Segundo é assente no âmbito do concurso público, o edital do certame faz lei entre a Administração Pública e o candidato, vinculando-os ao texto do ato infralegal. Essa ideia tem pertinência na medida em que é preciso haver previsibilidade entre as condutas de ambas as partes no contexto do certame.
Ocorre, todavia, que tem se tornado comum uma verdadeira extrapolação dos termos do edital, fixando obrigações contrárias às disposições normativas que regerão a carreira do futuro servidor público, ora candidato.
A título de exemplo, é possível citar caso em que a lei disciplinadora do regime jurídico do servidor público prevê uma carga horária superior àquela estipulada no edital do certame. Isso ocorre com frequência por eventual lapso administrativo ou mesmo desídia da autoridade administrativa que fez constar no edital do concurso público uma carga horária contrária aos termos da lei em sentido estrito.
Outra situação seria a exclusão no edital do certame de requisito legal para o ato de posse no processo de provimento do cargo público. Ausente a informação no edital de que seria exigido – por lei – possuir Carteira Nacional de Habilitação (CNH) para ser empossado no cargo público – ou mesmo a informação expressa da sua desnecessidade – poderia se considerar a manifestação editalícia (infralegal) em detrimento da lei de regência da carreira do servidor público (legal)?
A par disso, aqui não se defende a desvinculação desmedida da Administração Pública quanto às suas manifestações no edital do certame. Não se trata disso. É certo que as normas do edital devem ser cumpridas, pois vinculam a Administração Pública e o candidato.
Ocorre que essa vinculação ao instrumento convocatório não pode justificar atos absurdos que conflitem diretamente com as normas jurídicas de natureza legal, até mesmo pelo critério da hierarquia que é basilar no ordenamento jurídico. Uma norma superior como a lei está posicionada hierarquicamente acima do edital, o qual se trata de ato infralegal.
A esse respeito vale citar a preocupação de Norberto Bobbio com a resolução do conflito de normas jurídicas pelo critério da hierarquia:
O critério cronológico serve quando duas normas incompatíveis são sucessivas; o critério hierárquico serve quando duas normas incompatíveis estão em nível diverso; o critério de especialidade serve no choque de uma norma geral com uma norma especial. (grifou-se)
Justamente por essa realidade que a Lei Estadual nº 7.858/2016 estabeleceu normas gerais para a realização de concurso público pela Administração Direta, Indireta, Autárquica e Fundacional do Estado de Alagoas, onde se previu o seguinte:
Art. 6º O edital é vinculante da administração pública e de cumprimento obrigatório, devendo ser redigido de forma clara e objetiva, de maneira a possibilitar a perfeita compreensão de seu conteúdo pelo pretendente ao cargo ou cargos oferecidos.
[...]
§ 16. É nulo e de nenhum efeito dispositivo do edital que contrarie a legislação aplicável aos servidores da carreira para a qual o concurso está sendo realizado. (grifou-se)
Assim, cai por terra a alegação de muitos candidatos de concursos públicos no sentido de que previsões editalícias contrárias ao texto da lei de regência da carreira teriam aplicabilidade.
Quanto ao ponto, a doutrina é bastante clara:
"(...) Além do decreto regulamentar, o poder normativo da Administração ainda se expressa por meio de resoluções, portarias, deliberações, instruções, editadas por autoridades que não o Chefe do Executivo. Note-se que o artigo 87, parágrafo único, inciso II, outorga aos Ministros de Estado competência para 'expedir instruções para a execução das leis, decretos e regulamentos'. Há, ainda, os regimentos, pelos quais os órgãos colegiados estabelecem normas sobre o seu funcionamento interno. Todos esses atos estabelecem normas que têm alcance limitado ao âmbito de atuação do órgão expedidor. Não têm o mesmo alcance nem a mesma natureza que os regulamentos baixados pelo Chefe do Executivo. Em todas essas hipóteses, o ato normativo não pode contrariar a lei, nem criar direitos, impor obrigações, proibições, penalidades que nela não estejam previstos, sob pena de ofensa ao princípio da legalidade (arts. 5º, II, e 37, caput, da Constituição)" (grifou-se)
Frente a essas considerações, conclui-se que não há qualquer direito resultante de cláusula editalícia nula de pleno direito, notadamente porque o critério da hierarquia de normas no sistema jurídico não permite a aplicação de edital em detrimento da lei em sentido estrito.
É importante, todavia, que a Administração Pública esteja atenta ao seu dever de exercer a autotutela de modo tempestivo e, assim, não desperte nos servidores públicos – anteriormente candidatos – justas expectativas de um comportamento previsto em edital, mesmo que conflitante com dispositivos legais.
Evitar-se-á, desse modo, que o princípio da segurança jurídica seja invocado como argumento para a manutenção de situações de fato absolutamente contrárias aos limites legais, apenas porque previstas em edital e decorrido determinado lapso temporal sem que tenha havido exercício da autotutela pela Administração Pública.
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