Resumo: O presente estudo tem por objetivo examinar em detalhes o governo local no Estado federal australiano. Para cumprir tal desiderato, seguimos uma metodologia eminentemente descritiva. Num primeiro momento, traremos as características essenciais básicas do federalismo australiano. Após expor o figurino do seu Estado federal, passaremos a examinar o lugar do governo local no ordenamento jurídico parcelar de cada um dos seus 6 (seis) Estados. Por fim, abordaremos a dinâmica de poder entre o governo local, o ente central e os Estados subjacente à moldura normativa traçada na seção precedente. A título de encerramento, exporemos algumas reflexões críticas extraídas da condição do governo local no Estado federal australiano.
Palavras-chave: Austrália; federalismo; governo local
Abstract: This study aims to thoroughly examine the local government in the Australian federal State. For that purpose, it follows an eminently descriptive methodology. Firstly, this paper shows the essential traits of Australian federalism. After explaining the framework of its Federal State, it goes further on to examine the place of local government in the partial legal system of each of its 6 (six) States. At last, it approaches the dynamic of power between local, central, and medium federal levels underlying the normative frame outlined in the preceding section. Finally, it presents some critical reflections extracted from the condition of local government in the Australian federal State.
Keywords: Australia; federalism; local government
SUMÁRIO: 1 – Introdução; 2 – Características do Estado federal australiano; 3 – A Federação dual e a ausência de previsão do governo local na Carta da Commonwealth; 4 – A dinâmica de poder entre o governo local e os entes federativos estadual e federal; 5 – Referências
1 - Introdução
O presente estudo busca delinear os elementos básicos do governo local no Estado federal australiano, tanto a partir do direito positivo, quanto por meio da aplicação do esquema normativo para a realidade subjacente.
Num primeiro momento, abordam-se as características essenciais de um Estado federal para, em seguida, enquadrar o Estado federal australiano em seu tipo ideal. Ademais, intenta-se fazer um breve apanhado dos traços culturais, geográficos e econômicos daquele país.
Na sequência, a empreitada volta-se ao exame pormenorizado do arcabouço normativo constitutivo dos 6 (seis) Estados australianos – entes federativos intermediários – com o fito de posicionar a autonomia dos governos locais na moldura jurídica delineada.
Por fim, encerra-se o trabalho com uma análise da literatura australiana que expõe a interação, na prática, do governo local com os Estados e com o ente central, advogando por uma maior autonomia daquele em face destes. À guisa de conclusão, faz-se uma reflexão crítica do status quo do ente local australiano a partir de um olhar do federalismo brasileiro, no qual o Município teve seu reconhecimento como ente federativo autônomo na Constituição Federal de 1988.
2 – Características do Estado federal australiano
O Estado federal australiano compartilha, como não poderia ser diferente, do núcleo mínimo definido como elementos essenciais do federalismo: (i) ao menos dois níveis de governo; (ii) uma Constituição escrita; (iii) atribuição de competências legislativas, inclusive na área fiscal, e algum nível de autonomia, tudo na própria Carta Magna; (iv) representação das unidades constitutivas da Federação nas instituições decisórias do governo central; (v) procedimentos jurisdicionais de decisão de conflitos constitucionais entre os níveis de governo; e (vi) formas de coordenação na relação entre os governos.[1] Tal moldura abstrata e dúctil irá variar em cada Estado-nação, de acordo com sua história, cultura e tradição institucional.[2]
A Austrália segue formalmente o modelo dual de federalismo, cujas unidades constitutivas são denominadas ‘Estados’, ao passo que o governo central é designado ‘Commonwealth’.[3] O federalismo australiano é bastante centralizado e simétrico, contendo, ao todo, 6 (seis) Estados.[4] Estas características se devem, sobretudo, a relativa uniformidade étnica, religiosa e cultural da Austrália.[5]
A nível local, a Austrália possui aproximadamente 500 a 700 instâncias governamentais, que oscilam bastante em sua densidade populacional e extensão territorial. Sua arrecadação tributária compõe menos de 3% do total do Estado federal e seus gastos atingem, em média, apenas 2,5% do PIB australiano. Por fim, suas atribuições se voltam aos serviços e infraestruturas locais.[6]
Feita esta breve introdução da Federação australiana, cumpre avançar ao percurso do presente trabalho. De início, entretanto, mostra-se necessário ressalvar que não é o escopo deste estudo apresentar propostas prescritivas que busquem alterar a atual dinâmica do federalismo australiano. Com efeito, uma abordagem de tamanha ambição escapa nossos estreitos limites, uma vez que demandaria aprofundar aspectos de engenharia institucional e tradição institucional do Estado australiano, de modo a antecipar eventuais efeitos adversos de alterações pontuais na sala de máquinas da Constituição da Commonwealth.
Noutro giro, este trabalho buscará, num primeiro momento, apresentar, com o intuito meramente descritivo, o espaço de poder ocupado pelo governo local na estrutura normativa do Estado australiano. Para cumprir tal finalidade, como ficará claro, será necessário avançar na legislação estadual, que dispõe em maior detalhamento a respeito dos governos locais.
Após o apanhado do arcabouço normativo subjacente ao governo local, o estudo volta-se a examinar a práxis da Federação australiana com ênfase no governo local. É dizer: será analisada a forma pela qual as normas tratadas na seção precedente interagem com a distribuição fática e política de poderes, de modo a modelar o grau de autonomia dos entes locais.
3 – A Federação dual e a ausência de previsão do governo local na Carta da Commonwealth
O Estado federal australiano é dual e, nesta condição, o governo local não é reconhecido na Constituição da Commonweath, sendo, portanto, objeto de regulação da legislação estadual. Nada obstante, como aponta Saunders, as Constituições estaduais costumam trazer um feixe de garantias mínimas à ingerência estatal no governo local, o que não afastou a discussão política, existente desde a década de 1970, a respeito da necessidade de se reconhecer o governo local na Constituição da Commonweath. De toda sorte, os referendos realizados em 1974 e 1988 buscando reconhecer o governo local na Carta da Commonweath foram rejeitados.[7]
Quanto ao ponto, antes de avançarmos às previsões do governo local no ordenamento jurídico parcelar de cada um dos 6 (seis) Estados australianos, cabe-nos tecer breves considerações a respeito do procedimento de reforma constitucional na Constituição australiana.
O processo de mudança constitucional formal na Austrália é significativamente complexo e envolve dois momentos sucessivos.[8] Em regra, num primeiro passo, o Parlamento australiano – único legitimado para deflagrar o processo de alteração da Constituição – deve aprovar, em suas duas Casas e por maioria absoluta, a proposta de emenda. Na sequência, o projeto é submetido a referendo popular, devendo ser aprovado, concomitantemente, pela maioria dos cidadãos a nível nacional e pela maioria dos cidadãos da maioria dos Estados, no período de 2 a 6 meses após sua aprovação pelo Parlamento australiano.[9]
Por outro lado, o processo de alteração constitucional nos Estados é, no geral, mais simples e, em alguns casos, a Carta estadual não possui hierarquia normativa superior à legislação ordinária.[10]
Avancemos, portanto, ao exame do espaço do governo local nas Constituições estaduais. No Estado de Queensland, a Constituição de 2001[11] traça, em seu Capítulo 7 – seções 70 a 76 – os requisitos constitutivos do governo local, bem como o procedimento de dissolução do governo e sua gestão temporária no período em questão.
Os requisitos de criação do governo local estão expressos de modo genérico na Constituição estadual, trazendo remissão a legislação ordinária para disciplinar o tema e a extensão dos poderes locais – subseção 71.2. Atualmente, vige o Local Government Act, de 2009,[12] que trata em detalhes sobre os poderes dos mandatários dos governos locais, seus serviços públicos, o processo de elaboração normativa, a mudança de subdivisões territoriais locais e a gestão associada de serviços por mais de um governo local.
Já o processo de dissolução do governo local possui maior detalhamento na própria Carta Estadual. Com efeito, as seções 72 a 76 delimitam a matéria, indicando que a prerrogativa para pautar a dissolução do governo local é de Ministro do Estado de Queensland, que, ao fazê-lo, deve encaminhar o projeto de dissolução à Assembleia Legislativa dentro do prazo de 14 dias para pautar a discussão. Entre o protocolo e a votação pela Assembleia, os Conselheiros do governo local são suspensos de suas funções, podendo ser indicados órgãos ou indivíduos pelo Estado para executarem todas as funções e prerrogativas do governo local.[13] A seu turno, a Assembleia Legislativa terá mais 14 dias para aprovar ou rejeitar a dissolução do governo local. Caso a Assembleia Legislativa não o faça dentro do período indicado – e o Ministro de Estado não reitere o pedido – os efeitos da suspensão dos Conselheiros locais são revogados, os seus substitutos são destituídos e a proposta de dissolução do governo local é extinta.
Noutro giro, a Constituição do Estado de New South Wales de 1902 é ainda mais genérica, delegando à legislação ordinária a competência de delimitar a forma de constituição, natureza e a extensão dos poderes, deveres e funções dos governos locais – subseções 51.2 e 51.3.[14] O Local Government Act de 1993[15] se desincumbiu de tal mister, trazendo os requisitos de criação, dissolução e transformação dos arranjos territoriais dos governos locais – seções 204 a 218F. Cabe destacar, aqui, que, diferentemente do Estado de Queensland, a iniciativa de deflagração do processo de criação, alteração, transformação e dissolução dos governos locais compete não só ao Ministro de Estado, mas também aos cidadãos, por meio de iniciativa popular. Ademais, não há previsão expressa de participação da Assembleia Legislativa estadual neste processo, sendo o ato de alteração dos governos locais editado pelo Governador do Estado. Finalmente, além de trazer preceitos sobre a organização das unidades do terceiro nível, o Local Government Act de 1993 estabelece em detalhes as atribuições executivas, legislativas e judicantes locais, bem como a gestão fiscal e os serviços públicos locais.
A Constituição do Estado de South Australia de 1934[16] segue a dinâmica da Constituição do Estado de New South Wales em delegar à legislação ordinária a prerrogativa de delimitar a forma de constituição, natureza e a extensão dos poderes, deveres e funções dos governos locais – subseção 64A.2. Há, contudo, curioso preceito: ao mesmo tempo em que se estabelece, tal como nas Constituições do Estado de New South Wales – subseção 51.1 – e do Estado de Queensland – seção 70 e subseção 71.1 -, requisitos mínimos de temporariedade dos mandatos e dever de boa administração sistema de governança local – subseção 64A.1 -, a subseção 64A.3 cria, a contrario sensu, a possibilidade de se formatar um sistema de governança local sem aqueles atributos, desde que tal proposta advenha de projeto de Lei aprovado pela maioria absoluta de ambas as casas do Parlamento estadual.
A criação, divisão e extinção de territórios dos governos locais no Estado de South Australia está disposta no Local Government Act de 1999[17], que prevê a possibilidade de tais propostas de reforma estruturais serem aprovadas pelo Governador – seções 9 e 10 - desde que encaminhadas por ambas as casas do Parlamento ou recomendada por Ministro de Estado – subseção 11.1. Outrossim, o Local Government Act de 1999 dispõe largamente sobre os poderes locais, sua administração financeira e seus serviços públicos.
O Estado da Tasmania, como ficará claro a seguir, possui o arranjo institucional e normativo que confere maior autonomia ao governo local. Em seu Constitution Act de 1934,[18] para além da previsão de temporariedade dos mandatos do governo local e seu dever de boa administração – seção 45A -, assim como do preceito segundo o qual os poderes do governo local não afetam a legislação estadual existente a respeito da vacância dos órgãos locais e sua respectiva gestão em tais circunstâncias – seção 45B -, há expressa menção à imprescindibilidade de que haja recomendação do Painel de Governo Local – estabelecido na forma do Local Government Act de 1993[19] – para que haja divisão territorial do governo local – seção 45C.
Neste sentido, cumpre destacar que o Local Government Act de 1993 constitui o Painel do Governo Local, trazendo em sua composição um membro indicado pela Associação do Governo Local da Tasmania, outro pela Associação de Profissionais do Governo Local da Austrália, além de um presidente do Painel indicado livremente pelo Ministro de Estado, e do Diretor do Governo Local ou uma pessoa por ele indicada – seção 210. Ora, ainda que haja participação do Estado na composição do Painel, fato é que, comparativamente aos demais Estados da Federação, há maior diluição do poder estadual. Mais: na forma da Constituição estadual – no que foi reproduzida pelo Local Government Act de 1993 em sua seção 214E -, o Governador do Estado só pode alterar, extinguir e criar novos territórios de governo local mediante recomendação do Ministro de Estado, pautada em parecer do Painel do Governo Local. De resto, o Local Government Act de 1993 segue a linha dos demais entes estaduais em pormenorizar os poderes do governo local, sua administração financeira e serviços públicos.
Por sua vez, o Estado de Victoria estabelece em sua Constituição de 1975[20] que o governo local é um ‘distinto e essencial nível de governança’ – subseção 74A.1 – constituído por membros eleitos democraticamente e com o dever de boa administração – subseção 74A.1A. No entanto, a subseção 74B confere ao Parlamento estadual a prerrogativa de elaboração de leis de uma série de matérias atinentes à própria autonomia do governo local: como a criação do governo e seus objetivos, funções, poderes e deveres; as condições de elegibilidade e demais aspectos eleitorais a nível local; e os critérios de dissolução e suspensão do governo local.
Em oportunidade recente, o Estado de Victoria editou o Local Government Act de 2020[21], que seguiu a tendência dos demais Estados: o poder de alterar os limites territoriais das municipalidades é do Governador do Estado, provocado por recomendação do Ministro de Estado – seções 235 e 236. Além disso, o monitoramento da boa governança local é continuamente fiscalizado pelo Estado, que dita, igualmente, questões atinentes à sua gestão financeira e patrimonial.
Por fim, o Estado de Western Australia, em seu Constitution Act de 1889[22], confere os atributos de temporariedade dos mandatos e boa administração do governo local, sendo constituído na forma e com as prerrogativas que o Poder Legislativo estadual entender necessárias para o atingimento interesse público – seção 52. Tal como a Constituição do Estado de Victoria, o Constitution Act de 1889 afasta qualquer dúvida a respeito da atribuição do Estado de Western Australia, independentemente dos poderes conferidos ao governo local, de regular as hipóteses de vacância e de responsabilidade dos governantes locais – seção 53.
O Local Government Act de 1995[23] do Estado da Western Australia é aquele que possui maior dispersão de poder embutido no seu procedimento de modificação dos limites territoriais e organizacionais do governo local. A competência para fazê-lo é do Governador, por recomendação do Ministro do Estado – subseção 2.1.1. No entanto, o Ministro de Estado apenas poderá oferecer referida recomendação na hipótese de ter havido sugestão anterior do Painel Consultivo para secundá-la – subseções 2.1.2 e 2.1.3. Quanto ao ponto, o Painel Consultivo – previsto nas subseções 2.44 e 2.45 e cujas regras constitutivas tiveram maior detalhamento no Anexo 2.5 – possui composição plural, ainda que a prerrogativa de nomear os seus membros seja do Governador. No mais, a aglutinação de territórios que interfira em governos locais, bem como sua criação ou extinção, deve contar igualmente com a notificação e oitiva da população e do governo local potencialmente afetados, na forma do Anexo 2.1.
A interferência do Estado na gestão do governo local é patente, tal como nos outros Estados, conforme se extrai do Local Government Act, que prevê regras sobre as funções executivas e administrativas locais, os serviços públicos, a administração, os órgãos de controle e as eleições locais, dentre outros aspectos exaustivamente disciplinados pelo ente intermediário.
4 – A dinâmica de poder entre o governo local e os entes federativos estadual e federal
A seção anterior comprovou a assertiva da introdução de que o federalismo australiano é dual, sem autonomia do ente local. Com efeito, caso compreendamos a autonomia federativa como decorrente da tríade auto-organização, autogoverno e autoadministração, como o faz Barroso,[24] fica evidente que os entes locais não gozam destas prerrogativas na Austrália, visto que se encontram subordinados e dependentes da vontade política ordinária dos entes intermediários.
Aliás, embora se tenha constatado que os entes locais são mencionados em todas as 6 Constituições estaduais, a norma máxima do ente estadual confere, em regra, uma diretriz geral, relegando à legislação ordinária o papel de minudenciar os aspectos organizativos, gerenciais e financeiros dos entes locais. Neste sentido, os Local Government Acts vão além de normas meramente principiológicas, constituindo, ao revés, verdadeiros estatutos jurídicos de alta densidade normativa e caráter analítico.[25]
Cumpre repisar, ainda, que a Constituição da Commonwealth não tratou do governo local,[26] nem há lei federal sobre a matéria, de modo que a regência da organização de tais entes se espraia pela legislação dos diversos Estados, que podem, em tese, dispor da matéria da forma que melhor lhes aprouver. Sem embargo, constatamos também que a regulação da matéria é relativamente uniforme pelos entes intermediários.
Pois bem, a inexistência de autonomia tem gerado, na dinâmica da relação entre Estado e governo local, uma série de ‘aglutinações forçadas’, sobretudo a partir da década de 1990. Como apontam Grant e Drew, entre 1993 e 1994, o Estado de Victoria reduziu seus governos locais de 210 para 78, ao passo que o Estado de Queensland, em 2007 e 2008, promoveu diminuição de 157 para 53 comunidades locais. O discurso político por detrás da diminuição da pulverização dos governos locais se pauta na promessa de menor tributação, simplificação regulatória e economias de escala – ao passo que argumentos contrários como representação política diluída, imposição de prejuízos econômicos decorrentes de municípios deficitários e perda de identidade local são negligenciados.[27]
Decerto, a literatura aponta um modus operandi procedimental na tendência à aglutinação forçada sobre governos locais: (i) antes da sua realização, o Estado busca a aglutinação voluntária mediante o convencimento dos governos locais envolvidos, com argumentos de eficiência e ganhos de escala; (ii) outro ponto em comum diz respeito a inexistência, nas experiências recentes, de uma plataforma política clara do governo estadual a respeito da aglutinação de Municípios – ao revés, governos do Estado de Victoria e New South Wales do período se elegeram com o slogan de ‘não à aglutinação forçada’ -, o que traz, no mínimo, questionamentos de legitimidade democrática; e (iii) relacionado ao aspecto anterior, a aglutinação forçada vem gerando movimentos civis separatistas, demonstrando que a aglutinação não possui apoio popular.[28] Novamente, tais acontecimentos só são possíveis porque, na estrutura do federalismo Australiano, o governo local constitui apêndice ao governo estadual.
Por outro lado, a relação entre o governo central e o governo local parece apontar para um horizonte mais cooperativo. Neste sentido, é de se destacar que a Constituição da Commonwealth não se debruça detalhadamente sobre as relações intergovernamentais, o que confere maior margem de espaço ao experimentalismo federativo. Na prática, essa margem de ação tem sido benéfica aos governos locais, que recebem do governo federal aproximadamente U$ 3 bilhões por ano em transferências gerais e de propósito específico.[29]
Além disso, inobstante os Estados tenham sua representação formal na esfera central resguardada na Constituição da Commonwealth, os governos locais possuem – numa dinâmica informal - representantes em quase todos os fóruns federais dos quais possuem interesse, havendo, ainda, Ministros do governo central que frequentemente adotam uma agenda que reforça o poder local.[30]
Assim, verifica-se que a posição do governo local na Federação australiana é de subalternidade formal, mas de relevância prática na política federal e na entrega de serviços públicos aos cidadãos na ponta.
Caminhando para o final, cumpre enunciar alguns fatores indicados pela literatura especializada que poderiam auxiliar a elevação do governo local australiano a um patamar de maior dignidade federativa. Harris entende que a planificação e prestação regionalizada de serviços, a maior coordenação entre unidades locais diferentes e a promoção da responsabilidade fiscal tornariam, se adotadas conjuntamente, o governo local mais eficiente e responsivo, arrefecendo as demandas por aglutinação forçada.[31]
Grant e Drew adotam dois níveis de argumentação para robustecer a autonomia local na Austrália. Em primeiro lugar, os acadêmicos destacam a importância de se louvar numa interpretação contemporânea do princípio da subsidiariedade para pautar as vantagens morais, consequencialistas e de eficiência da alocação de competências em um governo descentralizado. Lado outro, há que se ter em consideração, tal como colocado por Harris, a autonomia financeira, lastreada em uma tributação mais eficiente, a manutenção da dívida pública em patamares saudáveis, a exploração econômica moderada de bens públicos locais – para não expor os cidadãos da municipalidade a risco excessivo de insucesso da empreitada do governo local - e a reformulação das transferências intergovernamentais de modo a alcançar, de fato, a justiça fiscal horizontal entre entidades locais.[32]
Sansom, bastante cético com relação ao papel transformador da elevação formal do poder local a um terceiro nível do federalismo australiano na Carta da Commonwealth, indica três desafios para reforço da autonomia local: a uma, a sustentabilidade fiscal, mormente em um contexto de assimetria entre a realidade das contas de diferentes organizações locais; a duas, a necessidade de sedimentar na cultura australiana a virtude das práticas democráticas locais, além de azeitar a prestação regionalizada e coordenada de serviços públicos; e, a três, alcançar um equilíbrio entre as relações a nível federal e estadual, mantendo o laço proveitoso com o poderoso ente central do federalismo centrípeto australiano, mas sem causar conflitos por recursos escassos com os Estados, haja vista a sujeição legal do governo local a estas entidades.
À guisa de conclusão, ousamos, ainda que não seja a proposta do presente artigo, apresentar nossa singela opinião com relação ao governo local no federalismo australiano. Em primeiro lugar, deve-se reconhecer, com Sansom, a limitação do papel transformador da Constituição em alterar sponte propria as relações sociais, mormente na seara da Federação, que possui um forte componente de tradição institucional e cultural. Além disso, pautando-nos na experiência brasileira, muito embora o Município tenha sido alçado a ente autônomo da Federação – art. 18 da CRFB -, a real concretização das condições de possibilidade do exercício pleno desta autonomia vai além da sua previsão normativa textual, sendo indispensável trazer maior equilíbrio ao nosso federalismo fiscal assimétrico e à relação entre competências materiais e receitas financeiras.
Nada obstante, o cenário traçado na seção anterior impõe uma camisa de força no governo local australiano, que tem sua organização e gestão administrativa e financeira minudenciada em pormenores pelos Estados. Em face deste cenário, não há como se pensar apenas em propostas de eficiência administrativa e fiscal, sendo necessário avaliar, igualmente, a reforma da sala de máquinas da Constituição sob o prisma federativo, de modo a possibilitar que os governos locais tomem, de fato, as rédeas do seu próprio destino, em observância aos princípios da subsidiariedade e da legitimidade democrática.
5 - Referências
ANDERSON, George. Federalismo: uma introdução. Rio de Janeiro: Editora FGV, 2009. Kindle edition
BARROSO, Luís Roberto. Direito Constitucional brasileiro: o problema da federação. Rio de Janeiro: Forense, 1982
GRANT, Blian; DREW, Joseph. Local Government in Australia: History, Theory and Public Policy. Springer: Singapore, 2017
HARRIS, C.P. Regional and Local Government. In: PUBLIUS, The Journal of Federalism. Vol. n° 07, n° 03. Federalism in Australia: Current trends. 1977
SANSOM, Graham. Australia: the third sphere steps up. pp. 09-12. BLINDENBACHER, Raoul; PASMA, Chandra (Eds.) Dialogues on local government and metropolitan regions in federal countries. Forum of Federations: Canada, 2007
SAUNDERS, Cheryl. Commonwealth of Australia. pp. 12-47. KINCAID, John; TAAR, G. Alan (Eds). Constitutional origins, structure, and change in federal democracies. McGill-Queen’s University Press: London, 2005
[1] ANDERSON, George. Federalismo: uma introdução. Rio de Janeiro: Editora FGV, 2009. Kindle edition. Posições 221-246
[5] Ibid. Posições 524-563. Cabe apontar que o diagnóstico de homogeneidade se deve sobretudo à uma análise comparativa com outros Estados federais, cuja diversidade e multiculturalismo é mais marcante, tais como Bélgica e Canadá. Sem embargo, a Austrália possui aproximadamente 2% de sua população total composta por aborígenes e demais povos nativos, além de, após a 2ª Guerra Mundial, ter recebido, sobretudo em sua região sudeste, imigrantes do leste Europeu, Ásia e África. Cf SAUNDERS, Cheryl. Commonwealth of Australia. pp. 12-47. KINCAID, John; TAAR, G. Alan (Eds). Constitutional origins, structure, and change in federal democracies. McGill-Queen’s University Press: London, 2005. pp. 14-15.
[6] SANSOM, Graham. Australia: the third sphere steps up. pp. 09-12. BLINDENBACHER, Raoul; PASMA, Chandra (Eds.) Dialogues on local government and metropolitan regions in federal countries. Forum of Federations: Canada, 2007. p. 09.
[7] SAUNDERS, Cheryl. Commonwealth of Australia. pp. 12-47. KINCAID, John; TAAR, G. Alan (Eds). Constitutional origins, structure, and change in federal democracies. McGill-Queen’s University Press: London, 2005. p. 24
[9] SAUNDERS, Cheryl. Commonwealth of Australia. pp. 12-47. KINCAID, John; TAAR, G. Alan (Eds). Constitutional origins, structure, and change in federal democracies. McGill-Queen’s University Press: London, 2005. pp. 41-42
[13] É possível identificar um paralelo, em termos práticos, com o instituto da intervenção federal e estadual, presente na Constituição brasileira.
[16] Disponível em: https://www.legislation.sa.gov.au/LZ/C/A/CONSTITUTION%20ACT%201934/CURRENT/1934.2151.AUTH.PDF
[17] Disponível em: https://www.legislation.sa.gov.au/LZ/C/A/LOCAL%20GOVERNMENT%20ACT%201999/CURRENT/1999.62.AUTH.PDF
[18] Disponível em: https://www.legislation.tas.gov.au/view/html/inforce/current/act-1934-094#HPIVA@EN
[20] Disponível em: https://content.legislation.vic.gov.au/sites/default/files/2021-03/75-8750aa223%20authorised.pdf
[21] Disponível em: https://content.legislation.vic.gov.au/sites/default/files/2020-04/20-9aa003%20authorised_0.pdf
[22] Disponível em: https://www.legislation.wa.gov.au/legislation/prod/filestore.nsf/FileURL/mrdoc_37172.pdf/$FILE/Constitution%20Act%201889%20-%20%5B06-f0-01%5D.pdf?OpenElement
[24] BARROSO, Luís Roberto. Direito Constitucional brasileiro: o problema da federação. Rio de Janeiro: Forense, 1982. p.23.
[25] Pode-se dizer que os Local Government Acts, em termos de conteúdo, se assemelham as Leis Orgânicas Municipais presentes nos Municípios brasileiros, com a diferença – evidente – de que os Municípios elaboram suas prórpias Leis Orgânicas e são entes que, de fato, integram a estrutura federativa, conforme previsto no art. 18 da Constituição da República.
[26] Em oportunidade recente – 2013 -, foi proposta nova alteração à Constituição australiana – Constitution Alteration Local Government 2013 Bill – em que se trazia o governo local para a Carta da Commonwealth. No entanto, ao prever uma terceira derrota em referendum – que poderia abafar demandas por autonomia por mais uma geração -, o governo australiano à época decidiu por não levar adiante a proposta, mesmo após sua aprovação no Parlamento. cf. GRANT, Blian; DREW, Joseph. Local Government in Australia: History, Theory and Public Policy. Springer: Singapore, 2017. pp. 107-115
[29] SAUNDERS, Cheryl. Commonwealth of Australia. pp. 12-47. KINCAID, John; TAAR, G. Alan (Eds). Constitutional origins, structure, and change in federal democracies. McGill-Queen’s University Press: London, 2005. p. 33. SANSOM, Graham. Australia: the third sphere steps up. pp. 09-12. BLINDENBACHER, Raoul; PASMA, Chandra (Eds.) Dialogues on local government and metropolitan regions in federal countries. Forum of Federations: Canada, 2007. p. 10.
[31] HARRIS, C.P. Regional and Local Government. In: PUBLIUS, The Journal of Federalism. Vol. n° 07, n° 03. Federalism in Australia: Current trends. 1977. pp. 144-145
[32] GRANT, Blian; DREW, Joseph. Local Government in Australia: History, Theory and Public Policy. Springer: Singapore, 2017. pp. 415-427
Artigo publicado em 10/11/2021 e republicado em 23/07/2024
mestre em Direito Público pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro – UERJ. Assessor Jurídico Especial na Secretaria de Estado da Casa Civil do Estado do Rio de Janeiro.
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: SANTOS, Rafael Cascardo Cardoso dos. O Estado federal australiano entre teoria e prática: o papel do governo local Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 23 jul 2024, 04:32. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/artigos/57405/o-estado-federal-australiano-entre-teoria-e-prtica-o-papel-do-governo-local. Acesso em: 21 nov 2024.
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