RESUMO: O presente artigo busca analisar a eficácia da tutela dos direitos das mulheres, a partir dos casos brasileiros submetidos ao sistema regional interamericano de direitos humanos. Para isso, buscou-se as decisões e relatórios elaborados pelos órgãos do sistema da Convenção Americana de Direitos Humanos.
Palavras-chaves: Mulheres. Direitos Humanos. Sistema Interamericano. Violência.
Sumário: 1. Introdução. 2. O reconhecimento da vulnerabilidade das mulheres. 3. Casos brasileiros na temática de violência contra a mulher submetidos ao sistema da CADH. 4. Conclusão. 5. Referências.
INTRODUÇÃO
A partir do estudo sobre o reconhecimento da vulnerabilidade social das mulheres, verifica-se que o crescente aumento das violências domésticas e sexuais sofridas justifica a aplicabilidade de políticas públicas específicas acerca dessa problemática.
Nesse sentido, busca analisar se a tutela dos direitos humanos das mulheres é garantida de modo eficaz, embora existam tratados específicos sobre a temática.
Na pesquisa dos casos submetidos ao sistema da Convenção Americana de Direitos Humanos, o artigo descreve as determinações realizadas pelos órgãos de proteção, bem avalia o grau de efetividade, considerando o cumprimento dessas providências e a capacidade de se prevenir futuras violações.
2. O RECONHECIMENTO DA VULNERABILIDADE DAS MULHERES
O principal ponto do presente artigo gira em torno da vulnerabilidade feminina e é a partir daí que surgem dúvidas sobre até que ponto os direitos fundamentais, atrelados a princípios conhecidos como universais, correspondem às necessidades e particularidades dos indivíduos, seja socioculturalmente, ou em relação à questão do gênero aqui debatida.
Portanto, não se torna adequado o tratamento dos indivíduos de forma genérica e igual. Para além disso, é necessário que se identifique as vulnerabilidades de cada grupo social, para que seja possível apontar as suas peculiaridades e necessidades. Nesse cenário, as mulheres, dentre outras categorias vulneráveis, devem ser observadas a partir de sua condição social. Assim, ao lado do direito à igualdade surge também a proibição de tratamento discriminatório, o que lhes assegura a elaboração de políticas públicas voltadas às suas demandas específicas.
De uma análise geral, observa-se que os estereótipos de gênero se manifestam na segregação dos gêneros, primeiro no sistema educacional e depois no mercado de trabalho. Mulheres ainda são comumente dissuadidas quando procuram seguir carreiras científicas e tecnológicas em relação aos homens e, mesmo que ainda persistam, têm menor probabilidade de conseguir vagas de emprego nesses campos. Essas “escolhas” são influenciadas por estereótipos sobre as ocupações “adequadas”, em vez de se basearem nas suas habilidades e conhecimentos.
O progresso na conquista de direitos civis e políticos das mulheres tem sido uma evolução notável nos movimentos das mulheres. Em menos de um século, foram conquistados o direito de votar e concorrer a cargos públicos em praticamente todos os países do mundo. Mas tais avanços parecem tímidos ao se analisar todas as demandas que precisam ter sua ampliação levada às políticas públicas.
Essa questão é levada ao debate principalmente no que tange aos números crescentes de vítimas de violência doméstica e violência sexual, considerando que muitos casos sequer entram nas estatísticas, permanecendo nas cifras ocultas, por não serem denunciados ou não serem de fato processados.
Segundo estudo realizado em 2022 pelo Fórum Brasileiro de Segurança Pública, os dados preliminares da pesquisa noticiam que no ano de 2021, 1.319 mulheres foram vítimas de feminicídio e 56.098 mulheres foram vítimas de estupros (incluindo vulneráveis), crescimento de 3,7% em relação ao ano anterior.
A pesquisa traz um número absolutamente preocupante: em 2021, em média, uma mulher foi vítima de feminicídio a cada 7 horas.
Sendo assim, observa-se a necessidade de salvaguardar de forma específica a integridade física e a vida das mulheres, considerando sua vulnerabilidade nas relações de poder.
3. CASOS BRASILEIROS NA TEMÁTICA DE VIOLÊNCIA CONTRA A MULHER SUBMETIDOS AO SISTEMA DA CADH
No tocante à proteção específica das mulheres, a Convenção Interamericana para prevenir, punir e erradicar a violência contra a mulher (Convenção de Belém do Pará, 1994) estabeleceu o comprometimento dos Estados signatários na garantia de uma vida sem violência às mulheres. Declarou ainda que deve ocorrer a prevenção da violência de gênero, mas sem deixar de lado as necessidades e reparação dos danos sofridos pelas vítimas.
A primeira atuação da Comissão utilizando-se da Convenção de Belém do Pará é referente ao Caso Maria da Penha. Em 1998, centros brasileiros de defesa dos direitos humanos e Maria da Penha Maia Fernandes, denunciaram o Brasil na Comissão Interamericana de Direitos Humanos pela ausência de celeridade na tramitação do processo que julgaria e punibilizaria seu companheiro pelas duas tentativas de homicídio cometidas em 1983.
A petição ainda narrou que o Estado brasileiro se mantinha inerte na prevenção de violência doméstica, bem como na reparação efetiva das vítimas.
Três anos após a petição, a Comissão entendeu que o Brasil foi responsável pelo não cumprimento de seus deveres estabelecidos nas alíneas b, d, e, f e g do artigo 7 da Convenção de Belém do Pará, em conexão com os artigos 8 e 25 da Convenção Americana, em face da sua conduta negligente e omissiva.
Ainda, a Comissão relatou que o país manteve a impunidade em relação à violência doméstica contra as mulheres, recomendando que a decisão do processo de Maria da Penha transitasse em julgado, que houvesse uma responsabilização dos agentes públicos pelos atrasos injustificados, bem como que fossem criadas políticas públicas que pudessem prevenir e punir a violência contra a mulher.
O caso Maria da Penha foi paradigmático na temática da violência contra a mulher, porém, cabe ressaltar que o Brasil não foi condenado pela Corte Interamericana de Direitos Humanos eis que a aceitação de sua competência contenciosa somente foi promovida em 1998, após a ocorrência do fato investigado.
Contudo, tal impedimento não obstou que a Comissão estabelecesse as seguintes recomendações para o Brasil[1]:
a) proceda a uma investigação séria, imparcial e exaustiva para determinar a responsabilidade penal do autor do delito de tentativa de homicídio em prejuízo da Senhora Fernandes e para determinar se há outros fatos ou ações de agentes estatais que tenham impedido o processamento rápido e efetivo do responsável;
b) reparação efetiva e pronta da vítima e a adoção de medidas, no âmbito nacional, para eliminar essa tolerância do Estado ante a violência doméstica contra mulheres.
Seguindo uma das recomendações, em 07 de agosto de 2006, a Lei Maria da Penha foi sancionada para criar mecanismos para coibir a violência doméstica e familiar contra a mulher, nos termos da Constituição Federal, da Convenção sobre a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação contra as Mulheres e da Convenção Interamericana para Prevenir, Punir e Erradicar a Violência contra a Mulher.
Embora tenha sido um grande progresso nacional e internacional na punição das agressões contra a mulher, o Brasil ainda não cumpriu outras recomendações, conforme verificado no Relatório nº 51/01[2] elaborado pela própria Comissão Interamericana. Sendo assim, foram realizadas pela Comissão novas recomendações quanto à perpetuação da violência doméstica no país:
a) Medidas de capacitação e sensibilização dos funcionários judiciais e policiais especializados para que compreendam a importância de não tolerar a violência doméstica;
b) Simplificar os procedimentos judiciais penais a fim de que possa ser reduzido o tempo processual, sem afetar os direitos e garantias de devido processo;
c) O estabelecimento de formas alternativas às judiciais, rápidas e efetivas de solução de conflitos intrafamiliares, bem como de sensibilização com respeito à sua gravidade e às consequências penais que gera;
d) Multiplicar o número de delegacias policiais especiais para a defesa dos direitos da mulher e dotá-las dos recursos especiais necessários à efetiva tramitação e investigação de todas as denúncias de violência doméstica, bem como prestar apoio ao Ministério Público na preparação de seus informes judiciais.
e) Incluir em seus planos pedagógicos unidades curriculares destinadas à compreensão da importância do respeito à mulher e a seus direitos reconhecidos na Convenção de Belém do Pará, bem como ao manejo dos conflitos intrafamiliares.
Cabe ressaltar que infelizmente esta não foi a última responsabilização do Estado brasileiro quanto à violência doméstica e discriminações sofridas por mulheres no sistema interamericano. Em 2021, o Brasil foi condenado pela Corte Interamericana de Direitos Humanos em razão do feminicídio de Márcia Barbosa de Souza, praticado por um deputado estadual.
Márcia era uma jovem negra em situação de pobreza e em 1998 foi morta por asfixia pelo deputado estadual Aércio Pereira de Lima. Ocorre que a competência por prerrogativa de função tornou-se um empecilho ao adequado processamento e julgamento do caso de Márcia, sendo o acusado condenado apenas em 2007.
No processamento do caso perante a Corte IDH[3], depreendeu-se que durante o julgamento perante as autoridades brasileiras, as características físicas de Márcia foram utilizadas pela defesa do deputado como forma de descredibilizá-la, caracterizando verdadeira discriminação de gênero.
Sendo assim, a Corte entendeu que no Brasil existe uma verdadeira violência estrutural contra a mulher e por isso reconheceu a violação dos direitos às garantias judiciais, à igualdade perante a lei e à proteção judicial, além dos direitos à integridade pessoal dos familiares de Márcia.
Por fim, no caso Márcia Barbosa, o Brasil foi condenado a reparar de forma adequada aos padecimentos médicos, psicológicos ou psiquiátricos sofridos pela mãe de Márcia, custear os gastos dos tratamentos que sejam necessários.
Além disso, como forma de solucionar a questão das cifras ocultas, determinou-se que o Brasil deve:
a) implementar, respectivamente nos prazos de um e três anos, um sistema nacional e centralizado de recopilação de dados desagregados por idade, raça, classe social, perfil de vítima, lugar de ocorrência, perfil do agressor, relação com a vítima, meios e métodos utilizados, entre outras variáveis, que permitam a análise quantitativa e qualitativa de fatos de violência contra as mulheres e, em particular, de mortes violentas de mulheres.
b) criar e implementar, no prazo de dois anos, um plano de formação e capacitação continuada e sensibilização das forças policiais responsáveis pela investigação e a operadores de justiça do Estado da Paraíba, com perspectiva de gênero e raça, para garantir que contem com os conhecimentos necessários para identificar atos e manifestações de violência contra as mulheres baseadas no gênero, e investigar e processar os perpetradores, incluindo através do oferecimento de ferramentas e capacitação sobre aspectos técnicos e jurídicos deste tipo de delitos;
Sendo assim, podemos perceber que os casos de violência contra a mulher continuam se repetindo em efeito cascata, mesmo com a grande chance de responsabilização internacional do país pela ausência de reparação da vítima ou de respeito ao devido processo legal durante a tramitação das investigações e judicializações das violações dos direitos das mulheres.
CONCLUSÃO
A partir da pesquisa realizada nesse artigo, pode-se observar que, embora inovações normativas tenham sido realizadas nos últimos anos no Brasil, a efetiva prevenção das violências sofridas pelas mulheres ainda não foi alvo de políticas públicas.
Apesar dos casos submetidos às Cortes Internacionais e da responsabilização do Brasil nessa temática, percebe-se que as mesmas violências se repetem todos os dias, o que demonstra a ineficácia desses instrumentos, quando não existem ações preventivas dos atos violentos.
Conclui-se que enquanto não houver um sistema preventivo eficaz, que não só repara e acolhe as vítimas após o ato violento, mas que mude a visão de controle do machismo estrutural, os direitos fundamentais das mulheres continuarão sendo violados.
REFERÊNCIAS
CEDAW – CONVENÇÃO SOBRE A ELIMINAÇÃO DE TODAS AS FORMAS DE DISCRIMINAÇÃO CONTRA A MULHER. Violence against women. CEDAW General Recommendation n. 19, A/47/38. (General Comments), 29/01/92, disponível em: http://www.onumulheres.org.br/wp-content/uploads/2013/03/convencao_cedaw.pdf. Acesso em: 10 de junho de 2022.
COMISSÃO INTERAMERICANA DE DIREITOS HUMANOS. Relatório N° 54/01 Comissão Interamericana De Direitos Humanos - Caso 12.051 - Maria Da Penha Maia Fernandes Vs. Brasil. Disponível em: https://www.cidh.oas.org/annualrep/2000port/12051.htm#:~:text=A%20Comiss%C3%A3o%20Interamericana%20de%20Direitos%20Humanos%20reitera%20ao%20Estado%20Brasileiro,Maria%20da%20Penha%20Fernandes%20Maia. Acesso em: 10 de junho de 2022.
CONVENÇÃO DE BELÉM DO PARÁ. Convenção Interamericana para Prevenir, Punir e Erradicar a Violência Contra a Mulher. 1994. Disponível em: http://www.oas.org/juridico/portuguese/treaties/a-61.htm. Acesso em: 10 de junho de 2022.
CONFERÊNCIA MUNDIAL SOBRE DIREITOS HUMANOS. Declaração e Programa de Ação de Viena. 1993. Disponível em: http://www.pge.sp.gov.br/centrodeestudos/bibliotecavirtual/instrumentos/viena.htm. Acesso em: 10 de junho de 2022.
CORTE INTERAMERICANA DE DIREITOS HUMANOS. Caso Barbosa De Souza e Outros Vs. Brasil Sentença 7 De Setembro De 2021. Disponível em: https://www.corteidh.or.cr/docs/casos/articulos /seriec_435_por.pdf Acesso em: 10 de junho de 2022.
FÓRUM BRASILEIRO DE SEGURANÇA PÚBLICA. Violência contra mulheres em 2021. Disponível em: https://forumseguranca.org.br/wp-content/uploads/2022/03/violencia-contra-mulher-2021-v5.pdf Acesso em: 10 de junho de 2022.
ORGANIZAÇÃO DAS NAÇÕES UNIDAS (ONU). Agência da ONU discute combate à violência contra as mulheres em fórum no Rio. Disponível em: https://nacoesunidas.org/agencia-da-onu-discute-combate-a-violencia-contra-as-mulheres-em-forum-no-rio/ Acesso em: 10 de junho de 2022.
[1] RELATÓRIO N° 54/01 COMISSÃO INTERAMERICANA DE DIREITOS HUMANOS - CASO 12.051 - MARIA DA PENHA MAIA FERNANDES vs. BRASIL. Disponível em: https://www.cidh.oas.org/annualrep/2000port/12051.htm#:~:text=A%20Comiss%C3%A3o%20Interamericana%20de%20Direitos%20Humanos%20reitera%20ao%20Estado%20Brasileiro,Maria%20da%20Penha%20Fernandes%20Maia. Acesso em 10/06/2022.
[2] (idem)
[3] CORTE INTERAMERICANA DE DIREITOS HUMANOS CASO BARBOSA DE SOUZA E OUTROS VS. BRASIL SENTENÇA DE 7 DE SETEMBRO DE 2021. Disponível em: https://www.corteidh.or.cr/docs/casos/articulos/seriec_435_por.pdf Acesso em: 10/06/2022.
Advogada especialista em Direito Público.
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: PARREIRA, Ana Laura Baiocchi de Souza. A necessidade de tutela eficaz aos direitos humanos das mulheres: uma análise geral dos casos brasileiros de violência contra a mulher submetidos ao sistema interamericano Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 20 set 2022, 04:21. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/artigos/59180/a-necessidade-de-tutela-eficaz-aos-direitos-humanos-das-mulheres-uma-anlise-geral-dos-casos-brasileiros-de-violncia-contra-a-mulher-submetidos-ao-sistema-interamericano. Acesso em: 22 nov 2024.
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