RESUMO: O presente artigo analisa a questão da necessidade de atuação de curador especial nos procedimentos de destituição do poder familiar. Para isso, discorre inicialmente as etapas do processo de destituição, previstas no Estatuto da Criança e do Adolescente. Após, é feita uma análise geral do art. 162, § 4º, do ECA, bem como ressalta a existência de correntes conflitantes a respeito da necessidade de curadoria especial nesse tipo de procedimento.
Palavras-chave: criança e adolescente. Destituição do poder familiar. Curadoria Especial. Defensoria Pública. Ministério Público.
SUMÁRIO: 1. Introdução. 2. O procedimento de destituição do poder familiar no Estatuto da Criança e do Adolescente. 3. A curadoria especial nos processos de destituição do poder familiar. 4. Conclusão. 5. Referências.
INTRODUÇÃO
O procedimento de destituição do poder familiar é previsto no Capítulo III, Seção II, do Estatuto da Criança e do Adolescente. Em alteração promovida pela Lei n. 13.509/2017, a normativa prevê expressamente que quando o procedimento for deflagrado pelo Ministério Público, não haverá necessidade de se nomear curador especial em favor da criança ou adolescente. Nesse sentido, surgem correntes divergentes acerca da interpretação e validade constitucional e convencional desse dispositivo, ante o princípio do superior interesse da criança e do adolescente. Para analisar todo o contexto, portanto, deve-se compreender as teorias que debatem a questão, bem como identificar as normativas justificadoras de cada posição.
2. O PROCEDIMENTO DE DESTITUIÇÃO DO PODER FAMILIAR NO ESTATUTO DA CRIANÇA E DO ADOLESCENTE
Conforme prevê o art. 19, do Estatuto da Criança do Adolescente, é direito da criança e do adolescente ser criado e educado no seio de sua família e, excepcionalmente, em família substituta, assegurada a convivência familiar e comunitária em ambiente que garanta seu desenvolvimento integral.
Sendo assim, da leitura do dispositivo, podemos perceber que o Estatuto determina que as crianças e adolescentes sejam mantidos sempre que possível em sua família natural ou extensa.
Todavia, são muitos os casos em que direitos fundamentais desse grupo de vulneráveis são violados, seja por ação ou omissão da sociedade ou do Estado, ou por falta, omissão ou abuso de seus pais, ou mesmo em razão de sua própria conduta (art. 98 do ECA).
Nesse sentido, cabe ressaltar que quando essa situação de risco é promovida pelos pais da criança ou do adolescente, poderá ser aplicada a medida mais grave prevista no ECA, qual seja a de destituição do poder familiar, nos termos do art. 129, X, do ECA.
Vejamos o que dispõe o art. 1.638 do Código Civil acerca das hipóteses de perda do poder familiar:
Art. 1.638. Perderá por ato judicial o poder familiar o pai ou a mãe que:
I - castigar imoderadamente o filho;
II - deixar o filho em abandono;
III - praticar atos contrários à moral e aos bons costumes;
IV - incidir, reiteradamente, nas faltas previstas no artigo antecedente.
V - entregar de forma irregular o filho a terceiros para fins de adoção. (Incluído pela Lei nº 13.509, de 2017)
Parágrafo único. Perderá também por ato judicial o poder familiar aquele que: (Incluído pela Lei nº 13.715, de 2018)
I – praticar contra outrem igualmente titular do mesmo poder familiar: (Incluído pela Lei nº 13.715, de 2018)
a) homicídio, feminicídio ou lesão corporal de natureza grave ou seguida de morte, quando se tratar de crime doloso envolvendo violência doméstica e familiar ou menosprezo ou discriminação à condição de mulher; (Incluído pela Lei nº 13.715, de 2018)
b) estupro ou outro crime contra a dignidade sexual sujeito à pena de reclusão; (Incluído pela Lei nº 13.715, de 2018)
II – praticar contra filho, filha ou outro descendente: (Incluído pela Lei nº 13.715, de 2018)
a) homicídio, feminicídio ou lesão corporal de natureza grave ou seguida de morte, quando se tratar de crime doloso envolvendo violência doméstica e familiar ou menosprezo ou discriminação à condição de mulher; (Incluído pela Lei nº 13.715, de 2018)
b) estupro, estupro de vulnerável ou outro crime contra a dignidade sexual sujeito à pena de reclusão. (Incluído pela Lei nº 13.715, de 2018)
O art. 24 do ECA também define que o poder familiar poderá ser perdido no caso de violação dos deveres de sustento, guarda e educação dos filhos. Porém, como definido nesse artigo, para que a perda seja decretada deve-se ajuizar ação que permita o contraditório das partes envolvidas.
Assim, será legitimado para ajuizar a ação de destituição do poder familiar o Ministério Público ou quem tenha legítimo interesse, conforme dispõe o art. 155 do ECA.
Nesse procedimento é possível decretar, de forma liminar ou incidental, a suspensão do poder familiar nos casos em que houver motivo grave, ficando a criança ou o adolescente confiado a terceiro idôneo (art. 157, caput, do ECA). Porém, deve-se observar que essa liminar deve ser, preferencialmente, precedida de entrevista da criança ou do adolescente perante equipe multidisciplinar e de oitiva da outra parte. A entrevista poderá seguir o procedimento da escuta especializada ou depoimento especial, previstos na Lei nº 13.431/2017.
Após o recebimento da inicial, deverá ser determinado pelo magistrado a realização de estudo social ou perícia por equipe interprofissional ou multidisciplinar para comprovar a existência de causas autorizadoras da destituição do poder familiar. Impende destacar que esse estudo técnico será realizado independentemente de requerimento do interessado, por se tratar de prova essencial para a análise do pedido de destituição, nos termos do art. 157, 1º, do ECA.
O pai ou a mãe, que seja sujeito passivo da ação, será citado para oferecer resposta escrita no prazo de 10 dias (art. 158, caput, do ECA). Após a apresentação da contestação, será designada audiência de instrução e julgamento para a produção de provas.
Na audiência de instrução e julgamento, poderá ser determinada a oitiva de testemunhas que comprovem a presença de hipótese autorizadora da destituição do poder familiar. Mas, no que tange a oitiva dos pais, essa será obrigatória sempre que eles forem identificados e estiverem em local conhecido, salvo no caso de não comparecimento voluntário dos pais após citação válida (art. 161, §§1º e 2º c/c art. 162, §2º, do ECA).
No momento da audiência, também será colhido parecer técnico, salvo quando apresentado por escrito. Em seguida, serão realizadas as alegações finais pelo requerente, requerido e Ministério Público, pelo prazo de 20 minutos (art. 162, 2º, do ECA). A sentença poderá ser proferida em audiência, ou no prazo de 5 dias após sua realização.
De contrário, não sendo contestada a ação, após a conclusão do estudo social ou perícia, os autos serão encaminhados ao Ministério Público, salvo quando for o próprio requerente, para posterior decisão no prazo de 5 dias (art. 161, caput, do ECA).
Esse procedimento terá o prazo máximo de 120 dias para ser concluído, conforme determina o artigo 163.
Por fim, cabe ressaltar que a sentença que decretar a perda ou a suspensão do poder familiar será averbada à margem do registro de nascimento da criança ou do adolescente.
3. A CURADORIA ESPECIAL NOS PROCESSOS DE DESTITUIÇÃO DO PODER FAMILIAR
É sabido que o papel de curatela especial é exercido pelas Defensorias Públicas, conforme determina o art. 72 do CPC:
Art. 72. O juiz nomeará curador especial ao:
I - incapaz, se não tiver representante legal ou se os interesses deste colidirem com os daquele, enquanto durar a incapacidade;
II - réu preso revel, bem como ao réu revel citado por edital ou com hora certa, enquanto não for constituído advogado.
Parágrafo único. A curatela especial será exercida pela Defensoria Pública, nos termos da lei.
Sendo assim, na ausência de representação de réu preso revel ou réu revel citado de maneira ficta, bem como no caso de incapaz, na ausência de representante legal ou no caso de interesses conflitantes, a Defensoria Pública exercerá o papel de curadora especial da parte.
No caso do procedimento especial de destituição do poder familiar essa questão é controvertida na doutrina.
Determina o art. 162, §4º, do ECA que “quando o procedimento de destituição de poder familiar for iniciado pelo Ministério Público, não haverá necessidade de nomeação de curador especial em favor da criança ou adolescente”. Dessa forma, pela leitura literal do dispositivo acrescentado pela Lei nº 13.509/2017, não seria cabível a entrada da Defensoria Pública como curadora especial da criança ou do adolescente no procedimento de destituição do poder familiar.
A redação dada ao artigo segue os moldes determinados pela Teoria Demóbora, também chamada de substituição ministerial exclusiva, conforme ensina Esteves e Silva (2018).
Para essa corrente, entende-se que o art. 201, III, do ECA define que o Ministério Público detém a legitimidade extraordinária para promover e acompanhar os procedimentos de destituição do poder familiar. E, em razão das funções institucionais do Ministério Público na proteção da criança e do adolescente, seria desnecessário o acompanhamento por curador especial, não havendo conflito de interesses entre as partes.
Cabe ressaltar que, além de ser uma corrente doutrinária, essa tese é adotada pelo Superior Tribunal de Justiça. Vejamos:
RENOVAÇÃO DO JULGAMENTO. DESTITUIÇÃO DE PODER FAMILIAR PROMOVIDA PELO MINISTÉRIO PÚBLICO. NOMEAÇÃO DE CURADOR ESPECIAL DA DEFENSORIA PÚBLICA AOS MENORES. DESNECESSIDADE. ECA. ART. 201, INCISOS III E VIII. RECURSO ESPECIAL A QUE SE NEGA PROVIMENTO. 1. Deve ser renovado o julgamento se da publicação da pauta não foi intimada a recorrente, Defensoria Pública do Estado do Rio de Janeiro. 2.Compete ao Ministério Público, a teor do art. 201, III e VIII da Lei nº 8.069/90 (ECA), promover e acompanhar o processo de destituição do poder familiar, zelando pelo efetivo respeito aos direitos e garantias legais assegurados às crianças e adolescentes. 3. Resguardados os interesses da criança e do adolescente, não se justifica a nomeação de curador especial na ação de destituição do poder familiar. 4. Recurso especial a que se nega provimento. (REsp 1176512/RJ, Rel. Ministra MARIA ISABEL GALLOTTI, QUARTA TURMA, julgado em 28/08/2012, DJe 05/09/2012)
Em contraponto à Teoria Demóbora, surge a corrente da participação concorrente ou democrática. Segundo Esteves e Silva (2018), para a teoria, quando a demanda houver possível situação de risco ocasionada pelos pais ou responsáveis da criança ou do adolescente, a atuação da Defensoria Pública por meio da curadoria especial será obrigatória. Assim, o art. 162, §4º, do ECA, deveria ser considerado inconstitucional e inconvencional.
Os fundamentos utilizados pelos defensores da corrente democrática, definem que essa interpretação se dá em conformidade com a afirmação da criança e do adolescente serem sujeitos de direitos (art. 15 do ECA).
E, em razão disso, as crianças e os adolescentes não podem ser mero espectadores no procedimento de destituição do poder familiar, considerando que a decisão de mérito vai influenciar de modo absoluto em sua vida e no seu futuro.
Nesse ponto, a legitimidade extraordinária do Ministério Público, ao ajuizar a demanda de destituição ou suspensão do poder familiar, é o principal ponto de análise na corrente democrática. De acordo com os ensinamentos de Silva e Esteves (2018):
Embora sejam titulares da relação jurídica substancial, as crianças e os adolescentes geralmente não possuem condições de exercer concretamente a postulação de seus direitos em juízo. Por essa razão, o ordenamento jurídico conferiu ao Ministério Público legitimação extraordinária para realizar a propositura e o acompanhamento das medidas judiciais que tenham como objetivo resguardar os direitos infantojuvenis (art. 201 da ECA).
Dessa forma, não se pode confundir ou reconhecer como idênticos os interesses da criança e do adolescente e o papel do Ministério Público ao ajuizar a ação de destituição do poder familiar. O primeiro, se identifica pela necessidade de ter seus interesses e direitos respeitados na relação processual. Já o segundo, busca apurar eventual descumprimento dos deveres do poder familiar, como fiscal da ordem jurídica.
Sendo assim, para a teoria democrática, há evidente conflito de interesses entre a atuação do Ministério Público e os interesses da criança. Em virtude disso, o art. 162, §4º, do ECA, seria uma violação aos arts. 9º e 12 da Convenção sobre os Direitos da Criança, que se referem ao direito de participar ativamente de procedimentos de seu interesse, bem como desrespeita o direito ao contraditório (art. 5º, LV, da CF).
Em uma análise geral sobre o debate, é necessário frisar que, segundo o art. 4º, XI, da LC 80/94, é função da Defensoria Pública exercer a defesa dos interesses individuais da criança e do adolescente. Por se encaixar no conceito de vulnerável organizacional, as crianças e os adolescentes também serão assistidos pela Defensoria Pública, independentemente da verificação de condição de hipossuficiência financeira.
Ademais, segundo a Resolução 113/2006 do CONANDA, as Defensorias Públicas são órgãos de defesa dos direitos humanos das crianças e adolescentes, garantindo seu acesso à justiça para a proteção legal de seus interesses (art. 7º, III, da Resolução).
Além disso, como determina de forma expressa o ECA em seu art. 201, §1º, a legitimação do Ministério Público não impede a de terceiros nas ações cíveis, nas mesmas hipóteses, é possível observar que não há fundamento jurídico solidificado para a manutenção da previsão trazida pelo art. 162, §4º, do ECA.
Portanto, devemos enxergar que cada instituição exerce um papel diverso mundo jurídico e que, nos casos de procedimentos de destituição do poder familiar, não há sobreposição em suas atuações caso seja designada a atuação da curadoria especial.
Nesse caso, deve ser considerada primordial a defesa dos interesses da criança e do adolescente, nos termos do princípio do maior interesse (art. 227, caput, da CF), de modo a realizar uma atuação nos processos de destituição ou suspensão do poder familiar sob a ótica do próprio infante, buscando suas verdadeiras necessidades.
CONCLUSÃO
A partir da análise e pesquisa realizada na temática, é preciso ressaltar que as crianças e os adolescentes devem ser o principal foco no procedimento de destituição do poder familiar, como indivíduos com seus direitos possivelmente violados pelas pessoas que deveriam ampará-las. Essa situação de risco apresenta verdadeira necessidade de se envidar todos os esforços para que seus interesses sejam defendidos. E, havendo a necessidade de se designar a atuação de curador especial no procedimento, esta não pode ser obstada, justamente pela necessidade de se ouvir a opinião dos infantes e de respeitar sua autonomia e o contraditório efetivo. Sendo assim, a questão não deve ser tratada apenas como um cabo de guerra de instituições, mas aferida de modo concreto em cada caso, observando-se os interesses envolvidos na demanda.
5. REFERÊNCIAS
BRASIL, Lei nº 8.069, de 13 de julho de 1990. Estatuto da Criança e do Adolescente. DOU, 16.7.1990, Brasília.
CONVENÇÃO sobre os Direitos da Criança. 20 de nov. de 1989. Disponível em: https://www.unicef.org/brazil/convencao- sobre-os-direitos-da-crianca.
ESTEVES, Diogo e Franklyn Roger Alves Silva. Princípios Institucionais da Defensoria Pública. 3. ed. – Rio de Janeiro: Editora Forense, 2018.
Advogada especialista em Direito Público.
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: PARREIRA, Ana Laura Baiocchi de Souza. A atuação da curadoria especial nos processos de destituição do poder familiar Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 21 set 2022, 04:36. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/artigos/59192/a-atuao-da-curadoria-especial-nos-processos-de-destituio-do-poder-familiar. Acesso em: 22 nov 2024.
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