RESUMO: Este artigo pretende examinar como a Sistema Interamericano de Direitos Humanos funciona para construir nos países membros, direitos das mulheres que pensem em todas elas, ou seja, que abranja mulheres trans e principalmente as mulheres latino americanas. Busca-se uma interseccionalidade entre mulheres, mulheres latinas, mulheres negras, indígenas e diferentes diferenças, que o olhar colonizador e patriarcal acaba ceifando os direitos. Bem como busca-se entender quais tipos de condenações fazem a real diferença na sociedade e no Estado-membro.
Palavras-chave: Sistema Interamericano de Direitos Humanos. Mulheres. Direitos. Decolonialidade. Feminismo.
ABSTRACT: This article aims to examine how the Inter-American System of Human Rights builds in its member countries women's rights that reach trans and latin american women. From this analysis, we search for an intersectionality between women, latin american women, black women, indigenous women and other variations from which the patriarchy stole rights, as well as understand what kinds of convictions make a real difference in society.
Keywords: Inter-American System of Human Rights. Women. Rights. Decoloniality. Feminism.
SUMÁRIO: Introdução. 1 Feminismo da Diferença e Decolonialidade. 1.1 Princípio da Igualdade. 2 Interseccionalidade decolonial. 3 Reducionismo penal e condenações estatais. 3.1. Mudanças reais para as mulheres. 4 Caráter transformador do Sistema Interamericano de Direitos Humanos. Conclusão. Referências.
Introdução
Os direitos das mulheres sempre foram postas em segundo lugar dentro de uma perspectiva global. Sendo assim, a busca por direitos não se iniciou com feminismo mas se fortaleceu com ele, o mesmo ocorre com o Sistema Interamericano de Direitos Humanos, que a cada dia, auxilia no fortalecimento e na busca da defesa pelos direitos de gênero.
O feminismo da diferença e o feminismo decolonial auxiliam na desconstrução do que esse movimento se trata, buscando englobar o máximo possível mulheres com diferentes diferenças. O feminismo da diferença pretende dar voz a mulheres que foram silenciadas por não se enquadrarem no padrão biológico, bem como o decolonial que da voz para mulheres radicalizadas e que foram colonizadas.
A interseccionalidade é ponto chave para entender e unir esses dois movimentos feminista, principalmente se tratando da decolianidade, pois quando falamos em América Latina, é impossível não falar de colonização, e como ela foi prejudicial para os povos originários. Ainda hoje há resquícios colonizadores no tratamento de diferentes povos dentro da América Latina.
Diante da falta de atitudes de estados membros com sua população, por consequência do colonialismo, é necessário que medidas sejam tomadas para equilibrar o que foi feito ao longo de tantos anos. Assim sendo, a melhor forma não é por meio do direito penal, e sim por meio de um direito restaurativo que busca implementar nos Estados direitos que foram cerceados por estes.
Por fim, o caráter transformador do Sistema Interamericano Direitos Humanos é o que traduz a busca pelos direitos que foram violados pelos estados membros, pois se busca um efeito a longo prazo para aquela comunidade. A educação torna-se a base para que se conseguir modificar aquilo que hoje está posto.
1. Feminismo da Diferença e Decolonialidade
Ao tratar da proteção dos direitos das mulheres, é essencial tratar de feminismo, movimento que busca defender e dar direitos as mulheres, sem que haja uma discriminação de gênero. Não necessariamente se busca uma igualdade, pois dentro da classificação binária, homens e mulheres jamais serão iguais, apesar de tentar igualar direitos econômicos, políticos e sociais.
Por ser um movimento, o feminismo engloba inúmeras vertentes que foram sendo construídas ao longo dos anos, desde que foi criado como movimento de mulheres. No entanto, hoje muito se fala do feminismo da diferença e do feminismo decolonial, ambos serão utilizados no trabalho, pois são os que melhor interseccionam com a multiplicidade do continente Americano.
O feminismo da diferença amplifica o significado de mulher, não se limitando ao binarismo e criticando o igualitarismo (teoria que defende a igualdade entre homens e mulheres). Luce Irigaray e Teresa de Lauretis são expoentes dessa corrente. Para a primeira, e homens e mulheres são diferentes, não podendo serem igualados, podendo gerar, como consequência, a extinção da especie, pois biologicamente são distintos (IRIGARAY, 1992, pp. 9-11 e 13). Já para a segunda, o sexo é uma construção social. Assim sendo, o reconhecimento do que é, e quem é mulher, deve partir de outra mulher, pois só uma pode “validar” a outra (LAURETIS, 2000, pp. 111 e 112).
Já o feminismo decolonial, ele “…investe em contraepistemologias situadas para enfrentar o império cognitivo europeu e norte-americano.” (HOLLANDA, 2020, p. 14). Visa dar voz às mulheres “periféricas”, no caso em questão, latinas, bem como defender quais são os direitos que lhes são essenciais, diferente das mulheres brancas, que não tem as mesmas vivências e utilizam de suas vozes para silenciar e usar de objeto de estudo tais mulheres. Chandra Mohanty explicita bem em seu texto (2020, pp. 15 e 16):
Entretanto, quero chamar atenção aqui tanto para o potencial explanatório de estratégias analíticas particulares de tais estudos quanto para seu efeito político no contexto da hegemonia da produção acadêmica ocidental. Enquanto a escrita feminista nos Estados Unidos ainda é marginalizada (exceto da perspectiva das mulheres de cor, que apontam o privilégio das feministas brancas), a escrita feminista ocidental sobre mulheres do Terceiro Mundo deve ser considerada no contexto da hegemonia global da produção acadêmica ocidental – isto é, produção, publicação, distribuição e consumo de informação e ideias.
Tais correntes se interseccionam, visto que é na America Latina, que países adotam o Sistema Interamericano e se submeter a Corte. Dessa maneira, se defende um feminismo decolonial e que proteja amplamente todos os tipos de mulheres.
Visto que o feminismo como movimento, apresenta quatro ondas, como momentos marcantes para sua historia, a terceira onda, e uma das mais recentes, trás a interseccionalidade, ou seja, uma mulher muitas vezes apresenta mais de uma opressão, como por exemplo, ser mulher e negra, assim, ela sofre por ser mulher e por ser negra. Desse modo, a interseccionalidade representa melhor essas mulheres, englobando suas diferentes diferenças. Audre Lorde como mulher negra e lésbica defende que não há opressão que se sobrepõe (2019, p. 235):
Por estar em todos esses grupos, aprendi que a opressão e a intolerância com o diferente existem em diversas formas, tamanhos, cores e sexualidades; e que, dentre aqueles de nós que têm o mesmo objetivo de libertação e de um futuro possível para as nossas crianças, não pode existir uma hierarquia de opressão.
Ao tratar do Sistema Interamericano, a visão euro-americana oprime não apenas mulheres negras, mas também latino-americanas. No entanto a colonialidade não é tão simples, ela tem como um dos seus eixos, o poder, posto por María Lugones (2020, p. 64):
Desse modo, “colonialidade” não se refere apenas à classificação racial. Ela é um fenômeno mais amplo, um dos eixos do sistema de poder e, como tal, atravessa o controle do acesso ao sexo, a autoridade coletiva, o trabalho e a subjetividade/intersubjetividade, e atravessa também a produção de conhecimento a partir do próprio interior dessas relações intersubjetivas. Ou seja, toda forma de controle do sexo, da subjetividade, da autoridade e do trabalho existe em conexão com a colonialidade.
Como tratado como explicitado por Maria Lugones a colonialidade está relacionado com o controle. Estruturalmente esse controle gere o racismo, o machismo, a misoginia, e a classe social. O que se pretende com um feminismo da diferencia e decolonial é quebrar esses antigos paradigmas se apenas segregam e ceifam direitos.
1.1 principio da igualdade
Enquanto as correntes feministas buscam elucidar as diferentes diferenças dos gêneros e tentam englobar ao máximo todos os tipo possíveis de mulheres, a lei, por sua vez, busca igualara os direitos dos gênero. Isso ocorre, porque no quesito formal, a base deve ser igual para todos aqueles possuidores de direito.
Havendo uma base equânime, pode-se partir para a questão material, e assim ajustando as diferenças necessárias para que haja um real equilíbrio. É baseado no princípio da igualdade (ou equidade) que vai se iniciar esse pressuposto, e esta se faz presente na Constituição Federal (BRASIL, 1988):
Art. 5º Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes:
I - homens e mulheres são iguais em direitos e obrigações, nos termos desta Constituição;
(grifo nosso)
E na Convenção Interamericana (MAZZUOLI, 2019, p. 226):
Artigo 24
Igualdade Perante a Lei
Todas as pessoas são iguais perante a lei. (1) Por conseguinte, têm direito, sem discriminação, a igual proteção da lei. (2)
(grifo nosso)
Baseado no que foi dito anteriormente, Valerio de Oliveira Mazzuoli deixa claro (2019, p. 227):
Quando se diz que “todas as pessoas são iguais perante a lei” – afirmação também presente em quase todas as Constituições democráticas do mundo – se está querendo dizer ao menos duas coisas: a) primeiro, que as leis devem ser executadas sem fazer acepção às pessoas, ou seja, que devem ser aplicadas igualmente a todos; e b) segundo, que o próprio legislador não pode criar leis desiguais (estando vinculado à criação de um direito igual para todos), a menos que a implantação dessa desigualdade seja necessária à efetividade da igualdade material, tratando os iguais de forma igual e os desiguais de forma desigual[…]
Assim sendo, ao buscar igualdade formal, o legislador, procurou criar uma base igual para todos e todas aquelas pessoas que são detentoras de direitos e deveres, sem que pudessem ser de qualquer modo descriminado por seu gênero. Ao tornar amplo o texto constitucional, muito provavelmente não se pressentia englobar tantas diferenças em um só corpo textual.
De acordo com Flávia Piovesan, os Direitos Humano evoluiu gradualmente, e sim foi passando por fases, e foi percebido que não era possível manter um direito igual para todos, como posto posteriormente também por Valério, por isso a necessidade de um texto legislativo especifico para ajustar as igualdades matérias.
O direito à igualdade material, o direito à diferença e o direito ao re-conhecimento de identidades integram a essência dos direitos humanos, em sua dupla vocação em prol da afirmação da dignidade humana e da prevenção do sofrimento humano. A garantia da igualdade, da diferença e do reconhecimento de identidades é condição e pressuposto para o direito à autodeterminação, bem como para o direito ao pleno desenvolvimento das potencialidades humanas, transitando-se da igualdade abstrata e geral para um conceito plural de dignidades concretas (PIOVESAN, 2018, p. 399).
Desse modo, é possível perceber que a interseccionalidade se faz presente, visto que há tantas diferenças a serem englobadas por uma só pessoa. Só após reconhecer essas diferenças e respeita-las, é possível falar em igualdade e direitos humanos.
2. Interseccionalidade decolonial
O sistema Interamericano de Direitos humano é adotado por 35 (trinta e cinco) os Estados-membros, como Argentina, Barbados, Brasil, Chile, Colômbia, Costa Rica, Dominica, República Dominicana, Equador, El Salvador, Grenada, Haiti, Honduras, México, Panamá, Paraguai, Suriname, Trindade e Tobago, e Uruguai. No entanto, países como como Bolivia, Canadá, Estados Unidos, Guatemala, Perú, Nicaragua e Venezuela (CIDH), apresentam reservas sobre o texto original assinado e ratificado.
Baseado nos países-membros, pode-se perceber que todos foram colonizados e sofreram e sofrem com a neocolonização, ou seja, hoje são dominados, seja através de poderes financeiros, seja por meio do saber poder. Boa parte desses países ainda sofrem essas interferências. Um grande exemplo é Barbados que apenas em Novembro de 2021 (FRANCE PRESSE, 2021) passou a ser uma República, não tendo mais o parlamento inglês (Reino Unido) como tomador de decisões sobre seu território.
A neocolonização não ocorre apenas de um país para o outro, mas ele pode estar impregnado no próprio país. Como tratado anteriormente por Maria Lugones, colonialidade é um fenômeno amplo, e é possível visualizar esse fenômeno também em países que não sofrem interferência direta e nem é condenado, como é o caso dos Estados Unidos e Canadá. Ambos os países escravizaram, seja os povos originários, seja a população negra traficada até lá, e essas escravizações geram consequências até hoje.
No Canadá foi recentemente descoberto que crianças indígenas eram sequestradas para serem catequizadas e muitas vezes morriam por falta de cuidados básicos ou eram mortas ao tentar fugir das localidades em que eram mantidas presas. Assim sendo, elas eram obrigadas a abrir mão de sua origens e de seus costumes (ANSA, 2021).
Os Estados Unidos é um grande exemplo de colonizador e neocolonialista. A historia deixa clara a dizimação que que ocorreu no país com os povos originários e bem como ainda ocorre hoje, principalmente com a população negra, embasada na politica penal adotada.
Angela Davis em seu livro “Mulher, Raça e Classe” trata de como a população negra que era escravizada, principalmente no sul do país, com a Guerra Civil, passou a ser linchada, como forma de limpeza étnica.
Como aponta Frederick Douglass, durante a escravidão, os homens negros não eram rotulados como estupradores de forma indiscriminada. Ao longo de toda a Guerra Civil, Na verdade, nem um único homem negro foi acusado publicamente de estuprar uma mulher branca. Se os homens negros possuísse um impulso animalesco de estuprar, argumentava Douglass, esse suposto instinto estuprador certamente teria sido ativado quando as mulheres brancas foram deixadas desse protegidas por seus companheiros que estava em combate no Exército Confederado.[…]
Naquela época, a função política dos assassinatos cometidos por gangues era evidente. O linchamento era uma contrainsurgência sem disfarces, uma garantia de que o povo negro não conseguiria alcançar seus objetivos de cidadania igualdade econômica (DAVIS, 2016, pp. 188 e 189).
(grifo nosso)
A politica de segregação racial, que durou anos, após a Guerra Civil e a politica de extermínio da população não deixaram de existir. A segregação fica clara ao tratar dos bairros, tanto para negros, como para latinos. Já o extermínio é gritante, e se tornou tão alto que o caso George Floyd se tornou marco nos Estados Unidos. Em março de 2020, um homem negro, periférico, pobre, chamado George Floyd foi detido após tentar comprar um cigarro com uma nota falsa de 20 dólares. Floyd foi rendido e enforcado por mais de nove minutos, sendo morto por um policial branco, treinado para usar essa tática enforcamento para paralisar indivíduos. Dentro do próprio país, o policial que estrangulou e matou Floyd foi condenado (BBC, 2021).
Tal decisão se tornou um marco, pois com a pressão popular local e mundial, tornou possível a condenação de policiais pela morte de homens negros, que mesmo tendo cometido crimes não poderiam ser mortos visto que para população branca outras táticas são usadas, outras táticas não homicidas são usadas.
Fica claro que apesar de não estarem como membros que podem ser condenados, os dois países da América do Norte, Canadá e Estado Unidos, ou seja, os únicos que não se enquadram na América Latina. Tais países ao quebrar de direitos humanos e não serem penalizados por isso, demonstra como o neocolonialismo, ainda é algo comumente utilizado.
Ao falar de colonialismo, é impossível não falar de como sociedades e Estados se aproveitam para continuar segregando. E baseando na questão financeira usa-se como moeda de troca investimentos financeiros ao invés de ser condenado por seus crimes e práticas desumanas.
3. Reducionismo penal e condenações estatais
De acordo com o reducionismo penal, não é apenas a pena que modifica a sociedade, pelo contrário ela apenas induz ou auxilia na segregação racial e na estigmatização da população menos favorecida, auxiliando numa seletividade penal.
As condenações Estatais diante da Corte Interamericana de Direitos Humanos ao levar para a ceara do direito penal, para se punir os direitos violados cometidos pelos Estados-membros, acabam por segregar ainda mais esses países, pois a pena ele não benéfica ninguém. Apesar de se ter uma visão de justiça, ela pode muitas vezes se tornar uma vingança e não mais justiça. Quando se pensa em justiça, se esta for tardia, não será mais justiça.
Além de gerar uma vingança, geram também uma reação em cadeia, pois os direitos adotados, será não apenas aquela ou aquelas pessoas, mas sim todos, porém, sabe-se que, a escolha de quem vai ser penalizado é seletivo. A seletividade penal é estrutural e nítida, sendo uma pequena minoria fora da estrutura aqueles que são condenados e punidos.
Desse modo são os Estados quem deveriam ser condenados, para que haja uma melhor e maior eficácia do sistema, modificando a estrutura com base na educação e atitudes sociais. Visto que, apenas modificando a sociedade, é possível que seja modificado a estrutura de desigualdade de gênero e também racial.Os casos da comissão trás ambas as penalizações, ou seja, a condenação por parte do individuo que cometeu, bem como a condenação do Estado.
A violência de gênero em países latino-americanos se tornam maior para mulheres racializadas, do que para mulheres brancas, visto que a racialização torna a desigualdade ainda maior.
Pode-se avaliar dois casos que demonstram a diferença de classe, são eles: Artavia Murillo y outros (“Fecundación in vitro”) vs. Costa Rica; e González e outras (“Campo Algodonero”) vs. México. No caso da fecundação in vitro (FIV) a Costa Rica não permitia a FIV, esse caso englobava mulheres com boas condições econômicas. No entanto, entre essas mulheres, haviam aquelas que se deslocavam para outros países para realizar o procedimento e exigia o ressarcimento do Estado, enquanto boa parte não tinha como pagar para viajar, mas mesmo assim podia pagar cos os custos da FIV. Já no caso Campo Algodoeiro, as meninas que foram violentadas e mortas, apresentando claros traços de feminicídio, por ódio ao gênero feminino, eram garotas de classe média baixa.
Em ambos os casos, o Estado foi o único condenado, pois não havia mais quem condenar, uma vez que no caso do campo algodoeiro nunca encontraram o culpado, por falta de mobilidade estatal em buscar o feminicida das vitimas. Vítimas essas, que eram jovens “não importantes” para a sociedade, que trabalhavam e tinham uma condição simples de vida.
O que mudou para as mulheres que buscavam a fecundação in vitro? E para as famílias das vítimas do campo algodoeiro? Quais as consequências que restaram para as mulheres dessas sociedades? É o que vamos tentar responder no próximo subtópico.
3.1 mudanças reais para as mulheres
No Brasil o caso Maria da Penha se tornou um marco contra violência de gênero. Após anos de luta para ser justiçada, as respostas passaram a surgir quando o país foi condenado pelo Corte Interamericana, não só para a vítima, que no caso é a Maria da Penha, como para inúmeras mulheres que puderam utilizar a Lei 11.340/06, também conhecida como Lei Maria da Penha, em seus casos de violência doméstica.
Ocorre que, com a criação da lei, que é um modelo mundial sobre proteção à mulher contra a violência domestica, ainda sim ela é falha, isso porque vivemos em uma sociedade patriarcal, da qual o gênero feminino, em toda sua abrangência não biológica, é reduzida a mero instrumento, objetificada. No caso apresentado, segundo a Comissão Interamericana de Direitos Humanos, em seu estudo de impacto de casos, o Brasil cumpriu boa parte das recomendações feitas pela Corte, ao punir o agressor de Maria, adotara civilmente ações contra o agente perpetrador da violência, bem como tomar medida para melhorar e aprofundar processos que quebrem com a tolerância estatal sobre casos de violência doméstica contra mulher (OEA, 2019, pp. 22 e 23).
Diante das recomendações, o Estado fez o que deveria ter sido feito, porém há inúmeras ações que podem ser tomadas que são transformadoras e que ainda não foram postas em prática, como reeducação desses agressores, apesar de haver um programa do Ministério Público para isso. Mas a questão aqui a ser levantada é que internacionalmente, não há mais o que ser feito no caso da Maria da Penha, segundo o estudo de impacto publicada em 2019 pela CIDH. No entanto há muito o que se fazer dentro do país, como posto, a reeducação desses agressores não é algo comumente realizado, bem como a sociedade brasileira é patriarcal e misógina. Em 2021, após todos os trâmites legais nacionais e internacionais do caso, o ex-marido foi acusado e preso, porém não ficou detido por muito tempo e sem medidas restaurativas, hoje ele defende ter sido a vítima (PIOVESAN, 2018, p. 397), mesmo tendo tentado matar, sua esposa, na época, com um tiro nas costas e em seguida eletrocutando-a.
É esclarecedor que a violência de gênero ultrapassa a violência doméstica, ela está relacionada com direitos reprodutivos, com dignidade sexual, entre outros inúmeros direitos que devem ser proporcionados pelo estado sem necessidade de haver uma condenação na Corte Interamericana de Direitos Humanos.
Outro caso que mostra as reais mudanças ou não é a do Campo Algodoeiro, que ocorreu em Cidade Juarez no México, local conhecido pelas empresas maquiadoras e por ser muito violento. Foram cerca de 400 mortes de mulheres, no período de 1993 e 2003, sendo que o Estado mexicano foi condenado em 2001. Em 2013 o México foi novamente condenado por um caso semelhante, Paloma Angélica Escobar Ledezma y otros vs. México (OEA, 2019, pp. 27-29), porém nesse caso, a CIDH em seu relatório de 2018 constatou que o país realizou apenas duas recomendações de 9 (nove). Internacionalmente não há muito o que ser feito, porém enquanto o Estado membro não realizar medidas modificadoras, as realidades dessas mulheres, adolescentes e crianças não mudaram, e mais vítimas surgirão.
Como medida, já supracitado, ações afirmativas são necessárias para que haja uma real transformação. De acordo com Flávia Piovesan (2018, p. 401):
Faz-se necessário combinar a proibição da discriminação com políticas compensatórias que acelerem a igualdade enquanto processo. Isto é, para assegurar a igualdade não basta apenas proibir a discriminação, mediante legislação repressiva. São essenciais as estratégias promocionais capazes de estimular a inserção e inclusão de grupos socialmente vulneráveis nos espaços sociais. Com efeito, a igualdade e a discriminação pairam sob o binômio inclusão-exclusão. Enquanto a igualdade pressupõe formas de inclusão social, a discriminação implica a violenta exclusão e intolerância à diferença e à diversidade. O que se percebe é que a proibição da exclusão, em si mesma, não resulta automaticamente na inclusão. Logo, não é sufi-ciente proibir a exclusão, quando o que se pretende é garantir a igualdade de fato, com a efetiva inclusão social de grupos que sofreram e sofrem um consistente padrão de violência e discriminação.
As ações afirmativas devem ser compreendidas não somente pelo prisma retrospectivo – no sentido de aliviar a carga de um passado discriminatório –, mas também prospectivo – no sentido de fomentar a transformação social, criando uma nova realidade.
(grifo nosso)
A autora nessa passagem trata da discriminação racial, mas o mesmo pensamento pode ser empregado para outras discriminações, como a de gênero. Portanto, fica claro que as atitudes tomadas pelas autoridades estatais e internacionais, tem que visar ultrapassar a questão legal, e pensar também no social.
Durante a pandemia de covid-19 no Brasil, os casos de feminicídio aumentou cerca de 6,1% (CERQUEIRA, 2021, Infográfico), segundo o Fórum Nacional de Segurança Pública no Atlas da Violência de 2021, devido as famílias terem que ficar todos juntos e sem poder sair de casa, sem pode pedir ajuda contra seu algoz. Porém a violência contra a mulher, ela é mais latente quando a a vítima é não branca, de acordo com o relatório de Atlas (CERQUEIRA, 2021, p. 38):
Em 2019, 66% das mulheres assassinadas no Brasil eram negras18. Em termos relativos, enquanto a taxa de homicídios de mulheres não negras foi de 2,5, a mesma taxa para as mulheres negras foi de 4,1. Isso quer dizer que o risco relativo19 de uma mulher negra ser vítima de homicídio é 1,7 vezes maior do que o de uma mulher não negra, ou seja, para cada mulher não negra morta, morrem 1,7 mulheres negras.[…]
Se considerarmos a diferença entre as duas taxas verificamos que, em 2009, a taxa de mortalidade de mulheres negras era 48,5% superior à de mulheres não negras, e onze anos depois a taxa de mortalidade de mulheres negras é 65,8% superior à de não negras.
(grifo nosso)
Ao contrario do que deveria acontecer, a mortalidade de mulheres negras tem aumentado e isso é resultado de falta de ações afirmativas e de um efeito backlash que vemos hoje no país. Tal efeito ocorreu com a eleição de Presidente de extrema direita, que sempre que possível diminui movimentos feministas e negros, mas que ao poucos está sendo percebido quão maligno é o discurso de ódio propagado desde o Presidente da Republica, para toda a sociedade.
O Backlash é o movimento contrario que se faz ao tentar avançar em políticas públicas que dá voz àqueles que por tanto tempo sofreram calados. Consequentemente, o texto normativo precisa ultrapassar o papel, sendo mais do que necessário a implementação de ações afirmativas que façam a mudança da sociedade, que tanto mata e agride mulheres. É mais do que necessário que a edução de base faça essa diferença, juntamente com o outras ações.
4. caráter transformador do sistema Interamericano de direitos humanos
Dentro do Sistema Interamericano de direitos humanos o caráter transformador se aplica de forma mais intensa nos países da América Latina e aí esse caráter transformador que une o bloco latino americano como algo como um sol. O que torna os países latino americanos semelhantes, e que se interligam, não é a língua, o livre comercio ou a proximidade, mas sim a Convenção Interamericana de direitos humanos.
O que se busca do caráter transformador não é apenas direitos presentes em cada país condenado pela corte, ou a defesa de determinados direitos em certos países. O caráter transformador é unir América Latina com uma sociedade comum, com direitos em comum, e que juntos se preocupam com Direitos Humanos e os preservam, distante de um olhar colonizador.
Lélia Gonzalez, uma mulher, negra e periférica explicita o que é a America Latina (2020, pp. 45 e 46).
Por tudo isso, o feminismo latino-americano perde muito da sua força ao abstrair um dado da realidade que é de grande importância: o caráter multirracial e pluricultural das sociedades dessa região. Tratar, por exemplo, da divisão sexual do trabalho sem articulá-la com seu correspondente em nível racial é recair numa espécie de racionalismo universal abstrato, típico de um discurso masculinizado e branco. Falar da opressão da mulher latino-americana é falar de uma generalidade que oculta, enfatiza, que tira de cena a dura realidade vivida por milhões de mulheres que pagam um preço muito caro pelo fato de não serem brancas.
Deve-ser, deixar claro que o caráter transformador ultrapassa direitos individuais buscando direitos coletivos para serem protegido por todos os países-membros. De forma igualitária, sem que um país se sobreponha ao outro, é preciso haver unidade e ao buscar fugir do olhar colonizador, branco e patriarcal. A luta por direitos deve ser para uma sociedade melhor e não em busca de uma suposta justiça, que não é restaurativa e sim vingativa.
Conclusão
O Sistema Interamericana de Direitos Humanos, a Comissão e a Corte, fazem parte de uma ampla rede que busca defender, manter e levar direitos para aqueles que os tiveram cerceados de alguma forma. Por isso esse sistema é tão importante, ele visa não apenas o aspecto imediato das decisões tomadas, mas também o aspecto mediato, levando repercussões positivas a medio e longo prazo para aquela sociedade.
Apesar de todo o lado positivo que há no sistema, é necessário fazer a crítica de como determinada atitudes podem levar a segregação de um país para o outro, tornando-os mais desiguais ao invés, de unifica-los como comunidade. Dessa forma o caráter transformador e as linhas a serem seguidas dentro do movimento feminista para tratar de direito de gêneros, são essenciais para modificar, melhoras e implementar direitos que tornem a convivência mais humana.
Referências:
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Bacharel em Direito (2017), formada pela Fundação Armando Alvares Penteado especialista em Direito Penal e Processo Penal pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP) e mestranda em Direito Penal pela PUC-SP.
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: KUMAGAI, Maria Fumiko Sampaio. Proteção dos direitos das mulheres no ambito do Sistema Interamericano de Direitos Humanos: sob a perspectiva de violência contra mulheres em uma visão decolonial Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 12 ago 2022, 04:41. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/artigos/59008/proteo-dos-direitos-das-mulheres-no-ambito-do-sistema-interamericano-de-direitos-humanos-sob-a-perspectiva-de-violncia-contra-mulheres-em-uma-viso-decolonial. Acesso em: 21 nov 2024.
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