Resumo: O presente artigo tem por escopo delinear a importância da decisão jurídica para a formação do objeto de estudo da Ciência do Direito, tendo o homem como centro produtor de conflitos e, ao mesmo tempo, disciplinador das próprias regras de convivência social. Após mencionar os três tipos de Ciência do Direito descritos à Luz de Tércio Ferraz Júnior, dentro da perspectiva de que a decidibilidade dos conflitos sociais é inerente ao atual panorama jurídico, enfatiza-se e o modelo empírico, o qual adota o pensamento jurídico como sistema explicativo da conduta humana. Será explanado ainda o contexto histórico e filosófico em que se deu o desenvolvimento da Ciência do Direito, passando pela evolução das fases positivista e da argumentação jurídica, destacando o papel do julgador na formação do raciocínio jurídico. Por fim, o foco será dado na interação dialética do sistema jurídico para mostrar que a formação da cultura jurídica moderna resulta da força dogmática do direito e da pratica jurídica, de modo que a jurisdição seja exercida para orientação, seja para pacificação social.
Palavras-chave: Ciência do Direito. Decisão jurídica. Conflito social. Sistema jurídico. Argumentação jurídica.
Abstract: The purpose of this article is to outline the importance of the legal decision for the formation of the object of study of the Science of Law, with man as the center of conflict and at the same time disciplining the rules of social coexistence. After mentioning the three types of Law Science described in the light de Tércio Ferraz Júnior, within the perspective that the decidability of social conflicts is inherent to the current juridical panorama, emphasizes the empirical model, which adopts legal thinking as an explanatory system of human conduct. It will also explain the historical and philosophical context in which the development of Law Science was developed, through the evolution of the positivist phases and legal argumentation, highlighting the role of the judge in the formation of legal reasoning. Finally, the focus will be on the dialectical interaction of the legal system to show that the formation of modern legal culture results from the dogmatic force of law and legal practice, so that jurisdiction is exercised for guidance, whether for social pacification.
Keywords: Science of Law. Legal decision. Social conflict. Juridical system. Legal Argumentation.
Sumário: Introdução. 1. A ciência do direito e sua amplitude teórica. 1.1 A importância da decisão jurídica na composição do Direito. 1.2 Da normatização à argumentação jurídica. 2. O normativismo como fundamento da autonomia do Direito. 2.1. O poder de argumentação do julgador. 3. A interação dialética do sistema jurídico. Considerações Finais. Referências Bibliográficas.
INTRODUÇÃO
A Ciência do Direito será analisada no presente trabalho em sua vertente teórica e prática, fazendo-se um delineamento sobre seu objeto de estudo, que não se limita à norma em si mesma, como prevalecia no positivismo jurídico, mas sim incluindo a decisão jurídica proferida pelos julgadores do direito, sejam judiciais, administrativos ou legislativos.
Indo mais além, demonstrar-se-á que o ser humano, como produtor dos conflitos sociais e criador de suas próprias regras e disciplinamento da sua convivência uns com os outros, compõe o próprio objeto central de estudo do Direito enquanto ciência, diante de sua condição de articulador do pensamento jurídico, delineando ele mesmo suas decisões.
Após a abordagem inicial voltada aos estudos teóricos de Tércio Sampaio Ferraz Júnior, a explanação no panorama histórico-filosófico, no qual se desenvolveu a Ciência do Direito, sendo mais legalista no período positivista, evoluindo, um tempo depois, rumo à argumentação jurídica e dando ao julgador um papel fundamental na formação do raciocínio jurídico.
No seu desfecho, é feita uma interação dialética entre o normativismo e a argumentação jurídica, para demonstrar, como resultado da produção humana, o sistema jurídico, que tem na sua estrutura não somente normas positivadas, mas, sobretudo, a práxis vivida no Direito, servindo ambos como fundamento de validade dentro do ordenamento, como também de efetividade social.
1. A CIÊNCIA DO DIREITO E SUA AMPLITUDE TEÓRICA
O Direito, enquanto ciência humana que é, e possuindo o homem como propulsor da positivação jurídica, desencadeou a tematização do ser humano como objeto da ciência jurídica. Principalmente se for considerada a modernidade, bem como as críticas pós-modernas à Teoria Pura de Kelsen, nem a positivação nem o conjunto das normas positivas revelam-se como objeto central da Ciência do Direito. Mas o homem, como um ser representante do fenômeno da positivação, representa bem o sentido das normas ou as proposições prescritivas que ele próprio estabelece. O entendimento de Ferraz Júnior corrobora tal raciocínio, conforme se vê a seguir:
O que queremos dizer é que o fenômeno da positivação estabelece o campo em que se move a Ciência do Direito moderna. Note-se que isto não precisa ser entendido em termos positivistas, no sentido de que só o direito positivo seja o seu objeto, mas simplesmente que a positivação envolve o ser humano de tal modo que toda e qualquer reflexão sobre o Direito tem de tomar posição perante ela. Ela não faz do direito positivo o objeto único da ciência jurídica, mas condiciona a determinação do seu método e objeto (2009, p. 42).
O fenômeno da positivação trouxe para o Direito dos dias atuais a força jurídica da decisão, que só por nova decisão pode ser revogada. Diferente, pois, do legalismo encarnado no século anterior, que entendia restritivamente o direito reduzido à lei, enquanto norma posta pelo legislador. Atualmente, o alcance da positivação vai muito além, adequando o direito à realidade devido à rápida mutação pela qual frequentemente passa.
Ademais, relaciona-se a decisão à positivação num sentido amplo do termo, para ultrapassar os limites da decisão legislativa e abranger a decisão judiciária, na medida em que esta pode assumir um papel positivante ao decidir sobre um determinado comportamento humano dentro da sociedade. Nesse sentido, o direito positivo deixou de ser mera criação da decisão legislativa, surgindo da imputação da validade do direito a certas decisões, sejam elas legislativas, judiciárias ou administrativas.
Destaca-se, por conseguinte, que a Ciência do Direito se liberta do apego ao que materialmente sempre foi tido como único direito, descrevendo o que pode ser direito numa relação causal, e passa a se ocupar com a oportunidade de certas decisões, considerando o que deve ser direito no contexto da relação de imputação. A questão central, portanto, é a decidibilidade, tendo os enunciados da ciência jurídica sua validade dependente da sua relevância prática, embora deles não seja possível deduzir as regras de decisão, mas sendo possível utilizá-los como instrumentos mais ou menos utilizáveis para obtenção de uma decisão (Ferraz Júnior, 2009).
Revela-se, contudo, como principal característica do direito positivado a sua libertação de paradigmas imutáveis ou longamente duradouros até então, cujas premissas reputam-se materialmente invariáveis, para se institucionalizar a mudança e adaptação por meio de procedimentos altamente móveis e complexos. Em contrapartida, mesmo estando mais adaptável à realidade, o direito positivado ao ser mudado com base no critério da decidibilidade gera uma certa insegurança a respeito da verdade e princípios já reconhecidos, que passam a ser relegados ao segundo plano.
Dentro da perspectiva de decidibilidade dos conflitos sociais que envolve o atual panorama jurídico, é coerente e lógico afirmar que a Ciência do Direito possui o próprio ser humano como seu objeto central de estudo, tendo em vista todos os reflexos decorrentes de seu comportamento. A depender de como é observada a concepção do ser humano na condição de articulador do pensamento jurídico, a Ciência do Direito pode ser articulada em diferentes modelos.
São três os modelos da Ciência do Direito adotados por Ferraz Júnior (2009, p. 47-49), sendo o primeiro o modelo analítico, através do qual a decidibilidade é uma relação hipotética entre conflito e decisões, pressupondo o ser humano como um ser dotado de necessidades reveladoras de interesses ora compatíveis, ora incompatíveis com as interações sociais. Neste primeiro modelo, de cunho relativamente formalista, denota-se a Ciência do Direito como uma sistematização de regras para obtenção de decisões possíveis.
Prosseguindo, o outro modelo, o segundo no caso, é denominado de modelo hermenêutico, pois enxerga a decidibilidade sob o ângulo da sua relevância significativa, tendo nos variados tipos de atitude humana o pressuposto de significação que lhe confere sentido e unidade. Desse modo, a Ciência do Direito adota uma atividade interpretativa, que resulta na constituição de um sistema compreensivo do comportamento humano.
Por fim, o terceiro modelo, que adota a decidibilidade como busca das condições de possibilidades de uma decisão hipotética para um conflito hipotético, é chamado de empírico. Procura-se determinar as condições da relação entre hipótese de decisão e hipótese de conflito, não se limitando na mera adequação formal entre conflito e decisão. A Ciência do Direito, então, assume seu papel de investigação das normas de convivência, cuja norma é um procedimento decisório e o ser humano é um ser dotado de funções, adaptável às exigências do ambiente em que vive. Dá-se aqui o surgimento do pensamento jurídico como um sistema explicativo da conduta humana no contexto de controle normativo.
1.1 A importância da decisão jurídica na composição do Direito
Para fins fundamentação da presente abordagem, ao modelo empírico, dentre os três que foram explanados, será dada a maior ênfase, por ser compreendido não como descrição do direito à realidade social, mas como investigação dos instrumentos jurídicos utilizados para fundamentação e exercício do controle comportamental humano. Partindo-se da premissa que o direito é um sistema de controle, é necessário entender os mecanismos existentes para exercer este controle, sentido em que a ciência jurídica se revela como teoria para obtenção da decisão.
Antigamente, o termo decisão estava ligado aos processos deliberativos, resultando num ato final com a escolha de uma possibilidade e rejeição das outras. Atualmente, por sua vez, prevalece um conceito mais amplo de decisão, como sendo o ápice de um processo de aprendizagem que resulta num ato de resposta, através da qual é pretendida uma satisfação imediata para o conflito, acomodando ou superando as propostas incompatíveis. Dentro desta perspectiva, Ferraz Júnior escreve que:
Decidir, assim, é um ato de uma série que visa transformar incompatibilidades indecidíveis em alternativas decidíveis, que, num momento seguinte, podem gerar novas situações até mais complexas que as anteriores. Na verdade, o conceito moderno de decisão liberta-a do tradicional conceito de harmonia e consenso, como se em toda decisão estivesse em jogo a possibilidade mesma de safar-se de vez de uma relação de conflito. Ao contrário, se o conflito é condição de possibilidade da decisão, à medida que a exige, a partir dela ele não é eliminado, mas apenas transformado (2009, p. 90).
A partir disso, a concepção de decisão jurídica é extraída de sua correlação com um conflito jurídico, que pressupõe uma situação comunicativa estruturada com certas regras. Diante da relação que há entre a estrutura de uma situação e o modo do conflito, se ocorrer uma maior complexidade no caso concreto, haverá uma diferenciação crescente daquele que tem o poder de decidir. E, dentro de suas peculiaridades, a decisão jurídica revela-se capaz de terminar os conflitos e não apenas solucioná-los. Entretanto, as decisões jurídicas não eliminam os conflitos, ela impede a continuação de um conflito, visto que não o termina através de uma solução, mas sim o soluciona de modo que ele não poderá mais ser levado a diante nem mesmo ser retomado, sentido em que se pode dizer que ao conflito é posto um fim.
Permanecendo na lógica teórica da decisão de Ferraz Júnior (2009), resta ressaltar que a ciência jurídica vista como uma teoria da decisão capta o problema da decidibilidade dos conflitos sociais como sendo um controle permanente do Direito nas relações humanas, observada como um sistema de conflitos intermitentes. Sempre em busca de uma decisão justa, o detentor do poder decisional procura instrumentos que adaptem sua ação à natureza dos conflitos, desde a vinculação à lei e ao direito, como na utilização dos conceitos indeterminados, como também realiza o preenchimento das lacunas, ampliando o âmbito da decisão jurídica.
Nesta concepção, a teoria da decisão é ampliada na mesma medida em que se amplia o sistema de controle jurídico do comportamento humano, não apenas cuidando da organização jurídica do exercício do poder, mas também dos mecanismos políticos que lhe darão suporte e autoridade para se impor socialmente perante os demais conflitos.
Logo, a Ciência do Direito tem como norte inicial os conflitos sociais referidos às normas, desenvolvendo uma análise especial sobre a exegese das normas como caminho para obter dos enunciados normativos a solução dos conflitos possíveis. Denota-se, por isso, a finalidade da Ciência Jurídica como sendo de propiciar orientação para o modo como devem ocorrer os comportamentos procedimentais que se destinem a uma definição do caso conflitante.
2. DA NORMATIZAÇÃO À ARGUMENTAÇÃO JURÍDICA
Dentro do panorama histórico ao qual pertence a filosofia do direito, dois movimentos merecem destaque, pois suas concepções se tornaram indispensáveis e obrigatórias para a melhor compreensão lógico-sistemático da Ciência do Direito. Um deles é o positivismo jurídico, que foi reflexo do positivismo científico do século XIX e cujo pensamento foi antagônico a qualquer teoria naturalista, metafísica, sociológica, histórica, religioso e antropológica.
A contribuição do positivismo jurídico foi notória por fornecer uma dimensão integrada e científica do Direito, apesar de possuir uma metodologia que apenas identifica o que pode ser conhecido através da prova racionalmente elaborada. Teve em Hans Kelsen o seu maior expoente por ter esboçado uma Ciência do Direito desvinculada de qualquer influência que lhe fosse externa, bem como utilizou o isolamento do método jurídico como forma de garantir a autonomia do Direito como ciência. Segundo Kelsen, a caracterização do Direito correspondia apenas a uma descrição pura do Direito, distinguindo-o da realidade, análise que ficou conhecida como a Teoria Pura do Direito.
Em contraposição ferrenha ao positivismo jurídico, inúmeras manifestações filosóficas surgiram no século XX a fim de emancipar o raciocínio jurídico e a lógica do pensamento jurídico dos arraigados traços reducionistas e positivistas. Um dos seus representantes foi Chaim Perelman, que empreendeu uma pesquisa acerca das diversas origens de pensamento das ciências humanas e da ciência jurídica propriamente dita, focalizando sua preocupação maior na formação do raciocínio jurídico.
2.1 O normativismo como fundamento da autonomia do Direito
A Teoria do Direito de Hans Kelsen (1998), se propôs a realizar uma análise estrutural do seu objeto, sistematizando de modo estrutural o que é compreendido como propriamente jurídico, expulsando a justiça, a sociologia, as origens históricas e as ordens sociais do seu núcleo central. Isto porque difere totalmente o que é jurídico, no sentido de fenômeno jurídico puro, do que não é jurídico, como o cultural, sociológico, antropológico, ético, metafísico e religioso.
Assim, Kelsen lida com duas categorias, a do ser (Sein) e a do dever-ser (Sollen), como dois pólos que diferenciam a realidade e o Direito. Entende o sistema jurídico como unitário, orgânico, fechado, completo e autossuficiente, não faltando nele nada que seja necessário ao seu aperfeiçoamento, partindo-se do conceito de validade para fundamentar todo o ordenamento jurídico através da norma fundamental (Grundnorm).
A norma fundamental desempenha, então, o importante papel de fechamento do sistema normativo escalonado, onde as normas inferiores buscam seu fundamento de validade em normas hierarquicamente superiores, até no cume da pirâmide escalonada de normas jurídicas, onde se encontra a norma fundamental pressuposta logicamente. Tal conjunto de normas forma a ordem jurídica, que é o sistema hierárquico de normas legais (Kelsen, 1998), possuindo seu fundamento de validade na norma fundamental, que é uma ficção do pensamento na busca de determinar logicamente um começo e um fim, conforme raciocínio corroborado abaixo por Ferraz Júnior:
Este princípio (da unidade) recebe em Kelsen o nome de norma fundamental, noção intuitivamente simples de ser percebida (se as normas do ordenamento compõem séries escalonadas, no escalão mais alto está a primeira da série, de onde todas as demais promanam) mas difícil de ser caracterizada (é questão do seu estatuto teórico: é norma? É um ato de poder? É uma norma historicamente positivada ou uma espécie de princípio lógico que organiza o sistema?) (2001, p. 176)
Contudo, toda essa condução de normas por uma norma fundamental não exclui a possibilidade de o juiz agir aplicando e interpretando para, assim, produzir normas individuais. Nesse passo, o sentido das normas jurídicas alcançado através da interpretação não consiste em um processo de cognição apriorístico e causado por leis morais ou naturais, mas sim parte do sentido de um texto normativo em sua literalidade. Para Kelsen (1976), a intepretação é uma operação mental que segue o processo de aplicação do Direito numa cadeia do nível superior ao inferior.
Saliente-se que a ciência do direito para Kelsen não possui nenhum caráter vinculativo, pois a decisão judicial ou administrativa é que determinará o sentido possível e admissível de uma norma jurídica a ser aplicada no caso concreto. Sua atividade, neste caso, consiste em produzir proposições jurídicas, descrevendo seu objeto, não estando autorizada a decidir conteúdos de direito, pois ela descreve os múltiplos sentidos gerados a partir da interpretação que é extraída da norma jurídica.
Dessa forma, Larenz (1997) diz que a ciência do Direito para Kelsen nada tem a ver com a conduta efetiva do homem, pois se atém apenas ao que está prescrito juridicamente. Isto porque não se trata de uma ciência de fatos, como ocorre com a sociologia, mas sim de uma ciência de normas, cujo objeto não é o que é ou acontece, pois, seu objeto mesmo é um complexo de normas.
Com efeito, Kelsen defendeu a ideologia da autonomia do Direito a partir do isolamento do jurídico e do não-jurídico, o que faz do Direito, enquanto ciência, significar um estudo lógico-estrutural da norma jurídica ou do sistema jurídico de normas. Dentro desse contexto é que a própria interpretação se torna um ato cogniscitivo (ciência do direito) ou não cogniscitivo (jurisprudência) em busca da definição dos possíveis sentidos da norma jurídica. Segundo seu entendimento a interpretação do juiz é um ato prudencial e se transforma no ato de criação de uma norma individual, sendo que a utilização de qualquer regra de preenchimento só será admitida se autorizado por normas jurídicas.
2.2 O poder de argumentação do julgador
Várias foram as manifestações do século XX no combate ao positivismo jurídico e à lógica formal, definindo as bases de uma lógica-jurídica específica, que não se vale apenas de do raciocínio dedutivo, mas também deste, procurando identificar a não-redução do raciocínio jurídico, principalmente judicial, com o raciocínio dedutivo. Para um de seus grandes expoentes, Chaim Perelman, o raciocínio jurídico deve antes verificar que a própria atividade de definição do conteúdo das premissas do raciocínio é uma atividade complexa para o juiz, pois a lógica judiciária não se resume à mera dedução de conclusões extraídas do texto da lei.
Assim, o raciocínio jurídico não pode ser restringido aos recursos linguísticos da lei, pois quanto maior sua vagueza, maior será a interpretação que o jurista terá que fazer para realizar sua aplicação. O juiz, no momento de julgar, não produz a verdade, no sentido de que seu raciocínio não funciona tornando a realidade dos autos numa transparente descrição de acontecimentos passados que geram consequências jurídicas. O raciocínio do juiz é para decidir, para resolver conflitos, para conferir a determinada questão jurídica o estatuto da questão julgada.
Não se pode enxergar o julgador como um tradutor da verdade, visto que isso o converteria em uma máquina silogística, porque onde residem fatos e normas, residem também instrumentos de muita maleabilidade retórica. O enfoque aqui é dado mais a práxis do direito do que às estruturas formais do pensamento jurídico, aproximando-se, na preocupação filosófica, a teoria da prática, para distanciar o jurista do purismo da lógica formal, que em face das influencias de estudos positivistas, restaram desembocando na área jurídica.
O juiz não pode ser visto como a boca da lei, pois na lógica da argumentação se vislumbra a atividade do juiz como um complexo empreendimento de elaboração, condensação, valoração, ponderação, divisão de elementos de diversas naturezas, não sendo somente a norma jurídica o ponto de referência, uma vez que colide com impressões psicológicas, históricas e vivencia comunitárias, intuições pessoais, provas não produzidas, critérios esses considerados irrelevantes para outros modelos teóricos.
Para concluir uma decisão, o juiz sofre influências ao entrar em contato com os argumentos e com os documentos existentes nos autos, bem como pelos relatos e diversas fundamentações sobre textos normativos. Enfrenta, então, um conjunto de evidencias apresentadas por ambas as partes litigantes do processo. A decisão, desse modo, é resultante de um grande e dificultoso processo de ponderação de inúmeros fatores e elementos, pautado num argumento decisório que afasta outras possíveis formas de argumentação sustentada pelas partes.
Durante a formação da vontade decisória, é de extrema relevância o domínio de técnicas de argumentação e do uso de provas, quer pelo agente julgador, quer pelos operadores do direito que estejam interagindo no caso concreto. Isto porque, as técnicas de argumentação são instrumentos hábeis para a afirmação do que se pleiteia ou do que se decide, enquanto o estudo das provas é indispensável por essas serem o verdadeiro respaldo de toda decisão.
Destarte, a função do julgador é bem complexa, pois ele possui atribuições de construir e completar o sistema jurídico diante das lacunas e das antinomias jurídicas. Para Perelman (Bittar e Almeida, 2009), é possível falar em sistema jurídico aberto, mas não em sistema jurídico fechado, hermético, distanciado da prática prudencial, do convívio, da argumentação, do razoável de cada situação, possuindo o julgador o poder, inclusive, de superar a lei para fazer justiça.
3. A INTERAÇÃO DIALÉTICA DO SISTEMA JURÍDICO
A questão do sistema jurídico foi suscitada no século XIX como característica muito forte do pensamento positivista, dentro da ideia de um modo rigoroso de conjunto de normas do ordenamento jurídico. Sua força dogmática resultou incorporada na ciência e na prática jurídica de modo definitivo, restando determinante para a formação da cultura jurídica moderna.
Entretanto, para pensar em sistema é necessário interligar os elementos integrantes do universo valorativo do direito. A noção de sistema jurídico deve ser pensada numa relação dialética com a posição tradicional de Hans Kelsen, que era apegado ao sistema de normas, piramidal, escalonado, hierárquico, de único fundamento de validade, dotado de uma norma fundamental, no sentido de sua superação teórica como modelo descritivo do sistema jurídico.
Para tanto Ferraz Júnior (2003) propõe um modelo contrário ao positivista, realizando uma leitura mais realista do sistema jurídico como sistema social e descrito de modo mais elucidativo e consentâneo com a práxis viva do próprio Direito contemporâneo. Na descrição que é feita sobre o sistema jurídico, os fundamentos de validade são vários e estão dispersos pelo ordenamento, possuindo seu critério de estabelecimento na efetividade e não na validade.
Ademais, o sistema jurídico não funciona como um esquematismo binário, qual seja, conforme a pressuposição da negação lógica entre validade e invalidade na estruturação do sistema, assim como corresponde a um alicerce poroso, móvel, dinâmico, de plasticidade indefinida, não possuindo vértice ou descritivos evocativos somente do critério organizativo hierárquico. É visto e descrito no plano horizontal sob uma projeção caótica com séries normativas conflitantes entre si e com invalidades, anomalias, lacunas e antinomias.
O sistema jurídico, também, é inserido na dimensão decisória, sendo feito e refeito a todo momento em que uma decisão judicial ou uma norma de origem é lançada no sistema. Não possui a ideia hierarquizante de competências autorreferíveis e escalonadamente distribuídas, como regra para determinar sua estruturação e conformação. Possui, ainda, cunho conflitivo por estar em constante confronto com a realidade contextual na qual se encontra, tanto histórica, como política e axiológica.
Por conseguinte, o sistema jurídico é definido a posteriori, por meio de seus operadores, com maior importância para o papel do aplicador do direito, que definirá na prática sobre a inconstitucionalidade da norma, sobre a invalidade de um ato, como também sobre a revogação tácita de uma norma do sistema, enfrentando uma difícil tarefa para administrar as contradições existentes. Funciona, por fim, como instrumento para realização da justiça, permitindo, pois, evocar a ideia de uma substância moral definidora do agir comum em sociedade, legitimando a ação da ordem jurídica, sem o qual o sistema seria considerado arbitrário e confundido com o uso da violência, mesmo dotado de validade.
Isto posto, o atual sistema jurídico tem em suas bases primitivas reflexos do ideário teórico positivista, funcionando como importante instrumento ideológico do Estado, na medida em que sua estabilidade oficial não admite que se mova em múltiplas e incoerentes direções (Ferraz Júnior, 2001). A garantia de uma plasticidade externa de sistematicidade orgânica é um dos elementos inerentes à própria eficácia do sistema figurando também como elemento determinante da contínua invocação do sistema como um todo unitário para solucionar litígios sociais como monopólio da força pelo Estado.
Assim sendo, esse mesmo sistema jurídico que integra e é integrante do Estado, tem na sua formação o exercício das atividades jurídico-estatais, que devem estar em conformidade com expectativas de justiça e princípios mínimos definidos através de critérios de ação do poder, de formação da ratio iuris. O que significa o exercício de um poder controlado, amparado em bases legítimas, a fim de implantar a ordem, instigar a consciência, fomentar o aspecto lúdico da distribuição de forças sociais.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Pensar no sistema jurídico como um sistema autônomo não implica isolá-lo como um sistema social autopoiético, auto-referencial, distanciado dos outros sistemas sociais como a moral, a religião, a economia, a ciência, a política, dentre outros, pois são todos funcionalmente diferenciados uns dos outros nas sociedades complexas do mundo moderno. Não significa, pois, apoiar o formalismo e o reducionismo positivista relegando ao banal toda e qualquer forma de manifestação produzida pelo órgão julgador.
Isto porque a produção da decisão jurídica evidencia um sistema envolvido com as construções sociais específicas da realidade, solucionando conflitos sociais sob a orientação das normas jurídicas vigentes e válidas dentro desse mesmo ordenamento legítimo. Assim, aceitar o sistema jurídico não só como componente do Estado, mas como seu elemento integrador, é aceitar a decisão jurídica inserida no sistema através da resolução de conflitos sociais.
À vista disso, Machado Segundo (2016) afirma que não é suficiente conhecer o que as normas hipoteticamente prescrevem se não for possível apreender o que ocorre no mundo fenomênico, para atribuir aos fatos nela previstos os efeitos legalmente indicados. Impossível se exercer a jurisdição adequadamente sem conhecer o caso concreto, a fim de determinar corretamente o Direito. Por tais razões, a decisão jurídica realizada pelo julgador é de suma importância não só para a Ciência do Direito como para pacificação social.
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Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: BARBOZA, JULIANA COSTA. Uma análise epistemológica sobre a decisão jurídica e sua relevância para a ciência do direito Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 26 dez 2017, 04:45. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/artigos/51173/uma-analise-epistemologica-sobre-a-decisao-juridica-e-sua-relevancia-para-a-ciencia-do-direito. Acesso em: 23 nov 2024.
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