RESUMO: Este artigo tem como principal objetivo entender o fenômeno da mutação constitucional que ocorreu no art. 150, VI, “d”, da Constituição Federal, referente ao conceito de “livro”, acarretando na elaboração da súmula vinculante nº 57, do Supremo Tribunal Federal. O trabalho foi realizado por meio de pesquisas bibliográficas, principalmente em artigos científicos e livros na área de Direito Constitucional e Direito Tributário. Trata-se de uma pesquisa descritiva, cujo método empregado é o dedutivo. É dedutivo porque é um processo de análise da informação que utiliza livros para obter uma conclusão a respeito do problema.
Palavras-Chave: Imunidade Tributária. Livros Eletrônicos.
ABSTRACT: This article has as main objective to understand the phenomenon of constitutional mutation that occurred in art. 150, VI, “d”, of the Federal Constitution, referring to the concept of “book”, resulting in the elaboration of the binding summary nº 57, of the Supreme Federal Court. The work was carried out through bibliographic research, mainly in scientific articles and books in the area of Constitutional Law and Tax Law. It is a descriptive research, the deductive method used. It is deductive because it is an information analysis process that uses books to reach a conclusion about the problem.
Keywords: Tax Immunity. Electronic Books.
INTRODUÇÃO
O propósito da presente pesquisa é estudar a mutação constitucional que ocorreu no art. 150, VI, “d” da Constituição Federal, acarretando a elaboração da súmula vinculante nº 57, do Supremo Tribunal Federal.
O art. 150, VI, “d”, da CF/88 dispõe que os livros, jornais, periódicos e o papel destinado à sua impressão detêm imunidade tributária em relação aos impostos. Ocorre que, no passado, não havia livros eletrônicos, inexistindo, portanto, qualquer controvérsia ou questionamento sobre o objeto de aplicação desta imunidade tributária. Entretanto, com a evolução tecnológica, surgiram, inicialmente, livros que poderiam ser lidos em computadores, por meio de programas de edição e formatação de textos; e, posteriormente, por meio de plataformas eletrônicas e digitais móveis, como “e-readers” (leitores de PDF e de E-book). Assim, os livros digitais (e-books) ganharam amplamente o mercado de leitores, desenvolvendo-se várias plataformas eletrônicas de leitura como smartphones, tablets, kindles etc.
Por muito tempo, devido a lacuna legislativa, indagou-se se esta imunidade tributária se estenderia a estes suportes eletrônicos de leitura de livros. A doutrina e a jurisprudência, então, se debateram para responder e fornecer uma resposta a este problema. Assim, foram proferidas importantes decisões no RE 330.817 RJ e no RE 595.676/RJ sobre a questão.
Desse modo, após vários precedentes, o Supremo Tribunal Federal editou a Súmula Vinculante nº 57, que diz que “a imunidade tributária constante do artigo 150, VI, d, da CF/88 aplica-se à importação e comercialização, no mercado interno, do livro eletrônico (e-book) e dos suportes exclusivamente utilizados para fixá-los, como leitores de livros eletrônicos (e-readers), ainda que possuam funcionalidades acessórias“. Todavia alguns suportes de leitura, como os smatphones e tablets possuem outras funcionalidades, que vão além da leitura de livros, gerando controvérsia a respeito da aplicação da imunidade tributária prevista no art. 150, VI, “d” da Constituição Federal. Assim, o presente trabalho tem como problema a ser respondido se esta imunidade se estende a estes outros suportes eletrônicos.
O FENÔMENO DA MUTAÇÃO CONSTITUCIONAL (VERFASSUNGSWANDLUNGEN)
Interpretar é extrair o significado de algo, através de indução, determinando e entendendo o significado preciso daquilo que está sendo interpretado. Tem como finalidade a obtenção da intelecção de algo já arquitetado por outra pessoa, cujas abstrações e exteriorizações serão fundamentadas pela formação cultural e intelectual do intérprete, tendo deferência pelos limites impostos do enunciador daquilo que será interpretado. A interpretação jurídica, contudo, vai além disso: ela visa a uma interpretação completa sobre a norma, determinando seu sentido, o correto entendimento do seu significado, sua intenção e seu alcance (Betioli, 2011, p. 376). A interpretação do Direito objetiva a criação de normas úteis que consigam resolver questões trazidas ao Direito. Segundo Maximiliano (2017, p. 14):
As leis positivas são formuladas em termos gerais; fixam regras, consolidam princípios, estabelecem normas, em linguagem clara e precisa, porém ampla, sem descer a minúcias. É tarefa primordial do executor a pesquisa da relação entre o texto abstrato e o caso concreto, entre a norma jurídica e o fato social, isto é, aplicar o Direito. Para o conseguir, se faz mister um trabalho preliminar: descobrir e fixar o sentido verdadeiro da regra positiva; e, logo depois, o respectivo alcance, a sua extensão. Em resumo, o executor extrai da norma tudo o que na mesma se contém: é o que se chama interpretar, isto é, determinar o sentido e o alcance das expressões do Direito.
É certo que, no Direito Constitucional, o Poder Constituinte Originário é responsável por elaborar uma Constituição, ao passo que o Poder Reformador se ocupa das reformas que aprimoram, ou deturpam as obras originais. No Brasil, a alteração do texto demanda uma série de solenidades, sobretudo o quórum de 3/5 (60%) para que aprovada uma modificação da redação da Carta Magna. Esse foi o comando endereçado pelo Constituinte ao intérprete da Constituição (FONTELES, 2020, p. 36).
No entanto, parte da comunidade jurídica passou a sustentar que uma Constituição poderia sofrer alterações informais, por meio do que convencionaram balizar de Poder Constituinte Difuso, fonte das chamadas Mutações Constitucionais (Verfassungswandlungen). A informalidade reside no fato de que o texto constitucional é inteiramente conservado, mas o significado que dele se extrai passa a ser outro. Nota-se que o texto é o mesmo, mas a norma não, pois foi alterada pelo intérprete (FONTELES, 2020, p. 36). O fundamento desse fenômeno é explicado por Sarmento e Souza Neto (2012, p. 304), quando afirmam que a norma constitucional não se confunde com o seu texto, abrangendo também o fragmento da realidade sobra a qual esse incide.
Uma das questões mais importantes do debate constitucional é estabelecer em qual proporção se afigura legítimo que uma Constituição guie os caminhos e decisões das futuras gerações. As constituições, em geral, aspiram vigorar por muito tempo e disciplinar a coexistência política de sucessivas gerações ao longo da trajetória da nação. Dessa maneira, surge um problema pontual: por que e até que ponto, pode uma geração adotar decisões vinculativas para as outras que a sucederão? Não seria isso um governo dos mortos sobre os vivos? (SARMENTO e SOUZA NETO, 2012, p. 18) Ora, a Constituição deve ser encarada como um organismo vivo, que muda conforme sucedem-se as gerações. Entretanto, essa mudança constitucional nem sempre poderá ser formal, por meio de Emenda Constitucional, dada a dificuldade e morosidade envolvida nesse processo legislativo. Desta forma, a mutação constitucional é instituto que busca amenizar tal dificuldade de se alterar o texto constitucional contraposta à realidade fática.
Mutação Constitucional (Verfassungswandlungen) é simplesmente o poder constituinte difuso. É um poder de fato e não de direito, ou seja, não é um poder regulamentado pelo direito, existindo antes da edição da própria Constituição. Trata-se do poder de alterar o sentido, a interpretação da Constituição sem alteração do seu texto (MARTINS, 2020, p.352). Para Sarmento e Souza Neto (2012, p. 304), esse fenômeno ocorre porque a realidade está sempre mudando, o que gera dissociação entre o que está positivado na Constituição e o meio social:
A mutação constitucional consiste em processo informal de mudança da Constituição, que ocorre quando surgem modificações significativas nos valores sociais ou no quadro empírico subjacente ao texto constitucional, que provocam a necessidade de adoção de uma nova leitura da Constituição ou de algum dos seus dispositivos. A possibilidade da mutação constitucional resulta da dissociação entre norma e texto. Se a norma constitucional não se confunde com o seu texto, abrangendo também o fragmento da realidade sobra a qual esse incide, é evidente que nem toda mudança na Constituição supõe alteração textual. Mudanças significativas na sociedade — seja no quadro fático, seja no universo dos valores compartilhados pelos cidadãos —, podem também provocar câmbios constitucionais, sem que haja qualquer mudança formal no texto magno.
Passemos a definir o instituto: consideram-se transições ou mutações constitucionais (Verfassungswandlungen) a revisão informal do compromisso político formalmente plasmado na Constituição, mas sem a alteração do texto constitucional (CANOTILHO, 2011, p. 1228). Com efeito, a mutação constitucional ocorre por meio de processos informais de modificação do significado da Constituição, mas sem alteração de seu texto. Altera-se o sentido da norma constitucional sem modificar as palavras que a expressam e essa mudança pode ocorrer, sobretudo, pela via interpretativa. (NOVELINO, 2012, p. 150). O Jurista Barroso (2020, p. 145), ao observar o fenômeno aqui abordado, ressalta que as normas constitucionais são plásticas, ou seja, buscam sempre adaptação à realidade social:
A mutação constitucional se realiza por via da interpretação feita por órgãos estatais ou por meio dos costumes e práticas políticas socialmente aceitas. Sua legitimidade deve ser buscada no ponto de equilíbrio entre dois conceitos essenciais à teoria constitucional, mas que guardam tensão entre si: a rigidez da Constituição e a plasticidade de suas normas. A rigidez procura preservar a estabilidade da ordem constitucional e a segurança jurídica, ao passo que a plasticidade procura adaptá-la aos novos tempos e às novas demandas, sem que seja indispensável recorrer, a cada alteração da realidade, aos processos formais e dificultosos de reforma.
Seguindo esse raciocínio, Masson (2019, p. 162) estabelece que a mutação Constitucional é um mecanismo informal de mudança da Constituição, que não origina quaisquer alterações no seu texto, que permanece íntegro. As modificações perpetradas por este procedimento são de ordem interpretativa: o texto segue intacto, mas o que se extrai dele é algo novo, que sofreu os impactos renovadores da releitura. O texto é absolutamente o mesmo, mas o sentido que ele possui se altera.
Desta forma, Masson (2019, p. 163) obtempera que essas alterações são realizadas pelo Poder Constituinte Difuso, um poder derivado, mas não escrito, que opera um verdadeiro renascimento de alguns dispositivos constitucionais, ao permitirem que estes sejam relidos, que seja dado um novo significado à norma (que paira subjacente ao texto). O poder é intitulado “difuso” porque nunca se sabe, de modo preciso “quando” e “como” se iniciou o processo de reestruturação e implementação das informais transformações hermenêuticas que vão rejuvenescer a Constituição, adaptando-a às mudanças socias que o dinamismo da vida fática ocasionou. Sobre o poder constituinte difuso, pondera Barroso (2020, p. 146-147):
A conclusão a que se chega é a de que além do poder constituinte originário e do poder de reforma constitucional existe uma terceira modalidade de poder constituinte: o que se exerce em caráter permanente, por mecanismos informais, não expressamente previstos na Constituição, mas indubitavelmente por ela admitidos, como são a interpretação de suas normas e o desenvolvimento de costumes constitucionais. Essa terceira via já foi denominada por célebre publicista francês poder constituinte difuso, cuja titularidade remanesce no povo, mas que acaba sendo exercido por via representativa pelos órgãos do poder constituído, em sintonia com as demandas e sentimentos sociais, assim como em casos de necessidade de afirmação de certos direitos fundamentais.
De forma semelhante, Silva (2010, p. 61-32) ressalta que a mutação consiste num processo não formal de mudanças das Constituições rígidas, por via da tradição, dos costumes, de alterações empíricas e sociológicas, pela interpretação judicial e pelo ordenamento de estatutos que afetem a estrutura orgânica do estado. O guardião da Constituição, o Supremo Tribunal Federal, que é o seu principal intérprete, pode vir a fazer uma análise hermenêutica do seu texto, alterando o seu sentido (MARTINS, 2020, p.354). A mudança de significado atende a mudanças sociais e culturais, impedindo que a constituição fique engessada e obsoleta.
Assim, a mutação constitucional é tanto um problema de interpretação, quanto da relação de tensão entre o direito e a realidade constitucional, sendo o fator temporal o principal responsável pela ocorrência desse fenômeno (NOVELINO, 2012, p. 151). Segundo Mendes e Branco (2016, p. 123):
O estudo do poder constituinte de reforma instrui sobre o modo como o Texto Constitucional pode ser formalmente alterado. Ocorre que, por vezes, em virtude de uma evolução na situação de fato sobre a qual incide a norma, ou ainda, por força de uma nova visão jurídica que passa a predominar na sociedade, a Constituição muda, sem que as suas palavras hajam sofrido modificação alguma. O texto é o mesmo, mas o sentido que lhe é atribuído é outro. Como a norma não se confunde com o texto, repara-se, aí, uma mudança na norma, mantido o texto. Quando isso ocorre no âmbito constitucional, fala-se em mutação constitucional.
Para Barroso (2020, p. 145), as Constituições, apesar de terem pretensão de permanência, não podem ser imutáveis, engessadas, de modo a permitir o governo dos “mortos sobre os vivos”, pois “O Direito não existe abstratamente, fora da realidade sobre a qual incide. Pelo contrário, em uma relação intensa e recíproca, em fricção que produz calor, mas nem sempre luz, o Direito influencia a realidade e sofre a influência desta”. Vejamos o que propõe Barroso (2020, p. 142):
As Constituições têm vocação de permanência. Idealmente, nelas têm abrigo as matérias que, por sua relevância e transcendência, devem ser preservadas da política ordinária. A constitucionalização retira determinadas decisões fundamentais do âmbito de disposição das maiorias eventuais. Nada obstante isso, as Constituições não são eternas nem podem ter a pretensão de ser imutáveis. Uma geração não pode submeter a outra aos seus desígnios. Os mortos não podem governar os vivos. Porque assim é, todas as Cartas Políticas preveem mecanismos institucionais para sua própria alteração e adaptação a novas realidades. Isso não quer dizer que essa seja a única hipótese de mudança do conteúdo das normas constitucionais.
Ainda segundo Barroso (2020, p. 142), existem meios formais e informais de se alterar uma Constituição, a saber:
Com efeito, a modificação da Constituição pode dar-se por via formal e por via informal. A via formal se manifesta por meio da reforma constitucional, procedimento previsto na própria Carta disciplinando o modo pelo qual se deve dar sua alteração. Tal procedimento, como regra geral, será mais complexo que o da edição da legislação ordinária. De tal circunstância resulta a rigidez constitucional. Já a alteração por via informal se dá pela denominada mutação constitucional, mecanismo que permite a transformação do sentido e do alcance de normas da Constituição, sem que se opere, no entanto, qualquer modificação do seu texto. A mutação está associada à plasticidade de que são dotadas inúmeras normas constitucionais.
À vista dos elementos expostos até aqui, é possível dizer que a mutação constitucional consiste em alterar o significado de determinada norma da Constituição, sem observância do mecanismo constitucionalmente previsto para as emendas e, sem que tenha havido qualquer modificação do texto constitucional (BARROSO, 2020, p. 144). Esse novo sentido ou alcance do mandamento constitucional pode decorrer de: mudança na realidade fática; nova percepção do Direito ou de uma releitura do que deve ser considerado ético ou justo. Para que seja legítima, a mutação precisa ser democrática, isto é, deve corresponder a uma demanda social efetiva por parte da coletividade, estando respaldada, portanto, pela soberania popular (BARROSO, 2020, p. 144).
Com efeito, é certo que as normas constitucionais, como as normas jurídicas em geral, libertam-se da vontade subjetiva que as criou, passado a ter uma existência objetiva, o que permite sua comunicação com os novos tempos e as novas realidades. A realidade se transforma constantemente e o direito deve acompanhar as mudanças socias, adaptando-se aos novos tempos e valores. Todavia, as mutações que contrariem a Constituição não devem ser admitidas, gerando mutações inconstitucionais. Nesse sentido, Barroso (2020, p. 146) destaca:
Por assim ser, a mutação constitucional há de estancar diante de dois limites: a) as possibilidades semânticas do relato da norma, vale dizer, os sentidos possíveis do texto que está sendo interpretado ou afetado; e b) a preservação dos princípios fundamentais que dão identidade àquela específica Constituição. Se o sentido novo que se quer dar não couber no texto, será necessária a convocação do poder constituinte reformador. E se não couber nos princípios fundamentais, será preciso tirar do estado de latência o poder constituinte originário.
Dessa maneira, a nova interpretação, fruto da mutação constitucional, há de encontrar apoio no teor das palavras empregadas pelo constituinte e não deve violentar os princípios estruturais da Lei Maior; do contrário, haverá apenas uma interpretação constitucional e não mutação (MENDES, 2016, p. 132). Para Flávio Martins (2020, p. 358), a mutação constitucional deve ser limitada, como por exemplo: a mutação constitucional deve permanecer entre os sentidos possíveis do texto, deve decorrer de genuína mudança da sociedade e não deve avançar no campo de reforma constitucional (deve ter como objetivo uma norma de conteúdo abstrato ou uma norma com conteúdo múltiplo que permita sua ressignificação).
A APROVAÇÃO DA SÚMULA VINCULANTE Nº 57 REFERENTE À IMUNIDADE TRIBUTÁRIA. E A MUTAÇÃO CONSTITUCIONAL DO ART. 150, VI, “D”
As imunidades tributárias são limitações constitucionais ao poder de tributar consistentes na delimitação da competência constitucionalmente conferida aos entes públicos. Dessa forma, no seu art. 150, VI, d, a Constituição Federal proibiu os entes da federação de instituir impostos sobre livros, jornais, periódicos e o papel destinado à sua impressão (ALEXANDRE, 2019, 240).
Para Leandro Paulsen (2017, p. 109), as regras constitucionais que proíbem a tributação de determinadas pessoas, operações, objetos ou de outras demonstrações de riqueza, negando, portanto, competência tributária são denominadas de imunidades tributárias. Ainda, segundo Paulsen (2017, p. 109):
O texto constitucional não refere expressamente o termo “imunidade”. Utiliza-se de outras expressões: veda a instituição de tributo, determina a gratuidade de determinados serviços que ensejariam a cobrança de taxa, fala de isenção, de não incidência, etc.
Nesse sentido, imunidade tributária é simplesmente uma dispensa que a Constituição concede ao pagamento de tributo. Consiste na opção feita pelo constituinte originário de que algumas pessoas, atividades, bens ou rendas não poderão ter a incidência de tributos. A imunidade é, sobretudo, uma limitação ao poder de tributar, estando disposta na Constituição Federal.
O sentido dessas normas é a proteção de valores sociais e culturais (CAVALCANTE, 2020). Como o intuito da norma que prevê a imunidade é baratear o acesso à cultura, facilita-se a livre manifestação do pensamento, a liberdade de atividade intelectual, artística, científica e da comunicação e o acesso à informação, que são direitos constitucionalmente previstos, ou seja, cláusulas pétreas (ALEXANDRE, 2019, 240).
Com efeito, a imunidade “cultural” ou “de imprensa”, assim apelidada pela doutrina (CAVALCANTE, 2020), consta no art. 150, VI, “d”, da CF/88, que dispõe que os “livros, jornais, periódicos e o papel destinado à sua impressão” não podem sofrer a tributação de impostos:
Art. 150. Sem prejuízo de outras garantias asseguradas ao contribuinte, é vedado à União, aos Estados, ao Distrito Federal e aos Municípios:
VI – instituir impostos sobre:
d) livros, jornais, periódicos e o papel destinado a sua impressão.
O art. 150, IV da Constituição Federal previu imunidades, dentre as quais a denominada “imunidade cultural” é a única puramente objetiva, porque a imunidade em si recai sobre o objeto livro. Todavia, a sociedade evolui tecnologicamente, de modo que surgiram os livros eletrônicos ou e-books, o que gerou uma mudança no conceito de livro. O livro feito de papel evoluiu para versões digitais, tornando a norma em questão obsoleta. Assim, houve a necessidade de reinterpretação da norma pelos aplicadores do direito.
Foi o que ocorreu no ano de 2017, com a jurisprudência se adequando ao novo conceito de “livro”. No julgamento do RE 330.817 RJ e do RE 595.676/RJ, ambos submetidos à repercussão geral, o STF asseverou que a interpretação das imunidades deve se projetar no futuro e levar em conta os novos fenômenos sociais, culturais e tecnológicos, reconhecendo que o papel não é essencial ao conceito de livro, enquanto produto final destinatário da regra imunizante. Consignou-se que o suporte da publicação, seja ele tangível ou intangível, apenas dá abrigo ao conteúdo da obra, devendo ser considerado elemento meramente acidental do livro, e não essencial ao ponto de condicionar-lhe o gozo da imunidade. Convém, dessa forma, citar a ementa do RE 330.817 RJ, vejamos:
Recurso extraordinário. Repercussão geral. Tributário. Imunidade objetiva constante do art. 150, VI, d, da CF/88. Teleologia multifacetada. Aplicabilidade. Livro eletrônico ou digital. Suportes. Interpretação evolutiva. Avanços tecnológicos, sociais e culturais. Projeção. Aparelhos leitores de livros eletrônicos (ou e-readers). 1. A teleologia da imunidade contida no art. 150, VI, d, da Constituição, aponta para a proteção de valores, princípios e ideias de elevada importância, tais como a liberdade de expressão, voltada à democratização e à difusão da cultura; a formação cultural do povo indene de manipulações; a neutralidade, de modo a não fazer distinção entre grupos economicamente fortes e fracos, entre grupos políticos etc; a liberdade de informar e de ser informado; o barateamento do custo de produção dos livros, jornais e periódicos, de modo a facilitar e estimular a divulgação de ideias, conhecimentos e informações etc. Ao se invocar a interpretação finalística, se o livro não constituir veículo de ideias, de transmissão de pensamentos, ainda que formalmente possa ser considerado como tal, será descabida a aplicação da imunidade. 2. A imunidade dos livros, jornais e periódicos e do papel destinado a sua impressão não deve ser interpretada em seus extremos, sob pena de se subtrair da salvaguarda toda a racionalidade que inspira seu alcance prático, ou de transformar a imunidade em subjetiva, na medida em que acabaria por desonerar de todo a pessoa do contribuinte, numa imunidade a que a Constituição atribui desenganada feição objetiva. A delimitação negativa da competência tributária apenas abrange os impostos incidentes sobre materialidades próprias das operações com livros, jornais, periódicos e com o papel destinado a sua impressão. 3. A interpretação das imunidades tributárias deve se projetar no futuro e levar em conta os novos fenômenos sociais, culturais e tecnológicos. Com isso, evita-se o esvaziamento das normas imunizantes por mero lapso temporal, além de se propiciar a constante atualização do alcance de seus preceitos. 4. O art. 150, VI, d, da Constituição não se refere apenas ao método gutenberguiano de produção de livros, jornais e periódicos. O vocábulo “papel” não é, do mesmo modo, essencial ao conceito desses bens finais. O suporte das publicações é apenas o continente (corpus mechanicum ) que abrange o conteúdo (corpus misticum) das obras. O corpo mecânico não é o essencial ou o condicionante para o gozo da imunidade, pois a variedade de tipos de suporte (tangível ou intangível) que um livro pode ter aponta para a direção de que ele só pode ser considerado como elemento acidental no conceito de livro. A imunidade de que trata o art. 150, VI, d, da Constituição, portanto, alcança o livro digital (e-book). 5. É dispensável para o enquadramento do livro na imunidade em questão que seu destinatário (consumidor) tenha necessariamente que passar sua visão pelo texto e decifrar os signos da escrita. Quero dizer que a imunidade alcança o denominado “audio book”, ou audiolivro (livros gravados em áudio, seja no suporte CD-Rom, seja em qualquer outro). 6. A teleologia da regra de imunidade igualmente alcança os aparelhos leitores de livros eletrônicos (ou e-readers) confeccionados exclusivamente para esse fim, ainda que, eventualmente, estejam equipados com funcionalidades acessórias ou rudimentares que auxiliam a leitura digital, tais como dicionário de sinônimos, marcadores, escolha do tipo e do tamanho da fonte etc. Esse entendimento não é aplicável aos aparelhos multifuncionais, como tablets, smartphone e laptops, os quais vão muito além de meros equipamentos utilizados para a leitura de livros digitais. 7. O CD-Rom é apenas um corpo mecânico ou suporte. Aquilo que está nele fixado (seu conteúdo textual) é o livro. Tanto o suporte (o CDRom) quanto o livro (conteúdo) estão abarcados pela imunidade da alínea d do inciso VI do art. 150 da Constituição Federal. 8. Recurso extraordinário a que se nega provimento.
(STF – RG RE 330.817 RJ – RIO DE JANEIRO, Relator: Min DIAS TOFFOLI, data de julgamento: 20/09/2012, data de publicação: DJe-192 01/10/2012).
A norma constitucional disciplinadora da imunidade cultural detém eficácia plena e aplicabilidade imediata, dispensando qualquer lei para mediar a regulamentação. Justamente por isso é incondicionada, sendo livro, jornal, periódico ou o papel destinado à sua impressão é o suficiente para adquirir a imunidade (CAVALCANTE, 2020). O jurista CAVALCANTE (2020) aduz, ao comentar o RE 330817/RJ:
O Min. Dias Toffoli, em seu voto no RE 330817/RJ, aponta as razões históricas que motivaram a previsão desta imunidade. No período histórico conhecido como Estado Novo (1937 a 1945), o Governo cobrava elevado imposto dos jornais que divulgavam ideias contrárias ao regime quando estes importavam papeis. Por outro lado, concediam benefícios fiscais aos jornais partidários do Governo. Era uma forma de censura indireta. A Constituição Federal de 1946, com o intuito de acabar com este controle estatal da imprensa, conferiu imunidade tributária ao “papel” e, além disso, com o objetivo de estimular a produção editorial, também estendeu esta imunidade para os livros. A Constituição Federal de 1967 manteve a imunidade, prevendo que era vedado criar imposto sobre “o livro, os jornais e os periódicos, assim como o papel destinado à sua impressão” (art. 20, III, d). A Constituição Federal de 1969 (para alguns, apenas uma Emenda Constitucional à CF/67) manteve a imunidade, com pequena alteração em seu texto.
A respeito da classificação das imunidades, Paulsen (2017, p. 111) especifica:
Podem-se classificar as imunidades em objetivas e subjetivas. A imunidade objetiva é aquela em que se exclui da tributação determinado bem, riqueza ou operação considerado de modo objetivo, sem atenção ao seu titular. É o caso da imunidade dos livros, jornais e periódicos, que só alcança as operações com esses instrumentos de manifestação do pensamento e das ideias, não se estendendo aos autores, às editoras e às livrarias. Subjetiva, de outro lado, é a imunidade outorgada em função da pessoa do contribuinte, como a imunidade de templos (instituições religiosas) e dos partidos políticos.
Dessa maneira, as alíneas “a”, “b” e “c” do inciso VI do art. 150 da CF/88 abrangem a imunidade subjetiva. Quanto à imunidade contida na alínea “d”, a chamada imunidade cultural é classificada como objetiva/real. Justamente porque recai sobre objetos, que são bens (periódicos, livros, jornais e o papel) e não se refere a impostos pessoais (CAVALCANTE, 2020). Podemos exemplificar essa imunidade objetiva da seguinte forma: quando o livro deixa a gráfica, não pagará IPI; quando o livro é vendido pela livraria, não pagará ICMS; quando o livro é importado, não pagará Imposto de Importação (CAVALCANTE, 2020).
Mister se faz ressaltar que com a evolução da sociedade e, consequentemente, das tecnologias, os livros digitais, conhecidos como e-books, estão abrangidos pela imunidade objetiva. O suporte das publicações, como o kindle, é apenas o continente ou corpus mechanicum que contém o livro (o conteúdo ou corpus misticum) e, portanto, não detém nenhuma outra funcionalidade principal que não seja a leitura dos livros eletrônicos (CAVALCANTE, 2020). Nesse mesmo sentido, pondera Paulsen (2020, p.169-170):
A referência ao papel teve por finalidade ampliar o âmbito da imunidade, de modo que envolva o que é normalmente o seu maior insumo. Não há que se entender tal referência como excludente dos livros, jornais e periódicos em meio magnético ou eletrônico. Impõe-se que se considerem os direitos fundamentais que a Constituição visa a proteger com a norma em questão. O STF, nessa linha, decidiu que o suporte das publicações é apenas o continente e que não é essencial ao conceito de livro, mas acidental, podendo ser tangível ou intangível, de modo que a imunidade alcança, também, os ebooks. No mesmo acórdão, firmou posição no sentido de que a imunidade alcança, igualmente, os audiobooks
Seguindo o entendimento jurisprudencial emanado no RE 330.817 RJ e no RE 595.676/RJ, na data de 15/04/2020 o Plenário do STF aprovou a redação da súmula vinculante nº 57, nos termos do voto do relator, ministro Dias Toffoli, presidente do STF, no Recurso Extraordinário 330.817, Rio de Janeiro:
A imunidade tributária constante do artigo 150, VI, d, da CF/88 aplica-se à importação e comercialização, no mercado interno, do livro eletrônico (e-book) e dos suportes exclusivamente utilizados para fixá-los, como leitores de livros eletrônicos (e-readers), ainda que possuam funcionalidades acessórias.
De acordo com a Súmula Vinculante nº 57, a imunidade tributária abrange o livro eletrônico/ e-books e os “suportes exclusivamente utilizados para fixá-lo”. Assim, questiona-se se os smartphones ou tablets possuiriam esta imunidade. Como se sabe, smartphones ou tablets não são considerados suportes usados unicamente para fixar livros eletrônicos, pois que estes aparelhos eletrônicos detêm outras funções e a leitura de livros digitais neles é apenas uma opção, dentre várias outras. Portanto, os tablets e os smatphones não estão inseridos na imunidade tributária disciplinada no art. 150, VI, “d”, da CF/88. (CAVALCANTE, 2020). Para arrematar, considera Paulsen (2020, p. 170):
Considerando o avanço da tecnologia e os novos suportes para leitura de livros, o STF firmou orientação no sentido de que a imunidade “alcança os aparelhos leitores de livros eletrônicos (ou e-readers) confeccionados exclusivamente para esse fim, ainda que, eventualmente, estejam equipados com funcionalidades acessórias”, mas que esse entendimento “não é aplicável aos aparelhos multifuncionais, como tablets, smartphone e laptops, os quais vão muito além de meros equipamentos utilizados para a leitura de livros digitais”
O Tribunal Constitucional, no julgamento do RE 595.676/RJ, também considerou que a imunidade alcança os componentes eletrônicos exclusivamente destinados a integrar unidade didática com fascículos. Trata-se dos fascículos que são compostos por um material teórico impresso e por peças com finalidade demonstrativa e prática, que integram cursos para montagem de computadores, por exemplo. Segundo o entendimento adotado pelo STF, o essencial é o curso e as peças nada representam sem o curso teórico. As peças integram o fascículo, estando o conjunto abarcado pela imunidade tributária:
TRIBUTÁRIO – CONSTITUCIONAL – IMUNIDADE TRIBUTÁRIA – LIBERAÇÃO DE MERCADORIA IMPORTADA – ART. 150, VI, "D" DA CF/88. I - A imunidade conferida pelo art. 150, IV, "d" da Constituição Federal visa proteger a liberdade de expressão e de idéias que são fundamentais para o desenvolvimento cultural de uma sociedade, garantindo uma circulação maior e conseqüente barateamento desse material, objeto da mencionada imunidade. II - Em que pese o reconhecimento à interpretação restritiva que tem sido dada pela Suprema Corte à imunidade prevista no dispositivo constitucional acima mencionado, a hipótese dos autos diz respeito à importação de fascículos compostos pela parte impressa e pelo material demonstrativo que o acompanha, tratando-se de um conjunto em que estão integrados os fascículos que ensinam como montar um sistema de testes e as peças que constituem o demonstrativo prático para montagem desse sistema. O essencial é o curso e as peças nada representam sem o curso teórico, ou seja, as ditas "pecinhas" nada mais são do que partes integrantes dos fascículos, estando, portanto, esse conjunto abarcado pela referida imunidade tributária. III - Apelação provida. (STF – RG 595.676/RJ – RIO DE JANEIRO, Relator: Min MARCO AURÉLIO, data de julgamento: 08/03/2017).
Considera Paulsen (2020, p. 168), que a Constituição Federal ao instituir a benesse de conceder imunidade tributária aos livros, não fez ressalvas quanto ao valor artístico ou didático, à relevância das informações divulgadas ou à qualidade cultural de uma publicação. Assim, alcança também apostilas, fascículos e lista telefônica. Até mesmo álbuns de figurinhas restam abrangidos
Assim, torna-se claro que houve mutação constitucional no que se refere ao art. 150, VI, “d”, da CF/88, pois atualmente há o mercado de livros eletrônicos. Houve mutação constitucional por meio de interpretação para abranger “livros eletrônicos” no conceito de “livros”. O fato de os livros eletrônicos assentirem uma maior capacidade de interação por meio da máquina, em comparação com os livros impressos em papel, não é motivo para negar-lhes imunidade tributária. Entretanto, aparelhos cuja principal função não seja a de fornecer a leitura de livros digital não serão abrangidos pela imunidade tributária da norma supramencionada.
CONCLUSÃO
Assim, conclui-se que houve mutação constitucional no que se relaciona ao art. 150, VI, “d”, da CF/88, no tocante ao conceito de “livros”, para abranger os livros eletrônicos, havendo esta mutação por meio de interpretação. O fato de os livros utilizarem uma máquina para suporte, comparando-os com os livros impressos em papel, não é razão para negar imunidade tributária. Ao contrário, isso demonstra a evolução social e tecnológica característica da nossa sociedade.
Entretanto, há outros suportes que também possuem a funcionalidade de leitura de livros digitais que não serão abarcados pela imunidade, como tablets e smartphones, pois que não possuem a função principal de propiciar e ser suporte de livros eletrônicos, ao contrário, têm esta funcionalidade como acessória e secundária.
REFERÊNCIAS
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PAULSEN, Leandro. Curso de Direito Tributário. 8ª. ed. São Paulo: Saraiva, 2017.
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MBA Executivo em Gestão Estratégica de Inovação Tecnológica e Propriedade Intelectual; Especialista em Direito Constitucional pela Universidade Cândido Mendes; Especialista em Direito Penal pela Damásio Educacional e Ibmec; Especialista em Direito Tributário pelo Instituto Prominas; Especialista em Ciência Política pela UNIBF. Bacharela em Direito pela Universidade do Estado da Bahia (UNEB). Professora de Direito Constitucional da Autarquia Educacional do Vale do São Francisco – AEVSF (FACAPE - Faculdade de Petrolina), Advogada.
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: RIBEIRO, Jéssica Cavalcanti Barros. A relação entre a mutação constitucional (verfassungswandlungen) do art. 150, vi, “d” e a aprovação da Súmula Vinculante nº 57 referente à imunidade tributária. Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 01 jan 2021, 04:30. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/artigos/56010/a-relao-entre-a-mutao-constitucional-verfassungswandlungen-do-art-150-vi-d-e-a-aprovao-da-smula-vinculante-n-57-referente-imunidade-tributria. Acesso em: 21 nov 2024.
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