RESUMO: Consentâneo aos lastros humanizantes da Constituição, o princípio da dignidade da pessoa humana é uma referência jurídico-normativa inserida no âmago do ordenamento jurídico. A despeito de todas as imprecisões conceituais, comporta os reflexos protetivos daquilo que preconiza a própria existência humana, sendo um construído permanente, assegurando os direitos invioláveis conquistados historicamente. Outrossim, é assente a indelével importância desse princípio prudencial na revitalização da democracia, promovendo uma articulação e um compromisso do Estado para com a cidadania e não só pelo digno e humano, mas, mormente, espraiando a participação democrática; reinventando a comunidade; projetando sentido aos direitos e objetivando a consecução dos direitos humanos. Nessa senda, ao se laborar em termos de um novo paradigma – Teoria Crítica dos Direitos Humanos – faz ter-se um compreensão crítica do Direito e da sociedade. Para isso, fazem-se necessário perquirir as premissas fundantes da concepção liberal-hegemônica de direitos humanos, delineando através de um novo caminho, uma corrente capaz de abarcar as problemáticas concernentes as incompletudes da teoria dogmática de direitos humanos.
Palavras-chave: Direitos Humanos; Democracia; Filosofia da Práxis.
SUMÁRIO: Introdução; 1. O Princípio da Dignidade da Pessoa Humana: Uma Construção Histórica; 2. O Conceito de Dignidade Humana e a Irrupção de uma Nova Problemática: Direitos Humanos Positivados; 2.1. Fundamentos da Modernidade; 2.2. A Concepção Liberal-Individualista dos Direitos Humanos; 2.3. Contribuição Crítica à Dignidade Humana e aos Direitos Humanos; Considerações Finais; Referências.
Introdução
Tencionando contrabalançar e refundar um novo pacto civilizatório, a Constituição de 1988 é resultado das reivindicações exsurgentes na história democrática brasileira, marcada por uma democracia delegativa[1], fraca consciência constitucional e amalgamada em fortes contradições sociais. Neste diapasão, urge a necessidade de justificar o lastro do qual emergiu o edifício constitucional, qual seja: o construto da dignidade humana, que devido a uma banalização do seu uso está nas linhas limítrofes de uma anemia significativa.
Este trabalho colima perquirir as representações teóricas liberais dos direitos humanos, objetivando compreender as suas contribuições e as suas lacunas a serem completadas por uma teoria crítica dos direitos humanos. Compreender os direitos humanos e o princípio da dignidade humana como uma conquista histórica resultado das lutas perenes engendradas no campo social, político e jurídico é fundamental para racionalizar uma teoria atenta as contradições sociais e catalisar uma reflexão dos fundamentos, premissas e discursos dos direitos humanos na contemporaneidade.
1. O Princípio da Dignidade da Pessoa Humana: Uma Construção Histórica
“Já existe felizmente, em nosso país uma consciência nacional que vai introduzindo o elemento da dignidade humana em nossa legislação. Essa consciência que está temperando a nossa alma, e há de por fim humanizá-la, resulta de mistura de duas correntes diversas: o arrependimento dos descendentes de senhores, e a afinidade de sofrimento dos herdeiros de escravos”. Joaquim Nabuco, 1883.
Enceto o texto com um excerto da abertura de O Abolicionismo – “já existe felizmente, em nosso país uma consciência nacional que vai introduzindo o elemento da dignidade humana em nossa legislação” –; que reverbera como o nosso processo de participação e abertura democrática, submetido a dois regimes de exceção, ainda está fragmentado e, apesar dos avanços, pouco possibilitou no que tange a conscientização popular sobre o reconhecimento das minorias.
Ao longo do novo regime constitucional instituído, cabe (re)pensar a hermenêutica constitucional que norteia o novel regime democrático. Decerto, vários problemas sociais assolam o país, obstando a concretude da supracitada dignidade citada por Nabuco, elevada ao nível de fundamento[2] do dito e escrito Estado Democrático de Direito. Alegar que o princípio da dignidade da pessoa humana[3] engendra novos princípios e reveste a atuação do Estado, não é trazer à lume, Fiat Lux, que todos os nossos problemas de compreensão e justificação estão resolvidos por esse meta-princípio. Vê-se, pois, que a dignidade da pessoa humana é uma construção histórica pensada a partir das condições materiais de existência de uma determinada época.
A essência do homem e, por conseguinte, a compleição de sua dignidade se dá mediante a materialidade no conjunto das relações sociais. A ideia de igual dignidade entre todos os homens e mulheres não possui existência própria, pelo contrário, deriva do substrato material da história. Destarte, entender as formas de constituição das ideias é uma condição sine qua non para a compreensão da historicidade da dignidade humana, este termo possui natureza polissêmica, ou seja, constitui-se por contornos imprecisos, porosos, difíceis de serem concatenados e auferidos. Daí a cautela em forjar um conceito de dignidade humana sob o lume de determinada dimensão teórica, dado a complexidade que reveste o tema. Conforme lembra Comparato (2003, p.3.): “Na verdade, a indagação central de toda a filosofia é bem esta: - Que é o homem? A sua simples formulação já postula a singularidade eminente deste ser, capaz de tomar a si mesmo como objeto de reflexão”.
Todas as ideias, independente do seu locus – morais, sociais, políticas, jurídicas, religiosas, filosóficas, artísticas, etc. – “não se desenvolvem por si mesmas como entidades substantivas, condensadas no ápice pela Ideia Absoluta, identidade final entre Ser e Saber”(MARX; ENGELS, 1977, p. 21).
No curso de nossa longa história, sociedades reservaram o adjetivo “humano” para estratos específicos. Não atribuindo igual dignidade àqueles que, devido a divisão social do trabalho, não eram considerados como sujeitos livres e iguais em direitos e dignidade.
Uma idêntica dignidade entre os seres humanos é uma conquista histórica de nosso tempo. Afirmar, meramente, a existência per se de uma dignidade inerente a todos os seres humanos é (re)cair em uma falsa consciência[4] demasiadamente abstrata que, por carência de fundamentação, estiola a fulcralidade desse alicerce da democracia.
Nesta esteira questiona Rabenhorst (2001, p.10):
Ao descrevermos a dignidade humana por meio de expressões como “valor intrínseco”, “valor infinito” ou “fim em si mesmo”, estamos realmente esclarecendo o efetivo fundamento da igualdade entre todos os homens, ou simplesmente dando um outro nome àquilo que deveria ser explicado? Afinal, por que todo e qualquer indivíduo, a despeito de seus méritos, qualidades individuais ou papéis sociais seria merecedor da mesma consideração? O respeito que devemos a um homem honesto e cumpridor dos seus deveres é o mesmo que devemos aos patifes?
O atributo que distingue o gênero humano dos animais é a capacidade daquele criar as suas próprias condições materiais de existência(MARX; ENGELS, 1977). Tal faculdade permite a criação de uma consciência – indissociável dos meios materiais – legitimadora, ou não, da realidade vigente. Inclusive, como preleciona Finkienkrant(1988, p.9):
O que durante muito tempo distinguiu o homem da maioria das outras espécies foi justamente o fato de que eles não se reconhecem entre si. Um gato, para um gato, sempre foi um outro gato. Um homem, ao contrário, deveria preencher determinadas condições draconianas para não ser excluído, inapelavelmente, do mundo humano. O que caracterizava o homem, a princípio, era o fato de reservar zelosamente o título de homem apenas para sua comunidade.
Dessa feita, ao aduzir a historicidade das ideias e do princípio da dignidade da pessoa humana, tenciono(e espero que você, leitor, compartilhe deste intento) condensar reflexões capazes de justificar a indelével importância desse princípio para a incolumidade democrática.
Reconhecer a existência de processos históricos que subjazem o construto da dignidade humana, não deve dar ensejo para confundi-lo com uma mera ideologia[5]. Mas, como bem nota (ECO; MARTINE, 2000), consiste em entender a necessidade cintilar da democracia – fundada numa sociedade laica, não preconceituosa e dialógica - na manutenção e perene ressignificação da dignidade humana e da concretude de direitos auferidos através das conquistas sociais.
Na democracia grega[6], os indivíduos postulantes a condição de cidadão precisavam satisfazer um rol de requisitos. Atenas, por exemplo, ainda que durante sua época com resquícios democráticos(séc. VI a.c.), adstringia a participação política aos indivíduos de sexo masculino, filhos de atenienses e com o usufruto pleno de suas liberdades. A grosso modo, os antigos gregos atribuíam ao logos(razão), o fator distintivo entre os homens e os animais. Sendo o próprio logos, responsável por determinar o grau de dignidade de um indivíduo. Nestes termos, cada um ao seu modo, Platão e Aristóteles, instrumentalizaram o artifício do logos utilizando-o como fundamento da desigualdade e a estratificação social entre as pessoas.
Destarte, um déficit na capacidade de exercício do logos, justificava, segundo as representações de Platão e Aristóteles, a exclusão de escravos e mulheres da vida política, bem como o aviltamento de sua dignidade. A propósito, interpretando Aristóteles, aduz Vergnières (1999, P.163), “o escravo participa do logos, mas só participa de maneira indireta: percebe-o em outro, sem possuí-lo ele próprio. O escravo se manifesta, pois, primeiro por deficiência intelectual”.
2. O Conceito de Dignidade Humana e a Irrupção de uma Nova Problemática: Direitos Humanos Positivados
2.1. Fundamentos da Modernidade
Com a modernidade, a dignitatis hominis respalda uma idêntica igualdade entre todos os seres humanos. Obtendo uma significação ampla, não fica adstrita a uma classe ou estamentos específicos. Doravante, paulatinamente, os fundamentos de um Direito Natural composto por um conteúdo axiológico afastam-se dos postulados teológicos.
Contudo, para tal compreensão, não podemos deixar de citar o relevante papel de Hugo Grócio. Este delineia os argumentos seminais de um jusnaturalismo laico, “ao afirmar que as leis naturais seriam tão imutáveis que nem mesmo Deus poderia modificá-las”(RABENHORST, 2001, p.29).
Outro ponto relevante na obra de Grócio é a configuração de uma dimensão subjetiva[7] do Direito Natural. Este não é subserviente a uma esfera objetiva(sobretudo teológica) – reduzida a um campo objetivo, antecessor as leis das sociedades humanas -, realça, também, o relevo de um sujeito moral, observante de caracteres ou qualidades morais, facultadas pela natureza social e racional do sujeito. As revoluções burguesas do século XVIII hauriram ideias de pensadores como: Grócio, Voltaire, Locke e Rousseau. Tais contribuições catalisaram a irrupção e a conseqüente manutenção do modelo de Estado Liberal Burguês, calcado na ideia de um homem in abstract livre e esclarecido, capaz de orientar-se por desígnios autônomos.
É indubitável, que no contexto da (re)invenção do conceito de dignidade humana, Immanuel Kant – o filósofo do Aufklärung (Esclarecimento) – realizou formidáveis contribuições para a atual compreensão do termo no ordenamento jurídico pátrio. O indivíduo, para Kant, deve deliberar os seus projetos sob os limites de sua própria consciência, desde que respeite e preconize a igual liberdade de todos os outros, possuidores de uma mesma natureza livre e racional e, por conseguinte, de uma mesma dignidade. Sendo o sujeito capaz de sobressair do estágio de menoridade, através do Esclarecimento que:
É a saída do homem de sua auto-imposta menoridade. Menoridade é a incapacidade de se servir de seu entendimento sem a direção de um outro. Ele próprio é culpado por tal menoridade se suas causas não residem na falta de entendimento, mas de resolução e coragem para usar seu próprio entendimento sem a direção de um outro. Sapere aude! Tem coragem de usar teu próprio entendimento! Tal é o lema do Esclarecimento(POPPER, 2006, p.163).
2.2. A Concepção Liberal-Individualista dos Direitos Humanos
A introdução do capitalismo – em detrimento do feudalismo – nas economias européias, ao contrário do que se pensa, não modificou a desigualdade socioeconômica, pelo contrário, a transição entre os dois sistemas econômicos acentuou a desigualdade fundada no privilégio. Neste contexto surgem as revoluções burguesas do século XVIII, explicitando – tanto a Declaração Francesa de 1789, como a Declaração de Direitos do Bom Povo da Virgínia de 1776 – uma igualdade natural entre todos os homens. Não obstante, os dois países[8], em suas declarações, negaram o fato que, nas colônias francesas e nos estados estadunidenses, ocorria a escravidão das populações africanas[9].
Nesta senda, a igualdade tutelada – calcada nas concepções de Locke recepcionadas nas formulações dos documentos – permitiu alguns avanços, porém eram meramente jurídico-formais, sendo olvidada a desigualdade socioeconômica, a função social da propriedade e os direitos das minorias, como, por exemplo, os negros, mulheres e índios.
O vilipêndio da dignidade humana da população negra nas colônias européias engendrou seqüelas amalgamadas a formação societária dessas sociedades, aparentes no preconceito desarrazoado e dificuldade de acesso da população negra aos mais altos níveis de ensino e pesquisa. Sem dúvida alguma, a condição das mulheres negras é ainda pior, pois sofrem um preconceito duplamente composto, constituído pela discriminação de gênero e discriminação racial, caracterizando novas especificidades. Sobre a dificuldade da mulher negra na própria integração aos movimentos sociais na luta pela concretude de direitos, diz Ikawa e Piovesan (2009, p.154):
Inicialmente, a discriminação contra mulheres negras foi comumente excluída tanto do movimento feminista quanto do movimento negro. O movimento feminista foi reiteradamente visto como um movimento de mulheres brancas, enquanto o movimento negro foi reiteradamente visto como um movimento de homens negros. Segundo, a mulher negra pode ser discriminada por ser negra, por ser mulher ou pelos dois aspectos de sua identidade. Essa complexidade da discriminação pode por vezes criar resistências adicionais a se tratar concomitantemente o gênero e a raça.
2.2. Contribuição Crítica à Dignidade Humana e aos Direitos Humanos
Cabe destacar, a incompletude da interpretação liberal sobre as conjecturas marxistas, considerando-as como um reducionismo econômico rasteiro. O que o pensamento marxista fez foi demonstrar as interpenetrações do conhecimento jurídico que – como as demais formas de consciência – não é um construto autônomo. Logo, urge clamorosamente aferir os problemas de efetividade da teoria liberal dos direitos humanos, sob a lente crítico-dialética do materialismo histórico-dialético.
A principal resistência de Marx aos “direitos do homem” das declarações do século XVIII, concerne ao abstracionismo advindo da frugal asserção de uma natureza livre e racional do homem, sem considerar as condicionantes das condições materiais, que obstam a afirmação de uma igualdade de direitos de fato, consoante nos ensina em seus Manuscritos econômico-filosóficos de 1844 que “o economista nacional – tão bem quanto a política nos seus direitos humanos – reduz tudo ao homem, isto é, ao indivíduo, do qual retira toda determinabilidade, para o fixar como capitalista ou trabalhador”(MARX, 2004, p.149).
Assim, os “direitos do homem” das declarações francesa e estadunidense do século XVIII explicitam-se como postulados formais vazios preenchidos retoricamente. A solução para este traço da teoria jurídica era contextualizar e problematizar a realidade social, na qual, os documentos de “direitos do homem” se organizam. Conquanto, a ficção legal de igualdade, ironicamente, teve seu suporte teórico corroborado pela Declaração Universal de Direitos Humanos de 1948, que não ensejou um afastamento[10] da ilusão da existência de direitos autônomos e auto-regulados, como bem expõe o seu artigo 1º: “Todas as pessoas nascem livres e iguais em dignidade e direitos. São dotadas de razão e consciência e devem agir em relação umas às outras com espírito de fraternidade”.
A própria ideia de dignidade humana permanece adstrita a concepção essencialista dos documentos liberais antecessores, ao proclamar a dignidade humana como inerente a todos os membros da família humana. Vê-se, pois, nos fundamentos dos direitos humanos – seja nas declarações nacionais do século XVIII como nas declarações universais contemporâneas – a tendência de negar problemáticas indeléveis estabelecidas na própria realidade social. Locke, por exemplo, um dos maiores ícones do liberalismo moderno, defende a existência de um perímetro de não-interferência que circunda o indivíduo, sendo a liberdade um direito intrínseco ao homem; concomitante, não consegue justificar contradições incomensuráveis de sua própria retórica. Nesta orientação, coloca Mészáros:
O verdadeiro significado dos “direitos do homem” torna-se transparente quando lembramos do padrão desigual que Locke quer aplicar, de um lado, aos pobres rigidamente controlados (aqueles que requerem passes especiais até para o “privilégio” de mendigar, com conseqüências terríveis para aqueles que infringem as regras: “Todo aquele que forjar um passe perderá as orelhas pela falsificação, da primeira vez que for considerado culpado de tal ato”), e, de outro lado, àqueles que são responsáveis pelos pobres (“se qualquer pessoa morrer por necessidade de socorro, em qualquer paróquia em que a pessoa deveria ser socorrida, seja a referida paróquia multada de acordo com as circunstâncias do fato e a atrocidade do crime”) – sem mencionar a hierarquia social superior que toma a si o direito de sancionar essas medidas “esclarecidas”(MÉSZÁROS apud LOCKE, 2008, p. 159-160).
O ponto nodal da crítica marxiana aos direitos humanos, não é em face dos próprios direitos humanos, mas na forma como foram – e ainda são – justificados, abordados e descritos nos documentos internacionais advindos dos organismos internacionais de cooperação interestatal, responsáveis pela ressonância da perspectiva liberal dos direitos humanos no século XX e XXI. Portanto, ao contrário do que aduz a famigerada premissa do livro A Era dos Direitos de Bobbio – afirmando que o problema dos direitos fundamentais não é de justificação, mas de realização ou proteção(BOBBIO, 1992) – precisamos situar a fundamentação da dignidade da pessoa humana aos cortes epistemológicos do materialismo histórico-dialético.
A concepção de direitos humanos possui vertentes distintas que se contradizem e/ou complementam. Nesta celeuma conceitual, segundo o paradigma teórico de Herrera Flores (2009), destacam-se as vertentes liberal-individualista e crítico-dialética. A primeira preconiza que os direitos humanos são princípios, normas e valores universalmente reconhecidos como imprescindíveis para uma salutar convivência humana. Sua aceitação assenta-se na compreensão de que os direitos humanos estão fundados na igualdade de todos os seres humanos, detentores de um mesmo conteúdo de dignidade.
Sob os postulados da supracitada teoria, os direitos humanos são uma realidade já alcançada, ou seja, temos os direitos antes mesmo de dispormos das condições materiais para o seu exercício. Consoante preceitua o art. 2º da Declaração Universal de Direitos Humanos: “todos os seres humanos podem invocar os direitos e as liberdades proclamados na presente declaração”. Nos termos desta perspectiva liberal, ocorre uma profusão de direitos inócuos, dado que, por ausência de condições, a maioria da população mundial não pode exercê-los(MAMEDE, 2012).
Todos os problemas lastreados nos ditames de uma teoria liberal-tradicional dos direitos humanos instigaram a irrupção de uma nova problemática, qual seja a necessidade de um referencial teórico que englobe os contextos concretos, em detrimento da demasiada abstratividade dos documentos internacionais. Nesta linha de análise, a teoria crítico-dialética aduzida por Herrera Flores (2009) propõe o entendimento dos direitos humanos enquanto processos que são perenemente ressignificados e (re)inventados pelas lutas populares empreendidas pelos movimentos sociais e organizações populares.
Os direitos humanos não são um dado hermético, mas um construído histórico, um resultado sempre provisório das lutas que os seres humanos encetam para a consecução do acesso às condições necessárias à vida. Destarte, a Constituição e os Tratados Internacionais não são os responsáveis pela criação dos direitos humanos: confundi-los com os direitos positivados na ordem jurídica nacional e internacional seria (re)cair, ingenuamente, em uma falácia positivista. Todavia, não podemos olvidar a importância destes instrumentos enquanto garantia jurídica e, por conseguinte, para a plena efetivação dos direitos humanos: os movimentos sociais buscam bens para usufruir um meio digno de vida e as normas jurídicas resultantes dessa persecução engendrarão a garantia desses bens a duras penas conquistados(MAMEDE, 2012).
Considerações Finais
Diante do exposto, percebe-se que os direitos humanos, quando abordados em termos gerais, possuem sua significação esvaída, devido, sobremaneira, ao individualismo e a abstratividade norteadores de suas abordagens. Não existe, a priori, uma incompatibilidade entre os direitos humanos e o marxismo, porquanto quando as lutas sociais são contextualizadas os direitos humanos podem ser compreendidos sob os ditames de um enfoque emancipador, comprometidos com uma igualdade atinentes as diferentes econômicas, étnicas e de gênero.
Ressalte-se, que a dominação ideológica, no entanto, não se propala unicamente no campo das idéias, mas consubstancia relações de dominação nas relações sociais. Portanto, a ideologia hegemônica transpõe o campo do discurso e alcança as construções de materialidade na realidade social, qual seja: Estado, Igreja, Família, Ensino, Religião, Etc. Compreender as contradições sociais que subjazem as práticas e os discursos hegemônicos é imprescindível para o reconhecimento e a reformulação dos saberes envoltos aos direitos humanos.
Referências
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BRASIL. Declaração Universal dos Direitos Humanos. Disponível em: http://portal.mj.gov.br/sedh/ct/legis_intern/ddh_bib_inter_universal. Acesso em: 25 de maio de 2012.
CHAUI, M. S. O que é ideologia?. 1. ed. São Paulo: Brasiliense, 1980.
COMPARATO, Fabio Konder. A Afirmação Histórica dos Direitos Humanos. São Paulo: Saraiva, 2003.
ECO, Umberto; MARTINE, Carlo Maria. Em que crêem os que não crêem? Rio de Janeiro: Record, 2000.
FINKIENKRAUT, Alain. A humanidade perdida. São Paulo: Ática, 1988.
HERRERA FLORES, Joaquín. A (re)invenção dos direitos humanos. Florianópolis: Fundação Boiteux, 2009.
IKAWA, Daniela; PIOVESAN, Flávia. Feminismo, Direitos Humanos e Constituição. In:SARMENTO, Daniel. Filosofia e Teoria Constitucional Contemporânea. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2009.
LÖWY, Michel. Ideologias e ciência social: elementos para uma análise marxista. 7.
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MAMEDE, A.J.S. Tribunal Popular da Terra e o Conceito de Direitos Humanos: (Re)Inventando Novos Paradigmas. Revista Crítica do Direito, n.1, v.28. 2012.
MARX, Karl; ENGELS, Friedrich. A ideologia alemã (Feuerbach). São Paulo, Editorial Grijalbo, 1977.
MARX, Karl. Manuscritos econômico-filosóficos. São Paulo: Boitempo, 2004.
MÉSZÁROS, István. Filosofia, ideologia e ciência social; (tradução Ester Vaisman). São Paulo: Boitempo, 2008.
POPPER, Karl Raimund. Em busca de um mundo melhor (tradução Milton Camargo Mota). São Paulo: Martins, 2006.
RABENHORST, Eduardo Ramalho. Dignidade Humana e Moralidade Democrática. Brasília: Brasília Jurídica, 2001.
STRECK, Lenio Luiz. Hermenêutica Jurídica e(m) Crise: Uma exploração hermenêutica da construção do Direito. Porto Alegre: Livraria do Advogado Editora. 2009.
VERGNIÈRES, Solange. Ética e Política em Aristóteles. São Paulo: Paulus, 1999.
[1] A transição de regimes autoritários para governos eleitos democraticamente não encerra a tarefa de construção democrática: é necessária uma segunda transição, até o estabelecimento de um regime democrático. A escassez de instituições democráticas e o estilo de governo dos presidentes eleitos em vários países que saíram recentemente de regimes autoritários – particularmente na América Latina – caracterizam uma situação em que, mesmo não havendo ameaças iminentes de regresso ao autoritarismo, é difícil avançar para a conslidação institucional da democracia. O estudos desses casos sugere a existência de um tipo peculiar de democracia em que a delegação prevalece sobre a representação, denominada de democracia delegativa, fortemente individualista, com um corte mais hobbesiano do que lockiano(O’DONNELL apud STRECK, 2009, p.21).
[2] Art 1° A República Federativa do Brasil, formada pela união indissolúvel dos Estados e Municípios e do Distrito Federal, constitui-se em Estado Democrático de Direito e tem como fundamentos: (...) III – a dignidade da pessoa humana(Art. 1°, III, C.F.)
[3] A dignidade humana, plasmada no texto constitucional, guarda um liame, com a concepção moderna do conceito, assentada na segunda máxima do imperativo categórico kantiano, a saber: Aja de tal maneira que tu trates a humanidade, tanto em tua pessoa como na pessoa dos demais, sempre como um fim em si mesmo e nunca apenas como um meio.
[4] O conceito de consciência assume formas cingidas pela reformulação do termo hegeliano empreendida por Marx. Para este último a consciência não é uma entidade autônoma livre, pois, dependerá das condições materiais de existência constituídas por indivíduos reais inseridos nas contradições sociais. Logo, a Bewusstsein(consciência) nunca determinará de forma uníssona o Das bewusste Sein(o ser consciente); e o ser dos homens e mulheres é o processo histórico na realidade social.
[5] A palavra ideologia é costumeiramente utilizada em referência a um “ocultamento da realidade”(CHAUÍ, 1980, p.8), a tentativas de legitimar a existência de ideias aparentemente independentes da realidade social, ou seja, como ideias que existiriam por si só, independendo das condições materiais de existência. Outros pensadores marxistas - como, por exemplo, Lênin e Gramsci - conceituam ideologia, de uma forma diferente, como “qualquer concepção da realidade social ou política, vinculada aos interesses de certas classes sociais.”(LÖWY, 1991, p.12).
[6] Devemos lembrar que a nossa compreensão da democracia grega é sempre limitada pelas fontes de que dispomos. Em geral, costumamos falar da democracia grega tomando como base Platão. Ressalve-se, no entanto, que Platão era um crítico ferrenho da democracia grega. As informações sobre a situação das mulheres, escravos e estrangeiros não são muito precisas. Das primeiras, sabemos que eram livres, mas que não pertenciam ao corpo político por serem consideradas inferiores. Quanto aos escravos, cabe elucidar, que não há comparação entre a instituição social da escravidão na Grécia Antiga, com aquela que conhecemos em nosso país quando milhões de africanos foram obrigados a trabalhar nas lavouras de cana-de-açúcar(RABENHORST, 2001, p.16-17).
[7] O germe dessa ideia de direito subjetivo pode ser encontrado em vários teólogos medievais, principalmente entre os nominalistas, que já interpretavam o direito como uma faculdade natural da liberdade(RABENHORST, 2001, p.30).
[8] Ressalve-se que, apesar de serem elaboradas no mesmo ano – ambas foram promulgadas no ano de 1776 -, a Declaração de Direitos da Virgínia precede a Declaração de Independência dos Estados Unidos da América.
[9] A abolição da escravatura, nos Estados Unidos, só ocorrera com a reforma constitucional implementada pelas emendas constitucionais 13ª, 14ª e 15ª. Ressalte-se, que tais emendas à Constituição Americana deve-se, sobretudo, ao reconhecimento do papel precípuo dos soldados negros estadunidenses na Guerra Civil Americana (1861 – 1865).
[10] Visando estabelecer uma simetria meramente jurídica entre os indivíduos, já em seu art. 1. º, aduz a Declaração Francesa de 1789: “os homens nascem livres e iguais em direitos”.
Advogado. Bacharel em Direito pela Universidade Federal da Paraíba - PB.
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: GILBERTO ALVES DE AZERêDO JúNIOR, . Princípio da dignidade da pessoa humana e a ficção legal da igualdade: afinal, o que é isto - direitos humanos? Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 19 jul 2017, 04:15. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/artigos/50506/principio-da-dignidade-da-pessoa-humana-e-a-ficcao-legal-da-igualdade-afinal-o-que-e-isto-direitos-humanos. Acesso em: 27 nov 2024.
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