RESUMO: O presente artigo busca analisar a evolução dos direitos da população LGBTQIA+ por meio da pesquisa das decisões proferidas no âmbito do Superior Tribunal de Justiça e do Supremo Tribunal Federal, em razão da inércia do Poder Legislativo a respeito da temática.
Palavras-chave: população LGBTQIA+. Evolução. Direitos. Jurisprudência.
Sumário: 1. Introdução. 2. A mutação legislativa a partir da intepretação conforme à Constituição. 3. As decisões das Cortes Superiores a respeito dos direitos da população LGBTQIA+. 4. Conclusão. 5. Referências.
INTRODUÇÃO
É sabido que a temática LGBTQIA+ vem sendo analisada pelas Cortes Superiores de nosso país e que as decisões são amplamente discutidas e polemizadas. Isso se dá justamente pela mora legislativa em definir políticas públicas voltadas aos problemas enfrentados por essa minoria no dia a dia. Cabe ressaltar que, sob um argumento político e ideológico, muitas propostas sequer são analisadas nas casas legislativas, gerando grande insegurança jurídica ao grupo, que não possui uma normativa de temática específica que busca a proteção de seus direitos. Dessa forma, observa-se a necessidade de se utilizar de técnicas de julgamento capazes de salvaguardar os direitos dessa comunidade.
2. A MUTAÇÃO LEGISLATIVA A PARTIR DA INTEPRETAÇÃO CONFORME À CONSTITUIÇÃO
Inicialmente cabe ressaltar o significado de mutação constitucional. Na mutação constitucional, diferente da reforma constitucional, não há modificação do texto constitucional, mas sim no sentido interpretativo da norma. Sendo assim, ao utilizar desse instituto, o intérprete mantém o texto íntegro e inalterado, apenas aproveitando-se de mecanismos que permitam que a norma seja lida de acordo com a realidade social do momento de sua intepretação.
Nesse sentido, o Ministro Luís Roberto Barroso ressalta que, para ser legítima, a mutação deve ter um alicerce democrático, correspondendo a uma demanda social efetiva por parte da coletividade.
A mutação pode-se dar por diversos mecanismos, como intepretação judicial ou administrativa, pelo costume ou pelo próprio legislador, a partir de atos normativos que conduzam a interpretação a um sentido específico.
Considerando o objeto do presente artigo, daremos ênfase à interpretação judicial. Para tanto, BARROSO (2019) define que as Supremas Cortes possuem três papéis a serem desempenhados nas democracias constitucionais contemporâneas.
O primeiro se trata do papel contramajoritário, que trata da possibilidade de juízes de Cortes Superiores, que não receberam voto popular, podem sobrepor sua interpretação da Constituição a que foi feita por agentes políticos investidos de mandato representativo e legitimidade democrática, visando: a proteção dos direitos fundamentais e a proteção das regras do jogo democrático e dos canais de participação política de todos. Isso se dá pela possibilidade de se defender os seguimentos minoritários que não foram representados pelos membros do parlamento.
O segundo é o papel representativo, que define que na maior parte das vezes, embora eleitos pelo povo, as decisões dos membros do Legislativo não representam a vontade da maioria, e essa crise de representatividade é resolvida pelas Supremas Cortes. Isso é possível considerando que seus membros possuem qualificação técnica dos julgadores, sua independência funcional é garantida por meio da vitaliciedade, pela inércia jurisdicional e pela motivação das decisões judiciais.
E por fim, as Supremas Cortes também possuem o papel iluminista que, segundo o Min. Barroso, deve ser utilizado com parcimônia, eis que trata de decisões que não correspondem à vontade do Congresso Nacional, nem ao sentimento majoritário da sociedade, mas que é vista como correta por refletir direitos que envolvem minorias na sociedade, como é o caso da população LGBTQIA+.
3. AS DECISÕES DAS CORTES SUPERIORES A RESPEITO DOS DIREITOS DA POPULAÇÃO LGBTQIA+
Na Constituição Federal temos como seu fundamento a dignidade da pessoa humana (art. 1º, III) e como um de seus objetivos fundamentais a promoção do bem de todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação (art. 3º, IV).
Ainda, além da igualdade (caput) e proibição de tratamentos degradantes (inciso III), o art. 5º possui o mandado de criminalização de punir qualquer discriminação atentatória dos direitos e liberdades fundamentais (inciso XLI).
A partir desses direitos e garantias fundamentais constitucionalmente garantidos, alguns avanços foram alcançados pela população LGBTQIA+.
Em 2011 foi julgada pelo Supremo Tribunal Federal a ADPF nº 132, cuja matéria analisava a possibilidade de casamento e união estável de casais homoafetivos. Nesse emblemático julgado, o STF entendeu que a proibição de discriminação das pessoas em razão do sexo (art. 3º, IV, da CF) vai além da dicotomia homem/mulher (gênero), abrangendo a orientação sexual de cada indivíduo.
Além disso, a Suprema Corte entendeu que a dignidade da pessoa humana deve abranger o direito à preferência sexual, em razão da autonomia da vontade das pessoas.
O STF decidiu ainda, que “a Constituição de 1988 ao utilizar-se da expressão “família”, não limita sua formação a casais heteroafetivos nem a formalidade cartorária, celebração civil ou liturgia religiosa. Família como instituição privada que, voluntariamente constituída entre pessoas adultas, mantém com o Estado e a sociedade civil uma necessária relação tricotômica”.
No tocante à questão principal, objeto do julgado, a união estável de casais homoafetivos, o art. 226, §3º, da CF, não pode ser interpretado de forma a excluir casais não compostos por “homem e mulher”, em razão justamente da violação ao direito da igualdade e à autodeterminação.
Assim, decidiu-se que o art. 1.723 do Código Civil deveria ser interpretado conforme à Constitucional Federal, de modo a excluir do dispositivo em causa qualquer significado que impeça o reconhecimento da união contínua, pública e duradoura entre pessoas do mesmo sexo como família.
Como efeito desse julgamento, a Resolução 175/2013 do Conselho Nacional de Justiça – CNJ obrigou cartórios de todo o país a celebrarem o casamento civil e a conversão de união estável em casamento entre pessoas de mesmo sexo, fazendo valer, na prática, o reconhecimento dessas famílias pelo STF.
Seguindo fundamentação semelhante, o Superior Tribunal de Justiça, no julgamento do REsp 889.852/RS em 27/04/2010, entendeu pela possibilidade de se reconhecer a adoção por casais homoafetivos[1], devendo-se analisar nesses casos somente o preenchimento dos requisitos previstos no ECA, bem como o cumprimento do princípio do maior interesse do adotando.
Na temática filiação, verifica-se que em 2017 foi elaborado pelo CNJ o provimento nº 63 acerca do registro de certidões de filhos havidos por reprodução assistida. Segundo o art. 16, “o assento de nascimento será inscrito no Livro independentemente de independentemente de prévia autorização judicial, mediante o comparecimento de ambos os pais, munidos de documentação exigida por este provimento”. E mais, “no caso de filhos de casais homoafetivos, o assento de nascimento deverá ser adequado para que constem os nomes dos ascendentes, sem referência a distinção quanto à ascendência paterna ou materna”.
O provimento ainda define que “na hipótese de gestação por substituição, não constará do registro o nome da parturiente, informado na declaração de nascido vivo, devendo ser apresentado termo de compromisso firmado pela doadora temporária do útero, esclarecendo a questão da filiação”.
Outra grande conquista da população LGBTQIA+, fundamentada no direito à igualdade e à dignidade da pessoa humana, foi a possibilidade de alteração do prenome e do sexo no registro civil de modo administrativo ou judicial, independentemente de procedimento cirúrgico e laudos de terceiros, bastando a autoidentificação firmada em declaração escrita[2].
Por outro lado, cabe ressaltar que no ano de 2020 o STF realizou o julgamento de duas temáticas muito importantes para a minoria LGBTQIA+.
A primeira, na ADI 5543, a respeito da proibição de doação de sangue por pessoas homossexuais[3]. Nesse julgado, o STF entendeu que a referida proibição se trata de discriminação por orientação sexual, violadora da dignidade humana e do direito à igualdade o estabelecimento de grupos – e não de condutas – de risco.
Segundo a ementa, “orientação sexual não contamina ninguém, condutas de risco sim” e “a restrição à doação de sangue por homossexuais afronta a sua autonomia privada, pois se impede que elas exerçam plenamente suas escolhas de vida, com quem se relacionar, com que frequência, ainda que de maneira sexualmente segura e saudável; e a sua autonomia pública, pois se veda a possibilidade de auxiliarem àqueles que necessitam, por qualquer razão, de transfusão de sangue”.
Assim, foi decidido que a vedação presente no art. 64, IV, da Portaria n. 158/2016 do Ministério da Saúde e no art. 25, XXX, d, da Resolução da Diretoria Colegiada – RDC n. 34/2014 da Agência Nacional de Vigilância Sanitária é inconstitucional, viola a igualdade, impactando desproporcionalmente sobre homens homossexuais e bissexuais, subjugando-os, sem identificar as condutas que são verdadeiramente arriscadas.
Trazemos, ainda, talvez o entendimento mais comentado do ano de 2020. No julgamento da ADO nº 26 e do MI nº 4733, decidiu-se aplicar a Lei 7.716/89 às condutas de homofobia e transfobia, a fim de estender a tipificação prevista para os crimes resultantes de discriminação ou preconceito de raça, cor, etnia, religião ou procedência nacional à discriminação por orientação sexual ou identidade de gênero.
O Supremo Tribunal Federal entendeu que a mora e omissão legislativa em punir as condutas criminosas de discriminação contra homossexuais e transexuais sinaliza uma verdadeira tolerância a violência sofrida por esses grupos identitários.
Trata-se de uma decisão destinada a implementar os mandados de criminalização presentes no art. 5º, XLI e XLII, da CF. Por isso, para o Pleno, não se trata de analogia, mas de aplicação da técnica constitucional hermenêutica de interpretação conforma a Constituição.
Além disso, considerou-se que o conceito de racismo possui várias dimensões, sendo utilizada pelo STF a dimensão social, que se projeta para além de aspectos fenotípicos ou biológicos, utilizando-se de uma manifestação de poder construída de forma hegemônica histórico-cultural, com o objetivo de aumentar a desigualdade e a dominação política de grupos vulneráveis.
Apesar de muito criticada pelos agentes do Direito, entendemos como acertada a decisão do Supremo Tribunal Federal, considerado justamente os papéis contramajoritário, representativo e iluminista das Supremas Cortes, na defesa de direitos que são ignorados pelas forças políticas presentes no Poder Legislativo.
Por fim, é preciso ressaltar o entendimento firmado no julgamento da ADPF 527 MC/DF[4]. O objeto principal da ação refere-se às decisões conflitantes acerca do conteúdo e alcance dos art. 3º, §§1º e 2º, e art. 4º, caput e parágrafo único, da Resolução Conjunta da Presidência da República e do Conselho de Combate à Discriminação n ]1 de 14/04/2014, que estabeleceu parâmetros de acolhimento da população LGBTQIA+ submetida à segregação em estabelecimentos prisionais.
Nesse sentido, o Ministro Luis Roberto Barroso ajustou os termos de cautelar concedida anteriormente na ação, para outorgar às transexuais e travestis com identidade de gênero feminina o direito de opção por a cumprir a pena: (i) em estabelecimento prisional feminino; ou (ii) em estabelecimento prisional masculino, porém em área reservada, que garanta sua segurança.
Além de fundamentar nos princípios de Yogyakarta, o Relator entendeu que tal determinação vai ao encontro (i) do princípio da dignidade humana (ii) do direito à não discriminação em razão da identidade de gênero ou em razão da orientação sexual, (iii) do direito à vida e à integridade física, (iv) do direito à saúde, (v) da vedação à tortura e ao tratamento desumano ou cruel e (vi) da cláusula de abertura da Constituição de 1988 ao Direito Internacional dos direitos humanos.
CONCLUSÃO
Não pairam dúvidas sobre os importantes avanços conquistados pela população LGBTQIA+ nos últimos anos. Porém, deve ser sinalizada a preocupação ante a evolução somente realizada pelo Poder Judiciário, ao reprimir condutas discriminatórias em razão do princípio da dignidade da pessoa humana.
Os direitos fundamentais de grupos minoritários devem ser matéria de atenção de todos os agentes públicos, na elaboração de leis e políticas que visem solucionar de forma efetiva toda a violência e intolerância sofrida por esse grupo.
Com efeito, devemos enquanto sociedade buscar a garantia efetiva desses direitos de forma específica, em razão das demandas inerentes da comunidade LGBTQIA+, sob pena de sermos tolerantes com a supressão rotineira de aspectos intrínsecos de uma vida com dignidade.
5. REFERÊNCIAS
BARROSO, Luís Roberto. Os três Papeis Desempenhados pelas Supremas Cortes nas Democracias Constitucionais Contemporâneas. Revista EMERJ, Rio de Janeiro, v. 21, n. 3, t. 1, p. 11-35, set.-dez., 2019. Disponível em: https://www.emerj.tjrj.jus.br/revistaemerj_online/edicoes/revista_v21_n3/tomo1/revista_v21_n3_tomo1_11.pdf. Acesso em 08/2022.
REIS, T., org. Manual de Comunicação LGBTI+. 2ª edição. Curitiba: Aliança Nacional LGBTI / GayLatino, 2018. Disponível em: https://www.grupodignidade.org.br/wp-content/uploads/ 2018/05/manual-comunicacao-LGBTI.pdf. Acesso em 08/2022
[1] Superior Tribunal de Justiça. Relator Ministro Luis Felipe Salomão. https://processo.stj.jus.br/SCON/jurisprudencia/toc.jsp?livre=%28RESP.clas.+e+%40num%3D%22889852%22%29+ou+%28RESP+adj+%22889852%22%29.suce.
[2] ADI 4275 - Relator(a): Min. Marco Aurelio – Julgamento em 01/03/2018. Disponível em: https://jurisprudencia.stf.jus.br/pages/search?classeNumeroIncidente=%22ADI%204275%22&base=acordaos&sinonimo=true&plural=true&page=1&pageSize=10&sort=_score&sortBy=desc&isAdvanced=true
[3] Supremo Tribunal Federal. ADI 5543. Relator Ministro Edson Fachin. Julgamento em 11/05/2020. Disponível em: https://jurisprudencia.stf.jus.br/pages/search?base=acordaos&pesquisa_inteiro_teor=false&sinonimo=true&plural=true&radicais=false&buscaExata=true&page=1&pageSize=10&queryString=ADI%20%205543&sort=_score&sortBy=desc
[4] Supremo Tribunal Federal. ADPF 527 MC / DF. Relator(a): Min. ROBERTO BARROSO. Julgamento: 18/03/2021. Disponível em: https://jurisprudencia.stf.jus.br/pages/search?classeNumeroIncidente=%22ADPF%20527%22&base=decisoes&pesquisa_inteiro_teor=false&sinonimo=true&plural=true&radicais=false&buscaExata=true&page=1&pageSize=10&sort=_score&sortBy=desc&isAdvanced=true
Advogada especialista em Direito Público.
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: PARREIRA, Ana Laura Baiocchi de Souza. O papel das cortes superiores na conquista dos direitos da população LGBTQIA+ no Brasil Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 19 set 2022, 04:10. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/artigos/59176/o-papel-das-cortes-superiores-na-conquista-dos-direitos-da-populao-lgbtqia-no-brasil. Acesso em: 26 dez 2024.
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