (1997, p.13), de modo pioneiro, o seguinte conceito de judicialização da política: “Quando falamos de uma expansão global do poder judicial, referimo-nos a infusão de um processo decisório judicial e de procedimentos típicos das Cortes em uma arena política em que os mesmos não foram previamente inseridos”.
Deste modo, fica fácil perceber, a judicialização da política seria marcada por dois processos distintos e não necessariamente relacionados, assim descritos por Vallinder:
Assim, a judicialização da política pode significar normalmente ou: 1) a expansão da jurisdição das Cortes ou dos juízes ao âmbito dos políticos e/ou administradores, que é a transferência dos direitos de tomada de decisão advindos da legislatura, dos Ministérios, ou do serviço civil das Cortes ou, ao menos, 2) a propagação dos métodos judiciais de tomada de decisão para além da jurisdição apropriada.8 (TATE, VALLINDER, 1997. p. 13).
No que pertine ao caso e ambiente brasileiro, além de avanços dados pela aplicação do termo de judicialização da política por parte de estudiosos como o já citado Luís Werneck Vianna (VIANNA et al, 1999), cabe destacar, também, nesse ponto, a contribuição de Ernani de Carvalho (2004). Este cientista político elenca seis condições para o surgimento e a consolidação do fenômeno estudado, a saber:
a) - Democracia
b) - Separação de Poderes
c) - Direitos Políticos
d) - O Uso dos Tribunais pelos Grupos de Interesse
e) - O Uso dos Tribunais pelos Partidos de Oposição
f) - Inefetividade das Instituições Majoritárias
Ernani Rodrigues de Carvalho, a seu turno, em profundo e criterioso estudo, utilizou-se dessa classificação e fez a aplicação desse quadro condicional ao caso brasileiro, concluindo que
O mapeamento das condições políticas em torno do fenômeno da expansão do poder judicial permite dizer que quase todas as condições estão presentes no caso brasileiro, embora, algumas condições, apesar de formalmente estabelecidas, não se tenham mostrado realidades factíveis.[8]
A judicialização, portanto, é um fenômeno bastante complexo e possui diferentes dimensões. De um ponto de vista institucional, a judicialização da política define-se como um processo de transferência decisória dos Poderes Executivo e Legislativo para os magistrados e tribunais, que passam, dentre outros temas controversos, a revisar e implementar políticas públicas e rever as regras do jogo democrático.
Em relação ao caso brasileiro, oportuno mencionar fatores históricos como a redemocratização do país e a promulgação de um texto constitucional abrangente no tocante à defesa e promoção dos direitos fundamentais, responsável, ainda, pela determinação de inúmeros comandos positivos dirigidos aos Poderes Executivo e Legislativo no sentido de sua concretização normativa.
Ao mesmo tempo, nesse período conturbado de redemocratização, grandes expectativas foram depositadas no Poder Judiciário, que passou a ser vislumbrado por muitos como o “guardião das promessas”[9] e o principal responsável pela efetivação da Constituição em um contexto de suspeita e de descrédito em relação aos poderes democraticamente eleitos, como já se abordou anteriormente.
De um ponto de vista mais sociológico, é importante destacar o crescimento da litigância judicial em sociedades marcadas por um Estado social que não cumpriu suas promessas por meio da implementação de políticas públicas universais, estimulando, assim, o acesso aos tribunais como última garantia para a obtenção das prestações positivas previstas pela Constituição. Assim, haveria uma relação entre o ocaso das pretensões transformadoras do Estado social e o aumento da judicialização das relações sociais, transformando cidadãos em clientes de prestações estatais individualizadas.
Há, ainda, fatores propriamente políticos que fomentam a tão comentada judicialização da política. Cabe citar, por exemplo, a expansão do uso dos tribunais por grupos de interesse e por agremiações partidárias derrotadas nos processos deliberativos parlamentares. Os tribunais tornam-se, assim, parte do jogo político e um recurso estratégico importante para a implementação, em muitos casos politicamente controvertidos, de um verdadeiro terceiro turno de deliberação e votação.
Some-se a isso a busca pela legitimação do Supremo Tribunal Federal e a superação dos seus limites de atuação, de modo claro que esse propósito fica claro no voto do Ministro Gilmar Ferreira Mendes na ADI 1351-DF (p. 53):
(...) é possível antever que o Supremo Tribunal Federal acabe por se livrar do vetusto dogma do legislador negativo e se alie à mais progressiva linha jurisprudencial das decisões interpretativas com eficácia aditiva, já adotadas pelas principais Cortes Constitucionais européias. A assunção de uma atuação criativa pelo Tribunal poderá ser determinante para a solução de antigos problemas relacionados à inconstitucionalidade por omissão, que muitas vezes causam entraves para a efetivação de direitos e garantias fundamentais assegurados pelo texto constitucional.
Dessa sorte, o Supremo Tribunal Federal, nosso arremedo de Corte Constitucional, hoje se encontra diante de uma opção existencial. Um primeiro caminho – que provavelmente continuará a ser trilhado – aponta para um aumento da tensão entre os poderes com a mitigação dos tradicionais postulados do legislador negativo, da separação dos poderes e da suposta “neutralidade” política do Judiciário.
Como se pode ver, o Judiciário brasileiro experimenta, diante de todo movimento neoconsitucionalista e da conseqüente e inegável força normativa constitucional, o cenário propício para uma atuação concretizadora dos direitos fundamentais e da proteção aos indivíduos, seja perante o Estado, seja em relações privadas.
Contudo, e essa questão se revela basilar dentro da proposta do trabalho, até que ponto pode se considerar legítima essa suposta ação de proteção e efetivação de direitos? A indagação é pertinente quando se verifica, rotineiramente, fundamentações judiciais escudadas na genérica assertiva de proteção de direitos fundamentais.
É bem verdade que saber quando a questão é unicamente política, de sorte a afastar a atuação do Judiciário, é tarefa complexa. Muito difícil, e até mesmo improvável que se consiga delimitar quando se está diante de uma matéria exclusivamente política. Costuma-se, didaticamente, exemplificar decisão exclusivamente política a do Decreto de Intervenção nos Estados ou de celebração de tratados internacionais; nessas não poderiam se imiscuir o Judiciário. Contudo, na dinâmica da vida moderna e da complexidade das relações sociais essa identificação não é simples.
O Supremo Tribunal Federal parece ter elegido o critério de que para análise de questões potencialmente políticas deve-se verificar a eventual ofensa do ato, seja exclusivamente político ou não, a direito privado. Assim, uma vez violado um direito assegurado pela Constituição, então, para a proteção de tal direito será legítima a ação do Judiciário.
Ministro Gilmar Mendes resume a questão nos seguintes termos:
Assim, alternando momentos de maior e menor ativismo judicial, o STF, ao longo de sua história, tem entendido que a discricionariedade das medidas políticas não impede o seu controle judicial, desde que haja violação a direitos assegurados pela Constituição.[10]
Acordamos com essa perspectiva apontada pelo indigitado ministro. A questão política, de per si, não pode significar omissão do julgador e chancela da atuação canhestra de outra função constitucional. Havendo ofensa a direitos fundamentais a pronta e rápida atuação do Judiciário se impõe. E é nesse único propósito, quando diante da questão política, é que deve atuar o Judiciário: correção de ofensas a direitos privados.
Não pode, de outro lado, substituir a opção política do legislador, ou do Administrador, pela sua; e eis o que vimos,na prática previdenciária com muita insistência. E isso não podemos reputar por normal.
Como se pode antever no excerto do voto do Ministro Gilmar Mendes, o Judiciário já caminha a passos largos para, em primeiro lugar, suprir eventuais omissões executivas e legislativas; nesse aspecto, afigura-se, até certo ponto legítima e afirmativa tal postura judicial, afinal o próprio texto constitucional previu remédios – podemos citar o Mandado de Injunção e A ADI por omissão- ,para sanar tais ausências normativas e regulamentares; o risco é a solução dada pela resposta judicial nos usos de tais instrumentos, como, p. ex, a criação abstrata e genérica de comando normativo, fazendo o julgador papel exclusivamente destinado aos representantes do poder.
Enfim, a nossa inquietação e inconformismo residem é na postura judicial de ignorar, sem maiores cerimônias, a literalidade da lei sob o único pretexto de garantir direitos fundamentais ou distribuição de justiça social. Afinal, ignorar a lei representa, em linhas gerais, desrespeitar a vontade popular e compromete, de outro lado, todo o estudo técnico que precedeu a edição de tal instrumento normativo, principalmente quando emana do Executivo e diz respeito à despesas públicas.
No campo previdenciário, a atuação supostamente efetivadora de direitos ganha contornos inimagináveis; o desapego à lei chega às baias do absurdo, onde há uma clara substituição do produto gestado dentro do órgão democrático, ainda que com seus defeitos já sabidos, pela convicção íntima do julgador, e como tal absolutamente subjetiva – e quem controlaria a subjetividade de milhares de juízes?
Ao judiciário cabe deixar de aplicar a lei quando entender que a mesma padece de vícios de inconstitucionalidade; eis a providência que lhe cabe tomar. Não pode, entretanto, ao nosso ver, simplesmente deixar de cumpri-la por entender que ela não é a melhor solução para o caso concreto. Ignora o julgador, que a lei, notadamente nas temáticas de gastos públicos, e dentro desse se insere o ramo previdenciário, nosso objeto de estudo, é resultado de estudos técnicos e orçamentários – por óbvias razões, afinal ninguém pode gastar o que não tem.
Aliás, como veremos mais adiante, no estudo de caso que pretendemos levar a efeito, há clara determinação de que nenhum gasto pode ser feito sem a prévia indicação da fonte orçamentária, de sorte a não comprometer a higidez das receitas públicas. Esse fato é gritante, mas pouco aprofundado e sem relevância na prática forense.
Interessante a observação de Frank Michelman quanto à posição do Judiciário em face de concretização de direitos sociais:
Na constitucionalização de direitos sociais usualmente o Judiciário é forçado a uma infeliz escolha entre a usurpação e a abdicação, opção da qual não se consegue fugir sem embaraço ou descrédito. De um lado, é dito, está a escolha judicial em emitir ordens positivas, numa pretensiosa, inexperiente e provavelmente vã, mas apesar diso, ressentida tentativa de rearranjo do gerenciamento das mais básicas prioridade em termos de recursos públicos contra a vontade política predominante. De outro lado, encontra-se a escolha judicial que pode depreciar perigosamente toda eficiacia dos direitos e dos princípios do Estado Democrático de Direito cedendo aos Poderes Executivo e Legislativo um incontrolável privilégio no que diz com a negação do direito constitucionalmente declarado.[11]
O autor acaba por arrematar, concluindo que
A objeção é completamente exagerada. A constitucionalização dos direitos e garantias sociais permite uma crítica ambas formas de ação judicial na promoção das metas que esses direitos representam. O fato de os direitos sociais criarem exigência orçamentárias e exigirem uma ação governamental e não apenas permitirem sua abstenção não os torna radicalmente diferentes, do ponto de vista jurídico, de outros direitos constitucionalmente protegidos, como o direito a propriedade (...)
De certa forma, assiste razão ao autor quanto ser melhor a opção pela tentativa do Judiciário, num caso concreto, procurar efetivar um direito sonegado por outros poderes.
Claro que a omissão proposital ou não de algum dos poderes constituídos não poderia ser inatacável perante o Judiciário. Esses casos são extremos que podem e devem ser remediados pelo juiz. Porém não é desse tipo de postura judicial contra qual nos opomos. Nem poderia ser diferente, o que se traz à reflexão é a atuação judicial além e, por vezes, contra, o instrumento legítimo para regular o caso concreto. Ou seja, a lei é bastante por si para atingir o seu propósito normativo; não carece, pois, de qualquer intervenção judicial, salvo, é claro, para reputá-la por inconstitucional, quando aí poderá deixar de aplicar a lei de regência. Não estamos aqui a nos insurgir contra a intervenção judicial em casos de gravosa omissão ou ofensa a direitos individuais perpetrados pelos outros poderes, mas sim de assunção flagrantemente inconstitucional da função legiferante.
Por essa e outras razões, há forte e consistente resistência a essa supremacia judiciária, que, como já se ponderou, vem preenchendo espaços vazios deixados pelos outros Poderes. Luiz Moreira, traduzindo precisamente nosso pensamento, adverte:
A judicialização da política alcançou patamares alarmantes no Brasil. Sob o argumento de que vivemos sob uma democracia de direitos, o sistema de justiça passou a tutelar todas as áreas, interferindo em políticas públicas, imiscuindo-se no mérito do ato administrativo, desbordando de suas competências para envolver-se com assuntos que violam assim a autonomia dos poderes políticos, tudo submetendo ao jurídico. Essa tentativa de colonização do mundo da vida pelo jurídico se realiza mediante um alargamento do espectro argumentativo, desligando a argumentação jurídica de qualquer vinculação à lei.[12]
1.3.3 Realizar seu Autogoverno
Em razão do princípio da independência entre os poderes, o Poder Judiciário tem autonomia para realizar seu autogoverno. Essa autonomia, prevista na Constituição Federal (art. 99), tem tripla dimensão: administrativa, financeira e funcional.
Autonomia administrativa. A autonomia administrativa do Poder Judiciário é uma conquista democrática. Ela funciona como garantia do próprio poder, dos seus juízes e, sobretudo, dos direitos fundamentais das pessoas.
A previsão constitucional dessa autonomia garante ao Poder Judiciário o direito de praticar os atos necessários à sua própria organização. Independe, para organizar-se, de qualquer autorização dos demais poderes.
A autonomia administrativa do Poder Judiciário está materializada na atribuição de competências privativas aos tribunais, tanto superiores quanto inferiores, estaduais e federais.
Autonomia financeira. A Constituição, por outro lado, assegurou autonomia financeira ao Poder Judiciário (art. 99, §§ 1º e 2º). Nesse sentido, atribuiu competência aos tribunais para elaborarem suas respectivas propostas orçamentárias, levando em consideração os limites estipulados, conjuntamente, com os poderes Legislativo e Executivo na lei de diretrizes orçamentárias. Nesse sentido, todos os tribunais interessados serão ouvidos para a elaboração da proposta orçamentária do Poder Judiciário. Em seguida, após a aprovação dos respectivos tribunais, a proposta orçamentária será encaminhada: a) ao Congresso Nacional, no âmbito da União, pelos presidentes do Supremo Tribunal Federal e dos tribunais superiores (STJ, TSE, TST e STM); b) às Assembléias Legislativas, no âmbito dos Estados federados, pelos presidentes dos respectivos Tribunais de Justiça; c) à Câmara Legislativa, no âmbito do Distrito Federal, pelo presidente do Tribunal de Justiça (art. 99, § 2º., incisos I e II).
Observe-se, do ponto de vista material, não haver autonomia administrativa, se a autonomia financeira não estiver garantida.
Autonomia funcional. Os membros do Poder Judiciário – juízes, desembargadores e ministros – têm autonomia para exercer suas funções. Trata-se de uma garantia constitucional não apenas dos magistrados, mas também dos litigantes e da sociedade. No exercício da função jurisdicional, os magistrados não podem sofrer ingerência de outro poder ou de outras pessoas. O juiz de direito, por exemplo, não está obrigado a decidir, sobre determinada matéria, na mesma linha de entendimento do Tribunal de Justiça. Terá que seguir, no entanto, o entendimento do Supremo Tribunal Federal, desde que este tenha editado uma súmula de efeito vinculante.
Registre-se, no entanto, que a Emenda Constitucional nº. 45, de 8 de dezembro de 2004, atribuiu competência ao Conselho Nacional de Justiça para controlar o cumprimento dos deveres funcionais dos juízes (art. 103-B, § 4º.). Tal inovação constitucional poderá ensejar a violação, por parte do Conselho, da autonomia funcional dos magistrados.
1.3.4 Proteger os Direitos Fundamentais
Pode-se afirmar que, neste início do século XXI, encontra-se em curso a era dos direitos humanos fundamentais. Sem dúvidas um dos temas mais tratados na área jurídica. Por essa razão, tais direitos têm se constituído no objeto central das preocupações dos governos e da coletividade em geral, ganhando grande destaque dentro do nosso sistema constitucional.
No Estado do bem-estar social – no período de pós-guerra, desenvolveu-se uma pluralidade de novas necessidades e de novos direitos fundamentais para sobrevivência humana, cuja satisfação exige a atuação dos poderes estatais. Superou-se o até então aplaudido liberalismo, onde o Estado deveria manter-se distante, garantido a individualidade de seus indivíduos, por um sistema em que o Estado deveria fazer-se presente e com atuação de atendimento da grande gama de necessidades surgidas, notadamente pelo caótico e cruel quadro de pós-guerra.
Hodiernamente, sob o influxo da moderna ordem constitucional brasileira, houve o reconhecimento de uma normatividade potencializada dos direitos fundamentais que, aliada à sua aplicação imediata e vinculação direta, passou a exigir que o Estado assuma uma posição de proteção, respeito e promoção desses direitos.
Dessa feita, o Estado não apenas deve se abster de lesar bens jurídicos fundamentais, mas também deve atuar positivamente, protegendo-os de quaisquer ameaças, inclusive as que provenham de particulares. É mesmo interessante o fato de quem mais descuida dos direitos fundamentais é também quem deve ser um dos principais agentes de proteção desses direitos.
Essa obrigação constitucional que o Estado – em todos os seus níveis de poder – deve observar é o chamado “dever de proteção”, desenvolvido pelo Tribunal Constitucional alemão, ao julgar o caso envolvendo a discussão sobre a constitucionalidade de uma lei de 1974 que descriminalizava o aborto.
Afinal, os direitos fundamentais são capazes de gerar pretensões subjetivas, exigíveis na via judicial, independentemente de qualquer regulamentação do texto constitucional, cabendo ao Poder Público (inclusive, o Poder Judiciário) adotar medidas para que o direito fundamental seja protegido e efetivado da melhor maneira possível.
Em resumo, cabe, portanto, a todas as instâncias estatais prover tais necessidades ou criar as condições necessárias, para elas poderem ser atendidas.
Trazendo a questão para nossa realidade, ou seja, da clara retração do Poder Executivo, bem como da inércia do Poder Legislativo, para se atender satisfatoriamente essas demandas, percebemos que tem restado às pessoas a busca, principalmente, de um provimento jurisdicional, abrindo-se espaço para a crescente e destacada atuação ascensão do Judiciário.
A justiciabilidade dos direitos fundamentais, aliás, é uma exigência da própria Declaração Universal dos Direitos Humanos, de 1948, que, em seu artigo 8º, estabelece a necessidade de se permitir a proteção judicial dos direitos fundamentais: “todo homem tem direito a receber dos tribunais nacionais competentes remédio efetivo para os atos que violem os direitos fundamentais que lhe sejam reconhecidos pela Constituição ou pela lei”.
No Brasil, a proteção judicial dos direitos fundamentais encontra-se no art. 5º, inc. XXXV, onde está expresso que “a lei não excluirá da apreciação do Poder Judiciário lesão ou ameaça de lesão a direito”.
Desse modo, atualmente, tanto a doutrina quanto a jurisprudência defendem que a efetivação de toda norma constitucional pode ser exigida judicialmente. Em nenhuma hipótese, o Judiciário pode ficar impotente diante de um manifesto desrespeito aos direitos fundamentais, pois se estaria, caso contrário, pondo em cheque o próprio Estado de Direito.
Fixada essa premissa, como costuma ponderar a doutrina, quanto maior for a distância entre o texto normativo e a realidade maior será a necessidade de se permitir que o Judiciário participe do processo de implementação dos direitos constitucionalmente garantidos, compartilhando com os demais poderes a responsabilidade pela realização dos objetivos socioeconômicos determinados pelo constituinte. Para nós o que preocupa é o fato de caber unicamente aos juízes determinar esse grau de distanciamento.
Desse modo, o juiz pode buscar a concretização de todas as normas constitucionais mesmo - e principalmente - diante da omissão do legislador, embora a situação desejável seja que os direitos fundamentais sejam respeitados independentemente de qualquer intervenção judicial.
De conseqüência, caso o legislador nada faça para implementar os direitos fundamentais, é perfeitamente razoável aceitar que o Judiciário dê a melhor concretização possível à norma constitucional, já que é papel dos juízes, enquanto defensores da supremacia da Constituição, zelar para que os direitos constitucionais sejam efetivados da melhor forma possível.
A proteção e atuação deve ser ampla, aferindo, eventualmente, se as políticas públicas estão sendo desenvolvidas e, mais do que isso, se estão atingindo os objetivos previstos na Constituição.
Não podemos deixar de registrar, novamente, o que já pontuamos no item anterior: é preciso temperamentos quando se diz que o Judiciário pode intervir e ditar políticas públicas, consoante já expomos anteriormente. Esse discurso acalorado da força e missão dos juízes é perigoso. Ingo Sarlet, um dos estudiosos sobre a temática em exame, abordando mais precisamente sobre a efetivação de direitos fundamentais sociais, bem pondera:
Além disso, assume caráter emergencial uma crescente conscientização por parte dos órgãos do Poder Judiciário de que não apenas podem como devem zelar pela efetivação dos direitos fundamentais sociais, mas que, ao faze-lo, haverão de obrar com a máxima cautela e responsabilidade, seja ao concederem (seja quando negarem) um direito subjetivo a determinada prestação social, ou mesmo quando declararem a inconstitucionalidade de alguma medida estatal com base na alegação de uma violação de direitos sociais, sem que tal postura, como já esperarmos ter logrado fundamentar, venha a implicar necessariamente uma violação do principio democrático e do princípio da separação dos Poderes. Neste sentido (e desde que assegurada atuação dos órgãos jurisdicionais, quando e na medida do necessário) efetivamente há que dar razão a Holmes e Sustein quando afirmar que levar direitos a sério (especialmente pelo prima da eficácia e efetividade) é sempre também levar a sério o problema da escassez.[13]
Nessa ótica protetiva, o Poder Judiciário deve atuar de forma ativa, suprindo omissões legislativas e executivas, redefinindo políticas públicas quando ocorrer inoperância de outros poderes – porém, verifica-se aqui um detalhe muito importante: é preciso se constatar a existência de omissão por parte do legítimo responsável pela efetivação dos direitos constitucionais, bem como a viabilidade da efetivação desse direito.
Nessa toada, havendo o instrumento normativo pertinente para tanto, apenas cabe ao Judiciário, quando do exercício da jurisdição, a análise de conformidade do mesmo frente ao texto maior, ou no máximo dar a ele uma interpretação adequada e conforme nossa novel ordem constitucional – jamais, ao nosso ver, substituir-se à norma.
Nesse contexto, os juízes têm decidido sobre inúmeras questões, tais como o fornecimento de remédios à pessoa portadora enfermidades; o direito de acesso de crianças à sala de aula; o direito de o deficiente ter acesso a prédios públicos. O “guardião das promessas” passa a desempenhar, induvidosamente, outra função, qual seja, a de concretizar direitos fundamentais.
De outro lado, no exercício desse controle judicial da atuação do Estado na proteção dos direitos fundamentais, alguns fatores são relevantes. Um deles diz respeito aos instrumentos postos à disposição da cidadania para, pelo Poder Judiciário, provocar a sua intervenção, passando por critérios jurídicos como o da proporcionalidade e o da reserva do possível. Esses dois são a pedra de toque da moderna atuação judicial.
No Brasil, resumidamente, podemos indicar que adotamos os seguintes remédios processuais: habeas corpus, mandado de segurança, mandado de segurança coletivo, habeas data e mandado de injunção; que servem para garantir os direitos fundamentais, individuais ou coletivos.
Outra das questões mais relevantes para o tema é saber quando seria necessária intervenção judicial, ou seja, em que grau de proteção deve atuar o Estado para garantir a proteção aos direitos fundamentais. Haveria um grau mínimo?
Como se falou, lançando mão da teoria adotada pela jurisprudência da Corte Constitucional alemã, do dever de proteção, conforme já aludido em outro momento, que se liga à idéia de que o Estado, como destinatário dos direitos fundamentais, tem o dever não apenas de abster-se de ofendê-los, mas, também, de impedir que sejam violados pelos particulares.
Para o desempenho de tal mister, o Estado dispõe dos poderes de legislar, de polícia, de fiscalizar, de regulamentar, enfim, pode valer-se dos meios necessários para que os direitos fundamentais sejam respeitados por quem quer que seja.
Assim sendo, sendo essa teoria perfeitamente aplicável ao caso brasileiro, ainda que a jurisprudência não tenha chegado a formular qualquer construção semelhante à teoria dos deveres de proteção.
A questão seria, repetindo, qual seria o grau de proteção a ser exigido do Estado, de sorte que, uma vez inobservado, daria ensejo à intervenção judicial.
Ingo Sarlet, em uma palestra proferida no Superior Tribunal de Justiça, enfrentou o tema, dando o seguinte depoimento: “Não se exige do Estado níveis máximos do dever de proteção, e isto já é um problema em si”, comenta. Definir o quanto uma medida de proteção é suficiente ou não, na sua opinião, é o grande drama hoje enfrentado pelos operadores do Direito.[14]
Ele conta que esse drama foi enfrentado pelo Tribunal Constitucional Alemão em um caso emblemático. Na década de 1970, um grande industrial daquele país foi sequestrado por um grupo terrorista, que exigiu, em troca da libertação do refém, que a polícia pusesse em liberdade membros do grupo que se encontravam presos. O filho do industrial entrou com uma ação no TCA pedindo que autorizasse essa medida. O tribunal, no entanto, negou essa proteção.
De acordo com Ingo Sarlet, o raciocínio do tribunal foi o de que os terroristas soltos poderiam cometer novos atentados, afetando toda a coletividade. Além disso, não haveria certeza de que o pai do solicitante seria mesmo libertado. O que a polícia poderia fazer estava sendo feito. “Aquele resultado específico não era exigível do Estado”, comenta o professor. No entanto, ele acentua que o desfecho dessa decisão foi trágico, já que, horas depois, o industrial foi encontrado morto. “Por mais que se possa falar em níveis máximos de dever de proteção, há níveis conflitantes”, avalia.
Sarlet acrescenta que também não é exigível do Estado a exclusão absoluta da ameaça de violação a direitos. Não é exigível, por exemplo, que o Estado coloque um policial em cada esquina para excluir qualquer ameaça à segurança pública. A campanha do desarmamento, feita pelo Estado há alguns anos atrás, para Sarlet é um exemplo de que não se pode subtrair totalmente do cidadão o seu direito de autotutela. “A proibição absoluta da aquisição de armas de fogo é inconstitucional”, opina o professor. Ou seja, não é razoável que o cidadão esteja totalmente desprovido de alternativas de autotutela mínima. “Quem decide sobre o mínimo de eficiência dos deveres de proteção estatal?”, indaga o professor.
A indagação é de toda relevância. A quem, pois caberia o dever de sindicar a que grau mínimo de proteção o Estado está obrigado a implementar. Ao que tudo indicar, ante a nossa realidade e por todo que se apresentou nesse capítulo, parece que o Judiciário vem se apresentando com maior freqüência e assumindo mais esse papel no sistema constitucional.
Mais interessante que se tentasse delinear um constitucionalismo cooperativo, de modo a contrapor a esse postura ativista do Judiciário mais voltado para aspectos formais por parte do Supremo Tribunal Federal com a maior participação do Poder Legislativo.
[1] ROCHA, José de Albuquerque. Estudos sobre o Poder Judiciário. São Paulo:Malheiros, 1995. p. 27.
[2] MARIANO, CYNARA. Legitimidade do Direito e do Poder Judiciário. Belo Horizonte:Del Rey, 2010. p.167.
[3] Barroso, Roberto. JUDICIALIZAÇÃO, ATIVISMO JUDICIAL E LEGITIMIDADE DEMOCRÁTICA. Disponível em : http://www.oab.org.br/editora/revista/users/revista/1235066670174218181901.pdf
[4] ZAFFARONI. Eugenio Raul. Poder Judiciário: crise, acertos e desacertos.São Paulo:RT, 1999. p. 83.
[5] MAXIMILIANO, Carlos. Hermenêutica e aplicação do direito. 8ª ed. São Paulo: Freitas Bastos, 1965. p. 06.
[6] VIANNA, Luiz Werneck. A judicialização da política e das relações sócias no Brasil. Rio de Janeiro:Renavan, 1999. Rio de Janeiro. p. 26.
[7] DALLARI, Dalmo. O Poder dos juízes. 3 ed. São Paulo: Saraiva, 2008. p. 89.
[8] CARVALHO, Ernani Rodrigues, “Em busca da judicialização da política no Brasil: apontamentos para uma nova abordagem.” Rev. Sociol. Polit. [online]. Nov. 2004, no.23. p.127-139.
[9] GARAPON, Antoine. O juiz e a democracia: o guardião das promessas. Trad. Maria Luíza de
Carvalho, Rio de Janeiro: Revan, 1999.
[10] MENDES, Gilmar. Direitos Fundamentais e Estado Constitucional. 2 ed.. São Paulo:RT, 2009. p. 388.
[11] MICHELMAN, Frank. A Constituição, os direitos sociais e a justificativa política liberal- na obra Direitos Fundamentais e Estado Constitucional. RT 2009.Mo p. 258.
[12] MOREIRA, Luiz. Judicialização da política no Brasil. Disponível em :http://www.controversia.com.br/index.php?act=textos&id=15327. Acesso em: 05 jan. 2014.
[13] SARLET, Igor. Os direitos sociais como direitos fundamentais:seu conteúdo, eficácia e efetividade no atua marco- jurídico-constitucional brasileiro.p 240/241. RT São Paulo: 2009. no livro Direitos Fundamentais e Estado Constitucional.
[14] Notícia extraída do sítio: http://www.cjf.jus.br/cjf/noticias-do-cjf/2013/setembro/deveres-de-protecao-do-estado-em-materia-de-direitos-fundamentais-e-tema-de-palestra
Procurador Federal. Ex-Defensor Público do Estado do Ceará. Especialista em Direito Processual Civil, DIREITO ADMINISTRATIVO, DIREITO TRIBUTÁRIO E FINANÇAS PÚBLICAS PELO IDP, ESPECIALISTA EM DIREITO PREVIDENCIÁRIO PELA PUC/MINAS e em Direito Público pela UNB. Membro do Conselho Editorial da Revista Síntese de Direito Trabalhista e Previdenciário. Mestrando em Direito.
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: JUNIOR, Jose Aldizio Pereira. O Poder Judiciário e a sua função constitucional: algumas reflexões Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 15 jul 2014, 05:15. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/artigos/40171/o-poder-judiciario-e-a-sua-funcao-constitucional-algumas-reflexoes. Acesso em: 22 nov 2024.
Por: JAQUELINA LEITE DA SILVA MITRE
Por: Elisa Maria Ferreira da Silva
Por: Hannah Sayuri Kamogari Baldan
Por: Arlan Marcos Lima Sousa
Precisa estar logado para fazer comentários.