RESUMO: O presente artigo analisa os fenômenos da judicialização do direito à saúde e do ativismo judicial, buscando identificar os seus limites e possibilidades, além dos fundamentos que legitimam a atuação proativa do Poder Judiciário quanto à efetivação do direito fundamental à saúde.
PALAVRAS-CHAVE: judicialização; saúde; ativismo.
ABSTRACT: This article analyzes the phenomena of the judicialization of the right to health and judicial activism, seeking to identify its limits and possibilities, in addition to the foundations that legitimize the proactive action of the Judiciary regarding the realization of the fundamental right to health.
KEYWORDS: judicialization; health; activism.
INTRODUÇÃO
É cada vez maior a discussão no ambiente jurídico (e político) sobre a problemática do ativismo judicial e a sua relação com o direito à saúde. Há um sem-número de casos em que a prestação da saúde é levada ao conhecimento do Poder Judiciário como objeto de demandas judiciais.
O que se sabe, por óbvio, é que o fenômeno da judicialização da saúde no Brasil é um consectário lógico da não efetivação deste direito por parte do poder público. Entretanto, por se tratar de um direito fundamental garantido na Constituição Federal, não deveria, em hipótese alguma, ser objeto de demanda judicial para ter a sua efetividade garantida, por ser dotado de eficácia jurídica imediata.
As normas constitucionais, notadamente as previstas no rol não exaustivo de direitos e garantidas fundamentais, a exemplo do direito à saúde, não podem ser compreendidas como meros conselhos ao poder público e à sociedade.
Ao revés, são imperativos para a atuação administrativa, sob pena de, em não sendo efetivadas, incorrer o Estado em típica e injustificável omissão inconstitucional.
Neste complexo cenário de crise de efetividade, a sociedade contemporânea vem presenciando os fenômenos da judicialização e do ativismo judicial, que surgem como alternativas para a efetivação do direito à saúde, que se reveste de caráter emergencial, suprindo o Poder Judiciário a omissão inconstitucional das demais funções estatais.
Nesta senda, diante das necessidades individuais e coletivas no âmbito da saúde, surge a necessidade de o Poder Judiciário fazer escolhas, ou seja, atender a um interesse jurídico em detrimento de outros, caracterizando o que se compreende por “escolha trágica”.
Assim, frente a tais inquietações, pretende-se, no presente artigo, estudar as seguintes questões: Quais os fatores que acarretam a judicialização de um direito fundamental já garantido constitucionalmente? E quais os limites de atuação do Poder Judiciário para assegurar a efetivação desse direito?
A relevância deste tema é perceptível quando se observa o Poder Judiciário, na tutela jurisdicional do direito à saúde, intervindo (ainda que legitimamente) em atribuições das demais funções estatais.
Este trabalho está organizado em dois capítulos, a saber:
(i) o primeiro capítulo trata do direito fundamental à saúde, analisando o seu histórico no Brasil, a sua moldura constitucional e a sua crescente judicialização;
(ii) o segundo capítulo analisa a problemática da judicialização e do ativismo judicial no cenário brasileiro.
1 O DIREITO FUNDAMENTAL À SAÚDE
No presente capítulo é analisado o histórico do direito à saúde no Brasil, desde a chegada dos portugueses às terras brasileiras até os dias hodiernos, contextualizando a saúde pública com os respectivos momentos políticos do País.
É feita, ainda, uma análise da saúde como direito fundamental constitucional, destacando a sua eficácia imediata e o seu caráter essencial ao ser humano, como um pressuposto lógico do direito à vida.
Ademais, são analisadas as considerações acerca da judicialização do direito à saúde, destacando os aspectos que a ensejam.
1.1 HISTÓRICO DO DIREITO À SAÚDE NO BRASIL
Para analisar e compreender a complexa realidade do setor da saúde em nosso País, faz-se mister conhecer os determinantes históricos envolvidos nesse processo, pois tal setor não ficou imune às fortes influências dos contextos político, social e econômico pelos quais o Brasil passou com o decorrer do tempo.
Ademais, para analisarmos o histórico das políticas de saúde no Brasil, é importante estabelecermos algumas premissas que sempre nortearam o setor da saúde neste País, e que, de acordo com Marcus Vinícius Polignano (2001), são as seguintes:
1. A evolução histórica das políticas de saúde está relacionada diretamente a evolução político-social e econômica da sociedade brasileira, não sendo possível dissociá-los; 2. A lógica do processo evolutivo sempre obedeceu à ótica do avanço do capitalismo na sociedade brasileira, sofrendo a forte determinação do capitalismo a nível internacional; 3. A saúde nunca ocupou lugar central dentro da política do Estado brasileiro, sendo sempre deixada na periferia do sistema, como uma moldura de um quadro, tanto no que diz respeito a solução dos grandes problemas de saúde que afligem a população, quanto na destinação de recursos direcionados ao setor saúde. (POLIGNANO, M.V. 2001, p. 2)
Desde a chegada dos portugueses às terras brasileiras até o fim do período Colonial, pelo fato de o Brasil ser ocupado majoritariamente por pessoas vulneráveis econômica e juridicamente, por pessoas escravizadas e pelos povos originários, que aqui já se encontravam, nenhum modelo de atenção à saúde da população foi adotado por parte da Coroa Portuguesa.
Neste período, segundo Cláudio Bertolli Filho (2004), a atenção à saúde estava limitada aos próprios recursos da terra, como plantas e ervas medicinais, por meio de pessoas com conhecimento na arte de curar, os chamados ‘curandeiros’, haja vista que poucas pessoas aceitavam submeter-se aos dolorosos e desgastantes tratamentos feitos com médicos graduados na Europa.
Entende Cláudio Bertolli Filho (2004) que a chegada da Família Real ao Brasil trouxe a necessidade de uma mínima organização na estrutura sanitária, a fim de dar um suporte ao poder que aqui estava sendo instalado, vale dizer, no início, o interesse era única e exclusivamente o controle sanitário, tendência que perdurou por alguns anos.
Este fato era potencializado também pela extrema carência de profissionais da área de saúde no País, pois, até o ano de 1808, quando foi criado, na Bahia, o Colégio Médico-Cirúrgico, não havia universidades com cursos do setor da saúde.
Comenta-se que com o advento da Proclamação da República, em 1889, o modelo sanitário aplicado durante o Brasil Império já não mais se mostrava eficiente. O Brasil, ao tornar-se republicano, sofreu muitas transformações socioeconômicas, em especial no que diz respeito à urbanização, a partir da implantação de indústrias nas cidades, contribuindo diretamente para a formação de grandes conglomerados urbanos.
A cidade do Rio de Janeiro, por exemplo, possuía um quadro sanitário desfigurado e caótico, caracterizado pela existência de várias epidemias graves que dizimavam a população brasileira, como a varíola, a malária e, em especial, a peste bubônica.
Em face disso, muitas foram as consequências na saúde coletiva e na economia do País, pois os navios estrangeiros não mais queriam atracar no porto do Rio de Janeiro.
Como resposta a esta situação calamitosa no campo da saúde pública, Rodrigues Alves, então Presidente da República, nomeou Oswaldo Cruz como Diretor do Departamento Federal de Saúde Pública, com o objetivo político de erradicar a epidemia de febre-amarela no Rio de Janeiro, criando um grupo de mil e quinhentas pessoas, que exerciam serviços de combate ao mosquito, muitas vezes de maneira violenta por parte dos ‘guardas-sanitários’, gerando uma onda de insatisfação na população brasileira.
Tal modelo sanitário implantado por Oswaldo Cruz ficou conhecido como ‘modelo campanhista’, e era fundamentado nas ideias de Maquiavel, pelas quais os fins justificavam os meios.
Malgrado as arbitrariedades cometidas pelo governo, o ‘modelo campanhista’ obteve importantes vitórias no combate a epidemias, erradicando, inclusive, a febre-amarela no Rio de Janeiro, fato que fortaleceu o modelo proposto e o tornou hegemônico como proposta de intervenção na área da saúde coletiva até a década de 60.
Nesse período, foram criados a Diretoria-Geral de Saúde Pública, uma seção demográfica, um laboratório bacteriológico, serviços de profilaxia e desinfecção, e o instituto soroterápico federal, que posteriormente fora transformado no Instituto Oswaldo Cruz.
No ano de 1920, Carlos Chagas, que sucedeu Oswaldo Cruz, reestruturou o Departamento Nacional de Saúde, que até então era vinculado ao Ministério da Justiça, e passou a investir na política de propaganda acerca da educação sanitária, introduzindo no País um modelo sanitário inovador, fundamentado na prevenção.
É tanto que Cláudio Bertolli Filho (2004) comenta que, em verdade, tal modelo caracterizou-se por estabelecer estratégias para melhorar as condições sanitárias das áreas essenciais para a economia nacional, quais sejam, as cidades e os portos, tendo em vista que era única a preocupação do governo republicano à época: o desenvolvimento da economia nacional, predominantemente agroexportadora.
Foram criados órgãos especializados no combate à tuberculose, à hanseníase e às doenças venéreas. Ademais, foram expandidas as atividades de saneamento para as outras cidades do Brasil.
Com a obtenção de um relativo controle das epidemias nos conglomerados urbanos através da SUCAM, a política de controle sanitário expandiu-se para o campo, visando o combate das chamadas ‘epidemias rurais’.
Na década de 30, marcada pelo Estado Novo, foram poucos os investimentos no setor da saúde pública no Brasil. Nesse período, foi criado o Ministério da Educação e Saúde Pública e foram disseminadas algumas ações de saúde, através da fiscalização de produtos de origem animal.
Em contrapartida, nos anos 40, ocorreram alguns importantes avanços no campo da saúde. O então Ministério da Educação e Saúde foi autorizado a organizar, através do Decreto 4275, o Serviço Especial de Saúde Pública- SESP, órgão este que foi decorrente da Terceira Conferência Extraordinária dos Ministros das Relações dos Continentes Americanos, realizada em janeiro daquele ano, no Brasil.
Além disso, Brasil e Estados Unidos firmaram, na capital deste país, o Acordo Básico, por intermédio do qual foram definidas as responsabilidades em relação às garantias sanitárias, com o escopo de desenvolver na área de extração de borracha na Amazônia as atividades de saneamento, profilaxia e assistência médico-sanitária aos trabalhadores daquele setor da economia.
Na década de 50, foram criados o Ministério da Saúde (1953), que se caracterizava por ser uma mera dissolução do antigo Ministério da Saúde e Educação, sem importantes repercussões práticas, e o Departamento Nacional de Endemias Rurais (1956), incorporando os antigos serviços de combate à epidemias e endemias.
A saúde, nas décadas de 60 e 70 - marcados pelo Regime Militar-, sofreu algumas importantes transformações. Foi promulgado o Decreto-Lei 200/1967, designando o Ministério de Saúde como o responsável pelas atividades médicas ambulatoriais e ações preventivas em geral; controle de drogas, medicamentos e alimentos; e pesquisas médicas e sanitárias.
No ano de 1970 foi criada a Superintendência de Campanhas da Saúde Pública-SUCAM, que possuía a atribuição de executar as atividades de erradicação e controle de endemias.
Em 1975 foi criado o Sistema Nacional de Saúde - SNS, responsável pela sistematização do campo de atuação na área de saúde dos setores privados e públicos. O documento de instituição do SNS reconhecia e oficializava que a medicina curativa era atribuição do Ministério da Previdência, e a medicina preventiva era atribuição do Ministério da Saúde. Entretanto, poucos recursos foram destinados à prática de atividades preventivas, o que significou uma cristalina paradoxal prioridade às atividades curativas, mais cara.
No ano de 1976 foi iniciado o Programa de Interiorização das Ações de Saúde e Saneamento - PIASS. Tal programa caracterizou-se como o primeiro programa de medicina simplificada do nível Federal, e permitiu o ingresso de técnicos provenientes do ‘movimento sanitário’ no interior do corpo de agentes do Estado. O programa é estendido a todo o território nacional, o que, de acordo com Polignano (2001), acarretou uma grande expansão da rede ambulatorial pública.
Todavia, no final dos anos 70, em virtude da crise política e econômica do Regime Militar, as políticas de saúde deste Regime entraram em colapso. Em virtude de ter priorizado a medicina curativa, o modelo proposto não conseguiu solucionar os principais problemas de saúde coletiva, a exemplo das epidemias e endemias, e os indicadores de saúde, como os índices de mortalidade infantil.
Eram constantemente aumentados os custos da medicina curativa, tornando o modelo incapaz de atender a uma população cada vez maior de marginalizados do sistema.
Cumpre ressaltar que a crise no sistema de saúde foi potencializada pelos altos índices de desvios de verbas destinadas à saúde pública.
Em 1988, com a promulgação da Constituição Federal, foi instituído o Sistema único de Saúde - SUS, dando novos contornos e uma maior preocupação com a saúde, conforme será estudado no tópico subsequente.
1.2 A SAÚDE COMO DIREITO FUNDAMENTAL
Todas as Constituições brasileiras anteriores trouxeram em seu texto algumas normas protetivas ao direito à saúde. Todavia, foi a Constituição de 1988 a primeira a dispensar à saúde uma maior importância e proteção, colocando-a como direito social fundamental, entrando em consonância com as principais declarações internacionais de direitos humanos.
A Constituição Federal de 1988 dispõe, em seu artigo 196, que a saúde é um direito de todos e também um dever do Estado, que deve ser garantido mediante políticas sociais e econômicas que visem à redução do risco de doença e de outros agravos e ao acesso universal e igualitário às ações e serviços para sua promoção, proteção e recuperação.
Passou a saúde a ser considerada um direito público subjetivo, constitucionalmente tutelado, sendo incumbência do Estado implementar políticas econômico-sociais visando garantir aos cidadãos a plena efetividade de tal direito.
Leny Pereira da Silva (2011), em monografia intitulada Direito à saúde e o princípio da reserva do possível, afirma que a regra inscrita no artigo 196 da Constituição possui caráter programático, cujos destinatários são todos os entes políticos que constituem no plano constitucional a organização federativa do Estado brasileiro.
Nas lições da autora, a saúde cuida-se de um direito que não pode ser transformado em uma promessa institucional, implicando o descumprimento do preceito constitucional.
Neste sentido, assevera André da Silva Ordacgy (2007) que a saúde se encontra entre os bens intangíveis mais preciosos do ser humano, digna de receber a tutela estatal, porque se consubstancia em característica indissociável do direito à vida.
De acordo com o autor, constitui-se a atenção à saúde um direito de todo cidadão e um dever do Estado, devendo estar plenamente integrada às políticas públicas governamentais.
A Lei Maior impõe o acesso à saúde como prestação do Estado, resultante de uma atuação positiva, sendo tal direito classificado como de segunda geração.
Não há questionamentos quanto ao fato de que o direito à saúde deve ser efetivado o mais amplamente possível, não se restringindo às situações de risco de morte ou de grave lesão à saúde física ou mental.
Porém, deve abarcar também a hipótese de se assegurar um mínimo de bem-estar ao paciente, como nos casos de instalação de home care, isto é, serviço de saúde domiciliar, quando for inviável a internação no hospital, ainda que este serviço ainda não esteja disponibilizado administrativamente pelo Sistema Único de Saúde-SUS.
A Constituição busca significativamente a garantia do direito à saúde. Foi criado o Sistema Único de Saúde-SUS, que visa atender as necessidades locais da população e cuidar de questões que influenciam na verificação da saúde, como o meio ambiente, a vigilância sanitária, a fiscalização de alimentos, entre outros.
Saliente-se que a competência quanto à responsabilidade do poder público é comum à União, aos Estados, ao Distrito Federal e aos Municípios. Estabelece o artigo 23, inciso II, da Constituição, que os referidos entes federados deverão cuidar da saúde e assistência pública, da proteção e garantia das pessoas portadoras de deficiência.
A solidariedade passiva dos entes pode ser visualizada, ainda, no artigo 198, caput da CRFB/88, o qual afirma que as ações e serviços públicos de saúde integram uma rede regionalizada e hierarquizada e constituem um sistema único, e que este sistema único será financiado com recursos do orçamento da seguridade social, da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios, além de outras fontes.
Assim, tendo em vista a referida solidariedade passiva entre os entes federados, assevera Ordacgy (2007) que a responsabilidade dos réus em uma eventual demanda judicial para fins de efetivação do direito à saúde é de cunho solidário, não havendo razões para se falar em quinhão de responsabilidade da União, dos Estados, do Distrito Federal e do Município no fornecimento gratuito de medicamentos ou de tratamento médico.
Ademais, reconheceu o artigo 197 da Constituição que as ações e serviços de saúde são de relevância pública, cabendo ao Estado dispor, nos termos da lei, sobre sua regulamentação, fiscalização e controle.
Nota-se, dessa maneira, que muitos são os dispositivos constitucionais que cuidam do direito à saúde, seja direta, seja indiretamente, evidenciando a preocupação do constituinte em efetivar plenamente as ações e políticas neste âmbito.
Importa esclarecer, ainda, que alguns estudiosos apontam como limite à efetivação do direito à saúde por intermédio de decisões judiciais o princípio da reserva do possível. Ou seja, a atuação do Poder Judiciário para a efetivação de alguns direitos sociais, a exemplo do direito à saúde, é condicionada à existência de recursos públicos disponíveis para tanto.
Contudo, conforme a posição do então Ministro Celso de Mello (2013), em Agravo nos autos de Recurso Extraordinário de número 730.741, entre proteger a inviolabilidade dos direitos à vida e à saúde, que se qualificam, ambos, como direitos subjetivos inalienáveis assegurados a todos pela própria Constituição Federal, ou fazer prevalecer um interesse meramente econômico-financeiro e secundário do Estado, por razões de ordem ético-morais, impõe-se ao julgador uma só alternativa: aquela dá privilégio ao respeito indeclinável à vida e à saúde humanas.
Quis dizer o ex-Ministro que o simples argumento de limitação orçamentária não basta para restringir a efetivação do direito à saúde ao cidadão, vale dizer, para haver limitação à efetivação do direito à saúde deve existir uma efetiva impossibilidade orçamentária, que acarretaria um sério prejuízo à coletividade em caso de transferência de recursos de outros setores para o custeio de tratamento de saúde de um cidadão.
Caso assim não seja, não há razoabilidade em privilegiar um interesse financeiro e secundário em detrimento de um direito fundamental.
1.3 A JUDICIALIZAÇÃO DO DIREITO À SAÚDE
Judicializar, segundo Luís Roberto Barroso (2012), significa dizer que algumas questões de grande repercussão política e/ou social estão sendo decididas por órgãos do Poder Judiciário, e não pelas instâncias políticas tradicionais: o Congresso Nacional e o Poder Executivo.
Tal fenômeno possui múltiplas causas, e a primeira delas “foi a redemocratização do país, que teve como ponto culminante a promulgação da Constituição de 1988” (BARROSO, L.R. 2012, p.24).
De fato, com a promulgação da Lei Maior, o Poder Judiciário recuperou as suas garantias, transformando-se em um legítimo poder político, competente para efetivar as leis e a própria Constituição, ainda que, para tanto, seja necessário confrontar com outros Poderes.
Aliado a essa recuperação das garantias do Poder Judiciário, está o desenvolvimento do Ministério Público e da Defensoria Pública, instituições que contribuem sobremaneira para a efetivação de direitos fundamentais dos cidadãos, atuando junto ao Poder Judiciário, cobrando do Poder Público um satisfatório cumprimento de seus deveres perante a coletividade.
Ainda de acordo com o autor, outra causa da judicialização de direitos fundamentais foi “a constitucionalização abrangente, que trouxe para a Constituição inúmeras matérias que antes eram deixadas para o processo político majoritário e para a legislação ordinária” (BARROSO, 2012, p.24).
Na medida em que o constituinte originário introduz no texto constitucional um direito fundamental, tal fato dá vazão a que esse direito seja elevado ao status de uma pretensão jurídica, podendo, por conseguinte, ser objeto de uma demanda judicial, para fins de sua efetivação.
A judicialização, no ordenamento jurídico brasileiro, é um fato decorrente do modelo constitucional que foi adotado, não sendo um exercício deliberado de vontade política. Em todos os casos de efetivação de direitos fundamentais que são levados ao Judiciário, os juízes e Tribunais, em face do princípio da inafastabilidade do Poder Judiciário, devem se posicionar, mesmo em casos de lacuna na lei ou norma constitucional.
Atualmente, nota-se um grande crescimento desse fenômeno, fruto do fato de ser o sistema público de saúde ineficiente, seja em termos numéricos, seja em termos qualitativos. Assim, muitos cidadãos buscam a intervenção do Poder Judiciário para a efetivação do direito fundamental à saúde, desde o fornecimento de medicamentos à realização de cirurgias mais complexas.
Para serem efetivadas as políticas de saúde, é necessária uma atividade sincronizada dos Poderes Legislativo e Executivo. No entanto, não é isso que acontece na prática. O que se vê é um conglomerado legislativo inexpressivo, complexo e inoperante, o que dificulta a ação do Poder Executivo em seu dever constitucional de garantir o direito à saúde.
Alia-se a isso o próprio fato de o Poder Executivo não destinar recursos suficientes à saúde, além de não zelar pela correta aplicação de tal numerário, o que, por diversas vezes, resulta na realização de gastos desnecessários, ou mesmo no desvio de tais valores.
Neste sentido, acerca da atual situação da saúde no Brasil, relata Lafayete Reis Franco:
Não é sensacionalista apontar o caos na saúde pública brasileira, o que pode ser ratificado na superlotação das unidades de saúde existentes, na falta de suprimentos médicos mais básicos, como gaze ou esparadrapo, na ausência de ambulâncias ou mesmo de médicos. Não é incomum que pacientes esperem meses ou até mesmo anos para serem atendidos em uma unidade de saúde, o que demonstra a falência do sistema e, sobretudo, o descompromisso do administrador público em atender aos comandos constitucionais, o que pode ser observado, aliás, em relação a uma série de outros direitos fundamentais, como o direito à educação ou à segurança pública, por exemplo. (FRANCO, L.R. 2013, p.7)
Aliado a esses fatos, outro fator é preponderante para a judicialização do direito à saúde em casos de inoperância do Poder Público para a sua efetivação: tal direito caracteriza-se como um pressuposto lógico do direito à vida, mais precisamente a uma vida digna, consentânea com os valores abarcados pela Constituição Federal.
Também merece destaque o caráter efêmero do direito à saúde. Não é razoável admitir uma morosidade para a garantia desse direito ao cidadão. Trata-se de uma prerrogativa que se reveste de um caráter de urgência, sob pena de comprometer seriamente a vida humana, valor de maior importância no nosso ordenamento jurídico.
Por essas razões, mostra-se louvável a postura atual dos órgãos do Poder Judiciário, que vêm revendo o seu papel na sociedade, atuando como garantidores efetivos dos direitos fundamentais.
Louvável também é o papel da Defensoria Pública e do Ministério Público, que emergem como instituições fundamentais para a efetivação do direito à saúde ao cidadão brasileiro, ajuizando demandas com esse objeto, corrigindo a grave inércia estatal quanto ao cumprimento de seus deveres perante a coletividade.
2 JUDICIALIZAÇÃO E ATIVISMO JUDICIAL NO CENÁRIO BRASILEIRO
No presente capítulo, é discutida a crescente judicialização dos direitos fundamentais no cenário político nacional, sendo postas em discussão as interferências do Poder Judiciário na efetivação de políticas públicas, sem deixar de verificar os parâmetros intransponíveis para a atuação do julgador.
São analisados, ainda, os fundamentos constitucionais do ativismo judicial no Brasil, enfatizando a mudança de postura do ordenamento e da jurisprudência brasileiros quanto à visão acerca da proteção da dignidade da pessoa humana, contribuindo sobremaneira para o surgimento e a posterior consolidação de tal fenômeno.
Ademais, é colocada em debate a problemática do ativismo judicial no âmbito do Supremo Tribunal Federal, sendo analisados os posicionamentos da Corte quanto a esse fenômeno relativamente recente no ordenamento jurídico brasileiro e enfatizando a discussão acerca da sua legitimidade para adotar tal posicionamento proativo em suas decisões, assumindo definitivamente o papel de um tribunal político.
2.1 A JUDICIALIZAÇÃO DE DIREITOS FUNDAMENTAIS NO CENÁRIO POLÍTICO BRASILEIRO
A judicialização da política e dos direitos fundamentais é um tema que vem sendo objeto de discussões e estudos nos dias atuais, notadamente nos campos da Ciência Política e do Direito.
Tal fenômeno inevitavelmente envolve uma transferência de função para juízes e tribunais, acarretando profundas alterações no cenário da realização das políticas públicas, e, como já dito, é produto de múltiplas situações, seja como consequência de uma tendência mundial nos últimos anos, seja como decorrência do modelo institucional do nosso País.
Por outro lado, muito se discute acerca do risco de a judicialização tomar contornos desarrazoados, transformando a justiça em política. À Constituição – e aos juízes e tribunais, seus intérpretes- não é permitido de modo algum suprimir a política, a governança, tampouco a importância e as atribuições do Poder Legislativo.
Deve o Poder Judiciário a todo o momento estar atento para garantir o exercício dos demais poderes constituídos, sob pena de, ao buscar sanar uma omissão inconstitucional, cometer outra inconstitucionalidade, violando dispositivos que reservam competências legislativas e atribuições.
Aos julgadores não é dada a possibilidade de portarem-se indiferentes às consequências políticas de suas decisões, em especial para evitar efeitos injustos ou prejudiciais ao interesse público e/ou aos direitos fundamentais.
Deverão, para tanto, somente agir dentro das possibilidades e dos limites estabelecidos pelo nosso ordenamento jurídico-constitucional.
Assim como o Brasil, a maioria dos Estados democráticos do mundo se organiza em um modelo de repartição de Poderes, v.g. Alemanha, Estados Unidos e França. As funções estatais de legislar, criando o direito posto; de administrar, concretizando o Direito e prestando serviços públicos; e de julgar, aplicando o Direito nas hipóteses de conflito de interesses, são atribuídas a órgãos diferentes, especializados, autônomos e independentes entre si.
Nada obstante, tais funções estatais exercem entre si um mecanismo de freios e contrapesos (checks and balances), com vistas a garantir uma efetividade na atuação dos poderes no que concerne às suas atribuições. Neste sentido, dispõe Barroso:
Legislativo, Executivo e Judiciário exercem um controle recíproco sobre as atividades de cada um, de modo a impedir o surgimento de instâncias hegemônicas, capazes de oferecer riscos para a democracia e para os direitos fundamentais. Note-se que os três Poderes interpretam a Constituição, e sua atuação deve respeitar os valores e promover os fins nela previstos. No arranjo institucional em vigor, em caso de divergência na interpretação das normas constitucionais ou legais, a palavra final é do Judiciário. Essa primazia não significa, porém, que toda e qualquer matéria deva ser decidida em um tribunal. Nem muito menos legitima a arrogância judicial. (BARROSO, L.R. 2012, p. 30).
Observa-se que há, ainda, o risco de efeitos sistêmicos imprevisíveis e indesejados, sendo recomendável uma posição de extrema cautela por parte do Poder Judiciário. O juiz, seja por vocação, seja por treinamento, em regra, prepara-se para realizar a justiça do caso concreto, visando a solução do conflito.
Ele nem sempre dispõe das informações, do tempo e mesmo do conhecimento para avaliar o impacto de determinadas decisões sobre a prestação de um serviço público, por exemplo. Tampouco é passível de responsabilização política por escolhas desastradas no exercício exclusivo de suas funções.
O Poder Judiciário, como dito, deverá a todo o momento realizar uma avaliação criteriosa da própria capacidade e legitimidade institucionais para a tomada de determinadas decisões. Em muitas situações, terá de verificar se, em relação à matéria sob análise, outro Poder, órgão ou entidade da administração pública, ou algum ente paraestatal, por exemplo, não teria melhor qualificação para decidir no caso concreto.
De efeito, malgrado as opiniões em sentido contrário, é preciso enfatizar que Direito não é Política. Não é correto associar o que é correto, justo, ético, àqueles que detêm o poder político, eleitos para representar o povo, legítimo titular do poder. O que existe efetivamente é uma relação próxima, - umbilical, muitas vezes-, entre as instituições políticas e as instituições jurídicas, vale dizer, entre o mundo da Política e o mundo do Direito, através de mecanismos de ligação entre os dois campos, e tais mecanismos estão, frise-se, insculpidos na Constituição.
A Lei Maior realiza a interligação entre o Direito e a Política, submetendo-a às estruturas que fundamentam o Direito, a exemplo da ética, da segurança, da justiça e do bem-estar social. Para ser interpretada, a Carta Magna deve ser analisada sob um viés político, não olvidando, entretanto, dos limites estabelecidos pelo ordenamento jurídico.
Uma decisão judicial, segundo Barroso (2012), nunca será política no sentido de livre escolha, de plena discricionariedade. De acordo com o autor:
Mesmo nas situações que, em tese, comportam mais de uma solução plausível, o juiz deverá buscar a que seja mais correta, mais justa, à luz dos elementos do caso concreto. O dever de motivação, mediante o emprego de argumentação racional e persuasiva, é um traço distintivo relevante da função jurisdicional e dá a ela uma específica legitimação. (BARROSO, L.R. 2012, p. 29).
O juiz, em todos os momentos, deverá agir em nome e de acordo com a Constituição, e não por vontade, ideias próprias, devendo cultuar a razoabilidade e ter sempre em vista que, por mais que não tenha sido eleito para aquela função, exerce um poder representativo em essência, uma vez que este emana do povo e deve ser exercido em nome dele.
Como é cediço, não é permitido aos julgadores se pautarem como populistas, devendo, em muitos casos, decidir de maneira contrária ao desejo e aos costumes da maioria, sempre em nome dos direitos fundamentais. A garantia e a efetivação dos direitos fundamentais, ainda que contra a vontade das instituições políticas e do poder público, é um pré-requisito do neoconstitucionalismo ou constitucionalismo democrático.
Assim, a posição proativa do Poder Judiciário, nessas situações específicas, garantindo a efetivação de políticas públicas protetivas dos direitos fundamentais, sanando o vício da omissão inconstitucional gerado pelos outros poderes constituídos, favorece a democracia, se conformada com os limites bem definidos pela Constituição.
2.2 ATIVISMO JUDICIAL: FUNDAMENTOS CONSTITUCIONAIS E PRECEDENTES NA JURISPRUDÊNCIA NACIONAL
Inicialmente, é importante esclarecer que o período do segundo pós-guerra foi marcado pelas profundas transformações nos ordenamentos jurídicos em todo o mundo. Em decorrência das lamentáveis atrocidades cometidas durante a II Guerra Mundial, - em especial pelos Estados Fascista e Nazista, na Itália e na Alemanha, respectivamente-, passou a existir uma profunda preocupação dos sistemas jurídico-constitucionais com a proteção à dignidade da pessoa humana.
Constituições democráticas, a exemplo da Constituição alemã de 1949, passaram a trazer em seus textos diversas normas que garantem plena proteção à pessoa em suas dimensões física, psíquica, moral e espiritual. A Constituição Federal de 1988, apesar de ter sido promulgada tardiamente, por óbvio, não foge à regra.
Cuida-se de um importante exemplo de texto normativo que volta toda a sua carga valorativa para a tutela da dignidade da pessoa humana, elevando-a à posição de fundamento da República Federativa do Brasil (art. 1º, III, CRFB/88).
Seguindo essa linha protetiva, houve, ainda, uma profunda valorização da função exercida pelo Poder Judiciário por parte da Constituição Federal de 1988. A atividade jurisdicional passou a se imiscuir nos mais variados assuntos, intensificando a proatividade dos juízes e tribunais, que não mais se apresentam como meros espectadores distantes dos conflitos de interesses.
Reflexo de tal valorização do Poder Judiciário é o surgimento do chamado “ativismo judicial”. Segundo Luís Roberto Barroso (2012), tal fenômeno expressa uma posição do intérprete, uma forma proativa e expansiva de interpretar a Constituição Federal, potencializando o sentido e alcance de seus dispositivos normativos.
No mesmo sentido, a respeito do ativismo judicial, em sua obra intitulada Ativismo judicial: parâmetros dogmáticos, preconiza Elival da Silva Ramos:
Por ativismo judicial deve-se entender o exercício da função jurisdicional para além dos limites impostos pelo próprio ordenamento que incumbe, institucionalmente, ao Poder Judiciário fazer atuar, resolvendo litígios de feições subjetivas (conflitos de interesse) e controvérsias jurídicas de natureza objetiva (conflitos normativos).(RAMOS, E.da S. 2010, p. 129).
Ou seja, caracteriza-se por ser a mudança do estado de passividade da função jurisdicional para uma postura proativa, optando os juízes e tribunais pela interpretação dos preceitos constitucionais de forma expansiva, de modo a conceder máxima efetividade e concretização dos direitos fundamentais, com o fim de dilatar o seu sentido e o seu alcance.
Um juiz ativista atua de forma distinta e aberta, pautando sua conduta no cumprimento integral da Constituição, de modo a aplicar os mandamentos constitucionais a situações ainda não acobertadas pelo texto constitucional, não se olvidando de considerar, em sua decisão, o contexto onde se encontra inserido, bem como as consequências que poderão advir de tal decisão e, ainda, se caracteriza por impor condutas ou abstenções ao Poder Público, principalmente em matérias que envolvem políticas públicas.
Um julgador ativista tem como principal incumbência não preencher, mas, sim, compensar as omissões encontradas nas demais esferas de poder, conferindo uma eficácia máxima aos valores e direitos consagrados na Constituição Federal, a partir de uma decisão que traga consigo mecanismos que garantam sua efetivação. É o Poder Judiciário exorbitando os clássicos limites de atuação de sua esfera de poder para além das linhas limítrofes dos outros poderes constituídos.
As origens do fenômeno do ativismo judicial, segundo Barroso (2012), remontam à jurisprudência dos Estados Unidos da América, sobretudo às decisões da sua Suprema Corte. Observa-se, então, que foi favorecido pelo sistema common law, consagrando definitivamente o processo de criação judicial do Direito. Não demorou a essa posição enérgica do Poder Judiciário se difundir para outros sistemas normativos ao redor do mundo.
São muitos os países, - v.g. Turquia, Israel, Hungria e Argentina-, em que a atividade jurisdicional exerce um importante papel de garantia da justiça social, efetivando os direitos mais caros ao ser humano, sobretudo aqueles que dizem respeito diretamente à sua existência digna, a exemplo dos direitos sociais.
No Brasil, com a redemocratização, houve uma gradativa e importante ampliação do controle de constitucionalidade do Judiciário sobre as políticas públicas. Este controle é subsidiado pela própria Constituição Federal de 1988, que delimita os parâmetros mínimos de garantia e efetivação dos direitos fundamentais.
Segundo Daniel Sarmento, em seu artigo intitulado A Proteção Judicial dos Direitos Sociais: Alguns Parâmetros Ético-Jurídicos, a jurisprudência nacional é bastante rica nesta questão, e o Brasil é hoje seguramente um dos países com o Judiciário mais ativista. Ainda nesse sentido, preceitua o autor que:
É notável o avanço ocorrido no país, sobretudo ao longo da última década. (...) As intervenções judiciais eram raríssimas, prevalecendo uma leitura mais ortodoxa do princípio da separação de poderes, que via como intromissões indevidas do Judiciário na seara própria do Legislativo e do Executivo as decisões que implicassem em controle sobre as políticas públicas voltadas à efetivação dos direitos sociais.(SARMENTO, D. 2008, p.534).
Tal atitude proativa dos julgadores brasileiros tem como fatores preponderantes (i) a maior mobilização e conscientização política da sociedade, que aos poucos passa a alcançar o status da cidadania ativa, preconizado por Jellinek, em sua ‘Teoria dos quatro status’; (ii) a busca pela facilitação do acesso à justiça, sobretudo com o fortalecimento das Defensorias Públicas, que realizam um importante papel de instrumento social de garantia dos direitos ao cidadão hipossuficiente; (iii) a exagerada quantidade de diplomas normativos que tratam de políticas públicas, quando, em verdade, não deveriam ser trazidas em lei, pois as normas constitucionais relativas aos direitos fundamentais têm eficácia imediata; e, (iv) em especial, a inobservância por parte do Poder Executivo dos direitos consagrados no ordenamento jurídico-constitucional, limitando a sua aplicabilidade.
Outro fator de muita importância para o surgimento do ativismo judicial é a liberdade de expressão alcançada pela imprensa brasileira, que, quando exercida responsável e idoneamente, realiza um significativo papel de divulgação da inércia e das irregularidades cometidas pelo Estado no que diz respeito à garantia dos direitos ao cidadão.
Não se pode olvidar, ainda, da composição do Supremo Tribunal Federal, que retrata essa posição proativa do Poder Judiciário.
Muitos Ministros da Suprema Corte brasileira têm formação humanista, com trajetórias de defesa da efetividade dos direitos fundamentais e da garantia dos valores e princípios constitucionais. Vale dizer, após a ditadura militar, a partir dos anos 90, o STF passou a exercer uma nova espécie de jurisdição constitucional por intermédio da qual o ativismo judicial auferiu considerável conotação.
Nesse sentido, é imperioso citar alguns exemplos de postura ativa do Supremo Tribunal Federal em demandas judiciais. Vejamos:
(i) o primeiro exemplo citado, considerado um dos mais importantes dos últimos anos, foi a declaração de inconstitucionalidade do artigo 2º da Lei nº 8072/90 (Lei dos Crimes Hediondos), que previa a impossibilidade de progressão de regime nos crimes nela previstos, violando frontalmente o direito à individualização da pena e o caráter progressivo desta;
(ii) noutro giro, em muitos casos de julgamento de Mandados de Injunção nos últimos anos, o STF vem dando ao instituto a dimensão que o constituinte originário desejou, adotando uma posição concretista, e não somente a mera constatação da omissão normativa por parte do poder público;
(iii) em outra vertente, ao se debruçar sobre a questão da educação, o STF entendeu que esta se figura como um direito constitucional indisponível, fundamental, conferindo um desenvolvimento integral à criança e ao adolescente;
(iv) por fim, o exemplo mais importante de ativismo judicial perpetrado pela Corte no que diz respeito ao direito à saúde foi a decisão na ADPF nº45, em que o STF constatou que há responsabilidade solidária dos entes federativos quando o assunto é garantia ao direito à saúde.
2.3 ATIVISMO JUDICIAL E LEGITIMIDADE DO SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL
Questão de grande relevância nos dias atuais, seja no âmbito jurídico, seja nos âmbitos político e social, diz respeito às frequentes decisões proativas proferidas pela Corte Constitucional brasileira, fenômeno este que, como visto, denomina-se ativismo judicial.
É uma tendência atual no ordenamento jurídico brasileiro que sejam levadas as principais questões de cunho político para ser discutidas e julgadas no Supremo Tribunal Federal. Temas que outrora eram tidos como estritamente políticos, passaram a ser judicializados com considerável frequência.
Durante muito tempo, até a promulgação da CRFB/88, o STF entendia que determinadas questões políticas deveriam ser decididas nas casas políticas, pelos seus membros, não cabendo interferência judicial.
De acordo com a Corte à época, por tratarem-se de mérito administrativo (conveniência e oportunidade), caberia tão somente aos agentes políticos eleitos pelo povo a discricionariedade para escolher a solução mais adequada aos interesses da coletividade.
Com a promulgação da Constituição Federal de 1988, que trouxe consigo um extenso rol de direitos e garantias fundamentais, o STF passou a adotar uma postura concretista nos seus posicionamentos, decidindo de modo a garantir a plena efetivação dos aludidos direitos que a Lei Maior traz em seu texto.
Segundo José de Ribamar Barreiros Soares (2010), o Pretório Excelsior, colocando-se na condição de protagonista, mudou a sua postura, pois, passou a se posicionar de maneira mais interpretativa, permitindo que, pela via da interpretação, passe a ser possível a modificação da lei ou mesmo a criação judicial do direito, pela qual a lei nada especifica, além, é óbvio, da criação de normas de cunho constitucional pelas decisões judiciais.
Tal postura do STF vem ampliando sobremaneira o controle normativo do Poder Judiciário no âmbito das democracias contemporâneas, e isso é tema central de inúmeras discussões que hoje são travadas entre os cientistas políticos, os sociólogos e os filósofos do Direito, inaugurando um tipo inédito de espaço público, desvinculado das clássicas instituições político-representativas.
O fenômeno do ativismo judicial no Poder Judiciário, mais especificamente do STF, evidencia o papel garantidor de direitos fundamentais desta Corte.
Todavia, a legitimidade das decisões proferidas pelo STF, como uma Corte Constitucional que é, é frequentemente contestada, questionada.
E com o mesmo problema sofrem os juízos monocráticos de primeiro grau, sendo alvo, por óbvio, das mesmas críticas sofridas pelo STF no que tange à legitimidade para proferir tais decisões.
Se referidos agentes não são recrutados pela via eleitoral, - defendem os adeptos desse posicionamento-, por essa razão, não podem invalidar decisões daqueles que exercem mandato popular, sob pena de ser considerada uma atuação contramajoritária.
Alguns autores, em posição contrária à falta de legitimidade do Judiciário para atuar de maneira proativa, a exemplo de Alexy (2007), teorizam no sentido de que o parlamento representa o cidadão politicamente e as cortes constitucionais os representam argumentativamente, baseando-se na participação de entidades, advogados públicos e privados, associações etc., sendo tais atores o elo entre a sociedade e os Ministros, produzindo um efetivo entrosamento entre o STF e o povo. Daí porque, teria o STF legitimidade para representar em decisões políticas a vontade popular.
Ainda nesse sentido, assevera Barroso (2012) que há duas justificativas que legitimam a posição proativa do Supremo Tribunal Federal em demandas de cunho político: uma de natureza normativa e outra filosófica. Nos dizeres do Ministro, a justificativa normativa é decorrente do fato de que a CRFB/88 expressamente outorga esse poder ao Judiciário e, em especial, ao Supremo Tribunal Federal, que é o responsável principal pela guarda da Constituição.. A maioria dos Estados democráticos de direito seleciona uma parcela de poder político a ser exercida por agentes públicos que não são eleitos pelo voto popular e cuja atuação é eminentemente técnica e imparcial.
Nesse sentido, deve-se ressaltar que juízes não são entidades mecânicas, pois lhes cabe dar sentido a conceitos jurídicos indeterminados, a exemplo de ‘função social da propriedade’, ‘dignidade da pessoa humana’, o que, em última análise, nada mais é do que a participação na criação do Direito. Já a justificativa filosófica, nos ensinamentos de Barroso, se fundamenta no fato de que a Constituição desempenha dois importantes papéis:
Um deles é o de estabelecer as regras do jogo democrático, assegurando a participação ampla, o governo da maioria e a alternância no poder. Mas a democracia não se resume ao princípio majoritário. (...) Aí está segundo grande papel de uma Constituição: proteger valores e direitos fundamentais, mesmo que contra a vontade circunstancial de quem tem mais votos. E o intérprete final da Constituição é o Supremo Tribunal Federal. (BARROSO, L.R. 2012, p 28).
Assim, importa assinalar que em todas as decisões em que adotou uma postura ativista, o STF foi instado a se manifestar e o fez nos limites dos pedidos formulados, em obediência ao princípio da congruência. A Corte, em atenção ao princípio da inafastabilidade da jurisdição (artigo 5º, XXXV, CRFB/88), não tinha a alternativa de conhecer ou não das ações, de se pronunciar ou não sobre o seu mérito, uma vez atendidos os requisitos de cabimento dos instrumentos judiciais.
Não se pode, por isso, imputar ao STF a ambição ou a pretensão, em face dos precedentes jurisprudenciais referidos, de criar um modelo juriscêntrico, de supremacia judicial. O ativismo judicial não é decorrência de uma opção ideológica, filosófica, ou sociológica da Corte. Limitou-se ela a cumprir o seu papel de intérprete da Constituição.
4 CONCLUSÃO
A Constituição Federal de 1988 consagra o direito fundamental à saúde de uma maneira ostensiva, jamais vista antes no histórico constitucional brasileiro, pois os textos anteriores traziam apenas disposições esparsas e dotadas de baixo grau de normatividade.
O artigo 196 da CRFB/88 dá à saúde a conotação de direito de todos e dever estatal, devendo ser garantido mediante políticas sociais e econômicas que visem à redução do risco de doenças e de outros agravos, sendo regido pelo princípio do acesso universal e igualitário às ações e serviços para a sua promoção, proteção e recuperação.
Ou seja, é possível identificar na redação do dispositivo constitucional tanto um direito individual como um direito coletivo de proteção à saúde, colocando-o como um direito público e subjetivo assegurado à totalidade das pessoas, configurando um objeto de uma relação obrigacional entre o indivíduo e o Poder Público.
Topograficamente o direito à saúde localiza-se no Capítulo dos Direitos Sociais, dentro do Título dos Direitos e Garantias Fundamentais. Por essa razão, as normas que tratam da saúde na CRFB/88 não são meras normas de caráter programático, não dotadas de efetividade, incapazes de produzir efeitos no plano fático, apenas indicando diretrizes para a atuação do Poder Público.
Demais disso, além de caracterizá-lo como um direito do indivíduo e da coletividade, a nossa Lei Maior estabelece que a prestação da saúde é acima de tudo um dever fundamental do Estado, atribuição esta que é de responsabilidade solidária entre os entes federados, que devem elaborar ações que o efetivem.
Sucede que, sendo constatada a existência de políticas públicas que concretizam tal direito constitucional, cumpre ao Poder Judiciário, diante de demandas que postulam a sua efetivação, identificar quais as razões que fizeram com que a Administração Pública negasse tal prestação naquela ocasião, verificando também se as políticas eleitas pelos órgãos administrativos atendem aos ditames da CRFB/88 do acesso universal e igualitário.
Não sendo encontrados motivos razoáveis e concretos que justifiquem a não efetivação do direito à saúde ao cidadão, o próprio Poder Judiciário deve se encarregar de dar concretude a essa prestação constitucional, exercendo a sua competência constitucional de exercer o controle dos atos e omissões administrativas.
Nesse sentido, o Supremo Tribunal Federal vem exercendo um papel de muita relevância. É firme a jurisprudência da Corte no sentido de negar conhecimento a recursos extraordinários que visem reformar decisões que dão efetividade ao direito à saúde quando o caso em espécie permite tal comportamento proativo do Poder Judiciário.
A mais alta Corte do País tem se caracterizado por ser intolerante às omissões inconstitucionais da Administração Pública quando o assunto é direito à saúde e a sua efetivação. Não são poucos os casos em que o STF mostra-se irredutível quanto ao reconhecimento da obrigatoriedade do Estado em dar concreção ao direito à saúde do cidadão, a exemplo dos recursos estudados no presente trabalho.
Importante frisar, todavia, que tal postura do julgador – denominado “ativismo judicial” – há ser adotada com parcimônia, sob pena de desbordar os limites bem delineados pela Lei Maior, incorrendo em atuação inconstitucional.
Nesse diapasão, o próprio STF, que é uma Corte que preza pelo posicionamento proativo do Judiciário, reconhece os limites bem definidos de atuação do julgador.
Desse modo, conclui-se que é necessário superar a denegação sistemática e recorrente no plano administrativo de um direito já garantido pela Constituição, superando a ideia sedimentada na coletividade de que a única maneira de dar efetividade ao direito à saúde é pela via judicial, que deve ser tida como a ultima ratio.
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Graduado em Direito pela Universidade do Estado da Bahia-UNEB;
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: SILVA, Haeckel Rodrigo Bulcão da. Direito à saúde e ativismo judicial: limites e possibilidades Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 27 jun 2022, 04:06. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/artigos/58754/direito-sade-e-ativismo-judicial-limites-e-possibilidades. Acesso em: 21 nov 2024.
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