Resumo: O pensamento cristão marcou de forma incisiva boa parte da cultura da Idade Média, na esfera político-espiritual. Desse modo, a filosofia do período foi predominantemente cristã e, como tal, a preocupação central girou em torno da conciliação entre fé e razão. Parecia improvável unir esses dois elementos, mas foi disso que os principais filósofos da época se ocuparam, através de uma abordagem filosófico-teológica da questão. Desse modo, apesar do grande esforço empenhado, a conciliação entre fé e razão foi possível, reconhecendo que a razão só seria válida se iluminada pela fé, subordinando a primeira à segunda. Esse tema tem espaço central na obra dos mais importantes filósofos, como Santo Agostinho e São Tomás de Aquino, e é deste que o presente artigo pretende tratar.
Palavras-chave: Cristianismo. Fé. Filosofia. Razão
INTRODUÇÃO
Desde os últimos anos do Império Romano, quando a religião católica foi oficializada, o pensamento cristão vem exercendo determinante poder no pensamento ocidental. Essa influência conheceu seu ápice durante a Idade Média, quando a Europa se encontrava bastante fragmentada após o declínio do Império Romano e a igreja católica acabou funcionando como um elemento agregador desse continente. Além de se perceber que em vários momentos o catolicismo se uniu com algumas das forças dominantes da época, seja com os senhores feudais ou com os monarcas absolutistas.
Logo, o cristianismo exerceu influência tanto política quanto espiritual de forma incisiva nas mais diversas áreas, a exemplo da religião, da ciência, da filosofia durante o medievo.
Assim a filosofia do período foi predominantemente cristã e, como tal o grande desafio seria conciliar a razão, herdada dos filósofos clássicos (Platão, Aristóteles) e a fé, segundo o advento das Sagradas Escrituras. Esses dois elementos seriam aparentemente imiscíveis, mas foi disso que os principais filósofos cristãos se ocuparam, ao tentar fazer uma abordagem filosófico-teológica do problema.
O presente artigo tem por finalidade apresentar que se conseguiu conciliar razão e fé e, como se deu esse processo ao longo de toda Idade Média. Mostrar-se-á as duas correntes filosófico-cristãs predominantes no período, a patrística e a escolástica, elencando dois dos principais filósofos cristãos, Santo Agostinho, de forma mais aprofundada e, São Tomás de Aquino, de forma um pouco mais breve.
No entanto, se torna necessário discorrer logo no início do trabalho o conceito que se tem sobre filosofia cristã, e assim é que deverá se proceder.
2 A FILOSOFIA CRISTÃ
Há séculos que o cristianismo vem exercendo forte influência sobre a cultura, a sociedade, os valores morais e de boa parte do pensamento ocidental. Essa influência se fez sentir mais forte já no fim do Império Romano, quando a religião católica foi considerada a religião oficial romana e conheceu seu apogeu durante a Idade Média, por estar bastante próximo das forças dominantes, os senhores feudais, num primeiro momento, na Baixa Idade Média, e os monarcas absolutistas, num segundo momento, durante a Alta Idade Média, muitas vezes até legitimando seus poderes sem limites.
Além de que poucos elementos na sociedade medieval sabiam ler e escrever, o que acabava ficando restrito aos clérigos e outros participantes da igreja católica, demonstrando o poder dos ensinamentos católicos em diversas áreas:
Em um mundo em que nem os nobres sabiam ler, os monges eram os únicos letrados, o que justifica a impregnação religiosa nos princípios morais, políticos e jurídicos da sociedade medieval (ARANHA, & MARTINS. 2009 p.160)
Por conseguinte, a filosofia do período não deixou de ser fortemente marcada pelo cristianismo e se preocupou primordialmente em tratar das questões religiosas, acerca do catolicismo, seguindo a fé, de acordo com as Sagradas Escrituras. Assim, os filósofos cristãos tentaram colocar filosofia e teologia numa mesma dimensão.
2.1 O CONCEITO DE FILOSOFIA CRISTÃ
Torna-se importante falar sobre o que se entende por filosofia cristã:
É cristã toda filosofia que, criada por cristãos convictos, distingue entre os domínios da ciência e da fé, demonstra suas proposições com razões naturais, e não obstante vê na relação cristã um auxílio valioso e até certo ponto mesmo moralmente necessário para a razão. (BOEHNER & GILSON. 2004 p. 9)
A partir do excerto supracitado, é possível compreender que toda filosofia entendida como cristã tinha de ser criada por aqueles que se julgassem fiéis ao cristianismo e, como tal os criadores tinham de seguir aquilo que foi explicitado pelas Sagradas Escrituras, a Bíblia, utilizando-se dos dois testamentos para desenvolver seu pensamento filosófico. Além de que, como cristãos convictos, eles nunca poderiam negar nada do que estivesse escrito segundo o Livro Sagrado.
É perceptível também, que no cerne da própria definição acerca de filosofia cristã, aparece a conciliação que se deverá fazer entre razão e fé, tendo que a fé iluminaria o filósofo e, somente a partir daí ele poderia usar a razão para chegar à resposta por ele desejada.
2.2 PROPRIEDADES E NOTAS ESSENCIAIS DA FILOSOFIA CRISTÃ
A filosofia cristã possui algumas propriedades e notas características, sendo algumas delas merecedoras de destaque. Assim, far-se-á uma breve apresentação sobre as mais importantes e que corroboram com a tese levantada por esse artigo.
2.2.1 A BÍBLIA COMO FONTE INDISPENSÁVEL
Os escritos sagrados são a única e exclusiva diretriz que o filósofo deve tomar, tendo os dogmas formulados pela Igreja Católica como pontos de partida inescusáveis e inquestionáveis para o desenvolvimento de seu estudo.
Mesmo que se encontre um nítido contraste entre o Antigo e o Novo Testamentos, principalmente quanto ao conceito expresso de Deus, os filósofos cristãos permaneceram firmes na sua caminhada de acordo com as Sagradas Escrituras e, alguns chegaram até a se dedicar a explicar essa contradição presente na Bíblia.
No antigo testamento, O Deus cristão é Criador, Primeiro Princípio e origem de todo ser. Todos os seres criados dependem Dele e só existem por Ele; sua existência é totalmente condicionada pela existência de Deus que é o ser inteiramente incondicionado. Deus “é”, independentemente de qualquer condição. (BOEHNER & GILSON. 2004 p. 15)
Assim, a figura de Deus no Antigo Testamento, aparece como ser por excelência, que criou todas as coisas visíveis e invisíveis, único pai, que só Nele é que o ser humano encontra sua verdadeira existência.
Toda a Nova Aliança se apoia na verdade grandiosa de que Deus é amor. “A tal ponto amou Deus o mundo que lhe deu o seu Filho Unigênito, para que todo o que nele crer não pareça, mas tenha vida eterna” (Jo 3,16). Nisto o evangelho se avantaja de longe ao Antigo Testamento e contrasta vivamente com a filosofia grega. (BOEHNER & GILSON. 2004 p. 16)
Dessa maneira, Deus é visto no Novo Testamento, como amoroso, bondoso e perdoador. Traz no excerto também uma ética da caridade, segundo a máxima “amarás a teu próximo como a ti mesmo”. Contrasta assim não só com a ideia contida no Antigo testamento, como também com a filosofia grega, em que seus deuses seriam rancorosos e existiriam alguns Deuses que ficariam encarregados apenas de criar o mal.
2.2.2 CONSTATAÇÃO EXCLUSIVA DE PROPOSIÇÕES EMPÍRICAS
A filosofia cristã utiliza única e exclusivamente proposições que sejam suscetíveis de demonstração natural. Assim:
Não falaremos em filosofia cristã senão quando o assentimento às proposições por ela enunciadas se basear na experiência, ou em reflexões de ordem racional. Em outros termos, seu ponto de vista lógico não deve situar-se no domínio das verdades reveladas, inacessíveis à razão. (BOEHNER & GILSON. 2004 p. 9)
Desse modo, a filosofia cristã se ocupará apenas daquelas questões que encontram embasamento na observância da vida prática, se afastando das constatações que fugirem o domínio racional humano. Assim, a filosofia cristã e toda e qualquer outra área do conhecimento que se deixou influenciar pelo cristianismo, tem muito mais uma dimensão da práxis, do que qualquer outra dimensão, aplicando essa condição para a conciliação fé-razão.
2.2.3 A FILOSOFIA CRISTÃ NORTEIA-SE PELA TRADIÇÃO
Jamais um filósofo cristão irá tentar negar todo o trabalho que seu antecessor desenvolveu. Ao contrário, ele usará esse trabalho como uma contribuição, aprofundando-o e incorporando novos elementos, para que ele possa desenvolver seu labor filosófico.
A história da filosofia cristã desconhece qualquer tentativa de demolir a totalidade daquilo que se construíra no passado, com o fim de erguer em edifício com bases inteiramente novas. Quase todos os pensadores cristãos levam em conta seus predecessores imediatos, cuja obra procuram aprofundar e melhorar. (BOEHNER & GILSON. 2004 p. 11)
Assim, boa parte dos filósofos faz menção a pelo menos um de seus predecessores, ao buscar sempre ampliar e incrementar a teoria defendida por eles. Se por um lado, o pensador fica um pouco preso e limitado para desenvolver seu pensamento, por outro lado isso permite que ele avance mais em sua pesquisa, indo mais fundo em seus estudos, pois toda filosofia cristã trabalha com a ideia de que se é uma corporação, em que cada um deverá contribuir com certa parcela para os estudos filosóficos. Não compreende, assim, um obstáculo para que o filósofo possa fazer uso da razão, logicamente de acordo com a fé.
2.2.4 O FILÓSOFO JAMAIS NEGARÁ OS DOGMAS DA IGREJA CATÓLICA
A filosofia cristã jamais poderá ir de encontro às verdades de fé formuladas pela Igreja Católica, a partir das Sagradas Escrituras.
É evidente que, por ser cristã uma filosofia não se torna infalível, visto que em matéria filosófica a razão humana não goza do privilégio da inerrância. Assim, a filosofia cristã deve originar-se sob a influência consciente da fé cristã. Mas esta influência não é de natureza sistemática, e sim psicológica. Manifesta-se, sobretudo, de quatro maneiras: 1) A fé preserva a filosofia de muitos erros; 2) A fé propõe metas ao conhecimento racional; 3) A fé determina a atitude cognoscitiva do filósofo cristão; 4) A fé determina o sentido do labor filosófico. (BOEHNER & GILSON. 2004 p. 10)
Desse modo, o filósofo cristão por fazer uso da razão, também está suscetível a erros, e é a fé que conduzirá o filósofo no seu trabalho e o prevenirá dos erros que poderiam ser cometidos se ele utilizasse a razão pura no seu labor, como fizeram os filósofos gregos. Assim, a fé deverá traçar um limite para que a razão do filósofo não caia em erros, além de estabelecer certos objetivos a serem alcançados em seu estudo, cabendo à razão transformar as convicções religiosas em evidências racionais. Destarte, a fé orienta o filósofo em seu trabalho e em sua busca cognoscitiva.
Ademais, o filósofo deverá partir dos pontos formulados pela fé, mas nunca os pôr em dúvida ou negá-los.
Vê-se aí mais uma prova da conciliação entre fé e razão realizada pela filosofia cristã, em que a fé servirá de guia para a razão.
2.2.5 O FILÓSOFO DEVERÁ USAR SEMPRE A FÉ PARA ORIENTAR A RAZÃO
Sem dúvida, essa é a propriedade mais importante para o desenvolvimento desse trabalho.
É impossível dissociar a conciliação entre razão e fé do trabalho filosófico-cristão.
Assim, aqueles que se lançarem no campo da filosofia cristã deverão fazer uso da fé para orientar a razão e chegar ao resultado almejado.
A posse de uma verdade absoluta, garantida pela revelação, proporciona aos cristãos um critério seguro em face das especulações gregas. A fé cristã faz ver à razão a necessidade de se deixar curar pela fé e pela graça. Destarte a razão, orientada pela fé, se torna capaz de retificar e aprofundar as aquisições da razão lesada dos pagãos, e de realizar a meta que a filosofia grega só pudera esboçar em linhas gerais. (BOEHNER & GILSON. 2004 p. 15)
A partir dessa citação, é possível entender que a fé se torna uma auxiliar e orientadora indispensável para a razão, conduzindo o filósofo no seu trabalho, prevenindo-o de erros. É perceptível novamente a crítica severa que a filosofia cristã faz aos filósofos gregos, que usavam a razão pura na busca do conhecimento.
3 A CONTRIBUIÇÃO BÍBLICA PARA O PENSAMENTO RACIONAL-filosófico
Dentro do texto da própria bíblia é possível identificar contribuições para o uso da razão, dentro dos conformes da fé. Aparece, sobretudo, nos evangelhos de João, ao expor sua teoria do Logos e de Paulo, ao argumentar sobre a teoria da Sabedoria. Esses dois apóstolos foram sem dúvida os que mais influenciaram a criação da filosofia cristã.
3.1 A DOUTRINA DO LOGOS SEGUNDO JOÃO
O evangelho joanino se torna imprescindível para o desenvolvimento do pensamento cristão. Principalmente quando ele fala do Logos. Esse termo era também usado pelos gregos, para designar a inteligência cósmica, a razão do mundo, princípio fontal do ser e do conhecimento, como dizem Boehener & Gilson (2004). Porém João vai muito além e mergulha em algo bem mais profundo.
Ele aborda o Logos dentro de três dimensões: 1) O Logos aparece como o Deus vivo, segundo “o Verbo pelo qual foi feito o mundo e que se fez carne para remi-lo. É o Filho de Deus, que está com o Pai, e nos trouxe a graça e a verdade” (BOEHNER & GILSON. 2004 p. 18). 2) O Logos como o pensar divino, em que Deus em si conteria as ideias. 3) O Logos como a luz que ilumina o mundo na busca do saber, sendo ele fonte de todo o conhecimento, devendo ser buscado pelos pensadores cristãos para chegar às suas respostas desejadas.
Assim é que João, através da exposição do Logos, vem dar uma grande contribuição para o desenvolvimento posterior do pensamento racional filosófico-cristão.
3.2 A DOUTRINA DA SABEDORIA SEGUNDO PAULO
Ao lado de João, Paulo é aquele que mais contribui para a fomentação racional da filosofia cristã. Ele se preocupa em tratar de forma consciente da oposição entre a sabedoria cristã e a sabedoria pagã. Assim:
A sabedoria deste mundo designa a sabedoria do mundo hostil a Deus. Também a filosofia grega, faz parte em grande medida desta sabedoria mundana (pagã). O cristianismo condena a soberba e a autossuficiência da razão mundana e exige, antes de mais nada, a sujeição humana à cruz de Cristo. (BOEHNER & GILSON. 2004 p. 20)
Desse modo, Paulo acaba por traçar certas diretrizes a serem seguidas por aqueles que se dedicarem ao pensamento cristão. Ele condena mais uma vez a razão pura utilizada por boa parte dos filósofos gregos, que levará apenas a um conhecimento mundano e pagão, que não condiz com a doutrina cristã. Assim o filósofo deve reconhecer que toda razão que será usada deve ser submetida à fé católica, para daí se tornar eficaz na busca da sabedoria cristã. Exige-se do filósofo humildade, e reconhecer que se ele não se submeter à recepção do dom divino, ele só chegará aos resultados equivocados que a razão pura irá o levar.
Paulo ainda diz que está no cerne da sabedoria cristã a razão, desde que se comporte com humildade perante a fé, sendo que para se chegar a essa sabedoria seria realmente necessária a razão.
A oposição entre a sabedoria cristã e a sabedoria pagã não deve ser entendida como oposição entre a razão e a fé. A filosofia pagã deriva, em grande extensão, do abuso da razão. (BOEHNER & GILSON. 2004 p. 20)
Assim a sabedoria cristã não suprime a razão, mas sim a pressupõe.
Esta é mais uma prova de que o pensamento cristão consegue conciliar a fé e a razão, aparecendo inclusive dentro do próprio texto bíblico. Logicamente essa conciliação deveria ser feita sob certas condições.
4 AS CORRENTES FILOSÓFICAS
Durante o medievo, predominaram duas correntes em volta da filosofia cristã: a patrística e a escolástica. Ambas tinham como característica central a sobreposição da fé sobre a razão, mesmo que em gruas diferentes. Essa conciliação entre esses dois elementos foi conquistada com muito esforço pelos filósofos mais eminentes dessas duas correntes, a exemplo de Santo Agostinho e São Tomás de Aquino.
4.1 A PATRÍSTICA
Essa corrente predominou durante todo o período conhecido como Alta Idade Média, mas teve início ainda na antiguidade. Ela surgiu após o esfacelamento do Império Romano, numa Europa consequentemente bastante fragmentada, em que a Igreja funcionou como um forte elemento agregador. Ela foi criada pelos padres da Igreja Católica (daí a origem de seu nome), durante um período de franca ascensão do cristianismo por toda Europa. A igreja católica nesse período busca se unir com os senhores feudais, que eram os grandes centros de poder da época, já que existiam reis, mas na verdade eles não chegavam a exercer um poder muito forte dentro do território (o rei reinava, mas não governava).
A patrística surge num esforço de converter os pagãos, combater as heresias e se defender das críticas ao catolicismo. Era natural que o povo não aceitasse imediatamente toda a pregação cristã, pois seus ensinamentos não estavam bem arraigados e explicados, visto que ainda era forte a influência da filosofia clássica e consequentemente a razão pura para a busca do conhecimento. E é nesse sentido que os filósofos dessa corrente vão se empenhar: trazer os questionamentos e críticas da população e explicá-los de forma racional a partir das Sagradas Escrituras. Desse modo, coloca-se a razão num plano inferior à fé, estando aquela totalmente subordinada a esta.
É nesse período também que surgem os dogmas da igreja católica, segundo a Bíblia, ficando determinados pontos de partida inquestionáveis, segundo o qual o filósofo deveria tomar como verdade inegável, buscando entender os textos bíblicos e sanar as dúvidas da população, a partir do pensamento racional sob a luz consciente da fé.
4.1.1 SANTO AGOSTININHO, O BISPO DE HIPONA
Agostinho foi sem dúvida o filósofo mais importante da patrística. Ele foi dos que melhor absorveu e compreendeu o tema central dessa corrente que era a subordinação da razão à fé, conciliando esses dois elementos.
Seu pensamento pode ser bem sintetizado por uma frase de sua própria autoria: “Credo ut intelligam”, que significa “Creio para que possa entender”. Dessa forma ele estabelece como condição primordial absorver a fé e subordinar toda a razão de seu pensamento a ela, para conseguir chegar a qualquer uma de suas respostas almejadas.
Isso se torna bastante perceptível quando ele lança sua famosa “Teoria Epistemológica da Iluminação”, em que ele defendia que para que a razão pudesse conduzir a algum resultado não equivocado era preciso que ela fosse iluminada pela fé, pela luz divina. Assim ele faz uma crítica severa aos filósofos clássicos, a exemplo de Platão e Aristóteles, que usavam somente a razão para desenvolver seu pensamento. Observa-se aí uma brusca subordinação da razão à fé, como pedia a patrística.
Agostinho retoma certas características da filosofia platônica e ao mesmo tempo a critica em outros aspectos. Ela traz à tona de volta a dicotomia entre os dois mundos platônicos, como fica claro na seguinte citação:
A minha adolescência má e nefasta já tinha morrido. De caminho para a juventude, quanto mais crescia em anos, tanto mais vergonhoso me tornava com a minha vaidade, a ponto de não poder imaginar outra substância além da que os nossos olhos constantemente veem. Desde que comecei a ouvir as lições de sabedoria, não Vos supunha, ó meu Deus, sob a figura de corpo humano, pois sempre fugi deste errado juízo, e me alegrava de encontra essa verdadeira doutrina na fé da nossa mãe espiritual, a vossa Igreja Católica. (AGOSTINHO. 1999, p. 171)
Dessa forma a herança platônica recai em que o mundo sensível seria aquele em que não se aceitaria Deus como Pai e criador, em que boa parte das pessoas se encontrava num ambiente de aparências, de luxúria e profanação. Já o mundo das ideias seria aquele em que as pessoas viveriam segundo a lei divina, aceitando os ensinamentos bíblicos. O bispo de Hipona mostra que já esteve no primeiro mundo, mas aceitou a iluminação divina e passou a viver no segundo mundo. Assim ele deixou sua razão guiar-se pela fé.
A crítica ao filósofo grego aparece justamente pelo fato de ele ter usado somente a razão, desvinculada da fé para desenvolver seu raciocínio.
Uma prova da sobreposição da razão à fé é a busca da causa do mal que Agostinho empreende em sua filosofia. O mal foi uma das questões mais inquietantes para a filosofia cristã e, para Agostinho, não foi diferente. Primeiro ele busca ser iluminando pela fé, partindo de pontos inegáveis segundo as Sagradas Escrituras, ao desprezar a visão maniqueísta, de que existiria uma substância própria para o mal, concluindo que há uma única substância para todas as coisas: “pois era formado por uma só e mesma substância que a alma” (AGOSTINHO. 1999 p. 174). Depois ele constata que Deus é bom, incorruptível e, criador de todas as coisas visíveis e invisíveis, assim todas essas coisas teriam uma essência boa.
Então se Deus é tão bom e incorruptível e se todas as coisas foram criadas por Ele, de onde vem o mal? Como uma criatura tão perfeita poderia criar algo imperfeito? Após ele se certificar de todos esses pressupostos formulados através da fé, ele começa a investigar racionalmente a origem do mal. Após sucessivas tentativas de pensamento ele finalmente chega a uma resposta:
Procurei o que era maldade e não encontrei uma substância, mas sim uma perversão da vontade desviada da substância suprema – de Vós, ó Deus – e tendendo para as coisas baixas: vontade que derrama as suas entranhas e se levanta em sua intumescência. (AGOSTINHO. 1999, p. 190)
Dessa forma, não existiria uma substância própria para a maldade e, muito menos foi criada por Deus. Assim, Deus cria todas as coisas com uma essência boa, mas se essa essência for desviada, sua vontade for suprimida, aí surgirá o mal. Aparece nessa definição também um elemento fundamental da filosofia agostiniana: o livre-arbítrio das pessoas que as permitirá escolherem o caminho que quiserem e, consequentemente, podendo levar ao surgimento do mal, caso se desviem do caminho indicado por Deus.
4.2 A ESCOLÁSTICA
A escolástica vai ser a corrente dominante durante praticamente toda Baixa Idade Média. Ela surge num momento bastante conturbado para o cristianismo, tendo em vista as mudanças que o período vinha apresentando. A razão vinha buscar sua autonomia da fé, desejando se libertar das amarras do catolicismo, para desenvolver um raciocínio mais crítico. Esse processo ganhava força com a expansão das principais universidades pela Europa, como por exemplo, Oxford, Cambridge, Salamanca. Isso acabou abrindo espaço para que surgisse, posteriormente, o Renascentismo, a Reforma Protestante, o Iluminismo e, mais tarde, as revoluções burguesas.
É nesse contexto que surge essa corrente filosófica. A escolástica também tinha como ponto central sobrepor a fé à razão, em que esta continuava como uma serva da teologia. Mas de forma que a razão iria para um patamar um pouco mais alto do que na patrística, mas ainda continuava abaixo da fé. Era uma tentativa de reaver os valores cristãos que vinham sendo tão contestados e criticados.
4.2.2 SÃO TOMÁS DE AQUINO
Aquino foi o representante mais notável da escolástica, conseguindo sintetizar bem as propostas dessa corrente filosófica. Ele possui um pensamento muito mais maduro que Santo Agostinho, devido às dificuldades que o cristianismo enfrentava no período em que se encontrava. Assim, ele não sobrepõe a fé sobre a razão de forma tão brusca quanto o bispo de Hipona.
Ele retoma a metafísica aristotélica, quando reconhece, por exemplo, que o conhecimento começa pelo contato com as coisas concretas, passa pelos sentidos internos até a apreensão de formas abstratas. Mesmo Aristóteles sendo bastante contestado, Tomás de Aquino faz uso da teoria do filósofo grego, tornando-o influente na educação dos jovens por muitos anos.
Mas a escolástica, apesar dos grandes esforços empreendidos, não teve vida longa, visto as novas aspirações que surgiram na Modernidade, nos campos da ciência e da filosofia, principalmente, a exemplo de Galileu e Descartes que precisavam romper com o saber intransigente cristão para desenvolver suas teorias. Mesmo assim, a escolástica conseguiu deixar uma contribuição para o pensamento filosófico-cristão, principalmente no que diz respeito à conciliação entre fé e razão.
5 CONSIDERAÇÕES FINAIS
Desse modo, os filósofos cristãos encararam o problema e conseguiram conciliar fé e razão, conforme mandam as Sagradas Escrituras. Mesmo que em graus diferentes, havia um consenso de que a razão estaria num degrau inferior que a fé, servindo muito mais como uma serva para a construção do pensamento cristão. Assim a fé deveria orientar e conduzir a razão na busca do conhecimento e das respostas desejadas, prevenindo o filósofo de muitos erros caso usasse a razão pura para a busca do conhecimento, como fizeram os filósofos gregos.
A conciliação entre fé e razão aparece desde a própria definição acerca da filosofia cristã, perpassando pela influência encontrada no texto da própria Bíblia, principalmente exposta por João e Paulo, até chegar às correntes filosófico-cristãs mais influentes do medievo, sendo trabalhada por filósofos importantes como São Tomás de Aquino e Santo Agostinho.
O fato é que apesar de todas as dificuldades encontradas, seja pela influência da filosofia clássica, seja pela difusão do raciocínio lógico e crítico no final do Medievo, a filosofia cristã obteve glorioso êxito ao se lançar na questão da conciliação entre esses dois elementos aparentemente inconciliáveis.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
AGOSTINHO, Santo. Confissões. Trad. J. Oliveira Santos e A. Ambrosio de Pina. São Paulo: Abril Cultural, 1999.
BOEHNER, Philotheus & GILSON, Etienne. História da filosofia cristã. Trad. Raimundo Vier. Petrópolis: Vozes, 2004.
ARANHA, Maria Lúcia de Arruda & MARTINS, Maria Helena Pires. Filosofando: Introdução à Filosofia. São Paulo: Editora Moderna, 2009.
BITTAR, Eduardo C. B. & ALMEIDA, Guilherme Assis de. Curso de Filosofia do Direito. 5. ed. São Paulo: Atlas, 2007.
Graduado em Direito pela Universidade Federal de Sergipe, foi advogado e atualmente trabalha como assessor jurídico de Procurador da República no MPF.
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: JESUS, Vinícius Gabriel Viana de. Razão e fé: a conciliação durante o medievo Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 01 jul 2022, 04:03. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/artigos/58796/razo-e-f-a-conciliao-durante-o-medievo. Acesso em: 04 dez 2024.
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