Resumo: O presente trabalho tem como objetivo reconstituir experiências de vida familiar de escravos e os possíveis significados de relações sociais desenvolvidas a partir de casamentos de cativos ocorridos na Freguesia Santana de Caetité, entre os anos de 1831 a 1855 e de 1876 a 1888. Através de uma análise comparativa das informações pesquisadas nos dois recortes temporais destacados foi possível identificar tipos de formação dos pares, aumento ou diminuição dos números de casamento entre escravos nos diferentes períodos estudados e algumas escolhas e significados dos próprios escravos. Toma-se como base para essa pesquisa as fontes eclesiásticas, em especial os registros de casamentos e batismos, por meio destes, vislumbrou escravos que, apesar da condição imposta pelo cativeiro formaram famílias, reconstituindo assim, suas trajetórias de vida e luta pela liberdade. Também se fez uso de doutrinas conceituadas e artigos científicos que dispõem acerca da escravidão e famílias de escravos. Esta pesquisa faz-se necessária na medida em que analisa as fontes documentais que nos conduz a diversas reflexões sobre a família escrava e a forma como essas uniões ocorriam. Possibilitando compreender ainda que as uniões legítimas existiram entre os escravos, no entanto, não era a única forma de organização familiar existente, e nem a mais predominante na região estudada.
Palavras-chave: Escravidão; Uniões Matrimoniais; Famílias.
Abstract: The present work aims at reconstituting family life experiences of slaves and the possible meanings of social relations developed from captive marriages that took place in the Freguesia Santana de Caetité between the years 1831 to 1855 and from 1876 to 1888. comparative analysis of the information researched in the two temporal cutouts highlighted it was possible to identify types of pairs formation, increase or decrease of marriage numbers between slaves in the different periods studied and some choices and meanings of the slaves themselves. The ecclesiastical sources, especially the records of marriages and baptisms, have been used as a basis for this research, through which they have glimpsed slaves who, despite the condition imposed by captivity, formed families, thus reconstituting their life trajectories and struggle for freedom. Also made use of doctrines reputed with regard to slavery and families of slaves. This research is necessary insofar as it analyzes the documentary sources that lead us to several reflections on the slave family and the way in which these unions took place. Making it possible to understand that legitimate unions existed among slaves, however, it was not the only form of family organization that existed, nor was it the predominant one in the region studied.Keywords: Slavery, Unions Matrimonial, Child.
1. INTRODUÇÃO
A temática proposta por este trabalho faz parte de uma nova abordagem historiográfica, que compreende os cativos como sujeitos de sua história, propondo devolver ao escravismo sua “historicidade”, como sistema construído por agentes sociais múltiplos e heterogêneos, deste modo, objetiva investigar experiências de vida familiar, especificamente sobre a formação dos arranjos matrimoniais desses sujeitos na Freguesia Santana de Caetité[1] nos anos de 1831 a 1855 e 1876 a 1888[2], fazendo uma comparação entre os diferentes momentos históricos e percebendo as permanências e rupturas ou aumento e diminuição dos números de casamentos nos diferentes períodos estudados. Este estudo visa compreender a importância e possíveis significados dessas experiências familiares, bem como a forma como se davam a formação desses pares.
Considerando a historiografia atual brasileira, percebe-se que, apesar de existirem vários estudos sobre o tema escravidão, ainda é consideravelmente pequeno o número de produções que analisam a família escrava na região alto sertaneja, sobretudo na Freguesia Santana de Caetité. Pesquisas recentes tratam esta temática, como é o caso dos trabalhos da historiadora Maria de Fátima Novaes Pires, que aborda o alto sertão da Bahia no oitocentos. Ainda contemplando essa região, a pesquisadora Gabriela Amorim Nogueira apresenta reflexões sobre famílias escravas para o Certam de Sima do Sam Francisco, no século XVIII[3]. Destaca-se também o trabalho da historiadora Napoliana Pereira Santana, que enfoca a família e microeconomia escava no Sertão do São Francisco (Urubu – Ba) no período de 1840 a 1880, e ainda, Fernanda Ferreira Dias, que escreve acerca das relações de compadrio constituídas por escravos na Freguesia Santana de Caetité de 1827 a 1831.
Na esteira destes estudos, esta pesquisa visa abordar especificamente a região da Freguesia Santana de Caetité, apresentando elementos parciais a respeito das relações de matrimônio entre escravos. Dessa forma, reconstituir vestígios de trajetórias de populações negras nesta freguesia, no alto sertão da Bahia[4], reconstituindo valores, hábitos e costumes dos negros, sobretudo, no que tange às uniões matrimoniais.
Sob uma nova ótica interpretativa que compreende os cativos como agentes históricos e sociais, as fontes de pesquisa indicam pistas para compreender a ação dos escravos enquanto sujeitos de suas histórias de vida. As fontes eclesiásticas, em especial os livros de casamentos e batismos, oferecem as bases para esta pesquisa, confirmando que os escravos constituíam famílias mesmo estando sob a condição de cativos.
Considero, neste estudo, as estratégias de sobrevivência construídas pelos escravos da Freguesia Santana de Caetité, que visavam conquistar novos espaços e ampliar suas relações sociais através do casamento, desconstruindo a ideia de que as ações dos cativos e suas escolhas estavam diretamente ligadas à vontade de seus senhores. A análise apresentada neste trabalho traz reflexões sobre essas práticas familiares, buscando compreender os possíveis significados dessas uniões para os cativos e seus senhores.
De acordo com alguns estudos historiográficos[5], uniões matrimoniais foram uma realidade constante entre a população escrava do Brasil, mesmo com todas as dificuldades impostas pelo regime escravista para a constituição dessas relações entre homens e mulheres presos ao cativeiro. Para pesquisadores como Robert Slenes (1999) os escravos não perderam a noção de família e parentesco ao serem transformados em mercadoria e trazidos à força para o Brasil, muito pelo contrário, tentaram incorporar sua cultura e seu modo de vida no novo continente. Slenes (Ibid, p.147) observou que, “[...] encontrando, ou forjando, condições mínimas, para manter grupos estáveis no tempo, sua tendência terá sido de empenhar-se na formação de novas famílias conjugais, famílias extensas e grupos de parentesco ancorados no tempo”.
Pode-se constatar o negro como ser atuante e possuidor de valores, identidade, atitudes, desejos, configurando-se assim, como sujeitos históricos. E, como assinalou Slenes (Ibid, p. 109), “[...] valorizavam a família conjugal estável, lutando com empenho para formá-la e frequentemente conseguiam realizar essa meta [...], quando haviam condições propícias para isso”. Neste trabalho de pesquisa analisaram-se traços de lutas e resistências vivenciados pela família, especificamente, na Freguesia de Santana de Caetité que configurava-se como um grande centro distribuidor, transformando-se em grande polo de agricultura, pecuária e mineração que, por meio de rotas comerciais pelo rio São Francisco escoavam a produção do sertão para a capital da província, dentre outros destinos.
A economia local era mantida por meio das lavouras de subsistência, a pecuária e o artesanato em couro e metais[6]. Os escravos tinham participações importantíssimas nesse contexto, estando envolvidos diretamente nessas dinâmicas econômicas, participando das mais diversas atividades comerciais, desde a produção ao transporte de mercadorias.
O contexto escravista brasileiro vivia um momento importante. Em 1830, o Brasil deveria abolir o tráfico transatlântico, devido a acordos firmados com a Inglaterra, no entanto, esses acordos só foram cumpridos 20 anos depois, em 1850, por pressões inglesas. A partir desse período, o Brasil não poderia mais trazer escravos da África para abastecer suas fazendas, e a solução encontrada para amenizar a carência de mão-de-obra em grandes fazendas, foi o tráfico interprovincial. Desse modo, muitos escravos do Norte e Nordeste foram vendidos para abastecer as fazendas de café do Sul e Sudeste. Muitos escravos de Caetité estiveram envolvidos nessa dinâmica de compra e venda interprovincial, como salientou Maria de Fátima Novaes Pires (2009), apontando que, o alto sertão teve participação ativa nessa comercialização de cativos entre províncias, cativos da Freguesia Santana de Caetité foram levados para outras províncias para as matas do café.
As fontes arquivadas no Centro Paroquial de Caetité - CEP e no Arquivo Público Municipal de Caetité - APMC[7] apontam vestígios que reforçam a ideia de que os escravos, apesar da condição em que foram submetidos desde o início do século XVI no Brasil, não deixaram de buscar meios de sobrevivência.
Os livros de registros de casamentos utilizados como base para esta pesquisa possibilitaram um horizonte de interpretações sobre a escravidão na Freguesia Santana de Caetité, no entanto, esses dados nos revelam apenas pequenos indícios, despontando muito pouco acerca dos sujeitos sociais identificados nesta pesquisa. Na maioria dos registros consta somente a data em que o casamento foi realizado, o nome dos contraentes, de seus proprietários e as testemunhas. Os registros não apontam localidade, filiação, idade, condição social dos escravos e de seus pais, e na maioria dos casos não informam suas origens. Essa carência de informações dificultou bastante a pesquisa, impossibilitando de se fazer uma análise mais aprofundada acerca dos sujeitos localizados neste estudo e a apresentação de dados mais contundentes.
Os livros de registros de batismos se fizeram indispensáveis, na medida em que as informações dos registros de casamentos eram insuficientes e, como mencionado anteriormente, traziam pequenos indícios da vida familiar cativa, de modo que se tornava quase impossível de se traçar trajetórias familiares. Esses registros apresentam maiores informações – além do nome do escravo, trazem ainda o nome dos pais, padrinhos e proprietários e, em alguns deles, apontam a condição social dos escravos que participavam da cerimônia – que confrontados com os registros de casamentos, foi possível localizar algumas famílias que foram constituídas por meio de uniões legítimas e que duraram por longos anos. Também foi possível perceber várias mães que batizaram seus filhos (em alguns casos, mais de uma criança), porém não se casaram, o que evidencia uma opção dessas cativas por um tipo de união que não se via a necessidade de legitimação.
A análise das fontes documentais nos conduz a diversas reflexões sobre a família escrava. Uma delas, diz respeito à constituição familiar, ou seja, a forma como essas uniões ocorriam. É importante compreender que as uniões legítimas existiram entre os escravos, no entanto, não foi a única forma de organização familiar existente, e nem a mais predominante na região estudada.
Por meio do cruzamento das informações coletadas nos registros de batismos e casamentos, foi possível acompanhar algumas trajetórias de cativos, e compreender o casamento e o batismo enquanto estratégias de sobrevivência e sociabilidade.
Os registros de batismos foram essenciais para compreender as relações afetivas entre os casais cativos, já que fornecem dados acerca da procedência do filho, se natural ou legítimo. Por meio da análise desses registros foi possível identificar inúmeras mães que não tiveram seus nomes fixados nos registros de casamento, possivelmente por viverem em uniões consensuais.
2. UNIÕES LEGÍTIMAS E CONSENSUAIS: POSSÍVEIS SIGNIFICADOS
Constatou-se através das pesquisas já desenvolvidas uma quantidade considerável de relacionamentos entre escravos, estes que, por sua vez, eram sacramentados pela Igreja Católica[8]. Não se deve desprezar, no entanto, muitas uniões não legitimadas, ou consensuais[9], tidas pelos escravos da Freguesia Santana de Caetité.
Para essa pesquisa, foram consultados 4 livros de registro de casamentos, onde localizou-se 2.333 registros, destes constatou-se a presença de 179 casamentos envolvendo escravos, e 2.154 entre brancos, representando um percentual aproximado de 7,7% e 92,3%, respectivamente, de casamento de cativos e brancos na Freguesia Santana de Caetité em todo o período estudado. Para o período de 1831 a 1855, para a mesma região em estudo, Maria de Fátima Novaes Pires (2003) encontrou 128 casamentos entre escravos, o que mostra um percentual semelhante aos encontrados nesta pesquisa. É uma quantidade razoável, se analisarmos as dificuldades impostas para a realização deste sacramento. No decorrer do trabalho analiso sobre estes desafios.
A presente pesquisa revelou que casamentos entre escravos foram prática constante entre os cativos da Freguesia Santana de Caetité, como os casais de escravos: Monoel cabra, com Vicencia cabra; Francisco crioulo, com Anna crioula; Felix e Francisca, africanos; André, com Joaquina, africanos; Caetano, com Roza, africanos, ente outros.
Os índices de casamentos entre cativos podem variar de região para região. Kátia Mattoso (1992, p. 166) revelou que, na Bahia os índices de casamento entre escravos foram baixíssimos, praticamente inexistentes. A autora escreveu que “casamentos entre escravos existiam, mas eram tão raros que escapam a toda documentação que pude consultar”. Pires (2009) ressaltou em seus estudos, que as uniões entre cativos muitas vezes não foram reconhecidas, acontecendo de forma informal ou não oficializadas. Segundo a historiadora,
A maioria desses relacionamentos, no entanto, não eram oficialmente sancionados, nem pela Igreja Católica, nem pelos senhores de escravos. Muitos eram formalizados apenas quando os escravos passavam a morar juntos. A comunidade local reconhecia a existência desses relacionamentos: os casais de escravos os reconheciam, assim como os outros escravos e também os senhores. (PIRES, 2009, p. 228-229)
Para muitos cativos, o reconhecimento de suas uniões, perante os outros escravos e seus senhores, era suficiente para que esta se mantivesse por anos, e até décadas, sem às “bênçãos” da Igreja Católica, ou seja, para eles, não havia a “necessidade” do casamento legal, para que pudessem viver juntos e construir família. Na documentação consultada, foram encontradas algumas escravas que viviam em uniões consensuais, evidenciando que as uniões legítimas não foram as únicas formas de relações entre os escravos da Freguesia Santana de Caetité. Escolástica, escrava de Antonio Pereira da Rocha, batizou seus dois filhos em 24 de outubro de 1825, sem estar casada pela Igreja Católica, o que caracterizava as crianças como filhos naturais[10], sendo esta a forma pela qual foram registrados na documentação: Maximiano mulato e Antônio mulato (filhos naturais). Anna, escrava de Gonçalo Dias da Costa, teve três filhos naturais, em 14 de setembro de 1833, batizou Justina; em 26 de dezembro de 1838, batizou outra filha, de nome Eleutéria; e em 01 de dezembro de 1840, batiza Romão, último filho de Anna que aparece nos registros consultados.
A tabela abaixo mostra outras mães na condição escrava que batizaram seus filhos sem estarem legitimamente casadas segundo a doutrina cristã católica, sendo assim, seus filhos foram registrados como naturais.
Tabela 01: Relação de filhos naturais batizados na Freguesia Santana de Caetité. (1833 – 1841).
Mães |
|||||||
CIPRIANA |
LUZIA |
JOAQUINA |
IZABEL |
MARIA AFRICANA |
CATHARINA AFRICANA |
JOANNA |
|
Filhos |
Anastácia 1833 |
Andreza 1834 |
Fellipe 1834 |
Felicidade 1834 |
Eugênio 1834 |
Joanna 1834 |
Faustino 1833 |
Clara 1839 |
Manoel 1840 |
Leuntina 1838 |
Isidora 1839 |
Athanázio 1839 |
Margarida 1838 |
Francisco 1835 |
|
|
|
|
|
Belizário 1841 |
Leocádia 1839 |
Joaquim 1838 |
|
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|
|
|
Verônica 1841 |
Fonte: Livros de registro de casamentos da Cúria da Igreja Matriz de Caetité 1831-1848; 1837-1855; 1846-1851. Livro de registro de casamento do APMC - 1876- 1888. Livros de registro de batismos da Cúria da Igreja Matriz de Caetité 1818-1829; 1833-1849.
A tabela mostra uma quantidade razoável de mulheres que batizaram seus filhos advindos de uniões não legitimadas pela Igreja. E algumas delas, como é o caso de Joanna, chegaram a ter quatro filhos e batizar a todos, indicando que, apesar de não se casarem legalmente, por algum motivo, algumas escravas sentiam a necessidade de batizarem seus filhos. Práticas como estas são indícios de que estas mulheres constituíam famílias estáveis, embora não legitimasse na igreja suas uniões.
Acompanhando a trajetória familiar dessas mulheres, não foi possível localizar registro de casamento nem antes e nem depois do batizado de seus filhos. A falta desse registro para essas cativas, e em alguns casos, o elevado número de filhos naturais, reflete que, possivelmente, esta tenha sido uma escolha destas mulheres, em não optarem por uniões legitimadas e sim consensuais, evidenciando que as escravas tinham certa autonomia em conduzir seus relacionamentos. No entanto, fica evidente que não desprezavam os dogmas católicos, levando seus filhos, mesmo que não provindo de uniões legitimadas, a serem batizados. Essas escolhas demonstram que entre as possibilidades encontradas pelos cativos para ampliar suas redes se sociabilidade, o batismo foi bastante recorrente. Como destacou Fernanda Ferreira Dias (2013, p.2), em seu trabalho sobre as relações de compadrio constituídas por escravos na Freguesia Santana de Caetité no período de 1827 a 1831.
Em meio a esse universo familiar, o compadrio constituiu-se em uma ferramenta auxiliadora desses escravos para, de alguma forma, amenizar as amarras da escravidão. O apadrinhamento [...] possibilitava as camadas inferiores [e aos escravos] conquistarem maior autonomia, bem como ascenderem socialmente. O ato dos padrinhos irem até uma pia batismal realizarem o sacramento do batismo ia além da presença física [...], mas também estava interligada por laços de amizade, solidariedade, impregnada de um teor espiritual. [...] Desse modo, o ritual do batismo transitava nos dois mundos, tanto no social, quanto no religioso.
Segundo a autora, o compadrio reforçava uniões já existentes entre os escravos, constituindo importantes alianças de parentesco que iam além da consanguinidade.
A documentação consultada nos revela ainda, uniões consensuais que posteriormente foram legitimadas pelo sacramento católico, como foi o caso de Margarida, cativa de Manoel Joaquim de Souza que batizou sua filha Jozefa, em 01 de novembro de 1835, vindo a “oficializar a união” 12 anos depois, quando se casa com Florêncio.[11] Outro exemplo é o da cativa Maria, pertencente a Joaquim Ferreira da Silva que batizou seu filho João em 15 de fevereiro de 1841, vindo a casar-se com Antônio 6 anos depois, em 1847.
Nogueira (2011, p.110) ressalta que “muitos desses escravos, quando se uniam pelo ritual católico, já vivenciavam a experiência conjugal, alguns com filhos já crescidos, outros por nascer”. Cristiany M. Rocha (2004, p. 101), na pesquisa sobre famílias escravas em Campinas (1850-1888), verificou que várias escravas que foram descritas nos registros de batismos como mães solteiras vieram a se casar posteriormente, várias delas, após terem batizado mais de dois filhos:
[...] o cálculo das taxas de ilegitimidade das crianças escravas baseado nos assentos de batismos nos diz muito pouco acerca da realidade vivida pelas famílias. Taís índices revelariam uma ilegitimidade formal, ou seja, do ponto de vista legal, que poderia estar muito distante da prática. Mesmo levando em conta que não é possível saber ao certo se todas as crianças tidas antes do casamento eram filhas do mesmo homem que se casa com a mãe delas, acreditamos que o mais importante é a presença desse pai ou padrasto na socialização dessas crianças.
Podemos compreender que apesar de muitos filhos serem registrados nos assentos de batismo como naturais, puderam conviver com a presença de ambos os pais. Como verificado por Napoliana Pereira Santana (2012, p.65) “[...] apesar da ausência do pai nos documentos, em muitas ocasiões, essa ausência não se configurava na vida prática, onde crianças escravas cresciam ao lado de seus pais e das suas mães.”
Por outro lado observaram-se índices de legitimidade nos assentos de batismo que significam relações sacramentadas pela Igreja Católica. De modo que os nomes das crianças batizadas aparecem associados ao nome do pai e da mãe, além da descrição “filho legítimo de”. Foram localizados, na documentação consultada, alguns casais que batizaram seus filhos após se casarem[12], como foi o caso de Bento Teixeira e Maria Ferreira, Felipe e Anna crioulos, Antônio e Roza, João Angola e Loucianna, Inêz e Luiz, Bento e Francisca, Francisco e Faustina, Miguel e Cecilia, Joaquina e Paulo, entre outros. Esses dados foram identificados por meio dos registros de batismo, onde os filhos desses escravos aparecem como legítimos, acompanhado do nome dos pais.
Infelizmente, até o momento desta pesquisa não identificou-se registros de casamentos desses casais que tiveram seus filhos registrados como legítimos, deste modo, dificultando uma visão mais longitudinal das redes familiares destes cativos. A única exceção foi o registro de casamento de Eleutério Soares, africano e Máxima Delfina, Crioula, ambos escravos de Francisco Xavier Soares que se casaram em 1840, e em 07 de março de 1841 batizam sua filha Caetana, esta que, provavelmente é a primeira filha do casal, pois não foram encontrados registros de filhos anteriores a esta data na documentação pesquisada. Infelizmente, as únicas informações disponíveis acerca da família de Eleutério e Máxima Delfina são as que estão dispostas acima, devido a carência de dados dos registros de casamento, que impossibilita de acompanhar a trajetória dessa família.
Como mencionado anteriormente, foram localizados para a Freguesia Santana de Caetité, 179 casamentos legítimos entre escravos para o período em estudo. A tabela 02 mostra a disposição desses pares.
Há de se levar em consideração também, a preferencia dos cativos, com relação a seus parceiros e parceiras. Sobretudo no que se refere aos africanos, que trouxeram consigo suas histórias, sua cultura e seu modo de vida. Gilberto Freire (1983, p.160) afirma que, as experiências “dos cativos africanos, bem como seu legado cultural, influenciaram fortemente as comunidades escravas”, deste modo, essas uniões significaram uma forma de preservação da cultura africana.
Na tabela abaixo estão dispostos todos os casamentos de escravos encontrados nessa pesquisa, num total de 179, que foram distribuídos de acordo com a origem e sexo de cada contraente. Percebe-se um número bastante elevado de escravos de mesma origem unidos em matrimônio. Observando a tabela, notamos que 14 africanos se uniram a africanas; 32 crioulos se uniram a crioulas; além de 8 casamento entre cabras; e 5 entre pardos. Evidenciando assim que, na maioria dos casos, os escravos preferiam unir-se a pessoas da mesma origem. É possível compreender que, provavelmente, o casamento ajudou muitos cativos a conservar suas identidades[13].
Tabela 02: Formação dos pares a partir dos registros de casamentos – 1831-1855 / 1876-1888
HOMENS |
MULHERES |
||||||||
|
Africana |
Crioula |
Mulata |
Cabra |
Parda |
Mestiça |
Forra |
Não identificada |
Total de Homens |
Africano |
14 |
20 |
|
1 |
1 |
|
2 |
3 |
41 |
Crioulo |
1 |
32 |
1 |
9 |
3 |
1 |
|
4 |
51 |
Mulato |
|
1 |
3 |
|
|
|
1 |
1 |
6 |
Cabra |
1 |
4 |
1 |
8 |
2 |
|
1 |
1 |
18 |
Pardo |
1 |
|
|
1 |
5 |
|
|
|
7 |
Liberto |
|
1 |
|
|
|
|
|
1 |
2 |
Livre |
|
|
|
1 |
|
|
|
|
1 |
Não identificado |
1 |
2 |
|
|
|
|
2 |
48 |
53 |
TOTAL DE MULHERES |
18 |
60 |
5 |
20 |
11 |
1 |
6 |
58 |
179 |
Fonte: Livros de registro de casamento da Cúria da Igreja Matriz de Caetité 1831-1848; 1837-1855; 1846-1851. Livro de registro de casamento do APMC - 1876- 1888.
Nota-se que as uniões davam-se, principalmente, entre escravos do mesmo grupo, não impedindo a mistura entre etnias. Como sugere Francisco Vidal Luna e Iraci Del Nero da Costa (1981), que escrevem acerca do casamento de escravos em Vila Rica no período de 1727 a 1826, “evidencia-se [...] a tendência de se darem casamentos entre indivíduos de mesma origem”. Deste modo, como bem assinalou Nogueira (2011, p.115-116), “mesmo que não encontrassem parceiros de etnias iguais às suas, esses africanos preferiam se unir a outros companheiros da travessia atlântica, visando a possíveis afinidades étnicas”.
Apesar de preferirem pessoas de mesma origem para se unirem em matrimônio, os escravos também se uniram a pessoas de origem diferente. Como apresentado na tabela 02, vinte crioulas se uniram a africanos.
Das 18 africanas que se casaram, 14 casaram-se com africanos, as 4 restantes casaram-se com homens de procedência diferente das suas, mostrando um percentual de pouco mais de 20% de africanas casadas com homens não-africanos. Se pensarmos que o escravo não identificado na tabela, que se casou com a africana for um africano, este percentual cai para 16,7%, evidenciando que estas escolhas refletem a conjuntura vivenciada. A tabela também nos permite analisar a quantidade de africanos e africanas que se casaram nesta freguesia: 41 africanos, e 18 africanas. Um número bem mais elevado de africanos em detrimento de africanas; Como a historiografia tem demostrado, isso se justifica pela grande quantidade de homens trazidos da África para trabalhar em diversas lavouras e pecuária, normalmente nas fazendas, sejam elas do sertão ou não, contavam com um maior contingente de homens escravos do que de mulheres escravas, e havia uma grande preferência dos senhores por escravos do sexo masculino, já que as mulheres eram utilizadas com maior frequência nos serviços domésticos, enquanto os homens trabalhavam nas lavouras e pecuária.
Do total de 179 casamentos – que totaliza 358 escravos casados – 53 homens e 58 mulheres, não tiveram suas origens identificadas nos registros de casamentos. As procedências étnicas, ou seja, as nações (Mina, Angola, Benguela, etc.) dos africanos identificados na Freguesia Santana de Caetité, 59 no total, também não foram especificadas na documentação consultada.
Foram localizados 358 escravos que se casaram entre homens e mulheres, destes, 59 eram africanos, o que nos leva a concluir que em Caetité houve uma presença significativa de africanos. Se levarmos em conta somente o número de escravos que se casaram para fazer a comparação, teremos o elevado número de 16,5% de presença de africanos, no entanto esses números são apenas suposições já que precisaríamos de maiores informações para fazer essas constatações, como o número de escravos e de africanos, da Freguesia.
Já a quantidade de crioulos em comparação com o número de africanos, apresenta maior número de mulheres casadas do que homens: 60 mulheres e 51 homens. Talvez as mulheres crioulas fossem mais abertas ao casamento que suas companheiras africanas, ou a maior quantidade de mulheres crioulas favorecesse o número elevado de uniões matrimoniais entre essas, em detrimento das cativas africanas. Este maior número de crioulos sugere uma opção dos proprietários da Freguesia Santana de Caetité pela reprodução natural de seus cativos além de utilizar o mercado do tráfico de africanos, como observado por Nogueira (2011), para o “Certam de Sima”, onde essa opção foi bastante recorrente.
A grande presença de crioulos localizados nessa pesquisa, 111 – entre homens e mulheres, – também evidencia que esta não foi uma possibilidade descartada pelos proprietários de escravos da Freguesia de Caetité, o grande números de africanos indicam que o tráfico também foi bastante utilizado pelos senhores dessa freguesia para recompor suas posses escravas, levando-nos a sugerir que tanto o tráfico de escravos quanto as reproduções naturais de seus cativos, foram estratégias utilizadas pelos senhores de escravos de Caetité.
Notamos também que mais mulheres (entre livre, liberta, forra) se casaram com homens cativos, do que o contrário: a tabela mostra seis forras casadas com cativos, enquanto apenas três homens na condição de livre e liberto casaram-se com mulheres que ainda estavam presas ao cativeiro. Se analisarmos esse dado pelo ponto de vista político, compreenderemos que, antes da Lei de Ventre Livre (1871) todas as crianças que nascessem de ventre escravo era escrava. Partindo desse viés, se a escrava se casasse com um homem livre ou forro, estaria sujeita a ter sua prole presa ao cativeiro. Se pensarmos na situação inversa, notaremos que, o homem estando na condição de cativo e a mulher sendo livre poderiam constituir uma família com menos “riscos”, pelo menos, no que se refere a condição dos filhos que por ventura viessem a nascer dessa união, a mãe sendo livre a criança não corria o risco de nascer cativa. Talvez esse pensamento justifique os números apresentados.
A análise da formação dos pares nos possibilita entender um pouco da dinâmica escravista do alto sertão, no que se refere às escolhas de seus parceiros e parceiras para construírem famílias. Entretanto, outros fatores devem ser levados em consideração no tocante a famílias escravas como as dificuldades a que muitos cativos se deparavam para a constituição de uma família legitimada pela Igreja Católica.
3. DIFICULDADES E IMPEDIMENTOS PARA OS CASAMENTOS DE CATIVOS NA IGREJA CATÓLICA.
Regras da Igreja Católica muitas vezes tornaram-se dificuldades e impedimentos para a realização de casamentos de cativos. Eliana Maria Goldschmidt (2000) esclarece que, para que fosse realizado o sacramento do matrimônio era exigido aos escravos que soubessem as doutrinas cristãs e a obrigação do Santo Matrimônio. Muitos escravos poderiam ter certo conhecimento de algumas das doutrinas exigidas pela Igreja Católica, devido ao convívio com alguns senhores que eram adeptos da religião e a participação em festejos e celebrações religiosas, como missas, batizados e casamentos, no entanto, é pouco provável que conhecesse todas as doutrinas cristãs. Os africanos, por exemplo, tinham outras crenças e cultura e, provavelmente, mesmo fora de seus territórios e de suas origens, não deixaram de praticar o culto aos seus deuses e continuar a segui-los no novo continente.
Maria Beatriz Nizza da Silva (1984) sugere que apesar de existirem outros desafios para o casamento católico, o conhecimento das doutrinas cristãs era a maior dificuldade encontrada pelos cativos, já que vivenciavam outra crença, e cultuavam outros deuses, sendo que, mesmo após serem trazidos da África muitas manifestações religiosas permaneceram nas práticas cotidianas dos cativos. Pires (2009, p.242) salienta que os africanos “vivenciam na região elementos da religião afro-brasileira, principalmente em sambas e batuques. O contato com as tradições católicas se dava corriqueiramente naquelas pequenas localidades do sertão, tão apagadas ao calendário cristão.”
Segundo as Constituições Primeiras do Arcebispado da Bahia (VIDE, 1853, p.125. grifos meus) os escravos poderiam se casar desde que conhecessem e seguissem os dogmas da Igreja[14]. Para essa instituição os aspirantes ao casamento poderiam se casar, desde que:
Este Sacramento se não administre aos escravos senão estando capazes, e sabendo usar delle, mandamos aos Vigários, Coadjutores, Capellães, e quaisquer outros Sacerdotes de nosso Arcebispado, que antes que receba os ditos escravos, e escravas, os examinem se sabem a Doutrina Cristã, ao menos o Padre Nosso, Ave Maris, Creio em Deos Padre, Mandamentos da Lei de Deos, e da Santa Madre Igreja, e se entendem a obrigação do Santo Matrimônio, que querem tomar, e se é sua tenção permanecer nelle para serviço de Deos, e bem de suas almas; e achando que o não sabem, ou não entendem essas causas, os não recebam ate os saberem, e sabendo-as os recebam.
Assim, percebemos que os escravos deveriam ter, no mínimo, estas características para que pudessem estar aptos a contrair o matrimônio. De acordo com as Constituições, caso os cativos não soubessem ao menos rezar o Padre Nosso, a Ave Maria, o Creio em Deus Padre e conhecesse os Mandamentos da Lei de Deus e da santa Madre Igreja os casamentos não se realizariam. Isso era o que estava escrito, mas não se sabe até que ponto os escravos deixaram de se casar por não saber rezar o Padre Nosso, não acredito que este possa ter sido um empecilho para que cativos optassem por casamentos na Igreja Católica.
Acerca dos impedimentos, podemos imaginar que eles existiram para a Freguesia Santana de Caetité, já que em alguns registros há a menção de tal ocorrência.
A 20 de janro do do ano [1853] O Pe Gomes cazou Domos com Izidora pardos escravos de Manoel da Sa Pera ambos desta Frega Arcebispado da Ba sem impedimto canônico [...][15] (grifos meus)
Não foi localizado na documentação escravos que não puderam contrair matrimônio devido a algum impedimento canônico, no entanto, o registro acima nos permite supor que esses impedimentos existiam e que alguns casais podem ter deixado de contrair matrimônio devido a sua ocorrência.
Eliana Maria Rea Goldschimidt (2000) ao tratar de matrimônio e escravidão em São Paulo colonial, e Sílvia Maria Jardim Brugger (1998) ao abordar as uniões matrimoniais em Minas Gerais no século XIX, tratam acerca desse aspecto, destacando o papel decisivo da Igreja nas efetivações das uniões entre negros escravizados. Brugger (1998, p.1) apresenta conclusões importantes a esse respeito, abordando os rituais do casamento em que “os pretendentes do matrimônio deveriam descrever praticamente toda a sua vida até aquele momento, comprovando as suas afirmações documentalmente ou através de testemunhas”.
Segundo as autoras, haviam alguns empecilhos colocados pela Igreja e que deveriam ser superados pelos negros, como por exemplo, a existência do documento de batismo e banhos[16]. Caso estes não apresentassem esses documentos, por algum motivo, como a perda, por exemplo, deveriam provar que haviam passado por estes processos através de testemunhas. Para Goldschimidt (2000), quando não fosse concedida uma dispensa, era necessário substituir o registro de batismo por interrogatório, com a finalidade de justificar sua existência.
Sheila de Castro Faria (1998, p. 58), apresenta o que poderia ser um desestímulo às uniões matrimoniais, conforme a autora
[...] qualquer pessoa que se decidisse casar entrava com um processo de comprovar determinadas condições básicas que a habilitasse no matrimônio. Deveria apresentar certidão de batismo; comprovar seu estado de solteira e descompromissada com outra qualquer instituição (como voto de castidade e religião); sendo viúva tinha que mostrar o assento de óbito do outro cônjuge; provar ser livre, no caso de ex-escravos e seus descendentes, mostrando a carta de alforria (ou, então, a certidão de batismo e uma cópia do testamento, para os que fossem alforriados na pia batismal ou em disposições testamentárias) e proclamar o futuro matrimônio em todos os lugares onde esteve fixada por mais de seis meses, para a comprovação da inexistência de impedimento. (grifos meus)
Percebe-se assim, que até mesmo as pessoas livres poderiam encontrar dificuldades com as regras rígidas da Igreja Católica, o que reforça a ideia de que muitos acabavam tendo de optar por relações consensuais ao casamento religioso.
Francisco Vidal Luna e Iraci Del Nero da Costa (1981 s.p) apontam que “[...] parcela ínfima das uniões a envolver pelo menos um escravo via-se sacramentada pela Igreja”, isso se justifica pelas dificuldades e empecilhos impostos para a realização deste sacramento. Para os autores (Loc. cit.), esse fator advinha-se principalmente, “[...] dos empecilhos gerados pelo próprio mecanismo imposto pelo poder espiritual à consecução do sacramento matrimonial”, como, por exemplo, “o procedimento formal indispensável à obtenção do consentimento” para o casamento e os “custos monetários associados às prescrições ditadas pela Igreja”.
Talvez o valor cobrado pelo matrimônio fosse um empecilho bem maior aos cativos que o conhecimento das doutrinas cristãs, já que nem todos os escravos conseguiam algum pecúlio, e se assim o fizesse, provavelmente o guardaria para a compra da sua liberdade, pelo menos é o que se imagina. E com relação às exigências para o matrimônio, cabe ressaltar, que algumas brechas eram abertas, e nem sempre se seguia rigorosamente o que era expresso pelas constituições.
Uma dessas possíveis brechas eram as dispensas. Segundo Cristiane Pinheiro Santos Jacinto (2005, p.81) que escreve sobre família escrava em São Luiz, século XIX, a burocracia constituía-se em forte empecilho às uniões legítimas, mas não os impediam de realizar seu intento, para a autora
Ao mesmo tempo em que o excesso de exigências dificultava o casamento de escravos, essa instituição buscava, na medida do possível, viabilizá-las à partir da concessão de dispensas. Apesar das particularidades, é possível afirmar que, embora não fosse a regra, os escravos recorriam ao casamento para sacramentar suas uniões, fossem recentes ou mesmo aquelas mais consolidadas, que já haviam, inclusive, originado uma prole. Os documentos exigidos e as dificuldades para consegui-los não os impediam de realizar seu intento.
Muitos escravos da Freguesia Santana de Caetité se valeram dessas brechas para contraírem o matrimônio e “realizar o seu intento”. Como foi o caso dos cativos Victorino e Michaella que se casaram apesar do parentesco. “A 7 de 9bro 1847 casou solenimte Victorino e Michaella crioulos escros de Vicente Ferra de Azdo foram dispensados no 2º grau de consaguinidade”[17].
No entanto, não se sabe até que ponto essas dispensas também se fizeram presente em se tratando de impedimento canônico, a documentação consultada não apresenta nenhum caso em que faz menção a esse tipo de dispensa. O que fica evidente é que significativo número de casamentos ocorreram, isso pode ser constatado por meio da análise dos registros de casamentos, e analisando as legitimidades dos registros de batismos, conforme indicado na primeira parte deste artigo.
Maria Beatriz Nizza da Silva (1984, p.142) constatou que havia certa flexibilidade dos párocos locais que aceitavam celebrar o casamento, na medida em que uma pessoa idônea se responsabilizasse pela posterior apresentação das certidões exigidas. Acerca dos proclamas, esclarece que estes tinham de ser tornados públicos durante três domingos ou dias santos seguidos, não só na freguesia onde os contraentes iam celebrar seu matrimônio, mas também naquelas onde eles tinham residido depois de chegarem a idade casadoura. (14 anos para os homens e 12 anos para as mulheres, segundo as Constituições Primeiras do Arcebispado da Bahia).
Como já mencionado anteriormente, as informações dos registros de casamentos trazem pouquíssimas informações acerca dos contraentes, sobretudo no que diz respeito aos escravos, o que impossibilita fazer análises mais esclarecedoras a esse respeito.
Diante dessas constatações apresentadas, nos deparamos com uma série de questionamentos: por que os escravos se esforçavam tanto para casar já que era algo tão complicado? Qual o significado da família para os escravos? E, mais que isso, qual o significado que possuía o enlace matrimonial celebrado pela Igreja Católica para os cativos?[18]
4. ESCOLHAS E MOTIVAÇÕES DE ESCRAVAS E ESCRAVOS NA FORMAÇÃO DE LAÇOS FAMILIARES.
Aos escravos cabiam algumas alternativas de escolha de vida, em particular na seleção de cônjuges e de relações de parentesco mais extensas. Faria (1998, p.294) salienta que “as interferências dos senhores, nesses aspectos, foram aparentemente eventuais e esporádicas”.
As Constituições Primeiras do Arcebispado da Bahia (VIDE, 1853, p.125) trazem informações bastante esclarecedoras sobre a composição dos matrimônios entre os escravos na Bahia. No título que se refere aos matrimônios dos escravos, o texto traz a seguinte informação:
Conforme o direito Divino, e humano, os escravos podem casar com outras pessoas captivas, ou livres, e seus senhores não lhe podem impedir o Matrimônio, nem o uso delle em tempo, e lugar conveniente, nem por esse respeito os podem tratar pior, nem vender por outros lugares remotos, para onde o outro por ser captivo, ou por ter outro justo impedimento o não possa seguir, e fazendo o contrario pecam mortalmente, e tomão sobre suas consciencias as culpas de seus escravos, que por este temor se deixam muitas vezes estar, e permanecer em estado de condenação. [...] E declaramos, que posto que casem, ficam escravos como de antes erão, e obrigados a todo o serviço de seu senhor[19].
A historiografia tem analisado uniões matrimonias por dois ângulos. Um trata da visão que o escravo possuía acerca do casamento, que poderiam fazer suas próprias escolhas na condução de suas vidas, escolhendo seus parceiros para se casarem e constituir família, havendo certa “liberdade” na escolha dos futuros parceiros que, nesse caso, não era instituída pelo senhor, não era este quem escolhia os parceiros para seus cativos, e sim eles mesmos diante das possibilidades que lhe eram oferecidas, como por exemplo, a pouca quantidade de mulheres nos plantéis fazia com que as opções ficassem cada vez mais escassas.
Robert Slenes (1999, p. 72) apresenta que “o grande desequilíbrio entre homens e mulheres adultos, tem implicações importantes para a família cativa”, ou seja, essa superioridade de homens nas senzalas em detrimento das mulheres fazia com que os homens tivessem “pouca” possibilidade de escolha, e as mulheres tinham, de alguma forma, certo “privilégio” em suas escolhas devido ao grande grau de masculinidade nas fazendas.
Para a freguesia em estudo não se dispõe de dados acerca da quantidade de homens e mulheres nos plantéis ou por fazendas, pois nos registros não foram indicados a localidade das pessoas, desse modo, não se permite fazer conclusões acerca da maior possibilidade de escolha das mulheres cativas sobre os homens. Entretanto, é de se imaginar, que a opção por homens nas fazendas fosse muito maior que por mulheres, entendendo que essa era uma forte característica da escravidão no Brasil. Desta forma, as mulheres realmente tinham um maior leque de possibilidades, o que não quer dizer, entretanto, que eram estas que escolhiam os seus parceiros. Certamente essas uniões advinham da escolha de ambos os cônjuges.
O outro ângulo analisado traz os senhores enquanto “beneficiários” das uniões matrimoniais entre escravos de sua propriedade. De modo que o casamento significou, para muitos proprietários de escravos, um poderoso instrumento de controle social, em que possibilitava aos senhores terem maior segurança quanto a permanência desses escravos em suas fazendas, de forma que o esposo ou esposa não fugiria deixando para traz sua família, que poderia sofrer as consequências de sua fuga, sendo castigados, ou sofrerem outro tipo de punição. Então, conclui-se que para os senhores havia certos benefícios, como a ausência ou diminuição de fugas, por exemplo.
Washington Santos Nascimento (2007) que escreve sobre a família escrava no sertão baiano nas décadas finais da escravidão, tendo como base para sua pesquisa a consulta de escrituras de compra e venda e termos de tutela e outros (43 termos analisados), enfatiza as uniões de cativos enquanto algo comum e duradouro no sertão baiano. O autor afirma ainda, que, muitas vezes os escravos eram reféns de suas próprias redes de solidariedades e parentesco, alguns senhores estimulavam as uniões cativas para que o escravo se tornasse reféns do próprio sistema.
Robert Slenes (1999, p. 114 –115.) também discorre a esse respeito afirmando que:
A formação de uma família transformava o cativo e seus parentes em “reféns”. Deixava-os mais vulneráveis às medidas disciplinares do senhor (por exemplo, à venda por punição) e elevava-lhes o custo da fuga, que afastava os fugitivos de seus entes queridos e levantava para estes o espectro de possíveis represálias senhoriais.
O que se constata é que estas uniões geravam perdas e ganhos, pois, ao mesmo tempo em que criava laços familiares e comunitários dando-lhes possibilidades para certas mobilidades no cativeiro, tornava-os reféns devido ao amor a seus familiares. Certamente, a família estava em primeiro lugar na vida destes sujeitos sociais escravizados, muito além de outros interesses, embora estes também fizessem parte da vida destas pessoas
Outro aspecto a se destacar nessa análise envolvendo a escolha dos cativos, é o “impedimento” com relação ao casamento entre escravos de fazendas diferentes, como destaca Brugger (2007, p.119), se tratando da formação familiar em São João Del Rei em Minas Gerais, “todos os casais legitimamente constituídos eram formados por cativos de um mesmo proprietário, apontando para a existência de impedimentos impostos pelos senhores para a contração de matrimônio entre cativos de escravarias diversas”.
Apesar desta pesquisa não dispor de dados que permitam identificar os locais de moradia ou nascimento dos contraentes, já que as fontes são limitadas, foi possível localizar escravos de proprietários diferentes contraindo matrimônio, entre os casais encontrados, destacamos: Domingos, africano, escravo de Silvério Pereira da Costa, que casou-se com Roza Fernandes da Costa, escrava de Joaquim Fernandes da Costa; Florentino, africano, escravo de D. Maria Francisca da Conceição, casou-se com Ediviges, crioula, escrava de Jerônimo Pereira da Costa; e Eugênio Gonsalves, escravo de Felix Pereira, casou-se com Catherina, escrava do Capitão Antônio de Carvalho, que são alguns exemplos. Ao todo, a pesquisa aponta 10 casamentos entre escravos de senhores diferentes, chegando a um percentual expressivo de 5,6% dessas uniões legitimadas. Uma quantidade elevada, sobretudo se considerarmos as demais regiões, como o sertão do São Francisco, onde a historiadora Napoliana Santana (2012, p.66) constatou que “as fontes noticiaram apenas um casal de escravos pertencentes a diferentes senhores com união legitimada”.
A partir de 1850, com a proibição legal do tráfico atlântico de africanos, o regime escravista começa a entrar em crise e, talvez, por esse motivo, os senhores tentaram controlar os casamentos de seus cativos, visando impedir a abertura de brecha para possíveis intervenções da Igreja, caso quisessem negociar seus escravos.
Associado a isso, a partir desse momento, impõe-se uma nova forma de organização e comercialização de cativos, que passava agora a ser interprovincial. Nesse viés, as relações de parentesco passaram a desempenhar papel contrário ao que vinha apresentando anteriormente, os jovens cativos que estavam sujeitos a irem para outras províncias se rebelavam, pois não queriam separar-se de seus familiares. “O parentesco escravo, que antes era fator que pacificava os escravos e colaborava com a manutenção do sistema, passou a ser um dos principais entraves ao funcionamento da dominação escravista”. (RAMOS, 2010, s.p.)
A tabela abaixo aponta os índices de casamentos na Freguesia Santana de Caetité para esse período, vejamos:
Tabela 03: Índices de casamentos na Freguesia Santana de Caetité (1831 – 1855 / 1876 – 1888).
DATAS |
NÚMEROS DE CASAMENTOS |
1831 – 1835 |
0 |
1836 – 1840 |
16 |
1841 – 1845 |
61 |
1846 – 1850 |
69 |
1851 – 1855 |
26 |
1876 – 1880 |
1 |
1881 – 1885 |
6 |
1886 – 1888 |
0 |
TOTAL |
179 |
Fonte: Livros de registro de casamento da Cúria da Igreja Matriz de Caetité 1831-1848; 1837-1855; 1846-1851.
Livro de registro de casamento do APMC - 1876- 1888.
A tabela mostra realmente um decréscimo nos números de casamentos, que vinham aumentando consideravelmente desde a década de quarenta. Os números mostram um aumento de 16, nos últimos anos da década de trinta, para 61, nos primeiros cinco anos da década de quarenta, chegando ao expressivo número de 69, nos últimos anos desta década. Vindo a cair vertiginosamente a quantidade de casamentos nos primeiros anos da década de cinquenta, chegando a 26 casamentos. Os dados não nos permite saber a quantidade de casamentos do período compreendido entre 1856 a 1876, devido a documentação não contemplar este período, o que nos impossibilita de fazer uma análise mais incisiva acerca dos decréscimos nos números de casamentos, no entanto, analisando os dados oferecidos pela tabela, veremos que em nenhum período posterior ao fim do tráfico os índices se assemelharam aos da década de quarenta.
Podemos conjecturar que, de alguma forma, houve interferências, para a queda desses números de uniões matrimoniais, como supõe Silva (1984), os senhores podem ter criado obstáculos para a realização do casamento, e como já vimos anteriormente, empecilhos não faltaram aos escravos que desejavam unir-se em matrimônio. Uma possível justificativa para esta queda foi o fim do tráfico negreiro e a intensificação do tráfico interprovincial que não respeitava os laços e sentimentos familiares dos cativos muitas vezes destruindo famílias enraizadas por longo tempo no sertão baiano.
Fátima Pires (2009, p.43) acerca do tráfico interprovincial de escravos verificou que “Uma das consequências desse intenso tráfico interno foi a desagregação do grupo familiar escravo. Crianças entre 8 e 12 anos, foram apartadas de seus pais, parentes e amigos” além disso, “famílias inteiras foram ‘negociadas’, mas não se pode precisar se continuaram integradas no destino de suas vendas”. (Ibid, p.44 )
Pesquisas nos apontam algumas possibilidades interpretativas sobre as motivações dos escravizados para se unirem a outrem estando na condição de cativo. Entre as possibilidades pode-se supor que isso se dava em busca de uma “felicidade” que só seria alcançada com um companheiro, ou talvez este representasse para o escravo “[...] o consolo de uma mão amiga na luta para enfrentar privações e provações” como escreve Robert Slenes (1999, p.149), ou ainda, o fato de o casamento ser mais uma estratégia “política” para alcançar vantagens diante do senhor, pois “dentro do precário ‘acordo’ que os escravos extraíram de seus senhores, o casar-se significava ganhar maior controle sobre o espaço da moradia” (Op. Cit., p. 150).
Para Brugger (2007, p.120), os escravos urbanos, portadores de uma maior autonomia em relação aos senhores como os “de ganho”, teriam menos a lucrar com as uniões matrimoniais, do que os cativos do meio rural. “Para estes, o casamento poderia viabilizar maior autonomia, no sentido de constituição de habitação em separado do restante da escravaria, e a possibilidade, inclusive, de manutenção de padrões culturais de origem africana”.
Isabel Cristina Ferreira dos Reis em sua tese de doutorado A família negra no tempo da escravidão: Bahia 1850 – 1888, destacou a importância da família escrava para os cativos. Segundo Reis (2007, p.27) “[...] não foram poucas as evidências da importância atribuída pelos negros, com diferentes estatutos jurídicos às suas relações familiares e de parentesco, independente de se tratar de família constituída através do casamento católico ou consensual, família nuclear ou parcial”.
Em alguns dos registros consultados, percebe-se a união de cativos que contrairam matrimônio mesmo em idades avançadas, como é o caso de Ancelmo e Raymunda, veja a ata do casamento abaixo:
Aos treis dias do mez de julho do Anno de Nascimento do Nosso Senhor Jezus Christo de mil oitocentos setenta e oito, neste Districto de Paz, parochia de Santa Anna de Caetité, município do mesmo nome, província da Bahia, em meu cartório compareceu o Doutor Juiz de Direito Jozé Antônio Gomes Netto, e declarou que no dia vinte e treis do mez de junho, em seu Oratório particular, em sua fazenda da Santa Barbara, receberão por marido e mulher, os seus escravos Ancelmo, crioulo, de sessenta annos, e Raymunda, crioula, com quarenta annos [...][20] (grifos meus)
Diante desse registro surge o seguinte questionamento: o que levaria um senhor idoso e uma mulher de quarenta anos a contrair matrimônio a essas alturas da vida? Presumivelmente este casal já vivia em união e buscou legitimá-la no “Oratório da Fazenda Santa Barbara” onde deveriam morar, pois o declarante desta informação o “Doutor Juiz de Direito Jozé Antônio Gomes Netto”[21] era o proprietário da referida fazenda e do casal de cativos. Pode-se pensar também que, talvez, simplesmente, quisessem juntar seus sofrimentos e alegrias e conviver juntos pelo resto de suas vidas. Talvez o casamento fosse uma forma de adoçar a vida após tantos anos de lutas e amarguras. Ou até mesmo, uma válvula de escape para sobreviver ao cativeiro depois de uma longa trajetória de sofrimento. E, por que não dizer, a esperança de, mesmo após tantos anos, ainda encontrar a felicidade. No entanto, só por meio da análise comparativa com outros documentos poderemos encontrar essas respostas.
Segundo Washington Santos Nascimento (2007) a partir do Decreto lei n°1.695, de 15 de setembro de 1869, que proibia a desagregação da família escrava, os casamentos tendem a aumentar. Este Decreto proíbe a venda de escravos debaixo de pregão e em exposição pública, e em seu art. 2º, estabelece que “[...] em todas as vendas de escravos, ou sejão particulares ou judiciaes, é prohibido, sob pena de nullidade, separar o marido da mulher, o filho do pai ou mãi, salvo sendo os filhos maiores de 15 annos”[22].
No entanto, nessa pesquisa – que infelizmente não dispõe de dados sobre esse período para a Freguesia de Caetité, tendo, a partir desta lei, apenas registros de 1876 a 1888 – a partir das datas analisadas após a lei encontrou-se um decréscimo nas uniões matrimoniais sacramentadas pela Igreja, sendo que de 1876 a 1888 realizou-se, segundo o registro disponível no Arquivo Público Municipal de Caetité, apenas 7 casamentos entre escravos. (Veja tabela 03)
Será que a sensação de proximidade com a liberdade fez com que essas pessoas decidissem mais por uniões consensuais em detrimento das uniões sacramentadas pela Igreja Católica? Os dados da tabela 03, nos permite analisar o casamento nos anos finais da escravidão, apontando que entre as décadas de setenta e oitenta apenas 7 casamentos entre escravos foram localizados.
Analisando as uniões escravas segundo a condição social dos contraentes pode-se compreender outros significados para as escolhas dos cativos envolvidos nas práticas de casamentos. Para esta pesquisa, foi localizado apenas um casamento envolvendo escravos e pessoas livres, os envolvidos são a cativa Maria Cabra e seu esposo Manoel Batista de Salles, como se pode verificar no registro abaixo:
Aos 2 de Jo de 1839 nesta ma Frega O Pe Ges [ilegível] se receberam em matrimônio de palavras que celebrarão os contrahentes marido e mer.[...] Manoel Baptista de Sales, filho de João Baptista de Sales, e Francisca Mª da Conceição, com Maria Cabra escrava de D. Maria, ttas Je Simião de Matos, e João Moreira de Oliveira[23].
O registro não especifica a condição de Manoel, se cativo ou livre, no entanto, apresenta o nome do pai e da mãe, nos levando a crer que ele era uma pessoa livre. Mas, relacionado a isso, a falta do nome de um proprietário, que, na maioria das vezes, foi o que diferenciou o cativo do liberto para essa pesquisa. Já para a definição de Maria, a documentação apresenta sua condição de cativa acompanhada do nome de sua proprietária. Deste modo, fica evidente que Maria era escrava e Manoel, livre.
Normalmente os cativos preferiam unir-se a pessoas de mesma condição social que a sua, ou seja, cativos, na maioria dos casos, uniam-se a cativos.
Para a pesquisa ora apresentada verificou-se uma quantidade ínfima de uniões envolvendo escravos e forras, ou escravas e forros. Dos 179 registros de casamentos entre escravos, apenas 6 escravos casaram-se com mulheres forras, dentre eles 2 africanos, 1 mulato, 1 cabra e 2 que não foram identificados na documentação, como mostra a tabela 02.
Dentre os casos citados acima, podemos mencionar o escravo Jozé, pertencente a Jozé Cardozo Pereira, que casou-se com a forra Jozefa, em 1847. Domingos, africano, escravo de Silvério Pereira da Costa, casou-se, em 1838, com a forra, Roza Fernandes da Costa. O africano Valemtim, pertencente a Antonio de Sauza Meira, também contraiu matrimônio com a africana forra, Aguida, em 1847. Fidelles, escravo de Antonio Raiz Ladeia, casou-se com Francisca, africana forra, em 1846. Nesse mesmo ano, Miguel, cativo de Dona Maria Genoveva, casou-se com Joana Francelina, forra.
Apenas dois, dos casos pesquisados, o cônjuge (homem) era liberto, e a companheira, cativa. As cativas são Clemência, crioula, escrava de Selêncio Antonio da Silveira, e Fellipa, cativa de Dona Clemencia Benigna Fraga Moreira, que se casaram com Francisco e Jerônimo, respectivamente, ambos os casamentos se deram no ano de 1885.
Acerca desse tipo de união, Juliano Tiago Viana de Paula (2009), salienta que era pequeno o número de casamento entre libertos ou forros e cativos, para o autor, havia vantagens e prejuízos para ambos os lados. Para aquele que ainda está sob o regime da escravidão este enlace pode representar uma maior proximidade da liberdade, enquanto que para as mulheres libertas, poderiam aproximá-las do cativeiro.
A partir do momento que estes nubentes se ligavam aos cativos, teriam que assinar um termo de seguimento. Com o estabelecimento destes laços a sua liberdade de movimento estaria em risco, não poderia ir para onde desejasse, pois o seu parceiro estava preso aos grilhões da escravidão. [...] Talvez o medo do retorno ao cativeiro, poderia ter sido uma barreira para a consolidação desses laços. (Loc. cit)
Com relação ao matrimônio de homens libertos com mulheres escravas, Juliano de Paula (Loc .cit) constata que o mesmo tinha um baixo percentual, no entanto era mais frequente do que de mulheres livres com escravos. O que contrasta um pouco com o que foi percebido neste estudo, onde se verificou, com maior frequência, o casamento de escravos com mulheres livres, do que o inverso. Tendo ambos um baixo percentual.
O autor afirma que essas relações poderiam ser motivadas por alguns fatores, como a possibilidade de conseguirem um pequeno pedaço de terra dos senhores de suas escravas, para os homens mais desprovidos, ou ainda devido a baixa quantidade de mulheres entre a população livre e liberta, disponíveis para o casamento.
Deve-se levar em consideração, quando se trata desse tipo de união, entre livres e libertos, que era muito pouco vantajoso para o homem livre se unir a uma mulher presa à escravidão, de modo que, se esta escrava viesse a gerar um filho, este estaria condenado ao cativeiro, do mesmo modo que sua mãe, ou seja, o filho do casal, não seria uma criança livre já que sua mãe era uma escrava.
Se a situação fosse o inverso, onde o homem estivesse preso aos grilhões da escravidão, e a mulher fosse livre, o filho, provavelmente, seria uma criança livre, pois sua mãe assim o era. Essa reflexão nos permite entender o ponto de vista de muitos libertos em não unir-se a mulheres cativas, e entender o porquê da parcela ínfima de livres que uniam-se a escravos. Observar as relações envoltas no apadrinhamento de casamentos também abre outras possibilidades interpretativas a respeito dos significados das uniões matrimoniais para as famílias dos cativos.
4.1. PADRINHOS DE CASAMENTOS E DE BATISMO: RELAÇÕES DE COMPADRIO
Através da documentação consultada nesta pesquisa, foi possível constatar alguns casos em que os escravos escolhiam para seus padrinhos de casamento, seus proprietários, ou familiares destes. Antônio e Maria Joaquina, por exemplo, que se casaram em 2 de outubro de 1847, escolheram para seus padrinhos de casamento, o senhor Francisco Ferreira da Silva, proprietário de ambos os cônjuges. Do mesmo modo também o fizeram Jozé Crioulo e Luiza Cabra, escolhendo para padrinhos Clemente da Silva Meira, seu proprietário. Se analisarmos a partir da ideia de que esta escolha foi feita pelos escravos, pode-se supor a existência de uma relação mais próxima desses escravos com seus senhores, ao ponto de estender essas relações a laços importantes como as relações de compadrio. Ou ainda, configura-se em estratégias para auferir ganhos e até privilégios dentro da fazenda de seu senhor. Evidenciando uma estratégia dos escravos na escolha de seus padrinhos.
A pesquisa aponta uma quantidade expressiva de cativos que escolheram, para seus padrinhos de casamento, pessoas de um status social bem elevado, a maioria delas eram proprietários de escravos e donos de fazendas. Informações que foram possíveis coletar através do cruzamento dos dados dos registros, já que um proprietário que apareceu casando seus cativos em um momento surgiu, em outro, apadrinhando outro casal. E pelo sobrenome dos padrinhos, indicando que não se tratavam de escravos.
Essas relações de compadrio, em alguns casos se configuravam como estratégias de sobrevivências, de modo que os cativos poderiam auferir ganhos que poderiam ir de proteção a cartas de alforrias. Como destaca Fernanda Dias (2013, p.11, grifos meus)
O apadrinhamento era um campo de possibilidades para os cativos e extrapolavam o seu significado religioso. Os padrinhos livres poderiam representar algum ganho para os escravos que esperavam com o batismo proteção e, quem sabe, auxílio na conquista da carta de alforria. Já a escolha dos companheiros de cativeiro como compadres e comadres pode revelar o desejo de manutenção de sentimentos de afeição, amizade, respeito e solidariedade.
O apadrinhamento poderia significar também o anseio de estreitamento de laços já existentes, ou simplesmente a manutenção de laços familiares ou de amizade. E, como destaca a autora, “era um campo de possibilidades”.
Para essa pesquisa foi praticamente nulo o número de escravos que apareceram como padrinhos de casamento. De todos os registros identificados, apenas a união de José Africano e Benedita Crioula, escravos de Manoel Pereira da Costa, revela cativos como testemunhas. O registro revela que “Aos 28 de maio de 1840 perante o vigro Sabino receberão em casamto na Fregesa de Caetité os contraentes marido e mulher, Jose Africano com Benedita Crioula escros do Alferes Manoel Pereira da Costa com assistência das ttas Mel Cro e Benta cra [24][...].”
Esse dado indica a valorização por parte desses cativos de companheiros da escravidão para testemunharem sua união, e como salientado por Dias (Loc. cit.) revela o desejo de manutenção de sentimentos de afeição, amizade, respeito e solidariedade.
Em muitos casos, casamentos de casais de escravos do mesmo proprietário, que eram realizados no mesmo dia, tinham por testemunha os mesmos personagens. O que nos induz a crer que em algumas situações essas escolhas eram negadas aos escravos sendo-lhe permitido somente a escolha de seu cônjuge. Segundo Pires (2003, p.88) “o padrão dos registros era o mesmo. As testemunhas podiam ser os próprios senhores, senhores da vizinhança, forros, trabalhadores livres e mesmo escravos.” Analisar essas escolhas se torna complexa, na medida em que não se pode assegurar até onde as cativos podiam ou não escolher seus padrinhos de casamento. A documentação não dá margem a possíveis interpretações.
Em seu estudo Robert Slenes (1999) observa que as celebrações dos matrimônios aconteciam na cidade, nas igrejas matrizes do município e normalmente os fazendeiros esperavam ate ter uma grande quantidade de batismos e casamentos para serem celebrados todos juntos, assim economizaria tempo e impressionaria a escravatura com o clima de festa que a ida à igreja proporcionaria.
Essas informações apresentadas pelo autor (Loc. cit.) podem ser constatadas por meio das pesquisas realizadas nos registros de casamento analisados, em que, dos 32 senhores de escravos que realizaram o casamento de mais de um casal de escravos, 24 destes optaram pele realização dos casamentos coletivos. Doutor Joaquim Duncam realiza, em 5 de fevereiro de 1843, o casamento de quatro casais de escravos de sua propriedade.
Figura 01: Casamentos coletivos de escravos do Doutor Joaquim Duncam[25]
Proprietário: Doutor Joaquim Duncam |
Francisco com Manoela |
Aleixo com Sabina |
Lucio com Constância |
Vicente com Rita |
Padrinhos: Ângelo Custódio de Mello e Braz de Souza |
Percebe-se que o senhor Joaquim Duncan optou por realizar a cerimônia de casamento de seus cativos no mesmo dia, certamente, como apontado por Slenes (1999), pelo clima de festa que se instauraria na fazenda, ou até mesmo para evitar perder tempo de trabalho, e até mesmo o risco de fuga que essas viagens poderiam possibilitar.
Outro dado relevante acerca desses registros é que as testemunhas dos quatro casamentos foram Ângelo Custódio de Mello e Braz de Souza, o que nos induz a pensar até que ponto os escravos poderiam escolher seus padrinhos de casamentos? Uma pesquisa mais aprofundada poderá responder tais questionamentos. No entanto, essas reflexões revelam estratégias que nos permite compreender que o casamento era reflexo de uma negociação entre senhores e escravos, onde sem a conivência de uma das partes o matrimônio não se concretizaria.
Um posicionamento diferente, já se faz notar, no que tange ao apadrinhamento de batismo. Como observa Ramos (2010), que estuda a vida privada dos escravos no Brasil, havia uma preocupação com relação à escolha desses padrinhos para batizarem as crianças, esta preocupação se dava, sobretudo, com a manutenção dos laços com o passado. Em muitos casos, os avós das crianças batizadas se tornavam seus padrinhos.
Havia ainda a pretensão de constituição de alianças sociais verticais e horizontais, através dos apadrinhamentos, bem como a manutenção de sua cultura, configurando-se essas relações como articuladoras das relações escravistas, como destaca Fernanda Dias (2013, p.12) para a freguesia em estudo.
Os africanos da Freguesia Santana de Caetité se articulavam entre si, com escravos nascidos no Brasil e com pessoas livres, no momento da escolha dos seus padrinhos, revelando pretensões na constituição de alianças sociais verticais e horizontais. A escolha por outros africanos como comadres e compadres evidencia que muito deles buscavam manter a sua cultura, estar entre os seus, mesmo, em muitos casos, não deixando de recorrer também à população livre. Os padrinhos foram grandes articuladores nesse novo universo.
Essas articulações são bastante notáveis em se tratando de padrinhos de batismo, onde havia certa predominância em escolher pessoas de melhores condições sociais para batizarem os cativos. Havia uma esperança de mobilidade que esse tipo de relação poderia proporcionar ao cativo, certamente a mais cobiçada delas, era a possibilidade de alcançar a tão sonhada liberdade, ou pelo menos, um auxílio para sua conquista.
Dos quase 200 registros de batismos envolvendo escravos encontrados para a Freguesia de Caetité, entre o período de 1818 a 1849, não houve uma presença marcante de senhores de escravos apadrinhando filhos de seus cativos. Apenas três casos desse tipo foram encontrados.
Dos 195 registros de batizado de cativos encontrados, 75 não apresentam o nome dos padrinhos. Para os 120 batizados restantes, foram encontrados seis casais de escravos e 16 casais de presumivelmente escravos[26] apadrinhando cativos nas cerimônias de batismo. O que mostra que 18,3% dos padrinhos eram cativos e, a grande maioria, de 81,7%, era de pessoas com melhores condições sociais que os cativos, evidenciando que a tese apontada por Ramos (2010), acerca da preservação com os laços do passado, foi pouco presente entre os escravos da Freguesia Santana de Caetité, que nitidamente optaram por constituir relações verticais pensando numa possível elevação social, pelo menos no que se refere a elevação da categoria de escravos, para libertos.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
A partir de uma ampla documentação que engloba vários registros de casamentos e batismos do século XIX, foi possível compreender que a família era uma instituição forte e valorizada pelos escravos. Não apenas a mãe, mas também pais e padrinhos tendiam a serem figuras importantes na vida de seus filhos. Não há motivos para concluir que as uniões matrimoniais ou consensuais fossem instáveis.
A família teve importância fundamental para os escravos, pois, para além dos casamentos oficializados na Igreja, as fontes indicaram outros tipos de arranjos familiares, evidenciando que a família não é só a união legítima sacramentada pela Igreja, e que arranjos familiares existiram e foram intensos no contexto escravista.
Os escravos valeram-se do casamento não apenas como uma opção de vida social, mas também, fizeram uso deste como estratégia de sobrevivência. Por meio dele, eles puderam auferir ganhos sociais, econômicos e políticos, além de construir espaços de sociabilidade e solidariedade. Além disso, o casamento poderia trazer alguns ganhos simbólicos para os escravos, ao aumentar seu acesso a recursos materiais e seu controle sobre a economia doméstica.
Acresce a isso, o fato de que ao contrair matrimônio, o escravo tinha a esperança de melhorar sua vida de várias maneiras, a principal delas seria a conquista de um pedaço de terra para cultivar como lhe conviesse. Também o escravo podia pensar em conseguir mais controle sobre suas economias domésticas. Para muitos escravos o casamento favoreceu a sobrevivência ao cativeiro por meio da possibilidade de criar seus filhos, pelo menos até certa idade, no seio da família; além da possibilidade de ter uma relação amorosa com alguém sem o constante medo da separação por venda ou herança, repentinamente, já que a lei os amparava[27]; possibilidade de alforria pela compra, que era maior entre os casados que entre os solteiros, já que o casal poderia juntar o pecúlio, que serviria como uma poupança familiar e, conseguir mais rapidamente o valor para a compra da alforria de um dos membros do cativeiro; reconhecimento da prole; auxílio mútuo para enfrentar as agruras da escravidão; herança em caso de morte; base para suas sobrevivências cotidianas; ampliação social de suas relações, porque as testemunhas de seus casamentos tornavam-se seus compadres; e ainda, a esperança de encontrar o amor, por que não? São muitas as possibilidades...
Não se deve esquecer, entretanto, que esses casamentos significaram o reflexo de uma negociação entre senhores e escravos, onde muitas vezes, este esteve sujeito a abrir mão de determinados proveitos para que seus desejos fossem realizados, ou seja, era uma linha tênue que estava sujeita a perdas e ganhos.
Presume-se ainda, que, muitos escravos se casaram “simplesmente”, porque queriam um companheiro, estavam à procura de pessoas que compadecessem do mesmo sofrimento, que se encontravam na dor: da perda, da saudade, da brutalidade, da exploração, do desrespeito, da humilhação, do desprezo, da desumanização, enfim, procuravam companheiros de aflição para compartilharem alguns momentos de felicidade, ou até mesmo dividir este sofrimento e se acalentar reciprocamente. Deste modo, pode-se dizer que o casamento foi, na maior das estratégias, o consolo de uma mão amiga na luta para enfrentar privações e punições da escravidão.
FONTES
Manuscritas:
1. Acervo da Cúria da Igreja Matriz de Caetité (Centro Paroquial) – BA
· Livros de Registros de Casamento (1831 – 1848)
· Livros de Registros de Casamento (1837 – 1855)
· Livros de Registros de Casamento (1846 – 1851)
· Livro de Registros de Batismo (1818 – 1829)
· Livro de Registros de Batismo (1833 – 1849)
2. Arquivo Público Municipal de Caetité – APMC
· Livros de Registros de Casamento (1876 – 1888)
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
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[1] Acerca da Freguesia Santana de Caetité, a revista do Instituto Geográfico e Histórico da Baiha, assinala que a povoação de Caetité “[...] fez-se credora do predicamento de freguezia, como um attestado veraz do seu progresso e dos sentimentos religiosas dos seus habitantes. Consoante com este progresso, teve o arraial de Sant’Anna do Caetité as honras de freguesia colada por Alvará regio de 1754 e provisão do 8º Arcebispo do Brasil [...] Assim, a impulsionada a florescente freguezia, aspiraram com justa razão os seus habitantes, libertarem-se da dependencia em que se achavam da afastada Villa das Minas do Rio das Contas. [...] Contava-se na povoação 147 fogos e 1018 habitantes. [...] ficou assentada a creação da Villa de Caetité, em obediencia á Provisão do Conselho Ultramarino de 12 de julho de 1803. No entanto, só em 1810, vencendo todas as procrastinações, tornou-se effectiva a ambicionada mercê dos interessados com a creação da villa do Caetité”.(pp. 106 - 107- 108).
[2] A temporalidade abarcada por este trabalho justifica-se pelas fontes disponíveis para pesquisa encontradas no Centro Paroquial e no Arquivo Público Municipal de Caetité. Além disso, optou-se por fazer comparações entre os períodos estudados, identificando maiores ou menores índices de uniões legitimadas pela Igreja Católica.
[3] Esses trabalhos se referem às obras: O crime na cor, e Fios da Vida, de Fátima Pires (2003 e 2009), nas quais a autora analisou uma vasta documentação referente às localidades de Rio de Contas e Caetité, identificando traços da experiência escrava nessas regiões. Procurou perceber os significados das relações sociais para suas vidas, e as várias estratégias utilizadas por escravos e forros na organização da sobrevivência no alto sertão. Gabriela Nogueira (2011) em seu trabalho intitulado “Viver por si”, viver pelos seus: famílias e comunidades de escravos e forros no “certam de sima do sam francisco” (1730-1790), faz uma análise acerca das experiências familiares tecidas por escravos das fazendas dos Guedes de Brito e de outros ricos fazendeiros da freguesia de Santo Antônio do “Orubu de Sima”, no setecentos.
[4] Quanto a definição de alto Sertão, ver Pires (2003). A autora definiu por Sertão baiano “uma extensa região com particularidades nos seus aspectos físico, econômico, social e cultural” (2003, p.19). Nesse atrigo, o alto Sertão compreende a Freguesia de Santana de Caetité, localizada à Serra Geral, no século XIX.
[5] Refiro-me aqui a Maria Nizza da Silva (1984), Sheila de Castro Faria (1998), Sílvia Brugger (1998 e 2007), Robert Slenes (1999), Fátima Pires (2003 e 2007), Cristiany Rocha (2004), Isabel Reis (2007), Jonis Freire (2009), Gabriela Nogueira (2011), Napoliana Santana (2012), cabe salientar a importância desses estudos para a análise da família escrava no Brasil.
[6] Ver Fernanda Ferreira Dias (2013)
[7] Para a realização dessa pesquisa, foram consultados 4 livros de casamentos, 3 desses encontram-se no Centro Paroquial (acervo da Cúria), correspondentes aos períodos: (1831 – 1848), (1837 – 1855) e (1846 – 1851), e 1 deles encontra-se no Arquivo Público Municipal e compreende o período de 1876 até 1888. Foram consultados ainda, 2 livros de batismo, correspondente ao período de 1818 – 1829 e 1833 – 1849 pertencente ao acervo da Cúria. O acervo da Cúria da Igreja Matriz de Caetité conta com 11 livros de batismo (1782 até 1880), sem contabilizar os demais livros do século XX; 03 livros de casamentos (período de 1831 a 1851) e 03 livros de óbitos datados do século XX, todos limpos e bem organizados por ano e tipo de documento: batismo, casamento e óbito, e armazenados em grandes prateleiras que facilitam o acesso a estas fontes. O estado de conservação dos livros pesquisados é ótimo, se comparados a outros documentos do período, apesar de faltarem algumas páginas, que estão rasgadas ou foram consumidas pelo tempo, e o amarelamento das folhas que dificulta um pouco a pesquisa. O Centro Paroquial fica localizado à Rua Barão de Caetité, e conta com um espaço muito bem arejado e organizado, conta ainda com funcionários muito prestativos, que auxiliaram bastante no que foi necessário para a realização desta pesquisa. Foram pesquisados 2333 assentos, nos livros de casamento correspondente ao período de 1831 a 1888.
[8] De acordo com Eliana Maria Goldschmidt (2000), as decisões acerca do catolicismo fundamentavam-se basicamente no Concílio de Trento e nele se estabelece o matrimônio como a única forma de união possível para a cristandade.
[9] Os conceitos de legítimos e consensuais empregado nesta pesquisa referem-se respectivamente às uniões que eram sacramentadas pela Igreja Católica, e aquelas as quais a Igreja não reconhecia. Essa abordagem tem por referência as conclusões apresentadas por Napoliana Pereira Santana (2012) onde a autora salienta que “a leitura aos registros eclesiásticos aponta para o não reconhecimento por parte da Igreja Católica das relações consensuais de escravos. O nome do pai só era registrado no batizado do filho se houvesse uma relação legítima com a mãe, ou seja, a Igreja precisava antes sancionar, legalizar a união, para então reconhecer a figura paterna”.
[10] Em relação aos termos para definição de filhos naturais e legítimos foi utilizada a metodologia de análise baseado nos estudos da historiadora Gabriela Amorim Nogueira (2011). Sendo considerados legítimos aqueles filhos que tiveram registrado na ata de batismo o termo “filho legítimo de”; presumivelmente legítimo aqueles que apresentaram o nome do pai e da mãe, mas não explicitou o termo legítimo; natural, quando especificou no registro “filho natural de”; e presumivelmente natural, correspondeu a todos os filhos nascidos de mães aparentemente solteiras”.
[11] Nesse percurso de tempo não há nenhuma menção a outros filhos de Margarida. Também não se pode afirmar seguramente que Florêncio e Margarida tenham mantido união consensual durante todo esse tempo e que ele seja o pai de Jozefa.
[12] Muitas crianças eram registradas como naturais mesmo os pais vivendo juntos em uma relação consensual, eram registrados como legítimos apenas aqueles advindos de pais e mães casados perante à Igreja Católica.
[13] Quando refiro-me a identidades escravas, amparo-me na perspectiva de pertencimento dos cativos africanos às suas culturas, vivenciadas por esses sujeitos em seu continente e na diáspora, e possíveis heranças culturais africanas que por ventura, os africanos e afro-brasileiros viessem a constituir.
[14] As Constituições Primeiras do Arcebispado da Bahia dedicam um capítulo ao casamento de escravos.
[15] Livro de registro de casamento - 1837 – 1855. Folha 133 - verso
[16] No que competia aos Banhos, está disposto nas Constituições Primeiras, no artigo número 269, que “Os que pretenderem casar, o farão saber a seu Parocho, antes de se celebrar o matrimonio de presente, para os denunciar, o qual, antes que faça as denunciações se informará se há entre os contraentes algum impedimento, e estando certo que o não há, fará as denunciações em três domingos ou dias santos de guarda contínuos [...]”.Os proclamas corriam na paróquia dos contraentes, ou em ambas as paróquias no caso de residências diversas. O pároco, primeiramente, anunciava a intenção de contrair matrimônio dos noivos. Este anúncio era feito três vezes sucessivas durante a missa - após terminado o Evangelho e antes da prática ou homilia, aos domingos e nos dias santos de guarda. Após anunciar a futura união, o sacerdote conclamava os fiéis a que denunciassem qualquer impedimento para a realização do casamento. Para a Freguesia Santana de Caetité não foram localizados este tipo de documentos.
[17] Livro de registro de casamento - 1837 – 1855.
[18] Pesquisas posteriores, com a localização de documentos de banhos matrimoniais poderão trazer maiores esclarecimentos acerva dos casamentos entre escravos desta freguesia, dos quais esta pesquisa não dispõe.
[19] Trecho retirado das Constituições Primeiras do Arcebispado da Bahia.
[20] Livro de Registro de casamentos B – 1. Freguesia de Santana de Caetité. 1876 a 1888. Arquivo Público Municipal de Caetité - APMC
[21] Não foram localizados na documentação, outros registros de casamentos entre escravos do senhor José Antônio Gomes Netto (Barão de Caetité). No entanto, é válido destacar a sua importância para as relações e a economia escravista da região enquanto rico proprietário do alto sertão, na compra e venda de escravos. O Barão de Caetité, como era conhecido, era proprietário da Fazenda Santa Bárbara, e era um dos grandes fazendeiros e proprietário de escravos da região. Segundo Pires (2009, p.159) “o seu inventário, um dos mais ricos do alto sertão, foi aberto em 1890 e encerrado somente em 1903. Coube à baronesa de Caetité, Dona Elvira Benedita de Albuquerque Gomes e, posteriormente ao seu genro, José Antônio Rodrigues Lima (figura também bastante influente em Caetité, vindo a ser o primeiro governador eleito do Estado da Bahia em 1894, e tendo atualmente uma praça na cidade que leva o seu nome), inventariar os seus bens, avaliados em Rs 169:094$103”. Entre os bens inventariados destaca-se “a sua casa de moradia na cidade, calculada em Rs 4:000$000; e a Fazenda santa Bárbara, orçada em Rs 5:500$000”. Pires indicou ainda que “os bens de Gomes Netto (Barão de Caetité) indicam, principalmente, a necessidade de uma gama variada de trabalhadores – muitos deles constituídos por escravos, forros e, posteriormente, por ex-escravos – para a manutenção do funcionamento dos negócios da família”. José Antônio Gomes Netto (Barão de Caetité), e seu genro José Antônio Rodrigues Lima, foram os senhores mais ricos da região de Caetité.
[22] Retirado do artigo 2º do Decreto lei n°1.695, de 15 de setembro de 1869.
[23] Livro de Registro de Casamento da Freguesia Santana de Caetité – 1831 – 1848. Centro Paroquial de Caetité – CEP.
[24] Livro de Registro de Casamento da Freguesia Santana de Caetité – 1831 – 1848. Centro Paroquial de Caetité – CEP.
[25] Livro de Registro de Casamento da Freguesia Santana de Caetité – 1837 – 1855. Centro Paroquial de Caetité – CEP.
[26] Presumivelmente escravos, se referem àqueles para os quais os registros não trazem sobrenomes, nem a denominação de cativo.
[27] Refiro-me aqui a lei de 1876, que proibia a desagregação da família escrava.
Graduada em História pela Universidade do Estado da Bahia (2010 - 2014). Tem como principais linhas de pesquisa temas relacionados à escravidão e família. Tem experiência na área educacional. Atua como educadora no Município de Caetité desde 2009. Já lecionou para o Ensino Infantil e Fundamental I e II. Atualmente cursa bacharelado em Direito pelo Centro Universitário - FG (UniFG).
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: SANTANA, Elvislane Teixeira. Receberam-se em casamento os contrahentes marido e mulher: vestígios da vida familiar de escravos na freguesia Santana de Caetité. (1831-1855/ 1876-1888) Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 26 set 2018, 05:00. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/artigos/52264/receberam-se-em-casamento-os-contrahentes-marido-e-mulher-vestgios-da-vida-familiar-de-escravos-na-freguesia-santana-de-caetit-1831-1855-1876-1888. Acesso em: 22 nov 2024.
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