Resumo: Um dos maiores desafios no âmbito da proteção dos direitos humanos é conciliar a legislação e o entendimento dos tribunais locais com o entendimento dos sistemas internacionais de proteção dos direitos humanos. Merece destaque a dissonância entre o tratamento jurídico conferido pelo ordenamento jurídico interno e o tratamento conferido pela Corte Interamericana de Direitos Humanos ao direito de propriedade sobre as terras tradicionalmente ocupadas por povos indígenas. Enquanto o direito brasileiro, por meio de uma construção jurisprudencial, adota a teoria do Marco Temporal, o sistema interamericano adota a teoria do indigenato. Tendo em vista que a teoria do Marco Temporal configura uma interpretação mais restritiva e, ainda, em dissonância com o entendimento do sistema interamericano de proteção aos direitos humanos, é necessário compatibilizar o direito interno com o entendimento da Corte Interamericana de Direitos Humanos, aplicando-se o princípio da primazia da norma mais favorável.
Palavras-chave: Direitos indígenas; terras indígenas; marco temporal; propriedade coletiva; interpretação evolutiva.
Abstract: One of the biggest challenges in the field of human rights protection is to reconcile legislation and the understanding of local courts with the understanding of international systems for the protection of human rights. The dissonance between the legal treatment given by the domestic legal system and the treatment given by the Inter-American Court of Human Rights to the right to property over lands traditionally occupied by indigenous peoples deserves to be highlighted. While Brazilian law, through a jurisprudential construction, adopts the Time Frame theory, the inter-American system adopts the indigenato theory. Bearing in mind that the Time Frame theory configures a more restrictive interpretation and, still, in dissonance with the understanding of the inter-American system for the protection of human rights, it is necessary to make domestic law compatible with the understanding of the Inter-American Court of Human Rights, applying it the principle of the primacy of the most favorable norm.
Keywords: Indigenous rights; indigenous lands; time frame; collective property; evolutive interpretation.
INTRODUÇÃO
O objetivo do presente artigo é trazer algumas breves considerações sobre o direito dos povos indígenas sobre suas terras, por meio de um estudo comparado entre o direito interno, baseado nas previsões constitucionais sobre o tema e o entendimento do Supremo Tribunal Federal, e a jurisprudência do sistema interamericano de proteção dos direitos humanos.
Inicialmente, é necessário considerar que os povos indígenas possuem destaque na Constituição Federal de 1988, sendo reconhecida a sua organização social, seus aspectos culturais e as terras tradicionalmente ocupadas. Nos termos do dispositivo constitucional:
Art. 231. São reconhecidos aos índios sua organização social, costumes, línguas, crenças e tradições, e os direitos originários sobre as terras que tradicionalmente ocupam, competindo à União demarcá-las, proteger e fazer respeitar todos os seus bens.
§ 1º São terras tradicionalmente ocupadas pelos índios as por eles habitadas em caráter permanente, as utilizadas para suas atividades produtivas, as imprescindíveis à preservação dos recursos ambientais necessários a seu bem-estar e as necessárias a sua reprodução física e cultural, segundo seus usos, costumes e tradições.
§ 2º As terras tradicionalmente ocupadas pelos índios destinam-se a sua posse permanente, cabendo-lhes o usufruto exclusivo das riquezas do solo, dos rios e dos lagos nelas existentes.
§ 3º O aproveitamento dos recursos hídricos, incluídos os potenciais energéticos, a pesquisa e a lavra das riquezas minerais em terras indígenas só podem ser efetivados com autorização do Congresso Nacional, ouvidas as comunidades afetadas, ficando-lhes assegurada participação nos resultados da lavra, na forma da lei.
§ 4º As terras de que trata este artigo são inalienáveis e indisponíveis, e os direitos sobre elas, imprescritíveis.
§ 5º É vedada a remoção dos grupos indígenas de suas terras, salvo, "ad referendum" do Congresso Nacional, em caso de catástrofe ou epidemia que ponha em risco sua população, ou no interesse da soberania do País, após deliberação do Congresso Nacional, garantido, em qualquer hipótese, o retorno imediato logo que cesse o risco.
§ 6º São nulos e extintos, não produzindo efeitos jurídicos, os atos que tenham por objeto a ocupação, o domínio e a posse das terras a que se refere este artigo, ou a exploração das riquezas naturais do solo, dos rios e dos lagos nelas existentes, ressalvado relevante interesse público da União, segundo o que dispuser lei complementar, não gerando a nulidade e a extinção direito a indenização ou a ações contra a União, salvo, na forma da lei, quanto às benfeitorias derivadas da ocupação de boa fé.
§ 7º Não se aplica às terras indígenas o disposto no art. 174, § 3º e § 4º.
Pela leitura da Constituição, é possível concluir que o legislador constituinte originário concluiu pela necessidade de conferir aos povos tradicionais uma proteção especial, impondo uma conduta comissiva ao Poder Público, com a finalidade de proteger os povos indígenas, bem como as terras que guardam intrínseca relação com seus costumes e tradições.
Nesse mesmo sentido, a Constituição confere também proteção aos povos quilombolas, reconhecendo a importância dos povos tradicionais. Nos termos do art. 68 dos Atos de Disposições Constitucionais Transitórias, os povos quilombolas possuem a propriedade sobre suas terras, cabendo ao Estado a emissão de seus títulos.
Entretanto, é possível, por meio da análise dos dispositivos constitucionais que regulamentam os direitos sobre as terras de povos tradicionais, verificar que há um tratamento diferenciado entre os povos indígenas e os povos quilombolas. Enquanto os povos quilombolas possuem a propriedade sobre suas terras, a propriedade das terras tradicionalmente ocupadas pelos indígenas pertence à União, nos termos do art. 20, XI da Constituição.
Assim, os povos indígenas possuem o usufruto sobre as suas terras tradicionais, enquanto os povos quilombolas possuem a propriedade em si. Esse tratamento jurídico conferido aos povos indígenas não só é menos favorável, mas, também, está em desacordo com o entendimento da Corte Interamericana de Direitos Humanos, que reconhece o direito à propriedade para todos os povos tradicionais.
Ademais, como será destacado a seguir, outros entraves são enfrentados pelos povos indígenas na busca de tutela sobre direitos vinculados a suas terras tradicionais. Dentro de um sistema historicamente opressor, os povos indígenas enfrentaram grandes dificuldades em ver reconhecido o próprio direito ao usufruto dessas terras tradicionais.
1. O caso Raposa do Sol e a adoção da teoria do Marco Temporal
É importante consignar que um dos principais precedentes no âmbito do direito interno sobre a tutela jurídica das terras tradicionalmente ocupadas pelos índios veio no famoso caso Raposa do Sol, decidido pelo Supremo Tribunal Federal em 2009.
O referido caso foi decidido pelo Plenário do STF na PET. 3.388-RR, a partir da impugnação ao ato de demarcação da Portaria n. 534/2005, que determinou a demarcação da Terra Indígena Raposa Serra do Sol. A impugnação ao referido ato normativo infralegal se deu em razão de agricultores e latifundiários da região sustentarem a posse de significativa parcela das terras demarcadas, munidos, para tanto, de títulos a fim de comprovar seus direitos.
Em que pese o STF ter entendido pela legalidade do processo administrativo de demarcação, a decisão do Supremo Tribunal Federal estabeleceu o chamado “Conteúdo Positivo do Ato de Demarcação das Terras Indígenas”, o que foi um dos pilares para consagrar a tese do Marco Temporal.
O Relator Ministro Ayres Britto expressou que a intenção do legislador constituinte originário era de encerrar discussões sobre a referência temporal de ocupação para determinar o que seria uma área indígena.
Afinal, a Constituição estabeleceu que as terras indígenas, como mencionado acima, são as terras tradicionalmente ocupadas pelos índios as por eles habitadas em caráter permanente. Acontece que não houve uma delimitação expressa sobre o que seria esse marco de tradicionalidade.
Por essa razão, a teoria do Marco Temporal envolveu a delimitação do nascimento, sob um caráter meramente temporal, do direito dos povos indígenas sobre suas terras. Assim, entendeu o Ministro Relator que
É importante ressaltar que a decisão do STF não teve como fundamento um dispositivo legal específico, mas sim um exercício interpretativo[1] feito a partir do próprio texto constitucional, de forma a extrair o marco regulatório para o processo de demarcação. Assim, na lacuna da Constituição sobre a partir de quando uma terra seria considerada terra tradicional indígena, o Supremo Tribunal Federal entendeu que deve ser utilizado um critério temporal.
Portanto, o entendimento do STF foi no sentido de que uma terra será considerada terra indígena se for ocupada pelos povos indígenas na data da promulgação da Constituição Federal, que se deu em 05 de outubro de 1988. Nesse sentido:
(...) a nossa Lei Maior trabalhou com data certa: a data da promulgação dela própria (5 de outubro de 1988) como insubstituível referencial para o reconhecimento, aos índios, “dos direitos sobre as terras que tradicionalmente ocupam”. Terras que tradicionalmente ocupam, atente-se, e não aquelas que venham a ocupar. Tampouco as terras já ocupadas em outras épocas, mas sem continuidade suficiente para alcançar o marco objetivo do dia 5 de outubro de 1988. Marco objetivo que reflete o decidido propósito constitucional de colocar uma pá de cal nas intermináveis discussões sobre qualquer outra referência temporal de ocupação de área indígena. Mesmo que essa referência estivesse grafada em Constituição anterior. É exprimir: a data de verificação do fato em si da ocupação fundiária é o dia 5 de outubro de 1988, e nenhum outro[2].
Entretanto, há que se ressaltar que no próprio caso Raposa Serra do Sol, o STF considerou que há uma exceção. Um dos argumentos trazidos pelos fazendeiros foi que na data da promulgação da Constituição, os indígenas não ocupavam a terra, de forma que, pela teoria do Marco Temporal, não seria possível reconhecer os direitos dos povos indígenas sobre o objeto do litígio.
Ocorre que, conforme atestado em laudos antropológicos e pareceres, os indígenas tinham sido forçadamente removidos da terra naquela ocasião, pelos próprios fazendeiros. Assim, o STF reconheceu que, efetivamente, ocorreu o chamado esbulho renitente. Dessa forma, a posse exercida pelos fazendeiros na época da promulgação da Constituição era uma posse violenta, visando combater a resistência dos povos indígenas a sair da região. Destaca-se, ainda, que os povos indígenas, mesmo após a remoção, continuaram lutando pelos direitos sobre as terras.
Portanto, o STF entendeu que, na hipótese de remoção forçada, em que ainda há resistência indígena quando da data da promulgação da Constituição, ainda assim a terra será considerada como terra indígena, tendo em vista que o esbulho, em razão do seu caráter ilícito, afasta qualquer direito de terceiros sobre as terras. Vejamos:
CONSTITUCIONAL E ADMINISTRATIVO. TERRA INDÍGENA “LIMÃO VERDE”. ÁREA TRADICIONALMENTE OCUPADA PELOS ÍNDIOS (ART. 231, § 1º, DA CONSTITUIÇÃO FEDERAL). MARCO TEMPORAL. PROMULGAÇÃO DA CONSTITUIÇÃO FEDERAL. NÃO CUMPRIMENTO. RENITENTE ESBULHO PERPETRADO POR NÃO ÍNDIOS: NÃO CONFIGURAÇÃO.
1. O Plenário do Supremo Tribunal Federal, no julgamento da Pet 3.388, Rel. Min. CARLOS BRITTO, DJe de 1º/7/2010, estabeleceu como marco temporal de ocupação da terra pelos índios, para efeito de reconhecimento como terra indígena, a data da promulgação da Constituição, em 5 de outubro de 1988.
2. Conforme entendimento consubstanciado na Súmula 650/STF, o conceito de “terras tradicionalmente ocupadas pelos índios” não abrange aquelas que eram possuídas pelos nativos no passado remoto. Precedente: RMS 29.087, Rel. p/ acórdão Min. GILMAR MENDES, Segunda Turma, DJe de 14/10/2014.
3. Renitente esbulho não pode ser confundido com ocupação passada ou com desocupação forçada, ocorrida no passado. Há de haver, para configuração de esbulho, situação de efetivo conflito possessório que, mesmo iniciado no passado, ainda persista até o marco demarcatório temporal atual (vale dizer, a data da promulgação da Constituição de 1988), conflito que se materializa por circunstâncias de fato ou, pelo menos, por uma controvérsia possessória judicializada.
4. Agravo regimental a que se dá provimento. (STF. 2ª Turma. ARE 803462 AgR/MS, Rel. Min. Teori Zavascki, julgado em 9/12/2014)
Todavia, há que se considerar uma grande falha no raciocínio jurídico desenvolvido pelo STF na matéria. Além de estabelecer a teoria do Marco Temporal como regra, que, por si só, é dotada de um critério puramente objetivo, desconsidera, ainda, aspectos antropológicos importantes. Como diz Duprat:
De outro giro, muito embora não imobilizadas espacialmente e não definidas necessariamente pela profundidade temporal, a definição de terras tradicionalmente ocupadas requer uma compreensão narrativa das vidas desses povos. A tradição que emerge dessa narrativa não é mera repetição de algo passado, mas participação num sentido presente (Gadamer, 1998: 571). Não é mera remissão ao contexto da existência que a originou, mas a experiência histórica de sua reafirmação e transformação. Daí por que a definição do que sejam terras tradicionalmente ocupadas, por cada grupo, passa por um estudo antropológico que, para além da história, revele a tradição que é permanentemente reatualizada e que dessa forma se faz presente na memória coletiva[3].
Assim, esse critério meramente objetivo de definição de uma terra tradicionalmente ocupada por um grupo vulnerável desconsidera aspectos inerentes a sua própria cultura, que impõe, muitas vezes, uma ligação inexorável entre a terra e seus costumes. A relação entre o indígena e a terra é completamente distinta do conceito de direito à propriedade como direito fundamental de primeira geração:
Nesse sentido, deve ser reconhecido que o direito à propriedade, sob a ótica de uma população tradicional, é intrínseco à própria comunidade. Portanto, qualquer ato que reconheça o direito à propriedade em si tem natureza meramente declaratória. Nesse sentido:
Ainda há que mencionar o fato de que se tratam de direitos terri-toriais apenas declaratórios e não constitutivos porque o direito à terra é anterior. O indigenato é a fonte primária e congênita da pos-se territorial. A Constituição Federal apenas formaliza o ato de de-marcação que é meramente declaratório nos termos do artigo 231, parágrafo 2º da Constituição Federal e também conforme artigo 14 da Covenção n. 169 da OIT. Trata-se de ato declaratório de uma si-tuação jurídica ativa preexistente. E é por este motivo que a Cons-tituição de 1988 denominou os direitos territoriais indígenas como originários. Pois, antecedendo a Constituição, já era reconhecido o direito originário as suas terras em outros documentos, como a Lei 6001/73 (Estatuto do Índio) ainda vigente. Assim, a Carta Magna veio traduzir um direito antigo a qualquer outro e que prepondera sobre os direitos adquiridos, ainda que materializados em escrituras públicas ou títulos de terras formalizados[4].
É importante destacar, por fim, que ao se adotar a teoria do Marco Temporal, o STF reconhece que o direito dos povos indígenas nasce com a Constituição de 1988, desconsiderando, assim, o direito imemorial às terras tradicionais que é, inclusive, preexistente ao processo de colonização do território brasileiro[5].
2. A teoria do indigenato e a jurisprudência da Corte Interamericana de Direitos Humanos
Desse ser ressaltado que o entendimento no sistema interamericano de proteção aos direitos humanos é substancialmente diferente no tocante à proteção dos direitos indígenas sobre suas terras. Enquanto a teoria do Marco Temporal é adotada no âmbito interno, a Corte Interamericana de Direitos Humanos reconheceu, expressamente, a aplicação da teoria do indigenato.
Como caso paradigmático, temos o caso Comunidade Mayagna (Sumo) Awas Tingni vs. Nicarágua. Nesse importante precedente, o Estado da Nicarágua reconheceu um convênio entre a empresa Companhia Sol Del Caribe S.A. (SOLCARSA) e o Governo Regional, em que foi concedida a exploração de madeiras em terras pertencentes à comunidade indígena Mayagna (Sumo) Awas Tingni. O fato se deu sem consulta prévia dos membros da comunidade indígena, que se insurgiram contra a medida.
Diante da ineficácia de medidas judiciais e extrajudiciais, o caso chegou até a Corte Interamericana de Direitos Humanos. Nessa oportunidade, a Corte reconheceu a responsabilidade do Estado da Nicarágua, sendo um dos direitos violados o direito à propriedade comunal dos membros da comunidade indígena Mayagna (Sumo) Awas Tingni.
Assim, a Corte Interamericana de Direitos Humanos, por meio de uma interpretação evolutiva do art. 21 da Carta Americana de Direitos Humanos, que confere o direito à propriedade privada, ampliou o conceito clássico de propriedade para além de uma vertente exclusivamente individual, de forma que a propriedade, na visão da Corte Interamericana de Direitos Humanos, possui, ainda, um aspecto coletivo, sobretudo quando considerado a partir de povos tradicionais.
Um caso brasileiro de extrema importância sobre direitos indígenas na Corte Interamericana de Direitos Humanos é o caso Povo indígena Xucuru vs. Brasil. A Corte reconheceu que o Brasil violou o direito à propriedade coletiva dos povos indígenas, bem como o seu direito à integridade pessoal de seus membros.
O cerne da questão residiu no lapso temporal superior a 16 anos para a conclusão do o procedimento de demarcação de terras indígenas da comunidade Xucuru. Também foi analisada a demora na desintrusão total dessas terras tradicionais, para que o referido povo indígena pudesse exercer pacificamente os direitos anexos ao direito à propriedade.
Ainda, foi analisada a violação dos direitos às garantias judiciais e à proteção judicial, em consequência do alegado descumprimento do prazo razoável no processo administrativo respectivo, bem como a demora em conferir uma solução de mérito às ações civis iniciadas por pessoas não indígenas com relação a parte das terras e territórios ancestrais.
Assim, a Corte, além de reconhecer novamente o direito dos povos tradicionais à propriedade coletiva sobre suas terras, determinou que o Brasil realizasse a demarcação da terra indígena:
188. A Comissão solicitou à Corte que ordene ao Estado adotar, com a brevidade possível, as medidas necessárias para tornar efetivo o direito de propriedade coletiva e a posse do Povo Indígena Xucuru e seus membros com respeito a seu território ancestral. Em especial, o Estado deverá adotar as medidas legislativas, administrativas ou de outra natureza, necessárias para conseguir sua desintrusão efetiva, compatível com seu direito consuetudinário, valores, usos e costumes. Também deverá garantir aos membros da comunidade que possam continuar vivendo seu modo de vida tradicional, conforme sua identidade cultural, estrutura social, sistema econômico, costumes, crenças e tradições distintivas[6].
É possível observar, ainda, que no precedente acima, a Corte trouxe o conceito de direito à desintrusão. Esse conceito abarca o direito dos povos tradicionais de viver em suas terras sem interferência de particulares, que deverão ser removidos do local pelo Poder Público.
Esse direito decorre, ainda, do artigo 14 da Convenção 169 da OIT, que prevê:
Artigo 14
1. Dever-se-á reconhecer aos povos interessados os direitos de propriedade e de posse sobre as terras que tradicionalmente ocupam. Além disso, nos casos apropriados, deverão ser adotadas medidas para salvaguardar o direito dos povos interessados de utilizar terras que não estejam exclusivamente ocupadas por eles, mas às quais, tradicionalmente, tenham tido acesso para suas atividades tradicionais e de subsistência. Nesse particular, deverá ser dada especial atenção à situação dos povos nômades e dos agricultores itinerantes.
2. Os governos deverão adotar as medidas que sejam necessárias para determinar as terras que os povos interessados ocupam tradicionalmente e garantir a proteção efetiva dos seus direitos de propriedade e posse.
Assim, o direito de desintrusão decorre do fato de que os direitos dos povos indígenas sobre suas terras só poderão ser exercidos, em caráter pleno, com a efetivação de políticas públicas destinadas a garantir tais direitos. Isso envolve, portanto, a remoção de pessoas não-indígenas de terras tradicionais.
A Corte Interamericana possui um número considerável de precedentes sobre direitos indígenas, de forma que estabeleceu obrigações erga omnes para os Estados da OEA no tocante ao direito indígena à propriedade.
Portanto, a Corte Interamericana de Direitos Humanos já reconheceu que a posse tradicional dos indígenas sobre suas terras tem o mesmo efeito jurídico que os efeitos decorrentes do título de pleno domínio emitido pelo Estado[7].
Ainda, a Corte reconheceu que, mesmo que os integrantes da comunidade tradicional indígena sejam removidos forçadamente de suas terras, ainda assim eles terão o direito de propriedade garantido, direito que independe de título legal[8].
Por sua vez, no Caso Comunidade Indígena Sawhoyamaxa vs. Paraguai, a Corte Interamericana de Direitos Humanos reconheceu a importância do vínculo espiritual e material que as comunidades tradicionais indígenas possuem em relação às suas terras tradicionais, de forma que esse valor espiritual da terra justifica a subsistência do direito à propriedade.
Diante dessa análise dos casos mais importantes analisados pela Corte Interamericana de Direitos Humanos, verifica-se que a jurisprudência da Corte é pacífica em reconhecer que em relação aos direitos de povos indígenas sobre suas terras tradicionais, a teoria a ser aplicada é a teoria do indigenato, a qual confere uma maior proteção jurídica a esses povos e seus direitos.
CONCLUSÃO
O presente artigo teve como escopo fazer uma breve análise comparativa entre a proteção oferecida pelo sistema interamericano de direitos humanos e o ordenamento jurídico interno, no tocante ao regime jurídico conferido às terras tradicionais dos povos indígenas.
Analisando alguns dos mais importantes precedentes sobre o tema, é possível concluir que o regime jurídico das terras tradicionais indígenas é consideravelmente mais favorável aos olhos da Corte Interamericana de Direitos Humanos, que adota a teoria do indigenato, considerando, portanto, como direito inerente às próprias comunidades tradicionais, em razão da especial relação entre sua cultura e as terras por eles ocupadas.
Em sentido diverso, ao se adotar a teoria do Marco Temporal, o Supremo Tribunal Federal confere uma proteção mais restritiva aos povos indígenas, sobretudo quando é feita uma comparação com o tratamento jurídico conferido para as comunidades de remanescentes de quilombos.
É importante destacar que, quando tratamos de normas voltadas para a proteção de indivíduos ou grupos vulneráveis, aplicam-se os princípios interpretativos que regem os direitos humanos. Assim, em que pese o ordenamento jurídico interno adotar a teoria do Marco Temporal, há que se reconhecer que a referida teoria oferece uma proteção deficiente para os povos indígenas.
Não há outra alternativa que não seja reconhecer a incidência, neste caso, da aplicação do princípio da primazia da norma mais favorável ao indivíduo. Uma norma interna, quando mais restritiva em sua tutela a grupos vulneráveis, deve ser deixada de lado diante de uma norma internacional mais protetiva, de forma a evitar conflitos entre normas internas e normas externas, bem como garantir que seja aplicada a norma que venha a, efetivamente, proteger os direitos em jogo. Ademais, o referido princípio aplica-se, também, na hipótese de interpretação de um determinado ato normativo.
É necessário ressaltar, inclusive, que a Constituição Federal já parte de uma premissa que restringe os direitos indígenas, tendo em vista que o legislador constituinte originário optou por conferir a titularidade de suas terras para a União, enquanto os povos remanescentes de quilombos possuem a propriedade sobre suas terras. Não há justificativa para um tratamento distinto para povos que integram todo o histórico de dominação e opressão da formação do Estado brasileiro, motivo pelo qual esse dispositivo constitucional é passível de críticas,
Para definir o que é uma terra tradicionalmente ocupada pelos povos indígenas, a adoção da teoria do Marco Temporal se deu a partir de um exercício interpretativo pelo Supremo Tribunal Federal. Nada impede, todavia, que o Supremo venha a modificar o seu entendimento, havendo, inclusive, a possibilidade de que isso venha a acontecer.
O Plenário do Supremo Tribunal Federal deve julgar, ainda em 2022, o Recurso Extraordinário (RE) 1.017.365, com repercussão geral, encerrando a discussão sobre a definição do estatuto jurídico-constitucional das relações de posse das áreas de tradicional ocupação indígena.
Espera-se que o Supremo, em interpretação evolutiva, reveja o entendimento da aplicação da teoria do Marco Temporal, passando a adotar, em consonância com a Corte Interamericana de Direitos Humanos, a teoria do indigenato.
BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Acórdão na Petição 3.388-4 Roraima. Relator: Carlos Ayres Brito. Publicado no DJ de 17 de mar. de 2009.
CORTE INTERAMERICANA DE DIREITOS HUMANOS. Caso Povo Indígena Xucuru vs. Brasil. Sentença de 5 de fevereiro de 2018. Disponível em < https://www.corteidh.or.cr/docs/casos/articulos/seriec_346_por.pdf>. Acesso em 14 de setembro de 2022.
CORTE INTERAMERICANA DE DIREITOS HUMANOS. Caso Povo Indígena Xucuru vs. Brasil. Sentença de 5 de fevereiro de 2018. Disponível em < https://www.corteidh.or.cr/docs/casos/articulos/seriec_346_por.pdf>. Acesso em 14 de setembro de 2022.
CORTE INTERAMERICANA DE DIREITOS HUMANOS. Caso Comunidade Garífuna de Triunfo de la Cruz e seus membros Vs. Honduras. Sentença de 8 de outubro de 2015. Disponível em < https://www.corteidh.or.cr/docs/casos/articulos/seriec_305_esp.pdf >. Acesso em 15 de setembro de 2022.
CORTE INTERAMERICANA DE DIREITOS HUMANOS. Caso da Comunidade Indígena Sawhoyamaxa Vs. Paraguai. Sentença de 24 de agosto de 2010. Disponível em < https://www.corteidh.or.cr/docs/casos/articulos/seriec_214_por.pdf >. Acesso em 15 de setembro de 2022.
DAN Vivian Lara Caceres, DE ASSIS, Flavia Benedita Sousa. A tese do marco temporal nas decisões do Supremo Tribunal Federal e a controvérsia possessória acerca dos direitos territoriais indígenas. Disponível em <https://revistas.ufrj.br/index.php/rjur/article/view/25496>. Acesso em 08 de setembro de 2022.
DUPRAT, Deborah. Terras Indígenas e o judiciário. Disponível em : < http://6ccr.pgr.mpf.mp.br/documentos-epublicacoes/artigos/docs_artigos/terras_indigenas_e_o_judiciario.pdf>. Acesso em 16 de setembro de 2022.
HEEMANN, Thimotie Aragon; PAIVA, Caio. Jurisprudência Internacional de Direitos Humanos. 2. ed. Belo Horizonte: Cei, 2017.
SANTANA, Carolina Ribeiro. Direitos territoriais indígenas: o Poder Judiciário contra a Constituição.In. ENADIR 4, 2015, São Paulo, Grupo de Trabalho 15, São Paulo, 2015, p. 08. Processo, construção da verdade jurídica e decisão judicial. Disponível em: http://enadir2015.sinteseeventos.com.br/simposio/view?ID_SIMPOSIO=18. Acesso em 09 de setembro de 2022.
[1] SANTANA, Carolina Ribeiro. Direitos territoriais indígenas: o Poder Judiciário contra a Constituição.In. ENADIR 4, 2015, São Paulo, Grupo de Trabalho 15, São Paulo, 2015, p. 08. Processo, construção da verdade jurídica e decisão judicial. Disponível em: http://enadir2015.sinteseeventos.com.br/simposio/view?ID_SIMPOSIO=18. Acesso em 09 de setembro de 2022.
[2] BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Acórdão na Petição 3.388-4 Roraima. Relator: Carlos Ayres Brito. Publicado no DJ de 17 de mar. de 2009.
[3] DUPRAT, Deborah. Terras Indígenas e o judiciário, p. 7. Disponível em : < http://6ccr.pgr.mpf.mp.br/documentos-epublicacoes/artigos/docs_artigos/terras_indigenas_e_o_judiciario.pdf>. Acesso em 16 de setembro de 2022.
[4] DAN Vivian Lara Caceres, DE ASSIS, Flavia Benedita Sousa. A tese do marco temporal nas decisões do Supremo Tribunal Federal e a controvérsia possessória acerca dos direitos territoriais indígenas. Disponível em <https://revistas.ufrj.br/index.php/rjur/article/view/25496>. Acesso em 08 de setembro de 2022.
[5] HEEMANN, Thimotie Aragon; PAIVA, Caio. Jurisprudência Internacional de Direitos Humanos. 2. ed. Belo
Horizonte: Cei, 2017, p. 410.
[6] CORTE INTERAMERICANA DE DIREITOS HUMANOS. Caso Povo Indígena Xucuru vs. Brasil. Sentença de 5 de fevereiro de 2018. Disponível em < https://www.corteidh.or.cr/docs/casos/articulos/seriec_346_por.pdf>. Acesso em 14 de setembro de 2022.
[7] CORTE INTERAMERICANA DE DIREITOS HUMANOS. Caso Comunidade Garífuna de Triunfo de la Cruz e seus membros Vs. Honduras. Sentença de 8 de outubro de 2015. Disponível em < https://www.corteidh.or.cr/docs/casos/articulos/seriec_305_esp.pdf >. Acesso em 15 de setembro de 2022.
[8] CORTE INTERAMERICANA DE DIREITOS HUMANOS. Caso da Comunidade Indígena Sawhoyamaxa Vs. Paraguai. Sentença de 24 de agosto de 2010. Disponível em < https://www.corteidh.or.cr/docs/casos/articulos/seriec_214_por.pdf >. Acesso em 15 de setembro de 2022.
Advogada. Graduada em Direito pela UFAL. Pós-graduanda em Direitos Humanos pelo Círculo de Estudos pela Internet (CEI).
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: BARRETO, Camila Pereira. Uma análise sobre as terras tradicionalmente ocupadas pelos povos indígenas sob a ótica do Sistema Interamericano de Proteção dos Direitos Humanos Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 23 set 2022, 04:26. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/artigos/59215/uma-anlise-sobre-as-terras-tradicionalmente-ocupadas-pelos-povos-indgenas-sob-a-tica-do-sistema-interamericano-de-proteo-dos-direitos-humanos. Acesso em: 22 nov 2024.
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