Resumo: O presente estudo tem por escopo agregar uma perspectiva pouco trabalhada na intervenção do Estado na ordem social, consistente no seu papel em fomentar manifestações culturais, o que merece maior atenção sobretudo em períodos de ascensão de governos populistas. Neste sentido, busca-se, de início, definir os elementos característicos do populismo autoritário que percorre grande parte das sociedades contemporâneas. Em seguida, passo a examinar o debate norte-americano a respeito do papel do Estado em fomentar a cultura. Ao final, desloca-se o debate do papel do Estado para o paradigma da Constituição Federal de 1988, que confere mais latitude para a atuação proativa, desde que atendidos os ditames materiais de inclusão, pluralismo e respeito à diferença. Com isso, visa-se à contenção da reprodução dos signos autoritários no tecido social, de modo a diluir a penetração da pretensão homogeneizante dos líderes demagogos que buscam alçar posições de poder.
Palavras-chave: neutralidade estatal; liberdade de expressão; populismo
Abstract: The present study seeks to further investigate the role of State intervention in social order, by means of aiding cultural manifestations, which deserves more attention especially in periods of rising populism. In this regard, it attempts to define the typical traits of authoritarian populism that runs across contemporary societies. Furthermore, it shows the debate in the USA about the role of the State in aiding cultural manifestations. At last, it puts the role of the State under the light of Brazilian Constitution, which confers more space to a proactive intervention, as long as the substantive standards of inclusion, pluralism and respect to differences are attended. In sum, it seeks to restrain the replication of authoritarian signs in social structure, so that it diminishes the infiltration of homogenizing claims of demagogue leaders who attempts to seize political power.
Keywords: State neutrality; free speech; populism
Sumário: 1- Introdução; 2 – O script da propaganda e a ascensão institucional do autoritarismo; 3 – O papel do Estado liberal em financiar as artes: a contribuição de Owen Fiss e Ronald Dworkin; 4 – O fomento cultural sob a égide da Constituição Federal de 1988: pluralismo, inclusão e diferença; 5 – Conclusão
1 – Introdução
O liberalismo constitui uma das filosofias políticas contemporâneas das mais festejadas e tida como responsável por compor o ethos subjacente da maior parte das sociedades democráticas.
Recentemente, contudo, o contexto de crise democrática vivenciado em alguns países tem demonstrado, conforme expõe a literatura especializada, a insuficiência de Estados que funcionam nos estritos moldes preconizados pelo liberalismo em se defender contra as investidas de personalidades autoritárias, que se valem do caldo cultural autoritário e das ferramentas do jogo democrático para ascender ao poder.
Como não poderia deixar de ser, este fenômeno é multifatorial. Já o escopo deste trabalho consiste em apontar o papel da diversidade e do pluralismo cultural em inibir a criação de um ambiente propício ao discurso de demagogos com discursos homogeneizantes e que apontam para a valorização de certa identidade estereotipada a ser preservada.
Para tal fim, as instituições estatais têm um importante mister a cumprir, uma vez que o mercado cultural é frequentemente dependente de incentivos externos, que operam fora das leis da oferta e da demanda, para a promoção de objetivos sociais valiosos.
Feita esta breve introdução, cumpre enunciar as próximas etapas da exposição. Em um primeiro momento, o contexto de ascensão autoritária será exposto, com ênfase na estratégia dos aspirantes a autocratas de explorar a divisão social e a fixação de um núcleo homogêneo e puro de sociedade, contrário ao fato do pluralismo tido como regra nos dias de hoje.
Na sequência, abordaremos o papel do Estado em fomentar as artes e a cultura com base nos escritos de Ronald Dworkin e de Owen Fiss, que buscaram conceber um papel positivo para o Estado na matéria, ainda que se situando dentro dos limites da moldura filosófica liberal.
Por fim, traremos o debate para o contexto normativo brasileiro em que, diferentemente do cenário norte-americano, a Constituição Federal foi pródiga na garantia de um direito à cultura plural, a ser promovido com atuação estatal e da sociedade, devendo ser compreendido como um dos componentes essenciais das liberdades comunicativas e do desenvolvimento da personalidade individual. Destarte, em sede prescritiva, ofereceremos um standard para a atuação do Estado no domínio cultural alinhada aos fins constitucionais e que pode funcionar como mecanismo preventivo da radicalização do tecido social a partir da tolerância e do respeito à diferença.
2 – O script da propaganda e a ascensão institucional do autoritarismo
Na atualidade, como visto, é comum afirmar que estamos em período de crise democrática. Decerto, esta crise é bifronte: níveis elevadíssimos de desigualdade social se imbricam com a ascensão de governos autoritários mundo afora, valendo-se do caos social gerado pelas condições econômicas nefastas e a falta de responsividade política para avançar seus discursos oportunistas anti-establishment.[1]
Para os propósitos deste trabalho, é importante destacar como estes líderes são eminentemente anti-pluralistas, reivindicando uma autoridade moral exclusivista,[2] o que gera, paradoxalmente, uma polarização entre o ‘grupo homogêneo’ que os autocratas dizem representar - geralmente se valendo de um passado místico para definir as características do grupo[3] – e os grupos minoritários, supostamente protegidos pelo establishment.[4] É dizer: há um anti-elitismo agregado a um anti-pluralismo que tem a pretensão expressa de retirar da esfera pública indivíduos que não se enquadram na categoria de povo autêntico e puro.[5]
A partir dessa visão, é fácil notar a ameaça que o populismo representa ao regime democrático. Democracia, na metáfora de Claude Lefort, representa o governo da maioria, mas o espaço do poder deve permanecer vazio, de sorte que nenhum ator pode ter a pretensão de representar exclusiva e peremptoriamente o povo.[6] Acresça-se, aqui, a frontal contrariedade do populismo com o valor epistêmico da democracia, por meio do qual a deliberação leva necessariamente a melhores resultados: para o populista, não há necessidade de deliberação. Assim, características centrais do processo democrático - provisoriedade, falibilidade e dinamicidade - se encontram ameaçadas.[7]
Fixados os principais atributos e modus operandi dos adeptos do autoritarismo contemporâneo, cumpre avançar para os fundamentos de promoção de uma atuação estatal inclusiva e plural no domínio cultural, que se mostram frontalmente contrárias às pretensões homogeneizantes dos regimes antidemocráticos.
3 – O papel do Estado liberal em financiar as artes: a contribuição de Owen Fiss e Ronald Dworkin
Neste momento, abordaremos a postura do Estado com relação ao fomento à cultura sob a premissa filosófica liberal. Em razão da sua maior penetração na literatura norte-americana, exporemos o debate tal como posto por dois grandes constitucionalistas: Owen Fiss e Ronald Dworkin.
Para entendermos a atuação adequada do Estado nas artes em Fiss, temos que analisar brevemente o pano de fundo de sua empreitada teórica. Fiss busca enxergar a Primeira Emenda norte-americana, que prevê a cláusula da liberdade de expressão, sob lentes distintas da tradicional visão libertária, segundo a qual o dispositivo protege apenas a prerrogativa individual de se expressar e que define o Estado como inimigo natural de tal liberdade. Ao revés, o Estado pode ser, em certos contextos, amigo da liberdade de expressão, mormente quando busca contrabalancear os efeitos perniciosos da concentração de poder privado sobre nossa autonomia. Tal perspectiva aborda a liberdade de expressão como uma liberdade pública - que deve defender valores sociais e não meramente individuais -, cujo propósito consiste no alargamento do debate público como mecanismo de tomada de decisão mais livre e informada pelos cidadãos de determinada comunidade política.[8] A visão do Estado como protetor dos interesses da audiência – os cidadãos – em ter acesso a um debate amplo e aberto, mediante o exercício da reflexão informada, é classificada como o approach democrático da liberdade de expressão.[9]
Adentrando o domínio das artes, Fiss destaca as dificuldades das abordagens tradicionais da Primeira Emenda, que costumam buscar mecanismos de proteção do indivíduo em face da regulação do discurso pelo Estado, para tratar de casos em que o Estado atua como alocador de recursos - e não como regulador. Embora visões mais libertárias da separação entre Estado e liberdade de expressão pudessem não endossar os subsídios estatais, Fiss considera importante tomar como ponto de partida a premissa de que as atividades artísticas, se submetidas puramente ao mercado, estariam fadadas à estagnação ou aos desígnios daqueles que possuem maior poder econômico.[10] Portanto, a questão passa a ser de como a Primeira Emenda deve ser interpretada para coibir abusos do Estado na alocação de recursos, assim como de avaliação do grau de controle constitucional incidente: se estaria sujeito ao mesmo rigor da atividade regulatória estatal.[11]
De modo a construir seu argumento, Fiss narra a trajetória do Fundo Nacional para as Artes – NEA em caso que causou controvérsia junto a um Senador norte-americano, Jesse Helms, tendo em vista a decisão do Fundo de conceder empréstimo para subsidiar a exposição do trabalho de Robert Mapplethorpe, fotógrafo novaiorquino que morreu de AIDS em 1989 e cuja exibição apoiada possuía imagens de relações homoafetivas e sadomasoquistas. Em reação, o Senado aprovou proposta legislativa de Helms que impedia a NEA de financiar arte de conteúdo ‘obsceno’, visando obstar que futuras exibições de teor semelhante fossem apoiadas por recursos públicos, além de prever a necessidade de que o futuro beneficiário assinasse uma declaração atestando estar em conformidade com a lei.[12]
Ocorre, contudo, que o ‘ato obsceno’ possui significado jurídico específico no ordenamento norte-americano, servindo de base para a regulação de discurso de conteúdo sexual explícito. Trata-se do Miller Test, fixado pela Suprema Corte norte-americana, que consiste na necessidade de comprovar que a obra como um todo apela a um interesse lascivo no ato sexual, retrata a conduta sexual de forma agressiva e carece de valor literário, artístico, político ou científico.[13] Em outras palavras, ainda que a legislação aprovada tenha sido editada para barrar o financiamento de exposições como a de Mapplethorne, seu âmbito normativo foi restringido pelo Miller Test, como se verifica da própria absolvição do Museu de Arte Contemporânea – que promoveu a exposição de Mapplethorne – da ação judicial que tinha por escopo condená-lo por suposta prática de ato obsceno: o júri entendeu que a exibição possuía forte valor artístico e político, tendo sido, portanto, aprovada no Miller Test.[14]
Em seguida, porém, foi editada nova Lei que alterou significativamente a governança da concessão de incentivos pela NEA. De um lado, aumentou o papel dos painéis de revisão por pares para a indicação dos possíveis beneficiários, acrescentando previsão de que serão recomendados mais candidatos do que podem ser financiados, de modo a intensificar a responsabilidade decisória do Presidente da NEA na concessão do benefício. Por outro lado, a Lei trouxe alguns critérios genéricos para nortear a competitividade entre os participantes – a ‘decência’ e o ‘mérito artístico’, de tal sorte que um empreendimento ‘indecente’ não poderia ser selecionado, estando a competição voltada à promoção do que possui maior ‘mérito artístico’ dentre aqueles que se encaixam no parâmetro da ‘decência’.[15]
Ao analisar criticamente a inovação legal, Fiss aponta que o critério de ‘decência’ poderia ser usado, caso vigente à época, para invalidar subsídios a exposições como as de Mapplethorpe, de modo que importa verificar se referida prerrogativa do Estado viola a Primeira Emenda e a liberdade de expressão. Com isso, Fiss busca demonstrar que as consequências da atividade alocativa do Estado podem ser tão danosas quanto aquelas da atividade regulatória:[16] ora, eventual violação às normas administrativas poderia impor à Mapplethorpe uma sanção pecuniária, mas a sua desclassificação de uma política de subsídios estatais por razões arbitrárias iria desprovê-lo de recursos para realizar a exposição.[17]
Sem embargo, apenas uma visão qualitativa do approach democrático da liberdade de expressão seria capaz de afastar eventual indiferença constitucional da atividade alocativa do Estado. Isto porque, de acordo com a visão libertária, o fato de a atividade alocativa, a um só tempo, promover e desestimular discursos não oferece base constitucional sólida para a seleção de um candidato em detrimento do outro, já que os efeitos sobre a liberdade de expressão individual se anulariam reciprocamente. Da mesma forma, uma concepção quantitativa da abordagem democrática se contentaria com qualquer um dos discursos promovidos, visto que os efeitos sobre o debate público também se compensariam mutuamente. Por outro lado, a visão qualitativa da liberdade de expressão concebida democraticamente visa ao enriquecimento do debate público mediante o contato com experiências artísticas heterodoxas e tradicionalmente marginalizadas.[18] Com o escopo de cumprir tal desiderato, deve o Estado adotar artesanalmente e caso a caso uma modelagem dos critérios previstos na legislação[19] - de ‘decência’ e de ‘mérito artístico’ - de sorte a produzir resultados que promovam valores democráticos.[20]
Em outras palavras, a abordagem qualitativa de Fiss se norteia pelas consequências da atividade alocativa do Estado no setor artístico: seja qual for o critério específico adotado, o efeito deve ser a promoção da autodeterminação coletiva por meio de um debate público mais rico e completo.[21] De toda forma, diante da escassez de recursos, o Estado terá que fazer escolhas, mesmo entre empreitadas heterodoxas – v.g entre promover a arte nazista ou exposições LGBT -, devendo avaliar se tais opções violam a Primeira Emenda ou excluem sistematicamente grupos minoritários.[22] Em qualquer caso, a decisão do Estado não pode se pautar pelo juízo do gestor a respeito do mérito da empreitada a ser financiada, visto que tal postura viola a aspiração democrática da liberdade de expressão – estes juízos devem ser reservados exclusivamente aos cidadãos.[23]
Assim, Fiss enuncia alguns critérios dogmáticos para avaliar a concessão de subsídios à atividade artística. O primeiro consiste no relativo grau atual de exclusão do grupo minoritário cujas ideias estão sendo fomentadas, o que deverá ser diretamente proporcional à sua aptidão de obter o financiamento. Outro importante parâmetro vem na avaliação da necessidade financeira do empreendimento, questão delicada em atividades artísticas, uma vez que o mercado não costuma prover recursos para projetos que tornariam a esfera pública mais variada e plural, cabendo ao financiamento público suprir tal demanda democrática. Já o terceiro standard decorre da atualidade do objeto da atividade fomentada para a agenda pública, de modo a esclarecer com diferentes pontos de vista as questões prementes para a nação.[24] Finalmente, o potencial silenciador do discurso deve ser sopesado, isto é, não pode o Estado, sob a premissa de estar apoiando empreendimentos heterodoxos e minoritários, financiar discursos de ódio ou propaganda nazista, pois projetos com objetos tais corroem os próprios valores democráticos que o fomento deve promover.[25]
Para concluir, Fiss aborda interessante precedente da Suprema Corte norte-americana que bem retrata a visão libertária de liberdade de expressão e a dificuldade de submeter os subsídios estatais à juridicidade, compreendendo-os como inteiramente discricionários, verdadeiros ‘presentes’ do Estado que, como tais, não devem ser questionados.[26] De acordo com Fiss, embora os programas de fomento não sejam obrigatórios, há limites constitucionais que deverão ser observados caso implementados: não podem ser utilizados para reforçar a hegemonia dos pensamentos ortodoxos na sociedade, mantendo os setores estigmatizados ao largo da esfera pública. Neste sentido, os programas de fomento estariam numa categoria intermediária entre o constitucionalmente obrigatório e o permitido, possuindo status de medida preferencial e, nesta condição, não podem ser inteiramente discricionários.
Enfim, a atuação estatal no fomento à cultura deve ser escrutinizada com a mesma régua e o mesmo rigor da atividade regulatória, devendo o Poder Judiciário ser sensível ao impacto da alocação de recursos estatais na promoção de uma esfera pública robusta. Aliás, o papel ativista do Estado é imprescindível na medida em que a arte é um campo especialmente frágil e suscetível à captura do poder privado, gerando a sua mercantilização e o consequente afastamento da esfera pública do ideal democrático da Primeira Emenda: nosso direito e responsabilidade de exercer o autogoverno de forma deliberativa e reflexiva.[27]
Por sua vez, Dworkin constrói sua argumentação sobre o papel do Estado na promoção da arte a partir da dicotomia entre a abordagem econômica e a erudita. A princípio, a abordagem econômica sustenta que o mercado é o mecanismo eficaz para definir o preço, o tipo e a quantidade de cultura que determinada comunidade vai querer possuir. Nesta linha de raciocínio, a atuação do Estado subsidiando a arte significaria que a comunidade como um todo está despendendo mais recursos na área do que seus membros, de fato, desejam. Já a visão erudita não se ocupa tanto com as preferências individuais, mas sim com os atributos ideais da cultura em uma sociedade – sofisticação, riqueza, excelência – para o florescimento da natureza humana, sendo papel do Estado intervir para a atingir tais objetivos caso os indivíduos não consigam fazê-lo por conta própria. Esta abordagem também possui problemas: é paternalista e, muito possivelmente, os maiores beneficiários dos subsídios à arte erudita seriam os ricos ou a classe média alta.[28]
Dworkin passa, então, a discutir a abordagem econômica da arte com base na noção de bens públicos. Tais bens não podem ser eficientemente deixados ao mercado, uma vez que seria impossível impedir as pessoas que não pagam por eles de usufruir dos seus benefícios.[29] A solução econômica para tal problema se daria mediante a intervenção estatal para calcular o que a comunidade política está disposta a pagar pelo uso de tais bens e, em seguida, operacionalizar o seu financiamento mediante a cobrança de tributos. Portanto, a utilidade deste approach quanto aos bens públicos depende da capacidade de o Estado identificar o quanto o público está disposto a desembolsar pela sua fruição.[30]
Os bens culturais não seriam bens públicos clássicos, pois não é difícil excluir terceiros não pagantes da experiência de usufruí-los. Sem embargo, a questão dos bens públicos pode surgir sob a forma dos transbordamentos (‘spillover effects’), que consiste no efeito do uso de bens públicos sobre terceiros, tal como se verifica na vacinação. A arte como bem público deste tipo produz transbordamentos extrínsecos – v.g. os benefícios financeiros ou de estima que pessoas de determinada região recebem em razão da visita frequente de turistas a museus locais não frequentados pelos próprios residentes – e intrínsecos – benefícios estéticos e intelectuais que toda comunidade recebe pela promoção da cultura, haja vista sua ubiquidade e penetração nas relações sociais por meio da influência recíproca da cultura erudita e da cultura popular. Assim, tais repercussões justificariam o subsídio estatal à cultura erudita – que oferece referência e forma à cultura popular -, uma vez que as pessoas comuns não se engajariam normalmente em relações de mercado para financiá-las.[31]
Dworkin identifica, contudo, três problemas para a defesa da cultura pela tese dos transbordamentos. O primeiro seria o intervalo temporal entre o público que financiará a arte através do Estado e aquele que receberá os benefícios dos transbordamentos. O segundo consistiria na indeterminação, dado que não podemos antecipar os impactos positivos dos subsídios à arte para aquela sociedade no futuro. O terceiro decorreria da imprecisão: diferentemente do meio ambiente e da segurança pública, agentes estatais não teriam condições de saber o quanto o público estaria disposto a pagar para financiar a arte, sendo impossível realizar estimativas confiáveis.[32]
Diante da impossibilidade de a abordagem econômica servir de teste para avaliar se a arte deve ser subsidiada pelo Estado, Dworkin apresenta uma terceira via: a visão estrutural. Ao perceber que a cultura oferece tanto as expressões específicas – v.g quadros, romances, suspenses -, quanto o pano de fundo estrutural que mantém o nosso senso avaliativo dos valores estéticos, Dworkin defende a atuação estatal para a manutenção de uma estrutura cultural rica e diversificada, que garanta diferentes possibilidades de experiência de avaliação estética. Para ele, a despeito de não podermos nos valer da linguagem econômica para garantir que esta visão irá promover o melhor dos mundos, é possível inferir que é preferível garantir às pessoas profundidade e complexidade nas formas de vida que se lhes mostram disponíveis.[33]
O centro da estrutura cultural comunitária consiste na linguagem compartilhada. Toda sociedade é beneficiária ou vítima do que é feito com a linguagem, isto é, se uma linguagem empobrece mediante a perda de uma particularidade estrutural, a comunidade como um todo perde o vocabulário para expressar determinada sensação – v.g. alegria ou tristeza. No entanto, não faria sentido dizer que esta sociedade sente falta do que se perdeu na estrutura da linguagem ou mesmo a situação contrária – de que estaria melhor se sua linguagem fosse mais rica -, uma vez que os membros desta comunidade não estariam equipados da estrutura linguística para se expressar desta forma. Destarte, o único juízo de valor que pode ser feito quanto a preferência por uma linguagem mais rica decorre de um olhar externo, razão pela qual Dworkin se volta a enfrentar a questão do paternalismo.[34]
Para Dworkin, a proteção da linguagem em face do seu potencial esfacelamento não seria paternalista, na medida em que não promove determinada preferência que se reputa adequada, mas aumenta a própria agência dos indivíduos - i.e sua capacidade de fazer escolhas e de se expressar. Ao contrário, o desapreço ao paternalismo constitui argumento favorável para a promoção de uma sociedade garantidora da estrutura linguística.[35]
A seu turno, o aspecto estrutural da arte seria uma parte especial da linguagem compartilhada. Isto porque a própria possibilidade de representação da arte, em seus diversos meios e formas, e da avaliação valorativa do seu conteúdo carece de um vocabulário compartilhado de tradição e convenção. A manutenção deste estoque artístico linguístico depende da continuidade e reprodução das suas diversas manifestações no seio social, o que ocorre, geralmente, por meio de museus e universidades. Como toda comunidade – e não apenas os que acessam tais instituições para terem contato com a arte – compartilha e utiliza a linguagem artística, há uma razão de interesse público para o Estado subsidiar estas entidades.[36]
Além da perda de continuidade, a dificuldade em inovar consiste em outra forma de empobrecimento da linguagem da cultura. A capacidade de inovar se funda na tradição de inovação per se e na maleabilidade das formas de arte existentes a experimentações e reinterpretações. Nesta última hipótese, a continuidade é preservada por meio da inovação, com as pessoas estabelecendo conexões entre experiências distintas de arte. Em quadro oposto, quando os limites do que determinada sociedade considera arte são desenhados de forma muito estreita, temos geralmente a sua degeneração e instrumentalização para fins não estéticos, tal como constatado da maior parte dos regimes totalitários.[37]
Em suma, Dworkin considera que o Estado só pode subsidiar as artes para proteger a estrutura intelectual da cultura, sem a promoção de nenhuma manifestação artística específica. De modo a atingir tal finalidade, deve-se buscar diversidade e inovação na qualidade da cultura, em vez categorizar determinadas manifestações artísticas específicas em critérios de excelência. Como visto, esta construção afasta alegações de paternalismo e até mesmo de elitismo, uma vez que a estrutura cultural é ubíqua, não sendo possível pré-determinar os beneficiários concretos das suas várias possibilidades e oportunidades.[38]
4 – O fomento cultural sob a égide da Constituição Federal de 1988: pluralismo, inclusão e diferença
Da leitura das contribuições trazidas na seção anterior, extrai-se imanente tensão entre o papel do Estado na cultura e a premissa de neutralidade liberal. Tal impressão explicaria, em Dworkin, a convivência lado a lado do alto valor normativo conferido à cultura com uma proposta prescritiva elaborada em termos excessivamente vagos, de modo a evitar inferências a respeito do favorecimento estatal de determinadas manifestações artísticas, o que violaria, a princípio, o princípio liberal de neutralidade.
Sem embargo, é necessário transportar o debate da literatura norte-americana ao contexto brasileiro, cujo background normativo é profundamente distinto: no Brasil, a Constituição Federal de 1988 adotou modelo analítico, diferente da formatação concisa da Carta de Direitos dos EUA, cada uma seguindo o modelo comum ao seu período histórico.
Como veremos a seguir, a Constituição Federal de 1988 mostrou-se sensível às assimetrias de poder no tecido social, estando aberta a um Estado relativamente ativista para a redução destas desigualdades. No âmbito cultural, a frequente insuficiência econômica dos grupos sociais marginalizados para iniciar suas empreitadas artísticas revela-se um campo fértil para o potencial transformador da Carta Magna.
Aliás, o compromisso democrático da Constituição de 1988 é flagrante. Seu apreço aos direitos fundamentais se revela não só no amplo rol do art. 5°, mas também no seu aspecto topológico: é a primeira vez que uma Constituição brasileira consagra os direitos fundamentais antes da estrutura do Estado. Em razão da abertura da Constituinte a diversos setores sociais, a Constituição de 1988 é compromissória, refletindo o pluralismo social, não sendo possível afirmar a priori a prevalência de uma doutrina política abrangente. Além disso, a Constituição de 1988 se insere, em termos classificatórios, no rol das dirigentes ou transformadoras, englobando a pretensão de atuação estatal com o escopo de modificar o status quo social e cultural. A estrutura de separação de Poderes é concentrada, tendo o Executivo e o Legislativo forte autonomia formal, mas necessitando compor ajustes para garantir a governabilidade, no que se denominou presidencialismo de coalizão. O Judiciário saiu igualmente fortalecido, na medida em que não apenas foram previstas maiores garantias funcionais e de independência aos seus membros, como também foi ampliado o rol de suas competências - além de o bloco de constitucionalidade ter se ampliado consideravelmente. A ordem econômica, mesmo após as reformas dos 1990, permanece compromissória, adotando um capitalismo de mercado mitigado.[39]
Na seara cultural, a Constituição traz no seu art. 216-A a criação de um Sistema Nacional de Cultura, descentralizado e participativo, com o intuito de promover políticas públicas de cultura que sejam responsivas. Ademais, o §1° do art. 216-A da CRFB ratifica o compromisso com o pluralismo cultural e a participação democrática, que devem servir de guias para a estrutura do SNC, conforme §2° do mesmo dispositivo.
Dessarte, o direito à cultura possui natureza materialmente fundamental, o que se extrai de uma interpretação sistemática dos arts. 23, V e 215 CRFB com a vocação pluralista encampada em preceitos que fixam a proibição de censura política, ideológica e artística, bem como o livre desenvolvimento da personalidade, elemento indissociável do princípio da dignidade da pessoa humana – todos -previstos nos arts. 1°, III, 3°, I e 5°, IV e IX, e 220, §2° CRFB.
Para cumprir seu mister constitucional, deve o Estado se voltar à promoção de manifestações que não possuem meios para se reproduzir naturalmente via financiamento pelo livre mercado. Em um plano mais abstrato, a obrigação de tratar todos os indivíduos com igual respeito e consideração importa absorver no desenho institucional das políticas públicas as assimetrias de poder verificadas na realidade, com o intuito de oferecer uma compensação sistêmica e proporcionar a valorização de expressões historicamente estigmatizadas, sendo certo que a cultura constitui elemento intrínseco da formação da personalidade do indivíduo e, consequentemente, da sua dignidade como pessoa.
Aliás, como aponta Sarmento, o direito ao reconhecimento, inobstante não esteja presente textualmente na Constituição, decorre de uma interpretação sistemática da Carta, sobretudo por meio dos arts. 5°, XLII, e 215, §1°, CRFB. Além disso, tal direito decorre da própria dignidade da pessoa humana sob uma perspectiva intersubjetiva – art. 1°, III, CRFB –, sendo inerente à integridade moral da pessoa e impondo, na área da cultura, a proteção e o respeito à diferença das comunidades tradicionais.[40]
Enfim, parece evidente que a Constituição Federal de 1988 optou pela formatação de um modelo de Estado particularmente sensível ao domínio cultural, o que torna o debate sobre sua atuação nesta seara uma questão de grau – o ‘como’ do fomento – e menos de legitimidade em si – isto é, ‘se’ o Estado deve incentivar o mercado cultural.
Nesta toada, o fomento deve se preocupar com a forma pela qual as manifestações culturais se reproduzem no seio social, atentando-se para a promoção da liberdade daqueles segmentos minoritários que possuem menos espaço para se expressar na comunidade.
É necessário repisar, aqui, que o horizonte normativo da Constituição Federal não é neutro ao tratar da cultura, prevendo expressamente a governança – mediante participação da sociedade civil–; a forma de promoção do fomento – por meio da diversidade das expressões culturais, nos termos do art. 216-A, §1°, I –; e a preferência pela cultura popular, indígena e afro-brasileira – art. 215, §1°. Não se está a dizer que outras manifestações culturais não poderão ser fomentadas, mas sim que a Carta Magna, ciosa da fragilidade destas formas de vida, buscou conferir-lhes status de maior proteção.
A mesma preocupação é verificada na obra de Owen Fiss, que prevê como propósito da liberdade de expressão sob a perspectiva democrática a construção de uma esfera pública diversa e robusta. Dentre os critérios elencados para a concessão de subsídios pelo Estado, constam o relativo grau de exclusão do grupo minoritário e a sua necessidade financeira. Tais parâmetros têm o escopo de evitar os efeitos perniciosos para a comunidade política de submissão da arte exclusivamente às relações de mercado. Ora, neste ponto, a concepção de liberdade de expressão do constitucionalista norte-americano está alinhada à Constituição Brasileira.
Dworkin, a seu turno, possui uma visão mais abstrata da atividade estatal de promoção à cultura, sustentando que o foco deve se dar na diversidade e inovação da estrutura linguística da cultura, sem compromisso com uma manifestação artística específica. Sem embargo, Dworkin traça algumas ferramentas gerais do que considera ser a operacionalidade ideal do fomento às artes, tais como: subsídios fiscais para doações a instituições culturais, ao menos quando a doação privada não redundar em diminuição da diversidade e inovação cultural; quando for necessário discriminar em razão de certa manifestação artística, que sejam priorizadas aquelas que são muito caras se deixadas exclusivamente às relações de mercado; e evitar a concessão de subsídios específicos para determinadas instituições.[41]
Assim, não se verificam maiores dificuldades em adotar, à luz da Constituição Federal e mesmo da literatura erigida sob um contexto de liberalismo político, uma preferência previamente estabelecida, no desenho do fomento à cultura[42] e na sua etapa competitiva, à seleção de expressões minoritárias e contrahegemônicas.
Se de um lado temos este critério positivo na etapa competitiva, o fomento à cultura também requer um critério negativo, que pode ser obtido mediante o uso do conceito de razão pública.
A razão pública na filosofia política contemporânea foi desenvolvida por John Rawls,[43] sobretudo a partir da sua obra “O Liberalismo Político”.[44] Para ele, a razão pública consiste em ideal regulativo – e não em um dever no sentido jurídico - da cidadania democrática,[45] que orienta a forma de se deliberar a respeito de questões de justiça básica e dos elementos constitucionais essenciais, no âmbito da argumentação política em fórum público.[46] Além disso, a razão pública impõe o dever moral de civilidade, o qual exige que os cidadãos estejam dispostos a explicar a base de suas ações uns para os outros em termos que cada qual razoavelmente espere que outros possam aceitar, em coerência com a liberdade e igualdade dos cidadãos, bem como a disposição de ouvir o outro explicitar suas posições com base na razão pública.[47] É dizer: em questões de justiça básica e de elementos constitucionais essenciais, o cidadão não pode apelar para doutrinas filosóficas ou religiosas abrangentes, nem para teorias econômicas complicadas e controvertidas, devendo se ater a crenças gerais, a formas de argumentações partilhadas no senso comum e a conclusões não controvertidas da ciência.[48]
No direito brasileiro, Barroso concebe a razão pública não só como fundamento da jurisdição constitucional e do exercício da argumentação jurídica, mas também como parâmetro de aferição da correição da ação estatal em atendimento ao interesse público primário.[49]
A seu turno, Sarmento e Souza Neto afirmam expressamente que todos os Poderes estatais – em especial o Poder Judiciário - possuem o dever jurídico de seguir a razão pública, de tal sorte que atos administrativos e legislativos que não atendam tal exigência encontram-se eivados de vício insanável de inconstitucionalidade. Para os constitucionalistas, o dever de observância à razão pública na hermenêutica constitucional decorre dos princípios republicano e do Estado Democrático de Direito – art. 1° -, haja vista constituir imperativo de legitimidade no exercício do poder político em uma sociedade complexa e plural.[50]
Assim, a ideia de razão pública tal como aqui empregada deverá servir como parâmetro jurídico – e não mera exortação ou ideal regulativo de ordem moral – para avaliar as condutas dos agentes estatais no exercício de suas funções institucionais.
Aliás, Mendonça adota a razão pública precisamente como standard material de fomento para empreendimentos no setor cultural. Com efeito, Mendonça utiliza tal critério para afastar do escopo das atividades ou agentes passíveis de serem fomentados aqueles que as pessoas seriam absolutamente incapazes de aceitar após reflexão, uma vez que não seria possível oferecer razões favoráveis ao seu apoio lastreadas em consensos minimamente universalizáveis. Também violaria a razão pública a eleição de critérios que possam levar a exclusão de potenciais candidatos mediante o manejo pelo Estado de razões não-públicas, tal como a noção de ‘arte autêntica’.[51]
Para os fins aqui propostos, endossamos a perspectiva de Mendonça de abranger no campo de exame da razão pública tanto os agentes, quanto os empreendimentos e os critérios de cada fomento. Em outras palavras, a razão pública constituiria verdadeiro critério negativo de elegibilidade. Há mais, porém.
As características traçadas na seção 3 a respeito dos governos autoritários torna o espaço cultural ainda mais vulnerável a empreitadas que busquem capturá-lo em prol de interesses antidemocráticos. Quanto ao ponto, é indene de dúvidas que eventuais manifestações políticas contrárias a subsídios estatais para empreendimentos culturais de, v.g, minorias negras e de gênero são contrárias à ideia democrática de liberdade de expressão, que prevê como objetivo a construção de uma esfera pública robusta, rica e plural. Lado outro, tal postura avançaria nos critérios de promoção de artes com determinado conteúdo, ao arrepio da recomendação de Dworkin de que o Estado deve atentar apenas para a estrutura linguística da cultura. Demais disso, a tentativa implícita de apresentar determinadas formas de expressão como inferiores ou degeneradas possui forte semelhança com os governos autoritários mencionados por Dworkin, que fixam a ‘arte legítima’ para fins políticos, empobrecendo a diversidade e a inovação cultural.
Neste sentido, deve-se averiguar se medidas de paralisação de editais em curso, adotadas pelos órgãos competentes, ocorreram em períodos imediatamente subsequentes a manifestações de líderes políticos, valendo-se de razões não-públicas para criticar as atividades dos candidatos em tais editais. A rigor, não há nada mais contrário ao ideal de razão pública, mas a fixação deste critério apenas para atos específicos pode deixar referidas estratégias de sabotagem de políticas constitucionais sem uma ferramenta de contra-ataque adequada.
Assim, com o risco de adotarmos uma postura sobreinclusiva, mas devidamente justificada à luz da sensibilidade e da fundamentalidade das atividades expressivas apoiadas, entendemos que o ideal de razão pública deve estar presente na condução de todo ciclo de fomento. Ao mudarmos o enfoque dos atos para o procedimento, acreditamos afastar eventual crítica de excesso, uma vez que a efetiva aplicação da razão pública deverá ser avaliada caso a caso a partir da natureza do ato e da sua relação com o estado de tramitação do processo administrativo de concessão do fomento. Além disso, a verificação de eventual omissão na atividade de fomento - como a demora para o lançamento de novos projetos de apoio constatada a partir da comparação entre intervalos de tempo semelhantes em períodos passados -, também se mostra passível de enquadramento na exigência de razão pública para obter legitimidade e credibilidade, sob pena de o Estado incorrer em mora no seu dever constitucional expresso de promoção à cultura.
Enfim, o standard proposto no presente trabalho consiste na priorização, no desenho do fomento à cultura e na sua etapa competitiva, de formas de expressão tradicionalmente alijadas dos meios econômicos e simbólicos para se fazerem ouvir na sociedade, em atendimento ao art. 215, §1°, ao art. 216-A, §1°, I, ao princípio do pluralismo e à liberdade de expressão com enfoque democrático. Sem embargo, todo ciclo da atividade de fomento deve ser orientado pelo ideal de razão pública, afastando providências ou omissões de impacto cujas razões não possam ser reconduzidas a um consenso mínimo compartilhado entre os potencialmente afetados.
Em contexto de crise democrática, acreditamos que o manejo do standard pelo Poder Judiciário no fomento à cultura – e a postura dos órgãos de controle ao provocá-lo – deve se valer do que Souza Neto designou como ‘jurisdição constitucional anticíclica’. Nas suas palavras:
“Os economistas keynesianos costumam recomendar que os ciclos econômicos sejam equilibrados por meio da adoção de políticas anticíclicas: as recessões são atenuadas por investimentos públicos; no período de desenvolvimento acelerado, economiza-se. As cortes constitucionais devem assumir o mesmo papel diante dos ciclos políticos – pode-se conceber, nesse sentido, uma jurisdição constitucional anticíclica. Diante de governos que não revelam compromisso com as instituições democráticas, a função anticíclica da jurisdição constitucional implica a ‘redução situacional da deferência’, da qual resulta a adoção de parâmetros mais rigorosos de controle dos atos estatais. As cortes não devem atuar como vanguardas de processos de transformação social, nada obstante, em temas pontuais, possam proferir decisões inovadoras. Cabe-lhes, antes, atenuar o extremismo dos ciclos políticos, com o propósito de proteger a democracia e proteger as minorias. A função anticíclica provê equilíbrio ao sistema, preservando, sobretudo, o que não pode ser posto à disposição das maiorias eventuais: o sistema de direitos fundamentais e os procedimentos para a eleição dos governantes”.[52] Grifos nossos
Da leitura do conceito de jurisdição constitucional anticíclica, extrai-se uma maior legitimidade contextual, em face de períodos de retrocesso democrático, de uma postura ativista pelo Poder Judiciário. No fomento à cultura, o ciclo de retrocesso democrático gera impactos sobre a liberdade de expressão de grupos estigmatizados, o que fundamenta a análise mais detida das medidas adotadas pelo Poder Executivo, outrora submetidas a um grau de maior deferência.[53]
Destarte, o standard proposto neste trabalho deve ser objeto de escrutínio cuidadoso pelos órgãos de controle para fins de elevação ao Poder Judiciário de condutas, isoladas ou estruturais, e omissões do Poder Executivo. Sob a premissa da jurisdição constitucional anticíclica, a invalidação de posturas comissivas e omissivas contrárias aos direitos fundamentais de minorias e do regime democrático na seara cultural constitui dever-poder das Cortes, cabendo-lhes, ainda, imputar ao Estado obrigação de fazer, consistente na adequação da política de fomento às finalidades públicas refletidas nos standards em questão
5 – Conclusão
O caráter pervasivo da cultura no comportamento humano é evidente. Como não poderia ser diferente, a gestão autoritária do poder político possui reflexos na ordem cultural, tratando-se de complexa e simbiótica relação que se retroalimenta na sociedade.
Assim, este estudo buscou oferecer, sob o ângulo prescritivo, uma proposta setorial de contenção do processo de crise democrática no Brasil por meio do fortalecimento de uma cultura inclusiva no tecido social, o que atua com o intuito de servir como um dique de contenção à reprodução do sentimento autoritário e anti-pluralista necessário a fixação dos regimes autoritários.
BIBLIOGRAFIA:
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[1] BROWN, Wendy. In the Ruins of Neoliberalism. Columbia University Press. New York, 2019. pp. 2-22
[2] MÜLLER, Jan-Werner. What is populism?. University of Pennsylvania Press, 2016. pp. 31-33.
[3] STANLEY, Jason. How Fascim works: the politics of us and them. New York: Random House, 2018. pp. 3-35
[4] MÜLLER, Jan-Werner. What is populism?. University of Pennsylvania Press, 2016. pp. 9-10 e 71.
[5] Ibid. pp. 19-31.
[6] RUMMENS, Stefan. Populism as a threat to liberal democracy. pp. 659-677. In: KALTWASSER, Cristóbal Rovira et al. (Eds.). The Oxford Handbook of Populism. Oxford University Press: Oxford, 2017. pp. 663-664, 667 e 674.
[7] MÜLLER, Jan-Werner. Populism and Constitucionalism. pp. 702-718. In: KALTWASSER, Cristóbal Rovira et al. (Eds.). The Oxford Handbook of Populism. Oxford University Press: Oxford, 2017. pp. 717-718
[8] FISS, Owen. The Irony of Free Speech. Harvard University Press: Cambridge, Massachusetts, 1998. pp. 2-3 e 19
[9] Ibid. pp. 18, 22-23
[10] Ibid. pp. 27-28
[11] Ibid. pp. 28-29
[12] Ibid. pp. 29-30
[13] Ibid. p. 31
[14] Ibid. p. 31
[15] Ibid. pp. 32-33
[16] Na verdade, Fiss traça uma distinção entre o estágio competitivo da atividade alocativa e a atividade de polícia: a atividade alocativa necessariamente possuiria duplo efeito em razão da escassez de recursos públicos, viabilizando a realização de empreendimentos artísticos que não ocorreriam sem os recursos, ao mesmo tempo em que tolhe os não selecionados dos recursos necessários para que levem adiante sua arte. Por sua vez, a atividade de polícia não gera, em regra, esta consequência: a inação do Estado na repressão de discursos não irá causar efeito silenciador, diferentemente do seu comportamento ativo para regular diferentes formas de expressão. Ibid. pp. 35-36
[17] Ibid. pp. 33-34
[18] Ibid. pp. 36-37
[19] Embora estejamos apenas narrando o raciocínio desenvolvido por Fiss, temos que discordar da excessiva deferência conferida aos critérios legais de ‘decência’ e ‘mérito artístico’. Ambas são potencialmente suspeitas por conferirem demasiada discricionariedade ao administrador para se valer das suas visões éticas particulares no momento da concessão do incentivo, sendo certo que a mera reorientação destes parâmetros à luz da leitura democrática da Primeira Emenda não retira seu caráter potencialmente arbitrário e discriminatório. Além disso, é igualmente problemático o enfoque exclusivo nas consequências do fomento. Em dado momento, Fiss afirma que a atuação do Estado que se pretende neutra pode produzir efeitos adversos de promoção de visões de mundo já hegemônicas, ao passo que o Estado pode alocar recursos em determinado projeto com o intuito ostensivo de tornar prevalecente no debate público o discurso apoiado – postura que evidentemente não é neutra -, mas que, ao fim e ao cabo, obtém o efeito inverso de robustecimento do debate público. Há fundamentos para discordarmos desta visão consequencialista: em primeiro lugar, razões importam, como demonstra a ideia de razão pública, devendo o Estado possuir motivos bastante convincentes para atuar no “mercado das ideias” com o intuito de promover determinada visão de mundo e ainda assim se pretender legítimo sob o ângulo democrático; além disso, o exemplo hipotético de atuação estatal enviesada é ruim porque seu resultado positivo para o conceito democrático da liberdade de expressão é acidental. É dizer: a não ser que se trate de um caso puramente de laboratório, cuja utilidade é discutível, a atuação não-neutra do Estado como modo de governança do fomento – que presume operações reiteradas no tempo - irá se perpetuar em oportunidades futuras, sendo certo que podemos não ter a mesma sorte de obter resultados positivos para a liberdade de expressão. Para a discussão da interpretação adequada dos critérios de ‘decência’ e ‘mérito artístico’, cf. Ibid. pp 33, 38-40. Para o debate a respeito da neutralidade, cf. Ibid. pp. 40-41.
[20] Ibid. p. 41
[21] Ibid. pp. 41-42
[22] Ibid. pp. 38 e 42
[23] Ibid. p. 43
[24] A nosso sentir, o critério não é bom. A limitação aos assuntos atuais e efervescentes na esfera pública afasta precisamente as manifestações minoritárias mais à margem da sociedade, cuja opressão se encontra ainda invisível para a sociedade hegemônica.
[25] Ibid. pp. 44-45
[26] Rust v. Sullivan, 500 U.S. 173 (1991). Cf. Ibid. pp. 45-47
[27] Ibid. pp. 45 e 48.
[28] DWORKIN, Ronald. A matter of principle. Harvard University Press: Cambridge, Massachusetts, 1985. pp. 221-222
[29] O meio ambiente e a segurança pública são exemplos clássicos de bens públicos
[30] Ibid. pp. 223-224
[31] Ibid. pp. 224-225
[32] Ibid. pp. 226-227
[33] Ibid. p. 229
[34] Ibid. p. 230
[35] Ibid. pp. 230-231
[36] Ibid. p. 231
[37] Ibid. pp. 231-232
[38] Ibid. pp. 232-233
[39] SARMENTO, Daniel; SOUZA NETO, Cláudio Pereira de. Direito Constitucional: teoria, história e métodos de trabalho. 2ª edição. Belo Horizonte: Fórum, 2014. pp. 170-175.
[40] SARMENTO, Daniel. Dignidade da pessoa humana: conteúdo, trajetórias e metodologia. 2ª Edição. Belo Horizonte: Fórum, 2016. pp. 255-298.
[41] DWORKIN, Ronald. A matter of principle. Harvard University Press: Cambridge, Massachusetts, 1985. p. 233
[42] Mendonça aponta, com razão, para a pertinência de serem estabelecidos critérios que não configurem barreira de entrada para novos beneficiários iniciantes na atividade, tal como ocorreria com a exigência de apresentação de “histórico consistente”. Cf. MENDONÇA, José Vicente Santos de. Direito Constitucional Econômico. 2ª edição. Belo Horizonte: Fórum, 2014. p. 356
[43] Outros acadêmicos propuseram aperfeiçoamentos à noção de razão pública trazida por Rawls. Para os fins aqui visados, não precisamos avançar nestas propostas.
[44] A ideia de razão pública já estava implícita, contudo, no dever de publicidade previsto em “Uma Teoria da Justiça”, cf, LARMORE, Charles. Public Reason. In: FREEMAN, Samuel (Ed.). The Cambridge Companion to Rawls. Cambridge: Cambridge University Press, 2002 368-393. pp. 369-375
[45] RAWLS, John. O Liberalismo Político. 2ª edição. São Paulo: Editora Ática, 2000. p. 262
[46] Ibid. pp. 263-264
[47] Ibid. pp. 266-267, 275-276
[48] Ibid. p. 274
[49] BARROSO, Luís Roberto. Curso de direito constitucional contemporâneo: os conceitos fundamentais e a construção do novo modelo. 7ª edição. São Paulo: Saraiva Educação, 2018. pp. 57-59, 72, 240 e 288.
[50] SARMENTO, Daniel; SOUZA NETO, Cláudio Pereira de. Direito Constitucional: teoria, história e métodos de trabalho. 2ª edição. Belo Horizonte: Fórum, 2014. pp. 449-452
[51] MENDONÇA, José Vicente Santos de. Direito Constitucional Econômico. 2ª edição. Belo Horizonte: Fórum, 2014. pp. 352 e 355
[52] SOUZA NETO, Cláudio Pereira. Democracia em crise no Brasil: valores constitucionais, antagonismo político e dinâmica institucional. São Paulo: Editora Contracorrente, 2020; Eduerj. pp. 270-271
[53] A maior deferência ao manejo do fomento à cultura pelo Poder Executivo em períodos de normalidade institucional de modo algum se assemelha, em termos de intensidade, àquela verificada no fomento no domínio econômico. Com efeito, o fomento à cultura envolve liberdades existenciais – e não meramente econômicas e patrimoniais –, voltando-se, no plano prescritivo, ao apoio a atividades de grupos minoritários que muito provavelmente jamais alcançarão autossuficiência para se expressarem sem a ajuda estatal. Aliás, como exposto por Fiss, o silenciamento dos setores marginalizados gera efeitos perniciosos para a própria higidez e pluralidade da esfera pública em um regime democrático.
mestre em Direito Público pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro – UERJ. Assessor Jurídico Especial na Secretaria de Estado da Casa Civil do Estado do Rio de Janeiro.
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: SANTOS, Rafael Cascardo Cardoso dos. Como deve o Estado subsidiar a arte: um guia de promoção à cultura pluralista Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 25 nov 2021, 04:32. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/artigos/57625/como-deve-o-estado-subsidiar-a-arte-um-guia-de-promoo-cultura-pluralista. Acesso em: 22 nov 2024.
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