MARCUS VINICIUS DO NASCIMENTO LIMA [1]
(orientador)
RESUMO: O presente artigo tem o objetivo de analisar o atual Regulamento Disciplinar da Polícia Militar do Piauí, em especial no que se refere as penas disciplinares privativas e restritivas de liberdade aplicadas aos militares estaduais. A presente pesquisa foi desenvolvida através de uma pesquisa bibliográfica e documental com uma abordagem dedutiva. Uma vez que o regulamento é anterior a Constituição Federal e agora deve extinguir a pena de prisão disciplinar como forma de sanção conforme determina a Lei nº 13.967/2019, surge o debate sobre a legalidade do atual Regulamento Disciplinar, posto que para primeira corrente ele contém vários pontos de infração aos princípios e garantias constitucionais que regem o referido instituto, já para os que defendem sua legalidade ele está de acordo com o artigo 5º, inciso LXI da Constituição Federal, que prevê a prisão militar. Diante das divergências fica evidente a necessidade de estudos direcionados ao tema, uma vez que este tem gerado insegurança jurídica para os militares estaduais, causando uma instabilidade nas relações administrativas disciplinares.
Palavras-chave: prisão disciplinar, regulamento disciplinar, princípios, constitucionalidade.
O Regulamento Disciplinar que rege a Polícia Militar do Piauí é de 1980 havendo alguns pontos na legislação existente que necessitam de maior debate, pesquisas e estudos com o objetivo de analisar o regulamento à luz legislação atual, dentre eles estão às sanções estabelecidas através das punições em decorrência das transgressões disciplinares de cunho administrativo, principalmente, as penalidades que tolhem a liberdade individual dos militares estaduais, como a detenção, a prisão e a prisão em separado que são aplicadas conforme o regulamento.
As instituições Polícias Militares no Brasil evoluíram bastante nos últimos anos, tendo como norte e baliza a Constituição Cidadã de 1988. Todo o ordenamento jurídico no qual norteia as sanções administrativas em desfavor dos policiais militares transgressores da PMPI possuí como referência um Decreto, anterior a constituição vigente, razão de alguns questionamentos na esfera judicial. O divisor de águas no ordenamento jurídico castrense ocorre justamente quando passa a vigorar a Lei 13.967/19, que extingui a pena de prisão disciplinar para as polícias militares e os corpos de bombeiros militares dos Estados.
A prisão disciplinar militar, é uma medida cautelar utilizada no âmbito da polícia militar, se amoldando a uma figura comum, por vezes arbitrária, ao considerar algumas decisões tomadas por autoridades administrativas militares. Existem aqueles que entendem ser legal a aplicação destes institutos para restringir a liberdade de militares estaduais. Enquanto outros, em casos idênticos, não concordam porquê a mesma desrespeita princípios constitucionais e agora desobedece a uma lei federal.
Logo, deve haver uma análise quanto às formas de sanções administrativas existentes que restrinjam a liberdade dos policiais militares do Estado do Piauí à luz da Lei 13.967/19, dos princípios constitucionais, a fim de propor alternativas que não impeçam sua liberdade assim como a de qualquer outro cidadão que comete uma transgressão disciplinar. A proposta de reflexões sobre a extinção de medidas de cerceamento de liberdade, sobretudo a prisão necessita de maiores debates, pois não houve nos últimos anos, qualquer mudança na legislação militar estadual referente ao assunto. Busca-se então encontrar uma simetria entre a Constituição, o Regulamento Disciplinar e a Lei 13.967/2019, não deixando, porém, de respeitar e manter a disciplina e a hierarquia que são os pilares da vida militar.
O trabalho iniciará abordando a previsão constitucional da prisão militar, abordando suas condicionantes, caracterizando crime e transgressão militar, discorrendo também sobre o processo administrativo disciplinar. Logo em seguida são abordados alguns princípios que devem reger o regulamento dos quais se destaca o princípio que veda as medidas privativas e restritivas de liberdade.
Sequencialmente é apresentada a discussão que surge quanto a constitucionalidade da lei que veda a prisão disciplinar. Serão usadas como fontes principais da análise o Decreto nº 3.548, de 31 de janeiro de 1980, o qual estabelece o Código Disciplinar dos Militares do Estado de Piauí, a Lei 13.967/2019 que altera o art. 18 do Decreto-Lei nº 667, de 2 de julho de 1969, para extinguir a pena de prisão disciplinar para as polícias militares e a Constituição Federal. A análise é concluída com objetivo final deste trabalho, que é contribuir para o debate sobre outras formas de punir o servidor militar que, porém, não impliquem na restrição de seu direito constitucional.
2 PREVISÃO CONSTITUCIONAL DA PRISÃO MILITAR
Penas físicas, cruéis, de banimento, de trabalhos forçados e de caráter perpétuo foram tiradas de todo o ordenamento jurídico brasileiro, a pena de morte passou a ser aplicada somente em caso de guerra declarada. Penas de restrição de liberdade na esfera criminal, por outro lado, persistem. Outra característica singular do direito constitucional é a aplicação de penas restritivas de liberdade por meio de punições militares disciplinares administrativas.
É do conhecimento de todos que o cerceamento da liberdade, através da prisão de um indivíduo, deve ser encarado como exceção dentro do sistema legal pátrio. Isso acontece em função do processo ser regido pelo princípio da presunção de inocência, conforme regras impostas na Constituição Federal.
Art. 5º. LXI – ninguém será preso senão em flagrante delito ou por ordem escrita e fundamentada de autoridade judiciária competente, salvo nos casos de transgressão militar ou crime propriamente militar, definidos em lei;
Observa-se que a norma constitucional estabelece as hipóteses em que a pessoa pode ter sua liberdade restringida, ou seja nos casos de prisão em flagrante, determinação judicial, transgressões disciplinares e crimes propriamente militares, logo se faz importante definir o que são essas duas últimas práticas.
2.1 Transgressão Disciplinar x Crime Propriamente Militar
No âmbito militar, a prisão é imposta quando ocorre uma transgressão disciplinar ou um crime militar, faz-se então necessária uma resposta rápida à alteração comportamental de subordinado, a fim de manter intactas a hierarquia e a disciplina dentro da tropa, princípios basilares e essenciais à manutenção na esfera militar.
Primeiramente, é oportuno definir o conceito de militar, o qual está devidamente expresso no art. 22, do CPM: “É considerado militar, para efeito da aplicação deste Código, qualquer pessoa que, em tempo de paz ou de guerra, seja incorporada às forças armadas para nelas servir em posto, graduação, ou sujeito à disciplina militar”. Crime militar corresponde ao ato que viole o prescrito no Código Penal Militar, seja o sujeito ativo militar ou civil, conforme definição do art.9º do referido código. Já a transgressão é aquela violação praticada somente por militares, de acordo com os regulamentos disciplinares militares.
No âmbito das Forças Armadas, a transgressão militar está regulamentada nos seguintes Decretos: Exército Brasileiro, Decreto nº 4.346/2002; Marinha do Brasil, Decreto nº 88.545/1983; e Força Aérea Brasileira, Decreto nº 76.322/1975. Na Polícia Militar do Piauí, tal transgressão está regulamentada pelo Decreto nº 3.548, de 31 de janeiro de 1980 este define e especifica em seus artigos. 13 e 14 transgressão militar como:
Art. 13. Transgressão Disciplinar é qualquer violação dos princípios da ética, dos deveres e das obrigações policiais militares, na sua manifestação elementar e simples, e qualquer omissão ou ação contrária aos preceitos estatuídos em leis, regulamentos, normas ou disposições, deste que não constituam crime.
Art. 14 São transgressões disciplinares:
1. todas as ações ou omissões contrárias à disciplina policial – militar especificadas no anexo ao presente Regulamento;
2. todas as ações, omissões ou atos, não especificados na relação de transgressões do anexo citado, que afetem a honra pessoal, o pundonor polícia militar, o decoro da classe ou o sentimento do dever e outras prescrições contidas no Estatuto dos Policiais Militares, leis e regulamentos, bem como aquelas praticadas contra regras e ordens de serviços estabelecidas por autoridades competentes.
Todos os militares ao cometerem uma transgressão disciplinar, ou seja, cometer uma infração ou violação prevista no Regulamento Disciplinar Militar estará sujeito a uma determinada sanção. Pelo critério material, crime militar corresponde ao ato que viole o prescrito no Código Penal Militar, seja o sujeito ativo militar ou civil, conforme definição do art. 9º do referido código. Já para o critério pessoal, o crime estará configurado com a presença da condição de militar nos sujeitos ativo e passivo da relação que envolve o delito. Sobre o tema, assim discorre Jorge Cesar de Assis:
Em uma definição bem simples poderíamos dizer que crime propriamente militar é aquele que só está previsto no Código Penal Militar, e que só poderá ser cometido por militar, como aqueles contra a autoridade ou disciplina militar ou contra o serviço militar e o dever militar. Já o crime impropriamente militar está previsto ao mesmo tempo, tanto no Código Penal Militar como na legislação penal comum, ainda que de forma um pouco diversa (roubo, homicídio, estelionato, estupro, etc.) e via de regra, poderá ser cometido por civil.
(...)
Nos crimes propriamente militares a autoridade militar poderá prender o acusado sem que este esteja em flagrante delito e mesmo sem ordem judicial, situação impossível de se imaginar em relação ao crime comum.
(...)
Da mesma forma, durante a investigação policial militar, o encarregado do IPM poderá efetuar a detenção cautelar do indiciado que cometer crime militar próprio, por até 30 dias, sem necessidade de ordem da autoridade judicial competente, que deverá, entretanto, ser comunicada.
(...)
A anotação não foi precisa já que a hipótese de um fato estar previsto tanto no Código Penal Militar como na legislação penal comum caracteriza o crime impropriamente militar cuja competência num primeiro momento é da Justiça Militar, pelo princípio da Especialização, e a remissão a ela (a anotação) é feita apenas para se aquilatar a dificuldade que encontra o jurista pátrio não afeito às lides da caserna para a exata compreensão do que seja o crime militar em relação com o crime comum.
Dessarte, os crimes propriamente militares são aqueles tipificados no Código Penal Militar, sem que haja conduta correspondente descrita em normas comuns, cujo objeto jurídico é a proteção da instituição militar, pelo que versa sobre as infrações de deveres militares, podendo, por isso, ser praticados apenas por militares ou assemelhados. Ocorre que a apuração e tipificação da conduta se dará por meio de um processo administrativo que será exposto a seguir.
2.2 Processo Administrativo Disciplinar Militar
O processo administrativo disciplinar militar é instrumento por meio do qual as instituições militares apuram a eventual prática de uma infração disciplinar militar por seus agentes e a sanção aplicável ao transgressor no caso concreto. Com eles apuram-se a materialidade e a autoria de uma transgressão disciplinar militar.
Segundo Abreu (2015), o processo administrativo disciplinar militar consiste na soma de atos praticados de forma estruturada, de acordo com as normas específicas de cada instituição militar, destinado à apuração da infração de natureza disciplinar”.
A Polícia Militar do Piauí em suas as normas de elaboração define processo administrativo como:
Art. 1º. O Processo Administrativo Disciplinar é o conjunto de procedimentos utilizado pela Polícia Militar do Piauí para apurar a responsabilidade do militar em qualquer violação dos princípios da ética, dos deveres e das obrigações policiais militares, na sua manifestação elementar e simples e qualquer omissão ou ação contrária aos preceitos estatuídos em leis, regulamentos, normas ou disposições, desde que, em tese, não constitua crime, podendo ser procedido nos ritos ordinário (Processo Administrativo Disciplinar Ordinário - PADO) e simplificado (Processo Administrativo Disciplinar Simplificado – PADS).
§ 1º Quando o objeto do processo disciplinar for a apuração e o julgamento de transgressões de natureza grave ou média, ou da permanência ou não das praças não estáveis nas fileiras da Corporação, cuja situação não esteja prevista na Lei Estadual Nº 3.729/80, deverá ser adotado o rito ordinário.
§ 2º Quando o objeto do processo disciplinar for a apuração e o julgamento de transgressões, em tese, de natureza leve, deverá ser adotado o rito simplificado.
Embora o processo disciplinar militar tenha o objetivo de apurar a responsabilidade pela prática de uma transgressão disciplinar, cabe salientar que o objetivo processual não consiste exclusivamente em definir a culpabilidade disciplinar do militar acusado, mas também deve facultar-lhe demonstrar sua inocência, exercendo as garantias fundamentais processuais previstas na Constituição Federal, inclusive aquelas que buscam assegurar sua liberdade como o habeas corpus.
2.3 Da Aplicabilidade do Habeas Corpus nas Punições Disciplinares Militares
A Constituição em seu artigo 5º, inciso XV, declara que “é livre a locomoção no território nacional em tempo de paz, podendo qualquer pessoa, nos termos da lei, nele entrar, permanecer ou sair com seus bens”. E para garantir que essa liberdade de locomoção, não seja cerceada, de forma ilegal ou abusiva, a pessoa tem a garantia constitucional do habeas corpus, conforme art. 5º, inciso LXVIII, da Constituição Federal, que assim o consagra nos seguintes termos: “Conceder-se-á habeas corpus sempre que alguém sofrer ou se achar ameaçado de sofrer violência ou coação em sua liberdade de locomoção, por ilegalidade ou abuso de poder”.
Com base nisso, fica claro que a Carta Magna de 1988 elege a liberdade como regra e a prisão como exceção, que só deve ser imposta em casos claramente definidos, devendo o cidadão ter acesso ao instituto do habeas corpus para ter sua liberdade restaurada. O fundamento legal para negar o habeas corpus nas punições disciplinares militares encontra -se no artigo 142, § 2º, da atual Constituição Federal brasileira, que dispõe: "Não será concedido habeas corpus nas punições disciplinares militares ".
No que se refere à aplicação do habeas Corpus às punições disciplinares militares, há atualmente três correntes distintas a conhecer: a primeira, a mais tradicional, que proíbe o uso do remédio constitucional. Para os adeptos desta teoria extrema, os conceitos hierárquicos devem ser salvaguardados, assim como a disciplina, que deve ficar à margem de qualquer análise judicial.
A segunda corrente, mitigada, propõe que a vedação do uso do habeas corpus seja direcionado unicamente ao mérito do ato disciplinar – que é de natureza administrativa, cabendo, no entanto ao exame da legalidade da pena a ser aplicada. Por fim, a corrente mais recente, extremamente liberal, permitiria o habeas corpus irrestrito em caso de transgressões disciplinares, permitindo o exame não apenas dos aspectos jurídicos da infração disciplinar, mas também do mérito da própria ação administrativa. Os tribunais brasileiros, liderados pelo Supremo Tribunal Federal, têm sido adeptos da segunda corrente, à qual também subscrevemos.
O princípio do devido processo legal é consagrado como um princípio matriz de onde todos os demais princípios processuais constitucionais emanam, sendo previsto no artigo 5º da Constituição da República Federativa do Brasil de 1988: “LIV – ninguém será privado da liberdade ou de seus bens sem o devido processo legal” (BRASIL, 1988). Santos, define o princípio do devido processo legal como:
(...) o devido processo legal consiste em uma garantia fundamental de ampla abrangência axiológica, que engloba os demais princípios processuais constitucionais, sejam eles implícitos ou expressos, que pautando-se na integridade do sistema jurídico busca decisões justas, respeitando e fazendo respeitar os direitos e garantias fundamentais estabelecidos pela Constituição e vinculando os sujeitos processuais à lei processual e, assim, coibindo os abusos, os ativismos e a deslealdade processual inconcebíveis em um Estado Democrático de Direito (SANTOS, 2021, p. 722).
Há em virtude do princípio do devido processo legal, uma exigência de critérios quanto ao modo de atuar do Estado dentro do preceito constitucional de Estado de Direito, seja ela na atividade estatal, na legislativa, na executiva ou mesmo na jurisdicional onde há necessariamente a submissão de toda a atividade pública a uma rede ou malha legal. Tal princípio traz consigo a exigência para que se proporcione o exercício do contraditório e da ampla defesa, antes que sejam tomadas decisões gravosas ou não contra qualquer pessoa, bem como traz também ao indivíduo a possiblidade de recorrer dessas decisões.
A administração militar está sujeita aos princípios constitucionais consagrados no artigo 37 da Constituição Federal. Assim, o administrador militar público no exercício de suas funções, inclusive disciplinares, deve pautar suas ações nessas normas constitucionais para que a ação administrativa seja lícita. Como resultado, a carta magna destaca que o princípio do devido processo legal tem o objetivo de evitar a arbitrariedade estatal na relação entre a administração pública e o administrado, principalmente quando se trata de processos administrativos disciplinares.
Concluindo que os Processos Disciplinares são processos administrativos e, como tais, estão sujeitos a todos os Princípios Constitucionais, bem como ao princípio do devido Processo legal, permitindo ao Poder Judiciário rever e, se necessário, anular esses processos.
Diante do que foi exposto fica claro a vinculação entre os princípios do devido processo legal e do contraditório e da ampla defesa, pois de nada adiantaria reconhecer que ninguém será privado da liberdade se não lhe forem garantidos os últimos dois princípios insculpidos no inciso LV do artigo 5º da Constituição.
3.2 Da Ampla Defesa e do Contraditório
Tal princípio está previsto no artigo 5º da nossa Carta Magna: “LV – aos litigantes, em processo judicial ou administrativo, e aos acusados em geral são assegurados o contraditório e ampla defesa, com os meios e recursos a ela inerentes” (BRASIL, 1988). Nathalia Masson conceitua tal princípio como:
Ampla defesa significa o direito de apresentar no curso do processo todos os meios lícitos que permitam ao sujeito provar seu ponto de vista. Se defender amplamente significa, até manter-se em silêncio, se omitir se esta postura lhe parecer mais favorável (lembre-se que nossa Constituição garante o direito à não-autoincriminação, no art. 5°, LXIII). Por seu turno, o contraditório representa o direito constitucional que o sujeito possui de contradizer tudo aquilo que for apresentado no processo pela parte adversa (MASSON, 2020, p. 366).
Na relação processual de um lado podemos ter a administração pública, dotada de prerrogativas, tendo em vista o poder-dever de que é investida para cumprir a finalidade pela qual o Estado foi criado, do outro, temos o agente público, aquele que ocupa cargo público efetivo, subordinado à hierarquia desta administração e ao seu poder disciplinar. Em tal relação processual os sujeitos citados devem se relacionar com paridade de armas para que seja efetiva a garantia da ampla defesa.
Para Assis (2012), a ampla defesa segue a linha do contraditório, no entanto, vai além dele, pois implica não apenas uma avaliação completa do que está em mãos dos agentes do processo administrativo, mas também a possibilidade de o acusado levar ao conhecimento da autoridade investigadora qualquer prova que lhe seja favorável e que possa ser usada para justificar ou escusar suas ações.
Assim, trazendo para o contexto militar, Assis (2012) entende que não há diferenças doutrinárias na aplicação do contraditório e ampla defesa no procedimento administrativo disciplinar policial militar, por se tratar de direito constitucional com aplicação imediata, conforme dispõe o artigo 5º da constituição. Além disso é necessário levar em conta que o processo administrativo possui características peculiares, diferentemente do processo penal, pois neste as liberdades processuais referentes ao contraditório e à ampla defesa ganham maior amplitude; já no processo administrativo, há fiel aplicação do contraditório e da ampla defesa.
3.3 Da Vedação de Medida Privativa e Restritiva de Liberdade
A lei 13.967/19 extinguiu as penas privativas e restritivas de liberdade decretada em sede de processos administrativos disciplinares militares instaurados pelas polícias e corpos de bombeiros militares e deu outras disposições é mais um passo no caminho da plena cidadania dos militares dos Estados e do Distrito Federal. Os trabalhos legislativos que deram resultado a edição da lei 13.967, tiveram por base a recomendação 12, de 20 de abril de 2012, do Conselho Nacional de Segurança Pública do Ministério da Justiça - CONASP/MJ.
O Estado de Minas Gerais, antes da edição da lei 13.967, antecipou-se e aboliu do regime disciplinar aplicável aos policiais e bombeiros militares a pena privativa de liberdade. A Polícia Militar de Minas Gerais estipula no art. 24 as sanções disciplinares aplicadas nos casos de transgressão.
Art. 24 – Conforme a natureza, a gradação e as circunstâncias da transgressão, serão aplicáveis as seguintes sanções disciplinares:
I – Advertência;
II – Repreensão;
III – prestação de serviços de natureza preferencialmente operacional, correspondente a um turno de serviço semanal, que não exceda a oito horas;
IV – Suspensão, de até dez dias;
V – Reforma disciplinar compulsória;
VI – Demissão;
VII – Perda do posto, patente ou graduação do militar da reserva.
Art. 25 – Poderão ser aplicadas, independentemente das demais sanções ou cumulativamente com elas, as seguintes medidas:
I – Cancelamento de matrícula, com desligamento de curso, estágio ou exame;
II – Destituição de cargo, função ou comissão;
III – Movimentação de unidade ou fração.
§ 1o – Quando se tratar de falta ou abandono ao serviço ou expediente, o militar perderá os vencimentos correspondentes aos dias em que se verificar a transgressão, independentemente da sanção disciplinar.
§ 2° – As sanções disciplinares de militares serão publicadas em boletim reservado, e o transgressor notificado pessoalmente, sendo vedada a sua divulgação ostensiva, salvo quando o conhecimento for imprescindível ao caráter educativo da coletividade, assim definido pelo CEDMU.
Na Polícia do Piauí, as penas privativas de liberdade ainda são aplicadas como forma de punição conforme foi demostrado anteriormente, tais sanções tem como base o militarismo típico de Forças Armadas que segue uma lógica diferente, associada a guerra e ao enfrentamento do inimigo, diferente da realidade dos profissionais da segurança pública, cuja lógica não é a do enfrentamento do inimigo, mas sim a da proteção e atendimento à população.
De acordo com o art. 22 do RDPM-PI, a punição disciplinar, objetiva o fortalecimento da disciplina e deve ter em vista o benefício educativo ao punido e à coletividade a que ele pertence, recebendo uma classificação, de acordo com os artigos elencados abaixo:
Art. 24. Advertência – É a forma mais branda de punir. Consiste numa admoestação feita verbalmente ao transgressor podendo ser em caráter particular ou ostensivamente.
Art. 25. Repreensão – É a punição que, publicada em Boletim, não priva o punido da liberdade.
Art. 26. Detenção- Consiste no cerceamento da liberdade do punido, o qual deve permanecer no local que for determinado, normalmente o quartel, sem que fique, no entanto, confinado.
Art. 27. Prisão – Consiste no confinamento do punido em local próprio e designado para tal.
Art. 29. Em casos especiais, a prisão pode ser agravada para “Prisão em Separado”, devendo o punido permanecer confinado e isolado, fazendo suas refeições no local da prisão. Este agravamento não pode exceder à metade da punição aplicada.
Art. 31. Licenciamento e Exclusão a bem da disciplina consistem no afastamento, “ex. ofício”, do policial militar das fileiras da Corporação, conforme prescrito no Estatuto dos Policiais Militares.
Logo, fica demostrado que as punições disciplinares, são mecanismos de coação, utilizadas para manter a hierarquia, disciplina e respeito dentro das unidades militares. Uma vez que a lei 13.967/19 extingui as penas privativas de liberdade como forma de punição, se faz necessária uma análise do atual Regulamento Disciplinar que rege os militares da PMPI, posto que estes ainda são punidos com penas de prisão, detenção e até prisão em separado por cometerem transgressões disciplinares. A Polícia Militar do Piauí pode ter como base para o seu novo Código de Ética o Código de Ética e Disciplina da Polícia Militar de Minas Gerais o qual já segue os parâmetros da nova lei.
4 DA CONSTITUCIONALIDADE DA LEI 13.967/19
A lei 13.967/19 ao alterar o Decreto-Lei 667/1969, extinguindo a pena de prisão disciplinar para policiais militares e bombeiros militares, fez surgir uma discussão quanto a sua constitucionalidade. A corrente que é contrataria a sua constitucionalidade defende que conforme os artigos 42 e 142 da Constituição Federal é competência dos Estados e do Distrito Federal dispor sobre o regime disciplinar das categorias citadas anteriormente. Além disso, também alegam que por simetria com o artigo 61, parágrafo 1º, alínea "f", da Constituição, que atribui exclusivamente ao presidente da República a proposição de leis sobre os militares das Forças Armadas, a iniciativa legislativa para dispor sobre a matéria é reservada aos governadores. Ademais, ainda defendem a medida disciplinar se justifica em razão da hierarquia e da disciplina em que embasam o regime castrense, o que se aplica tanto aos policiais militares e bombeiros quanto aos integrantes das Forças Armadas.
Para a corrente que defende a constitucionalidade da lei, o fato de os policias e bombeiros militares serem forças auxiliares e reserva do Exército, como preceitua o disposto no artigo 144, § 6º, Constituição da República. Diante disso, haverá um duplo controle das forças auxiliares: o Chefe do Executivo Estadual e o Exército brasileiro, por meio da Inspetoria Geral das Polícias Militares e dos Corpos de Bombeiros Militares. Ao delimitar a competência legislativa privativa da União, o Texto Constitucional estipulou que as normas gerais caberiam ao citado ente, logo não há que se falar em invasão de competência, haveria tal situação se o Congresso Nacional instituísse um Código de Ética e Disciplina, o que deverá ser atividade das Assembleias Legislativa.
Ademais, o militar não pode ter menos direitos que os cidadãos a que servem, compartilhando da base de princípios que devem reger os processos acusatórios. De resto, ao reconhecer através de uma norma que o cerceamento da liberdade no plano disciplinar militar é incompatível com suas estaturas funcionais, é reconhecer também a importância dos serviços que tais profissionais prestam à sociedade.
Fato é que vigoram desde a publicação da lei 13.967, de 26 de dezembro de 2019, a proibição de penas privativas e restritivas de liberdade, bem como todos os demais princípios postos nos demais incisos. Assim comete abuso de autoridade, o superior que decretar ou mantiver submetido a medida privativa ou restritiva de direito o policial ou bombeiro militar acusado e, bem assim, a autoridade judiciária que deixar de relaxar tal medida. Inclusive já há decisão do Superior Tribunal Federal reconhecendo a aplicabilidade da lei, vejamos:
D E C I S Ã O Trata-se de habeas corpus, com pedido de medida liminar, impetrado contra decisão monocrática de Ministro do Superior Tribunal de Justiça. Em suas razões, a parte impetrante, em síntese, sustenta a ilegalidade da sanção de detenção administrativa a que foi condenado o paciente, que é policial militar do Estado do Rio Grande do Sul, por violar a vedação instituída pela Lei 13.967/19. Busca-se, desse modo, em sede cautelar, a suspensão da execução da respectiva sanção disciplinar. É o relatório. Decido. Em juízo de sumária cognição, sem examinar o mérito da presente impetração, cumpre apreciar a presença, no caso, da plausibilidade jurídica do pleito cautelar formulado pelo impetrante e do perigo da demora na prestação jurisdicional. Inicialmente, é de se afirmar que a Lei 13.967/19 vedou a aplicação de medidas privativas e restritivas de liberdade como sansões disciplinares no âmbito das polícias militares e corpo de bombeiros militares dos Estados, dos Territórios e da Distrito Federal. Destaco que o Tribunal de Justiça Militar do Estado do Rio Grande do Sul, ao indeferir a liminar requerida no HC 0090012/ -85.2021.9.21.0000/RS, assim fundamentou: “Inicialmente, forçoso consignar a decisão do Plenário desta Corte Castrense, no último dia 9 de dezembro de 2020, na qual foi declarada, por incidente difuso, a inconstitucionalidade da Lei Federal nº 13.967/19, com a seguinte ementa: (...) Tenho que consolidado o entendimento no sentido da legalidade das penas disciplinares restritivas e privativas de liberdade, sendo mantida hígida a ordem prevista no RDBM (Decreto n.º 43.245/04), frente a declaração de inconstitucionalidade da Lei Federal nº 13.967/19.” (com meus grifos) Observo que, embora a constitucionalidade de referido dispositivo legal tenha sido impugnada perante o Supremo Tribunal Federal pela ADI 6.595/DF e pela ADI 6.663/DF, ambas de relatoria do Ministro Ricardo Lewandowski, permanece a Lei 13.967/19 em plena vigência. Sendo assim, entendo que há plausibilidade jurídica (“fumus boni juris”) nas alegações da parte impetrante, bem como possibilidade de lesão irreparável ou de difícil reparação (“periculum in mora”), no caso de início ou continuidade da execução de sanção disciplinar aparentemente vedada por lei. Dispositivo Em face do exposto, defiro a medida liminar requerida pela parte impetrante, com determinação de suspensão imediata da execução da sanção disciplinar de detenção administrativa aplicada pela Polícia Militar do Estado do Rio Grande do Sul (Portaria 1042/CD/2018). Comunique-se ao Tribunal de Justiça Militar do Estado do Rio Grande do Sul e à Polícia Militar do Estado do Rio Grande do Sul. Vista ao Ministério Público Federal. Intime-se. Publique-se. Brasília, 29 de abril de 2021. Ministro NUNES MARQUES Relator (STF - HC: 200979 RS 0052442-19.2021.1.00.0000, Relator: NUNES MARQUES, Data de Julgamento: 29/04/2021, Data de Publicação: 03/05/2021).
Com a aprovação da Lei 13.967/19, tornaram-se inconstitucionais todos os regulamentos disciplinares militares que contenham sanções para restringir a liberdade dos militares estaduais. Uma vez que a Lei nº 13.967/19 é claramente constitucional, está em plena e integral vigência desde o dia 26 de dezembro de 2019, razão pela qual suas determinações, autoexecutáveis, deverão ser imediatamente implementadas pelas Polícias Militares, sob pena de ataque, em tese, as disposições da Lei 13.869/19, as quais, enfatize-se, não se aplicam apenas às autoridades judiciárias.
O presente trabalho, buscou analisar o Regulamento Disciplinar da Polícia Militar do Piauí a luz da Lei 13967/19 e dos princípios que a regem e que agora devem ser aplicados às punições disciplinares militar. A existência de penas administrativas disciplinares cerceadoras de liberdades aplicadas aos militares é uma realidade pouco discutida nos meios jurídicos. Não é objetivo deste artigo desrespeitar os fundamentos das instituições militares federais ou estaduais, representados pela hierarquia e disciplina. Para tanto, espera-se reabrir o debate sobre os direitos e garantias fundamentais consagrados na Constituição Federal e agora na lei que extingui a pena de prisão disciplinar para as polícias militares.
A prisão administrativa deveria ser extinta como já é feito em outros Estados, esta não deveria ser um meio de resposta utilizado pelo Estado na manutenção da hierarquia e da disciplina nas polícias militares, posto que atrás de um Policial Militar, existe um cidadão com direitos e deveres iguais a todos os outros independentemente da profissão. Em sede de análise do Regulamento Disciplinar dos Militares do Estado do Piauí, vê-se a amplitude e imprecisão de muitos termos usados na legislação punitiva, o que dá margem à aplicação de penas algumas vezes severas para tipos que sequer deveriam estar previstos no regulamento. A revisão do Regulamento Disciplinar da Polícia Militar do Piauí seria, aparentemente, capaz de trazer aos servidores militares estaduais uma maior segurança jurídica e melhorar sua atuação junto à sociedade, diminuindo a sensação de perseguição e revanchismo aos quais se encontram expostos esses profissionais, uma vez que se buscasse garantir-lhes os direitos constitucionais comuns a todo cidadão brasileiro.
Verifica-se, então, que agora com a promulgação da Lei 13967/19 o próprio legislador estabeleceu uma proporcionalidade entre o direito fundamental da liberdade e o resguardo dos princípios basilares das Forças Militares, estabelecendo, como serão regidos os códigos de ética aplicados aos militares estaduais. Esta nova forma de encarar o direito disciplinar militar serve como um roteiro para a melhoria contínua e a busca do aperfeiçoamento na aplicação das sanções disciplinares. Como o direito disciplinar militar não pode ficar de fora da evolução natural pela qual passa o ordenamento jurídico, privar os policiais de sua liberdade com penas restritivas de liberdade, por demandas administrativas, questões meramente disciplinares, é com toda certeza ineficaz, desproporcional e não contribui para o aprimoramento profissional dos militares.
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BRASIL. Supremo Tribunal Federal. HABEAS CORPUS 200.979 RIO GRANDE DO SUL. Trata-se de habeas corpus, com pedido de medida liminar, impetrado contra decisão monocrática de Ministro do Superior Tribunal de Justiça. Medida liminar deferida. Ilegalidade da sanção de detenção administrativa a que foi condenado o paciente, que é policial militar do Estado do Rio Grande do Sul, por violar a vedação instituída pela Lei 13.967/19. Paciente: Iohan Gonçalves Dalbão. Coator: Relator Do Hc Nº 647.382 Do Superior Tribunal De Justiça. Relator: Min. Nunes Marques, 29 de abril de 2021. Disponível em: http://portal.stf.jus.br/processos/downloadPeca.asp?id=15346304620&ext=.pdf Acesso em: 24 fev. 2022.
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[1] Coordenador e professor do curso de direito do Centro Universitário Santo Agostinho – UNIFSA. Especialista em Direito Civil, Fiscal e Tributário. Mestre em Direito Constitucional. Doutorando em Direito no Programa de Pós-Graduação em Ciências Criminais da Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul - PUC/RS. E-mail: [email protected]
Bacharelando em Direito, do Centro Universitário Santo Agostinho – UNIFSA.
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: SOUSA, Romullo Victor Loreiro. O código de Ética e Disciplina da Polícia Militar do Piauí a luz da Lei 13.967/2019 Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 02 jun 2022, 04:22. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/artigos/58561/o-cdigo-de-tica-e-disciplina-da-polcia-militar-do-piau-a-luz-da-lei-13-967-2019. Acesso em: 13 nov 2024.
Por: Gabriel Bacchieri Duarte Falcão
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