I- Considerações preliminares
O presente artigo analisa o processo de exclusão dos militares das corporações militares, em decorrência de condenação na justiça comum ou na justiça militar.
Parte-se primeiramente do estudo do termo “resíduo” da condenação, termo bastante utilizado na linguagem castrense, mas ainda muito pouco conhecido.
Em linhas gerais, busca-se compreender o efeito da condenação penal sobre a vida do militar, em universos bastantes distintos: nas Forças Armadas e nas Polícias Militares. As diferenças encontradas, em ambas as classes de militares são muitas, principalmente, a partir da promulgação da Constituição de 1988.
O objeto de estudo refere-se somente às praças (Marinheiro, Soldado, Cabo, Taifeiro, Terceiro Sargento, Segundo Sargento, Primeiro Sargento, Suboficial e Subtenente), excluindo-se os oficiais (Almirante de Esquadra, General de Exército, Tenente-Brigadeiro, Vice-Almirante, General de Divisão, Major-Brigadeiro, Contra-Almirante, General de Brigada, Brigadeiro, Capitão de Mar e Guerra, Coronel, Capitão de Fragata e Tenente-Coronel, Capitão de Corveta, Major, Capitão-Tenente, Capitão, Primeiro Tenente e Segundo Tenente). Isso porque a demissão de oficiais, em virtude de condenação, segue uma sistemática diferenciada, principalmente em razão de dispositivos constitucionais (CF/88, art. 142, § 3°, incisos VI e VII).
II- Do termo "resíduo"
O termo "resíduo", quando referente à apuração disciplinar de fatos, que foram objetos de condenações criminais, pode ser enfocado sobre dois aspectos principais.
No primeiro aspecto "resíduo" deve ser interpretado, como aquilo que resta, que remanesce, ou que sobra de uma condenação criminal, sem confundir-se com o crime em si. Ou seja, aquilo que é uma transgressão disciplinar, mas não foi objeto de qualquer apreciação criminal (mesmo porque, não cabe a Justiça pronunciar sobre fatos que caracterizem infrações disciplinares, somente).
Propõe-se o seguinte exemplo: um militar conduzindo uma viatura policial, em alta velocidade, e sem respeitar as normas de trânsito vem a atropelar um transeunte e causa-lhe lesões graves. Obviamente, a conduta do miliciano deve ser apreciada pela justiça militar estadual, em decorrência das lesões causadas no transeunte (CPM, art. 209, § 1°).
No caso, independentemente da decisão judicial, que absolve ou condenada o militar, existe um "resíduo" administrativo que deve ser apurado: o fato do militar desrespeitar as normas de trânsito caracteriza transgressão disciplinar, conforme previsto no Anexo I, número 82, do Regulamento Disciplinar do Exército, porque o militar desrespeitou "regras de trânsito, medidas gerais de ordem policial, judicial ou administrativa".
Sobre "resíduo", nesse aspecto, assim discorre Maria Sylvia Zanella Di Pietro, verbis:
[....]. Totalmente diversa é a situação se o funcionário público for processado na esfera penal por fato que constitui crime mas não corresponde a ilícito administrativo. Nesse caso, quer-nos parecer que a decisão absolutória proferida pelo juiz criminal, qualquer que seja a fundamentação da sentença, repercute sobre a esfera administrativa, porque, nessa matéria, a competência é exclusiva do Judiciário; o funcionário só pode ser punido pela Administração se, além daquele fato pelo qual foi absolvido, houver alguma outra irregularidade que constitua infração administrativa, ou seja, a chamada falta residual a que se refere a Súmula nº. 18 do STF, in verbis: "pela falta residual, não compreendida na absolvição pelo juízo criminal, é admissível a punição administrativa do servidor público". Não havendo falta residual, a absolvição na esfera criminal tem que ser reconhecida na órbita administrativa. (DI PIETRO, Maria Sylvia Zanella, Direito Administrativo, 23 ed. - Atlas, São Paulo, 2010, p. 618, g.n.).
Observe, portanto, que nesse aspecto o chamado "resíduo" é tão somente uma transgressão disciplinar, que, via de regra, foi praticada junto com um crime, mas que deve ser apurado pelas vias administrativas, somente.
Totalmente diferente é o significado do termo "resíduo", que decorre de uma condenação criminal. Nesse outro sentido, o "resíduo" deve ser interpretado somente como um efeito reflexo da condenação, como uma consequência, como um "acessório".
III- O efeito da condenação criminal
Antes de aprofundar nessa seara, importante destacar que ainda vigora no Código Penal Militar as temidas penas "acessórias".
São penas acessórias previstas no Código Penal Militar: a perda de posto e patente; a indignidade para o oficialato; a incompatibilidade com o oficialato; a exclusão das forças armadas; a perda da função pública, ainda que eletiva; a inabilitação para o exercício de função pública; a suspensão do pátrio poder [hoje, poder familiar], tutela ou curatela; a suspensão dos direitos políticos (CPM, art. 98, g. n.).
São chamadas "acessórias" porque são efeitos secundários, ou oblíquos da sentença (efeitos reflexos, indiretos ou decorrentes do principal).
No Código Penal comum as penas acessórias foram extintas, com a reforma de 1984, passando a algumas delas, entretanto, constar como "efeitos da condenação" (CP, art. 92).
Aos críticos, tanto os efeitos da condenação, como as penas acessórias, não possuem o caráter "preventivo" buscado pela norma, porque:
[....] a verdade é que as inabilitações para o exercício de certos direitos ou atividades e as interdições do exercício de profissões [....] são medidas ou sanções estáticas, de caráter meramente retributivo, como procurei mostrar, sobrevivência mais evidentes daquilo que o saudoso NOÉ AZEVEDO chamou de fundo de vingança da penologia moderna [....]. Elas não educam, nem corrigem, porque não têm mobilidade na execução; elas não estimulam, porque humilham o condenado no seio da sua família (incapacidade para o exercício do pátrio poder ou da autoridade marital), no seio da sociedade (suspensão dos direitos políticos), no meio do grupo profissional (incapacidade para a profissão ou atividade). Elas acompanham o condenado, silenciosamente, como uma sombra negra, que não o ajuda, que não lhe desperta outro sentimento senão o da própria inferioridade (LOPES, Jair Leonardo. Reabilitação e o sistema de penas anteprojeto de reforma da parte geral do código penal. Rev. Fac. Direito - UFG jan/dez 1981, p. 157).
Observe, que, "No caso do Código Penal Militar, claramente, no art. 98, estabelecem-se penas acessórias, que são complementos da condenação principal, nem todas recepcionadas pela Constituição de 1988. Seus efeitos são extrapenais, atingindo o âmbito administrativo, civil e político" (NUCCI, Guilherme de Souza. Código Penal Militar comentado – 2. ed. rev., atual.– Rio de Janeiro : Forense, 2014, p. 200).
A condenação da praça a pena privativa de liberdade, por tempo superior a 2 (dois) anos (CPM, art. 102), continua válida para as praças das Forças Armadas, todavia, deve ser expressamente imposta na decisão condenatória (CPM, art. 107).
Antes de analisar a sistemática adotada, na exclusão de praças nas forças estaduais, destaca-se a sistemática adotada nas Forças Armadas, com o objetivo de bem entender as diferenças adotadas, em ambas as situações (aquela que envolve militares federais e aquela que envolve militares estaduais).
IV- A Exclusão de praças especiais ou com estabilidade assegurada nas Forças Armadas.
A exclusão de praças, com estabilidade assegurada nas Forças Armadas, assim como a exclusão de praças especiais se procede por meio do Conselho de Disciplina (CD). O que interessa aqui é analisar a exclusão decorrente de condenação criminal, verbis:
Art. 2º É submetida a Conselho de Disciplina, "ex officio", a praça referida no artigo 1º e seu parágrafo único.
[....]
III - condenado por crime de natureza dolosa, não previsto na legislação especial concernente à segurança do Estado, em tribunal civil ou militar, a pena restritiva de liberdade individual até 2 (dois) anos, tão logo transite em julgado a sentença; ou
[....].
(Decreto n. 71.500, de 5 de dezembro de 1972, que dispõe sobre o conselho de disciplina e dá outras providências, g. n.).
Observe que, apenas em condenação até dois anos é que determinada a submissão da praça ao Conselho de Disciplina, porque em condenações com mais de dois anos, em crime militar importa sua exclusão, como pena acessória, prevista no Código Penal Militar (art. 102).
Em relação a crime comum, na época em que foi editada a lei do Conselho de Disciplina das Forças Armadas (em 1972), também havia previsão no Código Penal Comum da aplicação da pena "acessória", verbis:
Art. 67. São penas acessórias:
I - a perda de função pública, eletiva ou de nomeação;
[....]
Art. 68. Incorre na perda de função pública:
I - O condenado a pena privativa de liberdade por crime cometido com abuso de poder ou violação de dever inerente a função pública;
II - o condenado por outro crime a pena de reclusão por mais de dois anos ou de detenção por mais de quatro.
[....]
O próprio Estatuto dos Militares de 1980 estava em sintonia, com o ordenamento jurídico vigente na época, ao disciplinar que:
Art. 125. A exclusão a bem da disciplina será aplicada ex officio ao Guarda-Marinha, ao Aspirante-a-Oficial ou às praças com estabilidade assegurada:
I- Quando se pronunciar o Conselho Permanente de justiça, em tempo de paz, ou Tribunal Especial, em tempo de guerra, ou Tribunal Civil após terem sido essas praças condenadas, em sentença transitada em julgado, à pena restritiva de liberdade individual, superior a 2 (dois) anos ou, nos crimes previstos na legislação especial concernentes à segurança do estado, a pena de qualquer duração.
[....](Lei Federal 6.880, de 9-12-1980, g. n.).
A aplicação da pena "acessória" nos delitos militares, no âmbito das Forças Armadas é matéria pacífica. De fato, a condenação de praça, a período superior a dois anos é motivo, por si só, que importa da exclusão da praça das FFAA, como um "resíduo", como um plus, como um efeito ou como uma mera consequência da condenação, verbis:
Peculato-furto. Concurso de agentes. Comunhão de desígnios. Gêneros alimentícios. Pena acessória de exclusão das forças armadas. Graduado que exerce a função de auxiliar de aprovisionador, uma vez responsável pelo controle e escrituração dos gêneros alimentícios na Unidade Militar, passa a compartilhar com um civil, mediante prévio acordo de vontades, o produto do furto de considerável quantidade de mantimentos vendida às escusas para terceiros.Evidenciada a intenção de aquinhoar valores advindos da venda não autorizada de bens pertencentes à Fazenda Nacional, valendo-se da facilidade propiciada pela função que exercia no quartel.Em se tratando de réus primários e de bons antecedentes, deve a pena-base ser fixada em seu mínimo legal. A imposição de pena privativa de liberdade superior a 2 (dois) anos a militar implica impor a pena acessória de exclusão das Forças Armadas, ex vi legis (artigo 102 do CPM). Recurso Ministerial provido. Decisão majoritária.
(STM - AP(FO): 25920037070007 PE 0000002-59.2003.7.07.0007, Relator: José Américo dos Santos, Data de Julgamento: 30/11/2010, Data de Publicação: 25/02/2011 Vol: Veículo: DJE, g. n.).
Quanto à condenação em delitos previstos no Código Penal comum, a situação era semelhante. Mas, com a Reforma do Código Penal, em 1984, as penas acessórias foram excluídas daquele estatuto repressivo. Em substituição, foram instituídos os chamados "efeitos da condenação", os quais, em 1996, também sofreram nova alteração. Sobre essas alterações discorre Maria Sylvia Zanella Di Pietro, verbis:
Finalmente, é importante ressaltar que no próprio Código Penal houve uma evolução no sentido de limitar os reflexos da conduta do funcionário fora do cargo sobre a situação funcional. Antes da alteração da Parte Geral, procedida pela Lei nº. 7.209, de 11-7-84, a perda da função pública constituía pena acessória quando o servidor fosse condenado à pena privativa de liberdade por crime praticado com violação de dever inerente à função pública, ou condenado por outro crime à pena de reclusão por mais de dois anos, ou detenção por mais de quatro anos; neste último caso, a perda decorria automaticamente da sentença, ainda que não houvesse declaração expressa (arts. 82, I, 83 e 87). A partir da alteração decorrente daquela lei, a perda do cargo, função pública ou mandato deixou de ser pena acessória e passou a constituir efeito da condenação apenas nos crimes praticados com abuso de poder ou violação de dever para com a Administração Pública e desde que a pena aplicada seja superior a quatro anos; além disso, esse efeito não é automático, devendo ser motivadamente declarado na sentença (art. 92, I e parágrafo único). Mais recentemente, a Lei nº. 9.268, de 1º.,-4-96, alterou o artigo 92 do Código Penal, passando a prover a perda de cargo, função pública ou mandato eletivo em duas hipóteses: (a) quando aplicada pena privativa de liberdade por tempo igual ou superior a um ano nos crimes praticados com abuso de poder ou violação de dever para com a Administração Pública; (b) quando for aplicada pena privativa de liberdade por tempo superior a quatro anos nos demais casos. Manteve-se a exigência do parágrafo único. Os próprios Estatutos dos Funcionários Públicos admitem, em regra, possibilidade de continuar o funcionário como titular do cargo, não obstante condenado em processo criminal, determinando que, no caso de condenação se esta não for de natureza que acarrete a demissão do funcionário, ele seja considerado afastado até o cumprimento total da pena, com direito a receber parte do vencimento ou remuneração. Mais um argumento para reforçar a tese de que o ilícito penal, só por si, não enseja punição disciplinar. (Di Pietro, ob. cit., p. 620)
Não é difícil concluir que, nas Forças Armadas, a lei do Conselho de Disciplina tornou-se anacrônica e desatualizada, principalmente porque não prevê a submissão da praça ao Conselho de Disciplina, quando condenada a pena superior a dois anos, em caso de crime comum.
Caso ocorra a condenação de praça, por período superior a dois anos e se não houver a decretação da perda da graduação como pena "acessória" prevista no Código Penal Militar, ou como "efeito" da condenação previsto no Código Penal, a solução pode ser outra.
Ou seja, a praça pode ser submetida ao processo ético, se for acusada oficialmente, ou por qualquer meio lícito de comunicação social de ter: "a) procedido incorretamente no desempenho do cargo; b) tido conduta irregular; ou c) praticado ato que afete a honra pessoal, o pundonor militar ou decoro da classe" (Decreto n. 71.500, de 5 de dezembro de 1972, art. 2°, Inciso I).
Em conclusão, nota-se que a Lei do Conselho de Disciplina das FFAA, sequer prevê a possibilidade de submissão da praça condenada, por período superior a dois anos, a pena privativa de liberdade ao processo administrativo (Conselho de Disciplina) por crer que a mera condenação já se constitui motivo para e referida exclusão (como pena "acessória", no caso de crime militar ou "efeito" da condenação no caso de crime comum).
Embora, conforme especificado anteriormente, a legislação do Conselho de Disciplina não tenha acompanhado as mudanças operadas no Código Penal comum.
Em relação às praças militares estaduais, a legislação modernizou-se, como se vê, a seguir.
V- Exclusão das praças militares estaduais, a partir da Constituição de 1988
Na sua versão original, a Constituição, promulgada em 5-10-1988 inovou ao prever no artigo 125, § 4° que, verbis:
Art. 125. Os Estados organizarão sua Justiça, observados os princípios estabelecidos nesta Constituição.
[....]
§ 4º Compete à Justiça Militar estadual processar e julgar os policiais militares e bombeiros militares nos crimes militares definidos em lei, cabendo ao tribunal competente decidir sobre a perda do posto e da patente dos oficiais e da graduação das praças.
(g. n.).
A inserção de tal dispositivo causou muita polêmica, principalmente porque previu a possibilidade da perda da graduação pelo tribunal competente, direito até, então, exclusivo dos oficiais.
Tal dispositivo concedeu aos militares estaduais um direito não extensivo aos militares federais, contrariando inclusive o Decreto Federal número 667/69, que proíbe militares estaduais possuírem direitos e condições superiores às que, por lei ou regulamento, forem atribuídas ao pessoal das Forças Armadas (art. 24).
Sobre esse dispositivo constitucional, Jorge César de Assis assim discorre, verbis:
Criou-se então, um impasse que tem atormentado os julgadores: as praças das Forças Armadas, se condenadas à pena privativa de liberdade superior a dois anos, têm como pena acessória, a exclusão das forças armadas, ex officio, nos termos do art. 125 e seguintes do Estatuto dos militares. Agora, se praça das Polícias Militares ou dos Corpos de Bombeiros Militares, a exclusão só será efetivada com a perda da graduação a ser decidida pela 2a instância da Justiça Militar Estadual, Tribunal Militar ou Tribunal da Justiça do Estados. É bom que se diga que tal dispositivo constitucional é, no mínimo, impertinente, senão inusitado, fruto, com certeza, do desconhecimento dos princípios norteadores da vida militar. As garantias constitucionais sempre foram somente aos Oficiais (Comando, chefia e direção) das organizações militares, desde a Constituição do Império até hoje [....] (ASSIS, Jorge César. Comentários ao Código Penal Militar, 7 ed. Curitiba, Juruá, 2010, p. 230).
Em que pese tais observações, o dispositivo constitucional resistiu ao tempo e manteve-se na Constituição. Hoje, a redação atual do artigo em análise, é a seguinte, verbis:
Art. 125. Os Estados organizarão sua Justiça, observados os princípios estabelecidos nesta Constituição.
§ 4º Compete à Justiça Militar estadual processar e julgar os militares dos Estados, nos crimes militares definidos em lei e as ações judiciais contra atos disciplinares militares, ressalvada a competência do júri quando a vítima for civil, cabendo ao tribunal competente decidir sobre a perda do posto e da patente dos oficiais e da graduação das praças. (Redação dada pela Emenda Constitucional nº 45, de 2004, g. n.):
O dispositivo constitucional chegou a ser amplamente debatido, no intuito de estendê-lo aos militares federais, o que foi negado pelos tribunais, verbis:
[....] VI - A inaplicabilidade da pena acessória de exclusão das FFAA, sob o argumento de inconstitucionalidade por ofensa ao art. 5º, c/c o art. 125, § 4º, ambos da CF/88, não encontra guarida no melhor direito, já que o referido dispositivo constitucional tem como objeto praças das polícias e bombeiros militares estaduais, não valendo para membros das Forças Armadas. Apelos dos militares improvidos. Decisão uniforme em relação ao oficial e majoritária quanto às praças. Apelo parcialmente provido em relação à civil, na sua forma majoritária.
(STM - AP(FO): 2008010511970 RJ 2008.01.051197-0, Relator: José Coêlho Ferreira, Data de Julgamento: 08/06/2009, Data de Publicação: 09/09/2009, g. n.)
Na sua aplicação, no âmbito dos estados, o dispositivo constitucional sofreu limitação, devido a interpretações jurisprudenciais, que o considerou aplicável, apenas em caso de condenação criminal, não em caso de transgressões disciplinares.
Por isso, ainda cabe aos Comandantes-Gerais das corporações estaduais excluir as praças mediante processo administrativo, conforme consubstanciado no verbete número 673 do Supremo Tribunal Federal: "o art. 125, § 4°, da constituição não impede a perda da graduação de militar mediante procedimento administrativo".
No entanto, de acordo com a melhor interpretação, no caso de condenação criminal, prevalece o dispositivo constitucional.
Por isso, tornou-se incorreto a pena de perda "acessória" da graduação dos militares estaduais, no caso de condenação criminal, a pena privativa de liberdade superior a dois anos, prevista no Código Penal Militar (art. 98), bem como a perda da graduação como "efeito" da condenação prevista no Código Penal comum (art. 92).
A Polícia Militar do Paraná atualizou-se (embora com lapso temporal considerável, em relação à promulgação da Constituição de 1988), com a edição da Lei número 16.544, de 14 de julho de 2010, que previu, em relação às praças, duas espécies de processos administrativos: o Auto Disciplinar de Licenciamento (ADL) e o Conselho de Disciplina (CD).
O ADL é composto por um Oficial do serviço ativo, como presidente e um Primeiro-Sargento ou Subtenente, como escrivão, destinado a apurar a capacidade de praça ativa ou inativa, com menos de 10 (dez) anos de serviço prestados à Corporação, na data do fato, para permanecer, nas fileiras da PMPR, na condição em que se encontra (art. 23).
Já o Conselho de Disciplina, destinado a julgar a capacidade de praça especial ou de praça, ativa ou inativa, com mais de 10 (dez) anos de serviço prestados à Corporação para permanecer, nas fileiras da PMPR, na condição em que se encontra. É composto por 3 (três) membros: o mais antigo, no mínimo um oficial intermediário (Capitão), a quem caberá a presidência dos trabalhos e, ao mais moderno, o encargo de escrivão cuja nomeação poderá recair num Subtenente ou Primeiro-Sargento (art. 27).
Tais processos preveem verbis:
Art. 5º. Será submetido a processo disciplinar o militar estadual que [....]
V - for condenado por crime de natureza dolosa a pena privativa de liberdade superior a dois anos, com trânsito em julgado;
[....]
Art. 26. Recebidos os Autos da Apuração Disciplinar de Licenciamento, o Comandante-Geral, motivadamente, solucionará, determinando: [.....]
V - a remessa do processo ao Órgão de segunda instância da Justiça Militar estadual, se o processo tiver sido instaurado com fundamento no inciso V do art. 5º desta lei, e considere o acusado incapaz de permanecer na ativa ou na situação em que se encontra na inatividade.
[....]
Art. 30. Recebidos os autos do Conselho de Disciplina, o Comandante-Geral, motivadamente, solucionará, determinando: [....]
V - a remessa do processo ao Órgão de segunda instância da Justiça Militar estadual, se o Conselho de Disciplina tiver sido instaurado com fundamento no inciso V do art. 5º desta lei, e considere o acusado incapaz de permanecer na ativa ou na situação em que se encontra na inatividade
[....]
Art. 40. O Órgão de segunda instância da Justiça Militar estadual, julgando o militar estadual culpado e incapaz de permanecer na ativa ou na inatividade, deverá, conforme o caso: [....]
II - se praça, determinar a perda da graduação.
(Ob. cit., g. n.).
Portanto, no caso de condenação criminal, compete apenas ao Tribunal de Justiça decretar a perda da graduação, em caso de condenação criminal, a pena privativa de liberdade superior a dois anos, com trânsito em julgado.
Em síntese, o processo de exclusão de praças condenadas na Corporação (PMPR) difere daquele aplicado nas Forças Armadas. No caso da PMPR, há necessidade de se realizar um juízo de valor da condenação, e não se aplica a pena de exclusão como pena "acessória" (CPM, art. 98) ou como mero "efeito" da condenação (CP, art. 92).
Embora, o motivo para a exclusão continua sendo o mesmo, tanto na Corporação, quanto nas Forças Armadas, ou seja, a própria condenação criminal e sua repercussão nos princípios da hierarquia e disciplina.
Eis o chamado "resíduo" da condenação.
6) Princípios da Hierarquia e Disciplina
A hierarquia e a disciplina são as bases de toda instituição militar, onde a autoridade e a responsabilidade crescem com o grau hierárquico.
No Estatuto dos militares a “hierarquia militar é a ordenação da autoridade, em níveis diferentes, dentro da estrutura das Forças Armadas. A ordenação se faz por postos ou graduações; dentro de um mesmo posto ou graduação se faz pela antiguidade no posto ou na graduação. O respeito à hierarquia é consubstanciado no espírito de acatamento à sequência de autoridade” (Lei Federal n. 6.880, de 09-12-1980, art. 14, § 1°).
A disciplina militar é a rigorosa observância e o acatamento integral das leis, regulamentos, normas e disposições, traduzindo-se pelo perfeito cumprimento do dever por parte de todos e de cada um dos componentes do organismo militar (RDE, art. 8°, g. n.).
Na legislação, existe também a preocupação do militar cumprir as regras do ordenamento jurídico, como o de "cumprir e fazer cumprir as leis, regulamentos, instruções e ordens emanadas de autoridades competentes" (Lei 1.943, de 23 de Junho de 1954, art. 102, letra "c").
Ademais, a lei prevê também ao militar, a submissão a um juramento ético, quando do ingresso na Corporação, verbis:
Alistando-me soldado na Polícia Militar do Estado, prometo regular minha conduta pelos preceitos da moral, respeitar os meus superiores hierárquicos, tratar com afeto os meus companheiros de armas e com bondade aos que venham a ser meus subordinados; cumprir rigorosamente as ordens das autoridades competentes e votar-me inteiramente ao serviço do Estado e de minha Pátria, cuja honra, integridade e instituições, defenderei com o sacrifício da própria vida.
(Ob. cit., art. 49).
Regra geral, quando se analisa a exclusão do militar como "resíduo" da condenação visa somente sopesar os efeitos da referida condenação, sobre os princípios da hierarquia, da disciplina e do juramento ético, realizado pelo militar.
Além desses aspectos acima discorridos outros devem ser avaliados, como a conduta do acusado, antes e depois da condenação, os serviços prestados por ele, a justiça da decisão, tudo, analisado com serenidade, imparcialidade e tranquilidade, requisitos indispensáveis de uma solução justa e equânime.
Em síntese, aos militares estaduais a submissão ao processo ético, em virtude de condenação a pena privativa de liberdade superior a dois anos é obrigatória, porque decorre de lei.
Mas, a efetiva exclusão da praça não é medida obrigatória, porque inaplicável ao militar estadual as penas “acessórias” do Código Penal militar (art. 98) ou os chamados “efeitos” da condenação do Código penal comum (art. 92).
REFERÊNCIAS
ASSIS, Jorge César. Comentários ao Código Penal Militar, 7 ed. Curitiba, Juruá, 2010
BRASIL. Decreto-Lei n. 2.848, de 07-12-1940, Código penal. Disponível em: <https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/Decreto-Lei/Del2848.htm>, acesso em 27-06-2015.
_______. Decreto-Lei n 667, de 02-07-1969, reorganiza as Polícias Militares e os Corpos de Bombeiros Militares dos Estados, dos Territórios e do Distrito Federal. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/Decreto-Lei/Del0667.htm>, acesso em 23-06-2015.
_________. Decreto-Lei n. 1.001/1969 de 21-10-1969, Código Penal Militar. Disponível em: <http://legislacao.planalto.gov.br/legisla/legislacao.nsf/Viw_Identificacao/DEL%201.001-1969?OpenDocument>, acesso em 22-06-2015.
________. Lei n. 5.836, de 05-12-1972, dispõe sobre o Conselho de Justificação. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/1970-1979/L5836.htm>, acesso em 20-06-2015.
________. Decreto n. 71.500, de 05-12-1972, dispõe sobre o Conselho de Disciplina. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto/d71500.htm>, acesso em 10-06-2015.
________. Lei n. 6.880, de 09-12-1980, Estatuto dos Militares. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/Leis/L6880.htm>, acesso em 20-06-2015.
_________. Constituição da república federativa do Brasil de 1988. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/Constituicao/Constituicao.htm, acesso em 15-3-2016.
________. STM - AP(FO): 2008010511970 RJ 2008.01.051197-0, Relator: José Coêlho Ferreira, Data de Julgamento: 08/06/2009, Data de Publicação: 09/09/2009.
________. STM - AP(FO): 25920037070007 PE 0000002-59.2003.7.07.0007, Relator: José Américo dos Santos, Data de Julgamento: 30/11/2010, Data de Publicação: 25/02/2011 Vol: Veículo: DJE.
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PARANÁ. Lei Estadual n. 1943, de 23-06-1954 – Código da Polícia Militar do Paraná, publicado no Diário Oficial n. 98 de 05-07-1954. Disponível em: <http://www.legislacao.pr.gov.br/legislacao/listarAtosAno.do?action=exibir&codAto=14555&indice=8&anoSpan=1960&anoSelecionado=1954&isPaginado=true>, acesso em 28-06-2015
_________. Lei Estadual n. 16.544 de 14-07-2010, que dispõe que o processo disciplinar, na PMPR publicada no Diário Oficial nº. 8262 de 14-07-2010. Disponível em: http://www.legislacao.pr.gov.br/legislacao/listarAtosAno.do?action=exibir&codAto=56213&codItemAto=435524, acesso 21-06-2015
Mestre em políticas públicas pela Universidade Estadual de Maringá (2016), graduado no Curso de Formação de Oficiais pela Academia Policial Militar do Guatupê (1994), graduado em Administração pela Faculdade Estadual de Ciências Econômicas de Apucarana (1998) e graduado em Direito pela Universidade Estadual de Londrina (2009), com aprovação no Exame da Ordem dos Advogados do Brasil. Possui experiência na docência militar nas disciplinas de Direito Penal, Direito Processual Penal e Direito Administrativo. Possui ampla experiência em Polícia Judiciária Militar e experiência no setor público, principalmente em gestão de pessoas e formulação de projetos.
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: SILVA, Douglas Pereira da. A exclusão de militar em decorrência de condenação penal: uma análise comparativa entre militares estaduais e federais Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 29 abr 2016, 04:00. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/artigos/46541/a-exclusao-de-militar-em-decorrencia-de-condenacao-penal-uma-analise-comparativa-entre-militares-estaduais-e-federais. Acesso em: 22 nov 2024.
Por: Gabriel Bacchieri Duarte Falcão
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