RESUMO: O presente trabalho cientifico tem por finalidade tecer considerações a respeito das inovações legislativas e jurisprudenciais sobre o reconhecimento da multiparentalidade e da parentalidade socioafetiva no ordenamento jurídico brasileiro. A multiparentalidade está cada dia mais presente no cotidiano jurídico, seja por meio de pedidos administrativos, seja por meio de ações judiciais e com igual importância em relação às outras formas de filiação. Pretende-se com o presente trabalho realizar os apontamentos mais relevantes sobre a temática bem como o entendimento dos Tribunais superiores.
Palavras-chave: Multiparentalidade; paternidade/maternidade socioafetiva; filiação; jurisprudência.
ABSTRACT: The present scientific work aims to make considerations about legislative and jurisprudential innovations on the recognition of multiparenthood and socio-affective paternity in the Brazilian legal system. Multiparenthood is increasingly present in legal daily life, either through administrative requests or through lawsuits and with equal importance in relation to other forms of affiliation. It is intended with the present work to make the most relevant notes on the subject as well as the understanding of the higher Courts.
Keywords: Multiparenthood; socio-affective paternity/maternity; affiliation; jurisprudence.
INTRODUÇÃO
O presente trabalho cientifico terá por finalidade tecer considerações a respeito das inovações legislativas e jurisprudenciais sobre o reconhecimento da multiparentalidade e da parentalidade socioafetiva no ordenamento jurídico brasileiro.
Assim sendo, o presente artigo será dividido em três seções. Na primeira seção será discutido sobre o estado de filiação e aos vínculos parentais socioafetivos, na segunda serão tecidos comentários sobre o reconhecimento da multiparentalidade e sobre a equivalência dos vínculos de parentalidade biológica e socioafetiva elencando, para tanto, o posicionamento dos Tribunais Superiores sobre o tema. Por fim, na terceira seção serão debatidos os efeitos e as repercussões jurídicas do reconhecimento da multiparentalidade.
Para alcançar o desiderato cientifico proposto, será utilizada a metodologia doutrinária, legalista, além da interpretação e leitura realizadas em periódicos, artigos científicos, livros, algumas jurisprudências, entre outros.
Por fim, o objeto deste trabalho cientifica voltará, ainda que de modo não exaustivo, a realizar uma análise a respeito das modificações e inovações legislativas e jurisprudências que abarcam a temática.
1.FILIAÇÃO E VÍNCULOS PARENTAIS SOCIOAFETIVOS
Atualmente, a doutrina e a jurisprudência admitem a existência de três diferentes vínculos de filiação: a Civil ou registral que é feito de acordo com o registro de nascimento; o Biológico baseado no vínculo genético e o Socioafetivo que se fundamenta na afetividade, na convivência, na criação de referencial entre pai e filho.
É possível que tais vínculos existam isolada ou concomitantemente. Por exemplo, um indivíduo poderá ter, ao mesmo tempo, um pai/mãe biológico e um pai/mãe socioafetivo. Assim, em regra, para que seja possível o rompimento desta relação de filiação é preciso que não exista nenhum desses vínculos, seja cível, biológico ou socioafetivo.
Nesse sentido, o art. 1.593 do Código Civil admite o reconhecimento do parentesco de raiz não biológica, além da adoção, ao estabelecer que “o parentesco é natural ou civil, conforme resulte de consanguinidade ou outra origem”.
Assim, a paternidade/maternidade socioafetiva é uma forma de parentesco civil. Nesse sentido, conforme aduz o Enunciado nº 256 da III Jornada de Direito Civil do Conselho da Justiça Federal:
Enunciado 256-CJF: A posse do estado de filho (parentalidade socioafetiva) constitui modalidade de parentesco civil.
Nesse sentido, a filiação socioafetiva possui sua base na cláusula geral de tutela da personalidade humana, como um elemento fundamental na formação da identidade e definição da personalidade da criança. Esta condição, não raras vezes, é encontrada na história familiar de crianças e adolescentes privados da convivência com os genitores, por meio do acolhimento, que se identificam como filhos de pessoas que delas cuidam e com elas estreitam laços de afeto. Então, sob a ótica do princípio da afetividade surgem novas configurações de filiação. (MACIEL, 2021).
Nesta esteira, segundo a Autora Beatrice Marinho o vínculo entre a criança e os membros da família socioafetiva está atrelado ao convívio fraterno mútuo: [1]
[...] “ser mãe”, “ser pai” ou “ser irmão” é algo que vai muito além de laços consanguíneos. É preciso tempo e disponibilidade. O compartilhar de experiências, a vivência conjunta, o afeto trocado, as demonstrações de carinho e de preocupação, os cuidados e a proteção ofertados contam muitos pontos para que uma pessoa seja assim percebida pela criança e assuma esses papéis de grande importância em sua vida”.
É a partir do entrelaçamento socioafetivo entre os membros que surge o interesse de postular o reconhecimento do estado de pai/mãe ou do filho afetivo, buscando a regularização do registro de nascimento.
Christiano Cassettari ensina que, uma vez comprovada a existência da parentalidade socioafetiva, o filho e o pai/mãe socioafetivos se ligam aos parentes do outro, ganhando avós, irmãos, tios, primos, netos, dentre outros. Além disso, a comprovação desta relação socioafetiva é fato gerador de diversos efeitos jurídicos, tais como os alimentos, sucessórios, previdenciários, entre outros, os quais serão tratados mais adiante em tópicos próprios. [2]
Em razão da ausência de lei especifica que regula o tema, a jurisprudência no Resp 1.328.380-MS elencou os requisitos para que se reconheça a filiação socioafetiva.
Para que seja reconhecida a filiação socioafetiva, é necessário que fiquem demonstradas duas circunstâncias bem definidas (STJ. 3ª Turma. REsp 1.328.380-MS, Rel. Min. Marco Aurélio Bellizze, julgado em 21/10/2014).
a) vontade clara e inequívoca do apontado pai ou mãe socioafetivo de ser reconhecido(a), voluntária e juridicamente, como tal (demonstração de carinho, afeto, amor); e
b) configuração da denominada “posse de estado de filho”, compreendida pela doutrina como a presença (não concomitante) de tratamento, de parte à parte, como pai/mãe e filho; nome (a pessoa traz consigo o nome do apontado pai/mãe); e fama (reconhecimento pela família e pela comunidade de relação de filiação), que naturalmente deve apresentar-se de forma sólida e duradoura.
Já com relação a natureza jurídica do vínculo socioafetivo, por ser uma situação fática que se constitui pela notoriedade e continuidade na relação, a decisão que reconhece a posse do estado de filho possui natureza declaratória, o que difere daquela proferida em caso de adoção, pois esta sempre detém natureza constitutiva.
Um ponto tormentoso e de debate nos Tribunais é a possibilidade ou não de desconstituição da filiação socioafetiva. O Superior Tribunal de Justiça vem concedendo prevalência à parentalidade afetiva, ainda que despida de ascendência genética, no entanto, para isso exige que estejam presentes os pressupostos da posse do estado filial e tenha se originado de decisão espontânea do pai ou da mãe, com arrimo na boa-fé e na existência de uma relação duradoura de afeto, cuidado, assistência moral, patrimonial e respeito.
Por oportuno, para fins didáticos apresenta-se um julgado em que o STJ afastou o reconhecimento do vínculo afetivo entre os supostos pais registrais e a criança em razão do reduzido espaço de tempo de convívio. Observe
AGRAVO INTERNO NO RECURSO ESPECIAL. AÇÃO DE DESTITUIÇÃO DO PODER FAMILIAR CUMULADA COM MEDIDA PROTETIVA DE ACOLHIMENTO INSTITUCIONAL. ‘ADOÇÃO À BRASILEIRA’. ENTREGA IRREGULAR DO INFANTE PELA MÃE BIOLÓGICA A TERCEIROS. AUSÊNCIA DE VÍNCULO AFETIVO DO MENOR COM OS SUPOSTOS PAIS REGISTRAIS. CONVÍVIO DE CURTO ESPAÇO DE TEMPO (TRÊS MESES). DETERMINAÇÃO DE ACOLHIMENTO INSTITUCIONAL. DESTITUIÇÃO DO PODER FAMILIAR. SITUAÇÃO DE RISCO. REEXAME DE PROVAS. IMPOSSIBILIDADE. APLICAÇÃO DA SÚMULA 7 DO STJ. AGRAVO DESPROVIDO. 1. A Corte estadual, à luz do caso concreto, consignou ser inviável mitigar as exigências relativas à adoção, ante a ausência de vínculo afetivo suficiente entre as partes. Concluiu, ainda, que o convívio do menor com os supostos pais registrais por reduzido lapso de tempo não permitiu que se solidificassem os laços afetivos criados entre a criança e o casal, razão pela qual determinou a manutenção do acolhimento institucional do infante. [...]3. Esta Corte Superior de Justiça, em recentes julgados das Turmas que compõem a Segunda Seção, nas hipóteses de destituição de poder familiar nos casos de ‘adoção à brasileira’, manifesta-se no sentido de que o convívio do adotando com os supostos pais registrais por reduzido lapso de tempo afasta ou enfraquece, significativamente, a configuração do vínculo socioafetivo porventura existente entre eles. 4. O Tribunal a quo consignou que é nítido que a criança foi colocada em situação de risco e que às partes foi assegurado o devido processo legal, elementos que, entre outros, formaram a base para decisão no que tange à destituição do poder familiar. A modificação de tal entendimento lançado no v. acórdão recorrido demandaria o revolvimento de suporte fático-probatório dos autos, o que é inviável em sede de recurso especial, a teor do que dispõe a Súmula 7 deste Pretório. 5. Agravo interno desprovido” (STJ, AgInt no REsp 1774015/SC, 2018/0270473-4, 4ª Turma, Rel. Min. Raul Araújo, j. 11-2-2020).(grifos nossos)
De outro giro, há diversos julgados que reconhecem a existência da filiação socioafetiva e mais, há o reconhecimento da multiparentalidade, quando há a concomitância de pais biológicos e registrais em face do mesmo filho, conforme será desenvolvido a seguir.
2.O RECONHECIMENTO DA MULTIPARENTALIDADE E DA EQUIVALÊNCIA ENTRE OS VÍNCULOS DE PARENTALIDADE BIOLÓGICA E SOCIOAFETIVA
A multiparentalidade já é uma realidade em nossa sociedade e é amplamente aceito pelos mais diversos tribunais. Registros de nascimento com mais de um pai ou mais de uma mãe são permitidos, tudo com base no melhor interesse da criança e do adolescente e na efetiva comprovação da existência de afeto entre o filho e seus diversos pais e mães.
O reconhecimento da multiparentalidade pela doutrina e pelos tribunais nada mais é do que o reconhecimento pelo Direito das novas modalidades de família (pluralidade de famílias) existentes na contemporaneidade.
E em razão da semelhança que se busca criar entre a família natural e adotiva, surge o questionamento se seria cabível a multiparentalidade na adoção.
E para responder ao questionamento a Autora Kátia Maciel aduz que os primeiros casos de multiparentalidade ocorreram em situações em que se descobriu que o pai registral não era o pai biológico e quando da ação de anulação de registro e reconhecimento de paternidade foi verificado que o filho mantinha laços de afeto com ambos os pais e estes, em acordo, entenderam que o melhor seria manter o nome do pai registral e acrescer o do pai biológico, pois isso atenderia ao melhor interesse da criança. (MACIEL, 2021).
Segundo a Autora, trazendo-se estas figuras para o instituto da adoção, podemos afirmar que há grande semelhança entre elas e não há nenhuma incompatibilidade entre o reconhecimento da multiparentalidade e o instituto da adoção. No entanto, para que isso se torne possível é necessário que haja vínculo de afeto entre a criança/adolescente e os pais biológicos e uma convivência pacífica e amistosa entre os pais adotivos e os biológicos, havendo de ser fixadas regras de guarda e visitação, sendo certo que a guarda, para que haja uma lógica na existência da adoção, deve ser unilateral para os pais adotivos. (MACIEL, 2021).
A multiparentalidade também já foi decidida pelo Supremo Tribunal Federal em sede de Repercussão Geral, no julgamento do RExt n. 898.060/SC, tendo sido reconhecida a possibilidade da filiação biológica concomitante à socioafetiva, por meio de tese assim firmada:
A paternidade socioafetiva, declarada ou não em registro público, não impede o reconhecimento do vínculo de filiação concomitante baseado na origem biológica, com os efeitos jurídicos próprios.
STF. Plenário. RE 898.060/SC, Rel. Min. Luiz Fux, julgado em 21 e 22/09/2016 (Info 840).
Segundo o Supremo, não se pode admitir que a ausência de lei dispondo sobre a multiparentalidade impeça o reconhecimento da filiação socioafetiva.
Importante ressaltar, ainda, que a filiação socioafetiva também pode ser reconhecida nos casos de adoção à brasileira, a qual se configura quando uma pessoa declara, para fins de registro civil, um menor como sendo seu filho biológico, sem que isso seja verdade.
Ademais, não se deve admitir que na certidão de nascimento conste o termo "pai socioafetivo", bem como não é possível afastar a possibilidade de efeitos patrimoniais e sucessórios quando reconhecida a multiparentalidade.
Para a observâncias dessas normas foi editado o Provimento n. 63/17 do CNJ, que institui modelos únicos de certidão de nascimento, casamento e óbito, a serem adotados pelos ofícios de registro civil das pessoas naturais, e dispõe sobre o reconhecimento voluntário e a averbação da paternidade e da maternidade socioafetivas, de modo que não é permitido utilizar nenhuma distinção de nomenclatura quanto à origem da paternidade ou da maternidade na certidão de nascimento – se biológica ou socioafetiva.
Em 2019, o provimento sofreu alteração e, em resumo, o provimento autoriza o registro da filiação socioafetiva na via extrajudicial apenas para pessoas acima de 12 anos de idade; o registrador atestará a existência da afetividade de forma objetiva, por todos os meios em direito permitidos, inclusive por intermédio de documentos e outros elementos concretos que possam demonstrar que o vínculo socioafetivo é estável, duradouro e público; os registros dependerão de parecer favorável do Ministério Público, podendo os casos com parecer contrário utilizar a via judicial; somente é possível a inclusão de um ascendente socioafetivo pela via extrajudicial (seja do lado paterno ou materno), e a eventual pretensão de inclusão de um segundo ascendente socioafetivo só poderá ser apreciada judicialmente.
Ressalte-se também que a possibilidade de cumulação da parentalidade socioafetiva com a biológica contempla especialmente o princípio constitucional da igualdade dos filhos (art. 227, § 6º, da CF), sendo expressamente vedado qualquer tipo de discriminação e, portanto, de hierarquia entre eles, consoante os arts. 1.596 do CC/2002 e 20 do Estatuto da Criança e Adolescente (ECA), entendimento esse também corroborado pela jurisprudência.
RECURSO ESPECIAL. DIREITO CIVIL. AÇÃO DECLARATÓRIA DE PATERNIDADE SOCIOAFETIVA. RECONHECIMENTO DA MULTIPARENTALIDADE. TRATAMENTO JURÍDICO DIFERENCIADO. PAI BIOLÓGICO. PAI SOCIOAFETIVO. IMPOSSIBILIDADE. RECURSO PROVIDO. 1. O Supremo Tribunal Federal, ao reconhecer, em sede de repercussão geral, a possibilidade da multiparentalidade, fixou a seguinte tese: "a paternidade socioafetiva, declarada ou não em registro público, não impede o reconhecimento do vínculo de filiação concomitante baseado na origem biológica, com os efeitos jurídicos próprios" (RE 898060, Relator: LUIZ FUX, Tribunal Pleno, julgado em 21/09/2016, PROCESSO ELETRÔNICO REPERCUSSÃO GERAL - MÉRITO DJe-187 DIVULG 23-08-2017 PUBLIC 24-08-2017). 2. A possibilidade de cumulação da paternidade socioafetiva com a biológica contempla especialmente o princípio constitucional da igualdade dos filhos (art. 227, § 6º, da CF). Isso porque conferir "status" diferenciado entre o genitor biológico e o socioafetivo é, por consequência, conceber um tratamento desigual entre os filhos. [...].4. Recurso especial provido para reconhecer a equivalência de tratamento e dos efeitos jurídicos entre as paternidades biológica e socioafetiva na hipótese de multiparentalidade. (grifos nossos).
3.EFEITOS E REPERCUSSÕES JURIDICAS DO RECONHECIMENTO DA MULTIPARENTALIDADE
Inicialmente, tem-se que o reconhecimento da multiparentalidade dotado de natureza declaratória possui diversos efeitos jurídicos e que em regra são permanentes, tais como os efeitos patrimoniais e sucessórios, alimentícios, de guarda, entre outros.
Do reconhecimento da multiparentalidade decorrem os efeitos sucessórios, conforme dispõe os Enunciados 632 e 642 da VIII Jornada de Direito Civil — CJF/STJ:
Enunciado 632: Nos casos de reconhecimento de multiparentalidade paterna ou materna, o filho terá direito à participação na herança de todos os ascendentes reconhecidos.
Enunciado 642: Nas hipóteses de multiparentalidade, havendo o falecimento do descendente com o chamamento de seus ascendentes à sucessão legítima, se houver igualdade em grau e diversidade em linha entre os ascendentes convocados a herdar, a herança deverá ser dividida em tantas linhas quantos sejam os genitores.
Ademais, as questões relacionadas a alimentos também sofre os efeitos do reconhecimento da multiparentalidade, segundo Pablo Stolze Gagliano e Rodolfo Pamplona Filho [3] pode haver dois pais no polo passivo, o pai biológico e o registral. Deste modo, quando da fixação da pensão alimentícia, com a observância dos princípios da proporcionalidade e o binômio necessidade x capacidade será levado em conta as condições dos dois legitimados passivos.
As questões relacionadas ao direito de guarda e visitação também seguem a mesma regra para os casos de vínculos biológicos e por adoção previstas no Código Civil.
Já no que se refere à anulação do registro de paternidade, o STJ – Superior Tribunal de Justiça, em junho de 2021, no julgamento do Resp 1829093-PR que elencou os requisitos necessários para a anulação do registo, quais sejam: a prova robusta no sentido de que o pai foi de fato induzido a erro, ou ainda, que tenha sido coagido a tanto e a inexistência de relação socioafetiva entre pai e filho. Ou seja, atualmente, ainda que o pai registrado como “biológico” não seja efetivamente o pai genético da criança se tiver sido firmado vínculo de afetividade não é possível anular o registro, em prestigio a relação socioafetiva formada.
O primeiro requisito está relacionado ao induzimento ao erro ou coação no momento do registro. No entanto, o STJ entende que não é qualquer erro que justifica a desconstituição do registro, uma vez que esse tem valor absoluto, desse modo são necessárias provas robustas de que, no momento do registro houve erro escusável por parte do pai que fez o reconhecimento voluntario da paternidade. É o que se extrai do art. 1.604 do Código Civil:
Art. 1.604. Ninguém pode vindicar estado contrário ao que resulta do registro de nascimento, salvo provando-se erro ou falsidade do registro.
Se o erro decorreu de mera negligência de quem registrou, o registro não será anulado.
Ademais, para que fique caracterizado o erro, é necessária a prova do engano não intencional na manifestação da vontade de registrar. Assim, no momento do registro, o pai registral deveria acreditar fielmente ser o verdadeiro pai biológico da criança. A existência de dúvidas sobre a origem da paternidade da criança elimina a existência de erro escusável.
Nas palavras da Ministra Nancy: “Em processos relacionados ao direito de filiação, é necessário que o julgador aprecie as controvérsias com prudência, para que o Poder Judiciário não venha a prejudicar a criança pelo mero capricho de um adulto que, livremente, o reconheceu como filho em ato público, e posteriormente, por motivo vil pretende ‘livrar-se do peso da paternidade’.”
Ainda, segundo a Ministra, o maior fundamento para a acolhida da filiação socioafetiva no sistema jurídico vigente, erige-se a cláusula geral de tutela da personalidade humana, que salvaguarda a filiação como elemento fundamental na formação da identidade do ser humano. [4]
Já o segundo requisito está ligado a inexistência de relação socioafetiva entre pai e filho registrado, assim para que a ação negatória de paternidade seja julgada procedente, não basta apenas que o DNA prove que o “pai registral” não é o “pai biológico”.
O êxito da ação negatória de paternidade depende da demonstração da inexistência de origem biológica E não ter sido construída uma relação socioafetiva entre pai e filho registrais. Pois, a filiação socioafetiva trata-se de um fenômeno social e apesar de não ter previsão legal, é amplamente acolhida pela doutrina e jurisprudência, buscando-se reconhecer os vínculos de afetividade criados entre a figura de pai e filho.
Desse modo, a jurisprudência entende que a mera comprovação da inexistência de paternidade biológica através do exame do DNA não é suficiente para desconstituir a relação socioafetiva criada entre os indivíduos.
Segundo o Ministro Luis Felipe Salomão, no julgamento do Resp 1.059.214-RS, a filiação deve ser entendida como elemento fundamental da identidade do ser humano, da própria dignidade humana. O nosso ordenamento jurídico acolheu a filiação socioafetiva como verdadeira cláusula geral de tutela da personalidade humana.
Assim, segundo o jurista, para que a ação negatória de paternidade seja julgada procedente, não basta apenas que o DNA prove que o “pai registral” não é o “pai biológico”. É necessário também que fique provado que o “pai registral” nunca foi um “pai socioafetivo”, ou seja, que nunca foi construída uma relação socioafetiva entre pai e filho. (STJ. 4ª Turma. REsp 1.059.214-RS, Min. Luis Felipe Salomão, julgado em 16/2/2012).
Corroborando esse entendimento, recentemente em Maio/2022, o Ministro RICARDO VILLAS BÔAS, no julgamento do REsp 1.867.308/MT aduziu que o exame de paternidade negativo não é suficiente, por si só, para desconstituir a paternidade socioafetiva que, para além da paternidade biológica, fica caracterizada pelas demonstraçõess afetivas conferidas em vida pelo falecido ao menor, sem prejuízo do reconhecimento do pai biológico, em respeito ao instituto da multiparentalidade.
(STJ. 3ª Turma. REsp 1.867.308/MT, Rel. Min. Ricardo Villas Bôas Cueva, julgado em 11/05/2022)
De outro giro, uma vez comprovado o erro escusável, bem como o induzimento a erro no momento de registrar a criança, o pai registral que não é pai biológico poderá contestar a paternidade, pedindo a retificação do registro (arts. 1.601 e 1.604 do CC), pois segundo o STJ não se pode obrigar o pai registral, induzido a erro substancial, a manter uma relação de afeto, igualmente calcada no vício de consentimento originário, impondo-lhe os deveres daí advindos, sem que, voluntária e conscientemente, o queira.
Além disso, exige-se também que para que o o registro seja desconstituído é necessário que o pai registral enganado, tão logo ele tenha conhecimento da verdade ele se afaste do suposto filho, rompendo imediatamente o vínculo afetivo.
Pois, segundo o Ministro Marco Aurélio Bellizze, no julgamento do Resp 1330404-RS se o pai registral enganado, mesmo após o descobrimento da verdade, ainda manteve vínculos afetivos com o filho registral, neste caso ele não mais poderá desconstituir a paternidade. (STJ. 3ª Turma. REsp 1330404-RS, Rel. Min. Marco Aurélio Bellizze, julgado em 5/2/2015 (Info 555).
Por fim, é possível o reconhecimento da paternidade/maternidade socioafetiva post mortem do genitor, ou seja, mesmo após a morte do suposto pai/mãe socioafetivo. Em outras palavras, é possível que o suposto filho ingresse com ação pedindo para ser reconhecido como filho socioafetivo do pai ou mãe que já faleceu.
E para que haja o reconhecimento da paternidade ou maternidade é necessário o consentimento do suposto filho apenas se for maior de 18 anos, para menores de 18 anos não precisa do consentimento, mas este depois que completar a maioridade terá o prazo de até 4 anos para questionar esse reconhecimento.
É o que determina o Código Civil:
Art. 1.614. O filho maior não pode ser reconhecido sem o seu consentimento, e o menor pode impugnar o reconhecimento, nos quatro anos que se seguirem à maioridade, ou à emancipação.
CONCLUSÃO
Na conclusão do presente trabalho percebe-se a importância na vida social, emocional dos jurisdicionados e também na sociedade do reconhecimento pelos Tribunais superiores e pela doutrina do instituto da Multiparentalidade e da Paternidade/Maternidade socioafetiva.
Atenta-se que o direito a multiparentalidade e a parentalidade socioafetiva estão interligados ao princípio da dignidade da pessoa humana e na proteção dos modelos de família contemporâneos.
É dado tratamento equânime entre a parentalidade biológica e a socioafetiva pelo ordenamento jurídicos implicando nos mais diversos efeitos, tais como sucessório, patrimonial, alimentício, guarda e visitação, entre outros.
É notório também que traria mais segurança jurídica caso o tema fosse objeto de lei formal em sentido estrito a fim de evitar a judicialização excessiva por falta de previsão legal, quando então o Poder Judiciário é chamado para solucionar.
No entanto, essa ausência não impede que o instituto seja amplamente reconhecido pelos Tribunais Superiores do país e tenha assegurada a sua proteção com base nos princípios constitucionais e nas normas infra legais.
Portanto, atualmente é amplamente aceito a multiparentalidade e a parentalidade socioafetiva podendo ocorrer inclusive em âmbito administrativo e é expressamente vedado a pratica de atitudes discriminatórias ou desiguais em relação aos outros modelos de filiados existentes no ordenamento jurídico, bem como aos filhos, em prestigio ao princípio da igualdade entre a prole previsto constitucionalmente.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
BRASIL. Constituição Federal de 1988. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constituição.htm>. Acesso em: 10/09/2022.
BRASIL. Código Civil. Disponível em: < http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/2002/l10406compilada.htm> Acesso em: 10/09/2022.
MACIEL, Kátia Regina Ferreira Lobo A. Curso de Direito da Criança e do Adolescente. Editora Saraiva, 2021. E-book. ISBN 9786555592726. Disponível em: https://integrada.minhabiblioteca.com.br/#/books/9786555592726/. Acesso em: 14 set. 2022.
[1] PAULO, Beatrice Marinho. Família: uma relação socioafetiva. In: Psicologia na prática jurídica. São Paulo: Saraiva, 2012, p. 56.
[2] CASSETTARI, Christiano. Multiparentalidade e parentalidade socioafetiva: efeitos jurídicos. 2. ed. São Paulo: Atlas, 2015, p. 28. Para o autor (fls. 234 e 235):
[3] GAGLIANO, Pablo Stolze. FILHO, Rodolfo Pamplona. Novo curso de direito civil: direito de família, vol. 6). Editora Saraiva, 2019.
[4] Disponível em: https://processo.stj.jus.br/processo/julgamento/eletronico/documento/mediado/?documento_tipo=integra&documento_sequencial=128286737®istro_numero=201902228721&peticao_numero=&publicacao_data=20210610&formato=PDF. Acesso em: 10/09/2022.
CAVALCANTE, Márcio André Lopes. Reconhecimento de paternidade socioafetiva post mortem. Buscador Dizer o Direito, Manaus. Disponível em: <https://www.buscadordizerodireito.com.br/jurisprudencia/detalhes/7501e5d4da87ac39d782741cd794002d>. Acesso em: 08/09/2022
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CAVALCANTE, Márcio André Lopes. A divergência entre a paternidade biológica e a declarada no registro de nascimento não é apta, por si só, para anular o ato registral, dada a proteção conferida à paternidade socioafetivaa. Buscador Dizer o Direito, Manaus. Disponível em: <https://www.buscadordizerodireito.com.br/jurisprudencia/detalhes/ce2b9a26bddc32cba5af69372ee14c00>. Acesso em: 14/09/2022
Advogada e pós-graduada em Direito Processual Civil.
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: PAIXAO, Audrey Karen Prado. O reconhecimento da multiparentalidade e da parentalidade socioafetiva em equivalência com a parentalidade biológica e seus efeitos jurídicos Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 19 set 2022, 04:12. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/artigos/59175/o-reconhecimento-da-multiparentalidade-e-da-parentalidade-socioafetiva-em-equivalncia-com-a-parentalidade-biolgica-e-seus-efeitos-jurdicos. Acesso em: 26 dez 2024.
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