RESUMO: O trabalho se propõe a, de modo sintético, expor ponderações atinentes a diversos aspectos jurídicos relacionados às comunidades indígenas, incluindo seu conceito, o regime jurídico de suas terras, aspectos da esfera penal relacionados à competência e (in)imputabilidade, bem como o critério de autoatribuição à luz da legislação pátria e da Convenção 169 da OIT.
Palavras-chave: Direito Constitucional. Direito Indigenista. Comunidades Indígenas.
I. Considerações iniciais
A Constituição Federal de 1988 inaugurou uma nova visão com relação às comunidades tradicionais, sobretudo as indígenas. Com efeito, não se deve negar o mérito do legislador constituinte no tocante à ruptura com o paradigma integracionista do Estatuto do Índio, entretanto nossa Lei Maior, promulgada em 1988, poderia ter adotado, com relação às comunidades tradicionais, algo mais próximo do teor da Convenção 169 da OIT, cujas ideias estavam sendo intensamente discutidas no cenário internacional.
Note-se, ainda, que, não obstante os dispositivos constitucionais e infraconstitucionais direcionados à proteção das comunidades tradicionais, as questões envolvendo atos de discriminação dirigidos às minorias ainda são frequentemente verificadas, e não constituem algo novo na sociedade. Não somente os índios, mas também outras comunidades tradicionais, apesar dos avanços obtidos a partir da promulgação da Carta Política de 1988, permaneceram por muitos anos em estado de invisibilidade social.
II - DAS COMUNIDADES INDÍGENAS
Antes de estudarmos o conceito de comunidades indígenas, mister se faz pontuarmos alguns termos que compõem o universo jurídico aplicado aos índios. A diferenciação entre “direito indigenista” e “direito indígena” afigura-se deveras importante. O primeiro termo é adequado para designar o direito produzido pelo grupo dominante, que trata da condição indígena. Já o direito indígena nada mais é que a nomenclatura usada para se referir ao direito produzido pelo próprio grupo indígena.
Também cumpre ressaltar a existência, no arcabouço jurídico, de diferentes perspectivas no tocante à condição indígena. Edilson Vittorelli expõe tais perspectivas fazendo alusão à existência de três mundos distintos. Nas palavras do autor:
“ O primeiro deles é o do Estatuto do Índio, editado em 1973, sob um paradigma totalmente integracionista. A condição indígena seria algo a ser harmoniosamente eliminado por intermédio da integração dos índios à comunhão nacional. Há, nesse primeiro mundo, o do Estatuto, três situações distintas: a dos índios não integrados, que são aqueles que correspondem à imagem idealizada e pré-colombiana de índio: nus, inocentes, sem falar a língua portuguesa, sem utilizar produtos industrializados, sem acesso a quaisquer meios de comunicação modernos. Esse índio, digno de ser exibido em qualquer programa de televisão, é o único índio digno de proteção. Sobre ele incidem todas as normas protetivas do estatuto do Índio, inclusive a norma de incapacidade civil, vista como uma forma de proteção. O verdadeiro índio, nesse mundo, é incapaz, sob tutela do órgão indigenista, que é a Fundação Nacional do Índio (FUNAI).
A segunda situação é a do índio em vias de integração. Esse índio ainda mantém algumas características tribais intocadas, mas já se contaminou com costumes dos brancos, portanto já fala português, por exemplo. A terceira situação, que aparece misturada com a segunda, é a do índio integrado. Não há uma definição clara do momento em que o processo de integração se conclui, mas o índio que fala português, vota, pilota uma motocicleta e comete crimes é, nesse mundo, um índio integrado.
O segundo mundo é o da Convenção 169 da OIT e da Declaração das Nações Unidas sobre os Direitos dos Povos Indígenas. Documentos inovadores que têm como palavra de ordem a autodeterminação. Ser índio não é uma condição transitória, a ser eliminada. Ser índio é uma identidade cultural a ser mantida. Isso não significa que o índio, para merecer essa designação, tenha que viver como vivia há séculos atrás. Se os brancos não vivem como viviam há cinco séculos, não faz sentido exigir isso dos índios. A cultura indígena é, como toda cultura, mutável e dinâmica. Nesse segundo mundo, a condição indígena é definida pelo autorreconhecimento. É índio que se reconhece como tal e é indígena a sociedade que se reconhece como tal. Não cabe a quem não pertence a uma comunidade rotulá-la como indígena ou não-indígena, muito menos com base em elementos externos.
No meio desses dois mundos está a Constituição de 1988. A Constituição avançou muito em relação ao primeiro mundo, mas ficou aquém do segundo. Excessivamente centrada na questão da terra, a Constituição dedicou-se pouco a outras questões relacionadas aos índios, o que impediu que o primeiro mundo fosse totalmente afastado. De todo modo, não é possível menosprezar o impacto da Constituição que, ao reconhecer aos índios seus costumes e tradições, rompeu totalmente o paradigma integracionista.”
III – DAS TERRAS TRADICIONALMENTE OCUPADAS PELOS ÍNDIOS
A CRFB, no art. 20, estabelece serem bens da União as terras tradicionalmente ocupadas pelos índios. Assim versa o referido dispositivo:
“Art. 20. São bens da União: .
XI - as terras tradicionalmente ocupadas pelos índios.”
Além de diversos dispositivos a eles relativos, a Carta Magna ainda dedica um capítulo (VIII) exclusivo para os índios. Esta é a dicção dos artigos 231 e 232 da CRFB/88:
“Art. 231. São reconhecidos aos índios sua organização social, costumes, línguas, crenças e tradições, e os direitos originários sobre as terras que tradicionalmente ocupam, competindo à União demarcá-las, proteger e fazer respeitar todos os seus bens. § 1º - São terras tradicionalmente ocupadas pelos índios as por eles habitadas em caráter permanente, as utilizadas para suas atividades produtivas, as imprescindíveis à preservação dos recursos ambientais necessários a seu bem-estar e as necessárias a sua reprodução física e cultural, segundo seus usos, costumes e tradições. § 2º - As terras tradicionalmente ocupadas pelos índios destinam-se a sua posse permanente, cabendo-lhes o usufruto exclusivo das riquezas do solo, dos rios e dos lagos nelas existentes. § 3º - O aproveitamento dos recursos hídricos, incluídos os potenciais energéticos, a pesquisa e a lavra das riquezas minerais em terras indígenas só podem ser efetivados com autorização do Congresso Nacional, ouvidas as comunidades afetadas, ficando-lhes assegurada participação nos resultados da lavra, na forma da lei. § 4º - As terras de que trata este artigo são inalienáveis e indisponíveis, e os direitos sobre elas, imprescritíveis. § 5º - É vedada a remoção dos grupos indígenas de suas terras, salvo, "ad referendum" do Congresso Nacional, em caso de catástrofe ou epidemia que ponha em risco sua população, ou no interesse da soberania do País, após deliberação do Congresso Nacional, garantido, em qualquer hipótese, o retorno imediato logo que cesse o risco. § 6º - São nulos e extintos, não produzindo efeitos jurídicos, os atos que tenham por objeto a ocupação, o domínio e a posse das terras a que se refere este artigo, ou a exploração das riquezas naturais do solo, dos rios e dos lagos nelas existentes, ressalvado relevante interesse público da União, segundo o que dispuser lei complementar, não gerando a nulidade e a extinção direito a indenização ou a ações contra a União, salvo, na forma da lei, quanto às benfeitorias derivadas da ocupação de boa fé.§ 7º - Não se aplica às terras indígenas o disposto no art. 174, § 3º e § 4º.
Art. 232. Os índios, suas comunidades e organizações são partes legítimas para ingressar em juízo em defesa de seus direitos e interesses, intervindo o Ministério Público em todos os atos do processo.”
Ressalte-se que, não obstante a identidade com relação ao fundamento da posse indígena e da propriedade quilombola (a tradicionalidade da ocupação por uma comunidade culturalmente diferenciada), não restam dúvidas de que seus regimes são distintos. Segundo o art. 20, XI, da CRFB/88, as terras tradicionalmente ocupadas pelos índios são bens da União. Mais adiante, a Carta Magna traz o instituto do “indigenato”, contido no art. 231 da CRFB.
O conceito de terras tradicionalmente ocupadas exige uma compreensão narrativa das vidas dos povos indígenas, que não é mera repetição do passado que as originou, mas participação num sentido presente da experiência história de sua reafirmação e transformação. Exige-se laudo antropológico, que permite a compreensão e a tradução linguístico-cultural das maneiras como o grupo se vê ao longo de sua trajetória existencial, como vê o mundo e nele se organiza. Segundo o STF, não descaracteriza o animus possidendi dos índios terem sido forçados a se retirar de suas terras (STF, ACO 323/93).
Percebe-se, portanto, que os índios não possuem o domínio da terra (embora os direitos sobre ela sejam originários, ou seja, congênitos, inatos, independentemente de existir registro em favor de alguém) . Nesse ponto, cabe a diferenciação em relação aos territórios quilombolas, pois a CRFB afirmou que as comunidades descendentes dos quilombos adquirem a “propriedade definitiva”. Percebe-se, portanto, tratar-se de terras particulares, e não públicas da União, como no caso das comunidades indígenas, cujo somente o usufruto foi a elas destinado, a teor do art. 20, XI da CRFB.
IV - DAS NORMAS INTERNACIONAIS QUE DISPÕEM ACERCA DAS COMUNIDADES TRADICIONAIS, E A VALIDADE DO CRITÉRIO DE AUTORRECONHECIMENTO DAS COMUNIDADES INDÍGENAS
Nos termos da Convenção n. 169 da OIT, aplicada às comunidades tradicionais e ratificada pelo Brasil, ”a consciência de sua identidade indígena ou tribal deverá ser considerada como critério fundamental para determinar os grupos aos que se aplicam as disposições da presente Convenção” (art. 1º).
Destarte, é pacífica a prevalência da autoatribuição ou autodefinição da própria comunidade, conforme decisão da 5ª Turma do STJ, in verbis:
“Salientou-se que o grau de integração do índio à sociedade e a questão referente à sua incapacidade não seriam pressupostos para definir a intervenção da Funai. Considerou-se, ainda, que a definição da condição de índio deve ser dada pela antropologia e segundo critérios estabelecidos em lei para os quais é irrelevante o grau de integração. Adotado o normativo da Convenção OIT n. 169, o Estado brasileiro acolheu, formalmente, como critério de identificação a autoidentificação, de tal modo que, para fins legais, é indígena quem se sente, comporta-se ou afirma-se como tal, de acordo com os costumes, organizações, usos, língua, crenças e tradições indígenas da comunidade a que pertença. Por sua vez, consignou o Min. Relator que não cabe ao juiz criminal aferir a capacidade civil do recorrente uma vez que se trata de questão prejudicial heterogênea de exame exclusivo na jurisdição civil. Ao final, reconheceu-se a competência da Justiça Federal para análise e julgamento da causa, tendo em vista a presença da autarquia federal no feito na qualidade de assistente de indígena” (RMS 30.675-AM / inf. 488 STJ / 5ª Turma).
A Convenção 169 da OIT, que adquiriu status de lei ordinária pelo Decreto 5.051, de 2004, garante às comunidades tradicionais uma série de direitos, inclusive, no art. 14, à propriedade e à posse das terras que tradicionalmente ocupam. Outrossim, o art. 16 da Convenção 169 da OIT dispõe expressamente sobre o direito das comunidades tradicionais de não serem trasladados compulsoriamente das terras que ocupam, salvo nos casos absolutamente excepcionais.
A referida Convenção da OIT, devidamente internalizada no ordenamento jurídico pátrio, determina, inequivocamente, a utilização do critério de auto-identificação para o reconhecimento das comunidades tradicionais. Tal diploma ostenta a condição de norma máxima em termos de direitos fundamentais de comunidades tradicionais no Brasil, não obstante a equivocada interpretação do STF no caso “Raposa Serra do Sol”. Ademais, o critério de auto-atribuição é considerado pela antropologia como parâmetro mais razoável para a identificação das referidas comunidades .
V - DA COMPETÊNCIA LEGISLATIVA E JURISDICIONAL RELATIVA ÀS COMUNIDADES INDÍGENAS E O TRATAMENTO A ELAS DISPENSADO NA ESFERA PENAL
No que tange à competência legislativa, compete privativamente à União legislar sobre populações indígenas (art. 22, XIV, CRFB/88). Ao Congresso Nacional, compete autorizar, mediante Decreto Legislativo, a exploração e o aproveitamento de recursos hídricos e a pesquisa e lavra de riquezas minerais. (arts. 49, XVI e 231, §3º CRFB/88 ).
Com relação à competência para o julgamento de ações, a Constituição de 1988 determinou que cabe à Justiça Federal o julgamento de ações que digam respeito à disputa sobre direitos indígenas (art. 109, XI). Pedro Lenza destaca que o STF entende ser competência da Justiça Federal processar e julgar feitos relativos à cultura indígena; aos direitos sobre as terras tradicionalmente ocupadas pelos índios; a interesses constitucionalmente atribuíveis à União, como as infrações praticadas em detrimento de bens e interesse da União ou de suas autarquias e empresas públicas. Segundo Gilmar Mendes, há de envolver necessariamente questões vinculadas a direitos ou interesses indígenas típicos e específicos (e não interesse ou direitos de toda a comunidade). Assim, os crimes ocorridos em reserva indígena, ou crimes comuns praticados por índios ou contra índios, sem qualquer elo ou vínculo com a etnicidade, o grupo e a comunidade indígena, são da competência da Justiça comum"
Assim se pronunciou o Superior tribunal de Justiça:
PENAL E PROCESSUAL PENAL. CONFLITO NEGATIVO DE COMPETÊNCIA. DENÚNCIA QUE ENVOLVE CRIMES DE FAVORECIMENTO À PROSTITUIÇÃO, SUBMISSÃO À PROSTITUIÇÃO, RUFIANISMO, VENDA DE BEBIDAS ALCOÓLICAS A ADOLESCENTES E FORMAÇÃO DE QUADRILHA, PRATICADOS COM PARTICIPAÇÃO DE ÍNDIOS E COM EXPLORAÇÃO SEXUAL DE ADOLESCENTES INDÍGENAS. INEXISTÊNCIA DE CRIMES RELACIONADOS A DISPUTA SOBRE DIREITOS INDÍGENAS. ART. 109, XI, DA CF/88. SÚMULA 140/STJ. INCIDÊNCIA. COMPETÊNCIA DO JUÍZO DE DIREITO DA COMARCA DE CORONEL BICACO/RS. I. Os delitos praticados são crimes comuns, que não se relacionam com disputa sobre direitos indígenas, na forma do art. 109, XI, da CF/88. II. O Plenário do Supremo Tribunal Federal já se manifestou no sentido de que a competência da Justiça Federal, fixada no art. 109, XI, da Constituição Federal, "só se desata quando a acusação seja de genocídio, ou quando, na ocasião ou motivação de outro delito de que seja índio o agente ou a vítima, tenha havido disputa sobre direitos indígenas, não bastando seja aquele imputado a silvícola, nem que este lhe seja vítima e, tampouco, que haja sido praticado dentro de reserva indígena." (STF, RE 419.528, Rel. p/ acórdão Ministro CEZAR PELUSO, PLENO, DJU de 09/03/2007, p. 26). III. Caso é de aplicação da Súmula 140/STJ: "Compete a Justiça Comum estadual processar e julgar crime em que o indígena figure como autor ou vítima." . STJ, CC 38517 / RS, 24/10/2012
Com relação aos “crimes cometidos contra os índios”, estes são tipificados na Lei 6.001/73 (Estatuto do Índio), mais precisamente no artigo 58, incisos I a III, sendo todos dolosos e de menor potencial ofensivo. O tipo do inciso I tutela a cultura e as tradições indígenas, criminalizando o escárnio, o vilipêndio ou a perturbação de cerimônias, ritos e costumes. Lembrar da previsão constitucional acerca do reconhecimento e proteção destes aspectos (artigo 231), bem como do marco internacional (Convenção 169 da OIT, em especial seu artigo 8º; Pacto Internacional dos Direitos Civis e Políticos, art. 27). Isso partindo de uma concepção adotada pela Constituição de superação do paradigma integracionista.
O tipo contido no inciso II criminaliza o ato de utilizar o índio ou comunidade indígena como objeto de propaganda turística ou de exibição para fins lucrativos, enquanto o do inciso III veda que se propicie, por qualquer meio, a aquisição, o uso e a disseminação de bebidas alcoólicas nos grupos tribais ou entre índios não integrados.
A jurisprudência atual e majoritária, segundo Vitorelli, posiciona-se no sentido de que somente as questões que envolvam interesse da União ou que tenham como motivação a disputa de direitos atinentes à coletividade indígena (geralmente disputa por terras), deslocam a competência da Justiça Estadual para a Federal. Nesse sentido foi editada, ainda antes da CRFB/88, a súmula 140 do STJ: “Compete à Justiça Comum Estadual processar e julgar crime em que o indígena figure como autor ou vítima”.
Ainda segundo jurisprudência do STF, não cabe assistência da FUNAI no processo criminal contra índio (STF HC 79530), por ser de natureza civil a tutela cometida constitucionalmente à União, e não criminal. Com relação às causas especiais de aumento de pena, o parágrafo único do art. 58 aumenta de um terço a pena quando o crime for praticado por funcionário ou empregado do órgão de assistência ao índio. O art. 59, por sua vez, impõe idêntico aumento quando o crime for praticado contra a pessoa, o patrimônio ou os costumes, em que o ofendido seja índio não integrado ou comunidade indígena. Ressalte-se que o crime de genocídio também pode ser praticado contra os índios (Lei 2.889/56), já que constituem um grupo étnico (art. 1º).
Outra é a perspectiva quando se trata de “crimes praticados por indígenas”, já que a lei penal tem aplicabilidade diferenciada em relação a eles. A CRFB legitima este aspecto, ao impor a necessidade de individualização da pena (art. 5º, XLVI); a OIT 169, nos seus artigos 8º e 9º, também trata do assunto, impondo a necessidade de levar em conta as tradições e costumes indígenas quando da aplicação da lei.
Assim, é necessário laudo antropológico como prova pericial, produzido por profissional que tenha particular conhecimento da cultura de um povo indígena específico, e que dela elaborará uma descrição, para que juiz e MP formem convicção acerca do papel desempenhado pelas especificidades culturais no cometimento do delito. Segundo o STF, é imprescindível a realização deste laudo, sob pena de nulidade do processo, somente ocorrendo a dispensabilidade quando por outros meios o juiz puder verificar que o índio é integrado (grau de escolaridade, título de eleitor, entendimento do idioma oficial, por exemplo (STF HC 85198).
No tocante ao regime de cumprimento de pena, o Estatuto do Índio prevê que penas privativas de liberdade serão cumpridas, se possível, em regime de semi-liberdade, no local de funcionamento do órgão federal de assistência mais próximo da habitação do condenado. O art. 10, 1 e 2 da Convenção 169 da OIT, bem como o art. 56 do Estatuto do Índio (norma especial em relação ao CP), garantem o direito a cumprir a pena em local que mantenha o índio em contato com sua cultura, em geral sua própria tribo.
A doutrina tradicional, em se tratando da imputabilidade do índio, elenca o indígena entre os inimputáveis, por desenvolvimento mental incompleto ou retardado. Em sentido oposto é a visão do Ministério Público Federal. Para o Parquet, o índio tem desenvolvimento pleno de suas faculdades mentais; pertencer a uma cultura com valores diversos não significa ter desenvolvimento incompleto. Assim, a punibilidade criminal do comportamento formalmente típico de um indígena pode ser abordado tanto do ponto de vista da própria tipicidade quanto, especialmente, do ponto de vista da culpabilidade,sempre levando em consideração o contexto ético, cultural, político e econômico no qual indivíduo se insere ou ao qual, inexoravelmente, pertence.
A jurisprudência dominante estabelece que o Estatuto do Índio só é aplicável ao índio “não integrado”. O referido Estatuto, por sua vez, diz caber a FUNAI a defesa judicial e extrajudicial dos direitos dos indígenas e de suas comunidades, e que a União poderá propor, por meio do MPF (antes de 1988, hoje, leia-se AGU), medidas judiciais adequadas à proteção da posse dos silvícolas sobre as terras que habitem. Assim, tem-se que é competente a Justiça Federal os casos de crimes cometidos em face de direitos indígenas quando entendidos como grupo social, coletivamente. Esse ainda é hoje o fundamento utilizado pelo STF e STJ para atribuir a competência ao Poder Judiciário Federal.
VI - Considerações finais
A política indigenista no Brasil, assim como aquelas relativas a outros segmentos da sociedade, tem por marca registrada o assistencialismo. Nessa perspectiva clientelista, não se verifica o fomento à auto-organização das comunidades, tampouco se promove no seio das comunidades algo que realmente reverta em benefícios concretos e de longa duração àqueles membros ali inseridos.
Percebe-se, sim, somente a inserção de benefícios sociais pontuais, destinados a suprir necessidades imediatas e que, uma vez cessados, fazem com que as populações retornem ao estado de necessidade. A esse quadro se acresce a falta de estrutura física, material humano e de recursos orçamentários do poder executivo (em especial a FUNAI) para pôr em prática políticas condizentes com as normas da Convenção 169 da OIT, e os Direitos Humanos consagrados no plano internacional.
Portanto, não resta dúvida de que há um longo caminho a ser percorrido no sentido de, não somente assegurar a possibilidade de sobrevivência de grupos dotados de cultura e identidade étnica próprias, mas de, ainda que divorciado de uma perspectiva integracionista, proporcionar àquelas comunidades o mais pleno gozo de todos os direitos fundamentais expressos na Carta Magna e normativos internacionais.
Notas:
BANDEIRA DE MELLO, Celso Antônio. O conteúdo jurídico do princípio da igualdade. São Paulo: Malheiros, 2010
BARROSO, Luís Roberto. Interpretação e aplicação da Constituição: fundamentos de uma dogmática constitucional transformadora. 6. ed. São Paulo: Saraiva, 2004.
BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil – 1988. 41. ed. São Paulo: Saraiva, 2014.
LENZA, Pedro. Direito Constitucional esquematizado. 18.ed. São Paulo: Saraiva, 2014.
LIMA, Edilson Vitorelli Diniz. Estatuto do Índio. 2.ed. Salvador: Juspodivm, 2013.
MENDES, Gilmar Ferreira e outros. Curso de Direito Constitucional. 9. ed. São Paulo: Saraiva, 2014.
RAMOS, André de Carvalho. Curso de Direitos Humanos. 3.ed. São Paulo: Saraiva, 2013.
_______________________. Teoria Geral dos Direitos Humanos na Ordem Internacional. 4.ed. São Paulo: Saraiva, 2014.
_______________________. Processo Internacional de Direitos Humanos. 3.ed. São Paulo: Saraiva, 2013.
SARMENTO, Daniel. A do direito à posse dos remanescentes de quilombos antes da desapropriação. Disponível em: http://6ccr.pgr.mpf.mp.br/institucional/gruposdetrabalho/quilombos1/documentos/Dr_Daniel_Sarmento.pdf-
Procurador Federal. Pós-graduado em Direito Público. Especialista em Direito Tributário. Bacharel em Direito pela Fundação Universidade Federal do Rio Grande, RS.
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: CONSTANTINO, Giuseppe Luigi Pantoja. Comunidades indígenas no cenário jurídico brasileiro: peculiaridades do direito indigenista Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 19 dez 2014, 05:00. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/artigos/42444/comunidades-indigenas-no-cenario-juridico-brasileiro-peculiaridades-do-direito-indigenista. Acesso em: 22 dez 2024.
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