ADEMIR GASQUES SANCHES
(Orientador)
RESUMO: Abortar é crime no Brasil. Com um avançado índice de casos de microcefalia, discute-se no Supremo Tribunal Federal, mediante a Ação Direta de Inconstitucionalidade 5581, a possibilidade da sua legalização, o que, consequentemente, não seria enquadrado ao crime de aborto, tipificado no Código Penal. O parecer da Corte foi favorável ao demandante da ADI, concluindo que a expulsão de feto com microcefalia é legal, conforme estado de necessidade comum. Nesse contexto, o presente artigo buscará analisar, entender e verificar, através da leitura de doutrinas, reportagens e documentos, inclusive por meios eletrônicos, os fatores da decisão permissiva que influencia de modo contrário tanto a Constituição Federal quanto a Convenção Internacional sobre as pessoas com deficiência e seu Estatuto.
Palavras-chave: ADI 5581; Aborto; Microcefalia; Discriminação; Pessoas com deficiência.
ABSTRACT: Aborting is a crime in Brazil. With a high rate of microcephaly cases, it has being discussed in Federal Supreme Court (STF), under the Direct Action of Unconstitutionality (ADI) 5581, the possibility of its legalization, and, consequently, it would not be considered as an abortion crime, typified in Criminal Code. The Court’s opinion had been favorable to ADI’s claimant and concluded that the expulsion of fetus with microcephaly is legal, according to the common need state. In this context, the present article will try to analyze, understand and verify by the reading of doctrines, reports and documents, including digital media, the factors of that permissive decision that influences contrarily to Federal Constitution and to International Convention on the Rights of Persons with Disabilities and its Statute.
Keywords: ADI 5581; Abortion; Microcephaly; Discrimination; Persons with disability.
SUMÁRIO: 1. INTRODUÇÃO. 2. DO INÍCIO DA VIDA. 3. DIREITO À VIDA E ABORTO. 4. MANDADO CONSTITUCIONAL DE CRIMINALIZAÇÃO: TUTELA DA VIDA HUMANA E VEDAÇÃO A PROTEÇÃO DEFICIENTE. 5. REFORMA DO CÓDIGO PENAL E O ABORTAMENTO. 6. ABORTO E O SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL. 7. MICROCEFALIA E ANENCEFALIA. 8. O PRINCÍPIO DA IGUALDADE E A INCAPACIDADE TRAZIDA PELO ESTATUTO DA PESSOA COM DEFICIÊNCIA. 9. CONCLUSÃO. 10. REFERÊNCIAS.
1 INTRODUÇÃO
Os relatos de que, desde outubro de 2015, tem crescido no Brasil o número de recém-nascidos infectados pelo vírus da Zika elevou os questionamentos na sociedade e no mundo jurídico acerca da proibição ou admissão do aborto, em conflito com os direitos do feto e da mulher. Nesse sentido, a ADI 5581 foi proposta perante o Supremo Tribunal Federal, tendo como pedidos: (1) a declaração de inconstitucionalidade da interpretação segundo a qual a interrupção da gestação em relação à mulher que tenha sido infectada pelo vírus zika e optar pela mencionada medida é conduta tipificada nos artigos 124 e 126 do Código Penal; ou 2) sucessivamente, a interpretação conforme a Constituição do art. 128, I e II, do Código Penal para declarar a constitucionalidade da interrupção da gestação da mulher que tenha sido infectada pelo vírus zika, tendo em vista tratar-se de causa de justificação específica, e por estar de acordo, ainda, com a justificação genérica dos artigos 23, I e 24 do Código Penal.
Consiste o presente artigo em discutir o enquadramento do abortamento de feto com microcefalia como conduta atípica ou excludente de ilicitude. A premissa para tanto será a criminalização do abortamento no Código Penal Brasileiro e suas hipóteses legais restritivas. Em síntese, a discussão limitar-se-á à decisão do STF na ADI 5581, cujo pedido no âmbito penal se limita ao abortamento de feto com microcefalia. Não discutiremos, portanto, a constitucionalidade ou não da criminalização do abortamento pelo nosso diploma penal.
O aborto consiste na supressão do feto durante o período gestacional. Para que seja configurado o aborto, porém, é preciso que se defina o marco inicial da gravidez.
O bem jurídico tutelado no crime de aborto é a vida intrauterina. No centro do debate sobre a criminalização do aborto, existe a polêmica questão – ainda não pacificada no campo do direito - acerca do início da vida. Inúmeros doutrinadores têm se empenhado em estabelecer um consenso em torno da questão do início da vida. Estudiosos têm elaborado hipóteses a fim de dirimir o problema. Dentre as quais: a de que a vida teria início a partir da formação do sistema nervoso central; do nascimento; da fecundação ou da fixação do embrião no útero.
A questão encontra-se em aberto em nosso sistema jurídico. A Convenção Americana de Direitos Humanos, porém, em seu artigo 4º, I, tende para a teoria concepcionista. Vejamos: “Toda pessoa tem o direito de que se respeite sua vida. Esse direito deve ser protegido pela lei, e, em geral, desde o momento da concepção”.
Noutro giro, o Código Civil brasileiro, segundo doutrina majoritária, adotou a teoria natalista, segundo a qual a vida só se inicia com o nascimento com vida, uma vez que, apesar de a lei proteger o nascituro desde a concepção (art. 2º, Código Civil), este só adquire a personalidade, ou seja, torna-se sujeito de direitos e obrigações, a partir do nascimento com vida.
De acordo com a teoria da concepção, o início da vida se dá na fecundação. Deste modo, toda conduta praticada com o fim de eliminar o feto a partir de tal momento é considerada aborto. Outrossim, se adotarmos a teoria que entende que a vida humana se inicia com a nidação, a conduta de aborto só pode ser considerada crime a partir da fixação do óvulo no útero materno.
Por ora, não há como afirmar qual dessas correntes é aplicada de forma consensual pela jurisprudência e doutrina. Todavia, podemos afirmar que o Supremo Tribunal Federal tem tratado como conduta atípica a interrupção da gestação de feto anencefálico.
3 DIREITO À VIDA E ABORTO
É certo que incumbe ao Direito Penal a proteção de bens jurídicos. Diante disso, a vida, de todo modo, é um bem fundamental, amparado pelo Direito Penal, associando-se à dignidade da pessoa humana, todos assegurados pela Constituição Federal.
A necessidade de tutela da vida humana pelo ordenamento jurídico é incontroversa. O questionamento da doutrina constitucional e penal, no entanto, reside na necessidade de proteção da vida ser ou não protegida pelo Direito Penal. Nesse sentido, na ADI 5.581/DF, a Associação Nacional dos Defensores Públicos, utilizando o mesmo direito à vida, que fez com que o legislador ordinário optasse por criminalizar o abortamento - mas sob o prisma biológico e direito à integridade física e psíquica, desdobrando-se no direito à saúde-, defende a constitucionalidade da interrupção quando houver diagnóstico de infecção pelo vírus zika, para proteção da saúde, inclusive mental, da mulher e de sua autonomia reprodutiva.
4 MANDADO CONSTITUCIONAL DE CRIMINALIZAÇÃO: TUTELA DA VIDA HUMANA E VEDAÇÃO A PROTEÇÃO DEFICIENTE
A Constituição Federal de 1988 estabelece, em seu art. 5º, caput, a inviolabilidade do direito à vida, posicionando-o dentre os direitos individuais e coletivos como uma garantia fundamental a todos.
A vida humana, mesmo não albergada em ordem constitucional direta de criminalização, nos dizeres de Luciano Feldens, compõe o epicentro do sistema de proteção jurídica, acompanhada da liberdade e da dignidade humana (apud CARVALHO, 2016, p. 58). Segundo Márcio Friggi de Carvalho (2016, p. 07), “a inviolabilidade do direito à vida, estampada no art. 5º da Constituição Federal, associada à nota de magnitude do direito em referência, habilita-o a exigir proteção pela normativa penal”.
E, nesse sentido, entendendo que o direito à vida do ser humano em formação
(PRADO, 2010, p. 105) merece proteção jurídica penal, cumprindo o mandado, ao menos implícito, de criminalização de condutas que põem em risco à vida, o aborto é tratado pela legislação brasileira como crime.
O crime de aborto é tipificado como a conduta de eliminar a vida do feto durante a gestação. Assim, as condutas de aborto provocado pela gestante e aborto provocado por terceiro, com ou sem o consentimento da gestante, estão tipificadas nos artigos 124 a 127 do Código Penal. Excepcionalmente, admite-se o abortamento em apenas duas situações: (I) se não há outro meio de salvar a vida da gestante, denominado aborto necessário ou terapêutico e (II) se a gravidez resulta de estupro, denominado aborto sentimental.
Contemporaneamente, por decisão do Supremo Tribunal Federal, na ADPF 54, foi declarada a inconstitucionalidade da interpretação segundo a qual o aborto de feto anencefálico é conduta tipificada nos artigos referentes ao aborto no Código Penal, sendo, portanto, atípica.
Nos termos da decisão do Supremo, para que ocorra o aborto de feto anencefálico é imprescindível que este seja feito por médico e que não haja outro meio para salvar a gestante. Salienta-se que tal conduta não exige o consentimento da gestante.
Apesar de haver quem entenda que tal causa de justificação é uma espécie de estado de necessidade, a doutrina majoritária entende que não se trata de estado de necessidade, pois, este exige uma situação de perigo atual, enquanto o perigo no aborto é iminente ou futuro; ademais, o aborto necessário só pode ser realizado pelo médico, enquanto o estado de necessidade não está vinculado a uma profissão.
Nesse sentido, Mirabete (2003, p. 99):
[...] “Para evitar qualquer dificuldade, deixou o legislador consignado expressamente a possibilidade de o médico provocar o aborto se verificar ser esse o único meio de salvar a vida da gestante. No caso, não é necessário que o perigo seja atual, bastando a certeza de que o desenvolvimento da gravidez poderá provocar a morte de gestante”.
Para que se configure o aborto humanitário determina-se que: (I) seja feito por médico; (II) a gravidez seja resultante de estupro e (III) exista autorização da gestante ou do representante legal se ela for vulnerável (menor de quatorze anos). Ressalte-se que, nesta situação, tal abortamento não depende de autorização judicial.
Para regulamentar o tema, o Ministério da Saúde editou a Portaria n. 1145 do ano de 2005, que dispõe sobre o Procedimento de Justificação e Autorização da Interrupção da Gravidez nos casos previstos em lei, no âmbito do Sistema Único de Saúde. Isto posto, nota-se que o Código Penal não admite aborto eugênico, isto é, em razão de enfermidades ou deformidades físicas ou mentais do feto consideradas graves e irreversíveis. Dessa forma, considera-se que o Código Penal, em regra, privilegiou o direito do feto à vida, punindo o abortamento, e limitando, de certa forma, os direitos das mulheres.
Todavia, indaga-se se gerar um feto contaminado pelo vírus zika, faz com que o seu direito de saúde física e psíquica prevaleça sobre o direito à vida do feto. O fato de a mulher ter o risco de dar à luz a um feto com algum grau de deficiência faz com que sua conduta seja diferente daquela mulher que abortou um feto saudável? O direito penal deve responder de modo diferente a essas duas situações ou a discriminação, nesse caso, seria ilegítima, implicando na violação do princípio da igualdade, no descumprimento do mandado de criminalização de proteção à vida e no descumprimento do princípio da proporcionalidade?
5 REFORMA DO CÓDIGO PENAL E O ABORTAMENTO
O estudo sobre o abortamento na visão mundial é variado, isto porque o ponto de vista concepcional acerca do início da vida e as questões políticas e criminais de cada país fazem com que a tal conduta não seja apenada do mesmo modo ao redor do mundo.
Por exemplo, nos Estados Unidos, reconhece-se à mulher o direito constitucional amplo para realizar aborto no primeiro trimestre de gravidez. Em Portugal, o Tribunal Constitucional português reconheceu a constitucionalidade de lei que permite o aborto em circunstâncias específicas, dentre elas o risco à saúde física ou psíquica da gestante, feto com doença grave e incurável, gravidez resulte de estupro e outras situações de estado de necessidade. Na Alemanha, após uma posição inicial restritiva, materializada na decisão conhecida como “Aborto I” (1975), a Corte Constitucional, em decisão referida como “Aborto II” (1993), entendeu que uma lei que proibisse o aborto, sem criminalizar, no entanto, a conduta da gestante, seria válida, desde que adotasse outras medidas para proteção do feto. No Brasil, contudo, desde 1940, o aborto, em regra, é crime.
Estuda-se, desde 2012, o Projeto de Lei de n. 236 de 2012 do Senado, possível reforma do Código Penal, em que há previsão, em seu artigo 128, inciso IV, da descriminalização do aborto se: (I) houver risco à vida ou à saúde da gestante; (II) se a gravidez resulta da violação da dignidade sexual, ou do emprego não consentido de técnica de reprodução assistida; (III) se comprovada a anencefalia ou quando o feto padecer de graves e incuráveis anomalias que inviabilizem a vida extrauterina, em ambos os casos, atestado por dois médicos ou (IV) se por vontade da gestante, até a décima segunda semana da gestação, quando o médico ou psicólogo constatar que a mulher não apresenta condições psicológicas de arcar com a maternidade.
A expulsão do feto, por conseguinte, passaria a ser legal, de modo geral, por vontade da gestante até a 12ª semana de gravidez e, além da anencefalia, nos casos em que o feto padecer de graves e incuráveis anomalias que inviabilizem a vida extrauterina.
6 ABORTO E O SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL
Foi arguida, na forma de preceito cláusula fundamental, pela Confederação Nacional dos Trabalhadores na Saúde, que a interpretação que enquadra como crime o aborto de feto anencefálico viola preceitos fundamentais ligados à dignidade humana, o direito à liberdade e o direito à saúde. Pleiteia, portanto, a declaração de inconstitucionalidade, com eficácia para todos os efeitos vinculantes, da interpretação dos artigos 124, 126 e 128, I e II, do Código Penal, que impeça a antecipação terapêutica do parto na hipótese de gravidez de feto anencefálico, previamente diagnosticada por profissional habilitado, independente de autorização judicial ou qualquer outra forma de permissão do Estado. O argumento central da ação foi a certeza científica da impossibilidade da vida extrauterina do feto. Isso porque não há tratamento, cura ou qualquer possibilidade considerável de sobrevida de um feto com anencefalia.
Seguida de discussões, ao final, a demanda foi julgada procedente, declarando o Supremo Tribunal Federal a inconstitucionalidade da interpretação segundo a qual a interrupção de feto anencefálico é conduta tipificada nos artigos 124, 126 e 128, incisos I e II, todos do Código Penal.
Noutro giro, foi proposta a Ação Direta de Inconstitucionalidade 5581, a qual tratava da microcefalia, ajuizada pela Associação Nacional dos Defensores Públicos contra atos comissivos e omissivos do poder público, no que se refere às políticas públicas relacionadas ao vírus da zika e à microcefalia.
Por meio da ADPF, requereram a declaração de inconstitucionalidade da interpretação segundo a qual a interrupção da gestação em relação à mulher que tiver sido infectada pelo vírus zika e optar pela mencionada medida é conduta tipificada nos artigos 124 e 126, ambos do Código Penal ou, sucessivamente, a interpretação conforme a Constituição do art. 128, I e II, do Código Penal para declarar a constitucionalidade da interrupção da gestação de mulher que tiver sido infectada pelo vírus zika e optar pela mencionada medida, tendo em vista se tratar de causa de justificação específica e por estar ainda de acordo com a justificação genérica dos artigos. 23, I e 24, ambos do Código Penal.
Tal ação, no entanto, ainda está em andamento perante a Corte Constitucional, com análise de mérito ainda pendente de julgamento.
Recentemente, com grande repercussão, foi arguida demanda de descumprimento de preceito fundamental nº442, ajuizada pelo Partido Socialismo e Liberdade em face da alegada controvérsia constitucional relevante acerca da recepção dos artigos 124 e 126, ambos do Código Penal, que instituem a criminalização da interrupção voluntária da gravidez, fundamentando que tal punição viola a dignidade da pessoa humana, a cidadania, a não discriminação, a inviolabilidade da vida, da liberdade, da igualdade, da proibição de tortura ou tratamento desumano degradante, da saúde e do planejamento familiar de mulheres, adolescentes e meninas.
De início, foi requerido a suspensão das prisões em flagrante, inquéritos policiais e andamento de processos ou efeitos de decisões judiciais que pretendam aplicar, ou tenham aplicado os artigos 124 a 126, ambos do Código Penal a casos de interrupção da gravidez induzida e voluntária realizada nas primeiras 12 (doze) semanas de gravidez e o reconhecimento do direito das mulheres de interromper a gestação e dos profissionais de saúde de realizar o procedimento. Tal pedido cautelar foi indeferido. Não obstante, em novembro de 2017 o pedido foi renovado, estando, ainda, em pauta a ser julgada pelo Plenário do STF, sendo objeto de deliberação futura.
A legalização do aborto, de modo geral, para todas as mulheres, e para todos os fetos, não é objeto do presente artigo.
O que se defende e passará a ser justificado nos próximos tópicos é que, se nosso ordenamento jurídico optou por criminalizar a conduta de aborto por atender o mandado constitucional implícito de criminalização de proteção à vida, não há como tutelar de forma rígida a vida de fetos sem deficiência, em detrimento da vida dos fetos com deficiência, pois, tal escolha afrontará, de forma veemente, os princípios da proporcionalidade e igualdade.
7 MICROCEFALIA E ANENCEFALIA
Apesar de tanto a microcefalia quanto a anencefalia consistirem, em síntese, na má formação do cérebro fetal durante a gestação, tais anomalias são facilmente diferenciadas pela constatação ou não de vida viável.
Nesse sentido são uníssonas as palavras do Ministro do STF Luís Roberto Barroso:
Inexiste qualquer proximidade entre a pretensão aqui veiculada e o denominado aborto eugênico, cujo fundamento é eventual deficiência grave de que seja o feto portador. Nessa última hipótese, pressupõe-se a viabilidade da vida extrauterina do ser nascido, o que não é o caso em relação à anencefalia (BARROSO, 2005, p. 93-120).
Com efeito, o feto com anencefalia não tem nenhuma expectativa de vida minimamente viável; enquanto que, na microcefalia, há cérebro e vida extrauterina viável. O feto anencefálico possui baixa sobrevivência após o parto, quando este ocorre.
No que lhe concerne, é certo que a criança com microcefalia tem expectativa de vida considerável, podendo, inclusive, sobreviver após o parto.
8 O PRINCÍPIO DA IGUALDADE E A INCAPACIDADE TRAZIDA PELO ESTATUTO DA PESSOA COM DEFICIÊNCIA
É certo que, segundo os dados empíricos concernentes à infecção pelo vírus da zika, este atinge, sobretudo, mulheres em regiões de elevada pobreza e em estados menos desenvolvidos do país, principalmente aquelas mais pobres, cujas populações vivem em áreas sem condições mínimas de dignidade, como a falta de saneamento básico.
Defende-se que não há uma igualdade formal entre as mulheres, de modo que, por tal razão, deve-se constitucionalizar o aborto de feto com microcefalia, evitando o alastramento da desigualdade existente.
Todavia, sendo o aborto crime no Brasil, não há coerência em admitir o aborto apenas em razão da certeza de o feto nascer com alguma deficiência. Utilizando-se o mesmo princípio da igualdade, fetos com deficiência e sem deficiência devem ser tratados de modo desigual? Parte-se, nesse caso, da premissa defendida por Aristóteles de que “deve-se tratar os iguais de maneira igual e os desiguais de maneira desigual”. A promoção da igualdade material está associada à ideia de igualdade fática: não basta que a igualdade exista perante a lei, sendo necessário que ela exista perante a realidade.
Assim, não há correlação lógica - compatível com os interesses constitucionais - entre o fato de o feto ter microcefalia e a diferença de tratamento penal que terá a conduta de quem o abortou, uma vez que a Constituição Federal veda a discriminação, e o Estatuto da Pessoa com Deficiência estabelece que toda pessoa com deficiência tem direito à igualdade de oportunidades como as demais pessoas e que não sofrerá nenhuma espécie de discriminação. Por isso, a permissão do aborto nos casos de fetos com microcefalia, acabará por discriminá-los, atribuindo-lhe barreiras.
Dessa forma, em nome do princípio da igualdade, se o aborto no Brasil não é permitido em razão da proteção ao direito à vida, o aborto de feto microcéfalo também não pode ser permitido em razão da mesma proteção ao direito à vida.
9 CONCLUSÃO
Com o intuito de proteger a vida, direito fundamental previsto na Constituição da República, criminalizar o abortamento de feto com deficiência seria um verdadeiro retrocesso aos direitos das pessoas portadoras de deficiência.
A defesa do aborto no caso de feto com microcefalia insinua a defesa de um genocídio de pessoas com deficiência física. Aliás, há de se considerar que ao decidir pela possibilidade de aborto em razão do feto com microcefalia, o STF abrirá um precedente perigoso, pois com o avanço da medicina, é possível desde logo saber se a criança nascerá com certos tipos de deficiência, como Down, anencefalia, síndrome de Edwards, entre outros.
A existência de mandado constitucional de criminalização de proteção à vida não implica, necessariamente, na decisão de criminalização do aborto. Tal decisão, além de se relacionar com medidas de saúde pública e de política criminal pode ser variável para fundamentar o início da vida humana, para efeitos civis.
Conclui-se que, ou o STF, em uma decisão de política criminal e/ou de saúde pública, opta por descriminalizar a conduta de aborto, dentro de certos parâmetros, para todas as gestantes, independente das características da vida em formação que cada uma carrega, ou, descriminalizando-a apenas nos casos de fetos anencefálicos, proferirá decisão que permitirá ao Estado a prática da eugenia.
Dessa forma, o requerido em sede da ADI 5581 é incompatível com o princípio da não discriminação. Sob o argumento de defesa da integridade física e saúde da mulher, acaba-se por defender, de um modo discriminatório e inconstitucional, que uma vida com deficiência é uma vida indesejada.
10 REFERÊNCIAS
BARROSO, Luis Roberto. Gestação de fetos anencefálicos e pesquisas com células
tronco: dois temas acerca da vida e da dignidade da pessoa humana. Revista de DireitoAdministrativo, Rio de Janeiro, v. 241, p. 93-120, 2005.
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BRASIL. Lei nº 13.146, de 6 de julho de 2015. Institui a Lei Brasileira de Inclusão da
Pessoa com Deficiência (Estatuto da Pessoa com Deficiência). Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_Ato2015-2018/2015/Lei/L13146.htm>. Acesso em: 18 fev. 2019.
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Fundamental nº 442, Distrito Federal, protocolado em 08 mar. 2017. Disponível em: <http://portal.stf.jus.br/processos/detalhe.asp?incidente=5144865>. Acesso em: 25 fev. 2019.
Bacharelanda do curso de Direito pela Universidade Brasil - Campus Fernandópolis - SP.
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: SOUZA, Cintia Paula de. Da inconstitucionalidade da legalização do aborto no caso de feto com microcefalia Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 30 maio 2019, 04:45. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/artigos/52976/da-inconstitucionalidade-da-legalizacao-do-aborto-no-caso-de-feto-com-microcefalia. Acesso em: 25 nov 2024.
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