RESUMO: O artigo busca analisar a vulnerabilidade do idoso consumidor nas relações contratuais de crédito pessoal consignado. Para tanto faz uma análise da situação demográfica do idoso no Brasil, identifica o tratamento jurídico atual sobre o tema e as crescentes modificações legislativas. Envida-se, assim, refletir se as normas vigentes têm sido suficientes e efetivas para a proteção do consumidor idoso.
1 - INTRODUÇÃO
A contratação de empréstimos consignados por pessoas idosas tem sido palco de diversas notícias em razão das grandes modificações legislativas sentidas nos últimos anos, bem como pela divulgação de fraudes reiteradas nesse tipo de contratação.
A lei nº 14.431/2022 permitiu um grande avanço na renda dos idosos, podendo a consignação atingir até 45% do valor dos benefícios previdenciários de aposentadoria e pensão por morte. A mesma legislação permitiu a consignação em benefícios assistenciais, contudo, com um limite um pouco mais reduzido de 40%.
As instituições financeiras voltam suas estratégias, cada vez mais, nesse público consumidor, já que com o aumento da expectativa de vida dos brasileiros, os idosos se tornaram uma grande fatia do mercado de consumo, além de permitirem maior segurança no adimplemento das obrigações contratuais, em razão dos descontos diretamente em seus benefícios previdenciários.
Os entes estatais, por outro lado, vêm permitindo um maior endividamento por meio dos empréstimos consignados, os quais vêm sendo utilizado como forma de suprir a renda insuficiente dos beneficiários.
Ocorre que esse público tem características próprias, com maior vulnerabilidade, sendo necessário avaliar se as atividades comerciais voltadas à sua captação são adequadas e se a legislação e os órgãos administrativos têm conseguido proteger, de forma eficaz, o grupo vulnerável.
Para tanto precisamos primeiro entender a magnitude desse público (idoso) no mercado de consumo, suas características diferenciadas e a proteção jurídica concedida pelo direito do consumidor.
2 – O IMPACTO DO ENVELHECIMENTO NA POPULAÇÃO BRASILEIRA
O aumento da expectativa de vida é uma das maiores conquistas da sociedade e decorre, primordialmente, da melhoria das condições socioeconômicas da população e de avanços científicos na área da saúde.
A pirâmide etária brasileira vem se alargando nas maiores faixas de idade e a projeção do IBGE é que em 2060 o percentual populacional dos idosos atingirá um quarto (¼) da população (25,5%) e será superior à quantidade de crianças. Teremos em 2060, portanto, mais idosos do que crianças.
A expectativa, portanto, é de um grande percentual populacional de idosos em um futuro próximo, sendo premente o aprimoramento de políticas públicas voltadas ao referido público.
Essa alteração da pirâmide populacional ocasionará a manutenção de pessoas, agora idosas, dentro do mercado de consumo e, mais que isso, eles se tornarão, proporcionalmente, um dos maiores grupos consumidores, grupo esse com características próprias, já que os idosos são a faixa populacional com menor média de anos de estudo[1] e, apesar de muitos possuírem rendimento fixo (aposentadoria/pensão), o valor recebido é baixo.
Os idosos, portanto, merecem atenção, tratamento legal e social específico, por se tratar de um grupo reconhecidamente vulnerável.
O envelhecimento é um fenômeno mundial e o Brasil encontra-se em processo menos avançado do que países europeus e asiáticos, o que não ocasiona menor preocupação, mas proporciona a realização de adaptações necessárias de forma bem estudada.
O tema do envelhecimento já foi alvo de duas assembleias gerais específicas pela ONU. A primeira ocorreu em 1982 e a segunda, em 2002. Nessa última houve a edição de um plano de ação internacional sobre o envelhecimento.
O plano de ação reconhece a diminuição da capacidade da pessoa, com o advento da idade, e que referida situação pode ser agravada com a adoção de estereótipos negativos que depreciem a capacidade do idoso. O plano também indica a necessidade de implantação de políticas sociais que permitam aos idosos tornarem efetivas todas as suas possibilidades.
Aliado a esses dados de cunho mais objetivo é importante destacarmos também vulnerabilidades de cunho mais subjetivo e variável a depender da situação de saúde e familiar do idoso.
Sabe-se que o envelhecimento vem, na maioria das vezes, seguido de mudanças cognitivas, com declínio da compreensão e das habilidades. Esse declínio da capacidade cognitiva nos idosos decorre de um processo fisiológico normal dentro do envelhecimento, conforme se observa da análise de Juliana Costa Machado et al (2011, p.110):
O comprometimento cognitivo afeta a capacidade funcional do indivíduo no seu dia a dia, implicando perda de independência e autonomia, a qual varia de acordo com o grau de gravidade, com consequente perda da qualidade de vida do idoso. A noção de autonomia, no que tange à interdependência desta com uma memória íntegra, reside na capacidade individual de cuidar de si mesmo, executar tarefas que lhe permitam a adaptação psicosocial e ser responsável pelos próprios atos.
Esse declínio cognitivo prejudica, de sobremaneira, a forma com que o idoso interage socialmente e compreende o mundo à sua volta, necessitando, muitas vezes, de assistência de terceiros.
Estudos epidemiológicos indicam que a prevalência de demências em idosos pode variar de 1 a 2% entre aqueles com 60 a 65 anos, 20% entre os indivíduos com 80 a 90 anos, e pode chegar aos 40% entre aqueles mais velhos (acima de 90 anos). (RABELO, 2009)
Estima-se a prevalência geral do declínio cognitivo, na população idosa, em torno de 15 a 20%. (RADANOVIC, 2015)
Pesquisadores, ao analisarem estudos em diversos países sobre os fatores que podem influenciar no aparecimento do declínio cognitivo, perceberam que:
aqueles idosos com maior escolaridade, com maior suporte social, com um histórico de saúde positivo, com maior engajamento social, com um estilo de vida positivo, com melhor saúde percebida, com menos queixas subjetivas de memória, com melhor saúde mental, e com menos sintomas depressivos, apresentam menor declínio cognitivo. (RABELO 2009, P.65).
Dessa forma, observa-se que além da repercussão esperada em razão da idade, os fatores sociais podem desencadear ou antecipar o aparecimento do declínio cognitivo, agravando ainda mais a situação de vulnerabilidade já vivenciada por aquele idoso.
Essa alteração inata ao ser humano (quando idoso) não deve, entretanto, obstar a sua vivência em sociedade e o usufruto de seus direitos.
É importante analisar se essa evolução etária na proporção populacional está sendo acompanhada por mudanças no sistema de defesa do consumidor.
3. A HIPERVULNERABILIDADE DO IDOSO
As relações de consumo possuem, de forma patente, desequilíbrio de força entre as partes, em especial na sociedade atual de consumo de massa. Dessa forma, não há como se pensar em proteção ao consumidor sem partir do pressuposto de desequilíbrio e inferioridade do consumidor em face do fornecedor.
A vulnerabilidade, portanto, dentro do sistema protetivo do código de defesa do consumidor, é uma presunção legal absoluta. Essa presunção tem efeito em diversas esferas relacionadas ao consumo. Ela impõe sempre um tratamento diferenciado da relação do consumidor em face do fornecedor.
Não há como, especialmente na fase atual do consumo, com imensas transformações por quais passaram as relações jurídicas e empresariais, pensar-se em proteção e defesa do consumidor sem colocá-lo nesta posição de inferioridade perante os fornecedores (PINTO, 2016).
O conceito de Vulnerabilidade para Paulo Valério Dal Pai MORAES (2009,125), sob enfoque jurídico, é:
...o princípio pelo qual o sistema jurídico positivado brasileiro reconhece a qualidade ou condição daquele(s) sujeito(s) mais fraco(s) na relação de consumo, tendo em vista a possibilidade de que venha(m) a ser ofendido(s) ou ferido(s), na sua incolumidade física ou psíquica, bem como no âmbito econômico, por parte dos sujeitos mais potentes da mesma relação.
O reconhecimento da vulnerabilidade em um microssistema jurídico busca justamente municiar a parte mais vulnerável de mecanismos que visam reequilibrar a relação jurídica entre as partes, para que, assim, possam ser realizadas dentro de um critério de igualdade material.
A vulnerabilidade deriva do princípio da igualdade e busca, através do tratamento isonômico, produzir igualdade material onde originariamente existe desigualdade (REIS, 2015).
Para que a igualdade material ocorra é necessário que o sistema reconheça, primeiramente, a vulnerabilidade. A partir disso, passe a criar normas específicas aos mais vulneráveis e saiba distinguir, inclusive, subgrupos ainda mais fragilizados. Essa é a situação do idoso na relação de consumo.
A legislação consumerista já reconhece, desde a sua publicação, uma maior vulnerabilidade do idoso e já prevê proteções diante de condutas abusivas:
Art. 39. É vedado ao fornecedor de produtos ou serviços, dentre outras práticas abusivas: (...)
IV - prevalecer-se da fraqueza ou ignorância do consumidor, tendo em vista sua idade, saúde, conhecimento ou condição social, para impingir-lhe seus produtos ou serviços;
O estatuto do idoso (lei nº 10.741/2003), publicado após o CDC, veio para ratificar a fragilidade do idoso e a necessidade de sua maior proteção, prevendo expressamente a proteção integral do idoso:
Art. 2º O idoso goza de todos os direitos fundamentais inerentes à pessoa humana, sem prejuízo da proteção integral de que trata esta Lei, assegurando-se-lhe, por lei ou por outros meios, todas as oportunidades e facilidades, para preservação de sua saúde física e mental e seu aperfeiçoamento moral, intelectual, espiritual e social, em condições de liberdade e dignidade.
Art. 3º É obrigação da família, da comunidade, da sociedade e do Poder Público assegurar ao idoso, com absoluta prioridade, a efetivação do direito à vida, à saúde, à alimentação, à educação, à cultura, ao esporte, ao lazer, ao trabalho, à cidadania, à liberdade, à dignidade, ao respeito e à convivência familiar e comunitária.
O idoso, no âmbito da relação de consumo, é duplamente vulnerável, por ser idoso e por ser consumidor. Essa constatação gerou o enquadramento do grupo ao que se denominou de hipervulnerável, que, nas palavras de Claudia Lima MARQUES (2016, p. 364-365), seria a:
situação social fática e objetiva de agravamento da vulnerabilidade da pessoa física consumidora, por circunstâncias pessoais aparentes ou conhecidas do fornecedor, como sua idade reduzida (assim o caso da comida para bebês, nomes e marcas de salgadinhos ou da publicidade para criança) ou sua idade alentada (assim os cuidados especiais com os idosos, no Código em diálogo como Estatuto do Idoso, e a publicidade de crédito para idosos.
Essa vulnerabilidade exacerbada deve seguir de uma legislação mais protetiva para que haja um equilíbrio entre o consumidor idoso e o fornecedor, buscando compensar as diferenças, mas sem excluir ou vitimizar (MARQUES, 2016, p. 112-113).
A legislação, as medidas administrativas e as atitudes de todos que atuam no mercado de consumo devem sempre reconhecer a fragilidade do idoso consumidor e atuar para que haja uma relação de consumo equilibrada, com normas e condutas que deem efetiva proteção a esse grupo mais vulnerável.
4 – O CRÉDITO PESSOAL AO CONSUMIDOR IDOSO
O crédito pessoal, também denominado de empréstimo pessoal, é espécie de contrato de crédito em que a instituição financeira entrega determinado valor em dinheiro ao tomador (consumidor) para devolução posterior, com acréscimo de juros e outros encargos, dentro de período determinado (TADDEI, 2021).
O empréstimo consignado é uma modalidade de crédito pessoal em que o pagamento é realizado por meio de descontos diretamente da folha de pagamento ou do benefício previdenciário do contratante.
Há vantagem para ambos os lados, contratante e contratado, já que há uma maior segurança ao contratado (instituição financeira), que terá o valor do contrato descontado diretamente do benefício do contratante, e para este último também é vantajoso, já que as taxas de juros praticadas nessa espécie de contrato são menores do que as do mercado geral de crédito pessoal.
Considerando os benefícios para ambas as partes é natural que a oferta desse tipo de produto seja ampliada, bem como uma maior procura de clientes.
As instituições financeiras então buscam clientes naturais do produto e que possuam perfil de maior segurança ao cumprimento contratual. Os idosos passaram, então, a ser o público alvo preferencial das instituições financeiras que atuam no ramo de empréstimo pessoal. Como em sua grande maioria recebem benefícios previdenciários, o foco maior das instituições financeiras é a realização do empréstimo pessoal por meio de consignação nos benefícios.
O perfil do idoso é atrativo também em razão do conhecimento geral de que as pessoas na terceira idade possuem maiores despesas e normalmente uma renda inferior à que tinham quando na ativa, sendo assim mais propícios à adesão dos empréstimos.
Além disso, apesar de os valores individuais dos beneficiários do INSS serem reduzidos, o público-alvo é bastante numeroso, havendo assim um grande lucro para as instituições financeiras quando se avaliam os números em grande escala.
As ofertas dessa espécie de produto, em geral, não demonstram todas as nuances necessárias para uma decisão efetivamente consentida e resultam em um grande endividamento do idoso.
O Banco Central divulgou em 2019 os dados do endividamento dos aposentados e a dívida chegava a R$ 132,1 bilhões, recorde de endividamento. (MOURA, 2019) Em janeiro de 2021 o volume total contratado em empréstimos consignados superava R$ 440 bilhões de reais (VINHAS, 2021)
O relatório de cidadania financeira, produzido pelo Banco Central em 2018, indica que o maior consumidor do crédito consignado é o beneficiário do INSS e indica ainda maior faixa etária contratante:
Um dado que chama atenção no crédito consignado é sua penetração entre os idosos: 61% dos tomadores têm mais de 55 anos, sendo responsáveis por 57% da carteira nessa modalidade. Esse indicador contradiz a teoria econômica da suavização do consumo, segundo a qual os indivíduos tendem a estabilizar o padrão de consumo na velhice, tendo, em geral, menor necessidade de crédito.
Dados do INSS indicam que o número de contratações vem aumentando, de forma acelerada, entre 2019 a 2021, chegando a um aumento de quase 25% (G1, 2022). Em que pese estarmos tratando de anos em que se vivenciou a pandemia de coronavírus, o que ocasionou naturalmente uma corrida maior a esse tipo de contratação, em razão de eventuais perdas de renda extrafamiliar, o número não deixa de ser alarmante em razão de seu efeito no tempo daqueles que contrataram e no efeito futuro acaso o referido ritmo de contratação seja mantido.
É claro que havendo efetivo interesse do idoso, de forma espontânea, e devidamente conhecidas todas as condições e repercussões do contrato, a obtenção do empréstimo consignado pode ser um bom produto ao idoso, contudo, as circunstâncias em que elas vêm ocorrendo podem tornar a contratação ilegal ou prejudicial ao grupo hipervulnerável.
E por que devemos nos preocupar especificamente com os empréstimos consignados e não com o credito pessoal em geral? As características dessa forma de contratação demonstram o maior impacto nos contratados. Somente no empréstimo consignado há a expropriação legítima do valor da parcela da dívida antes mesmo do recebimento do benefício pelo idoso, diversamente de um empréstimo comum.
Nos demais empréstimos, se em um determinado mês ou em um determinado período da vida o contratante não tiver como pagar ele tem a possibilidade de postergar, assumindo o ônus dos juros e penalidade, mas no caso dos empréstimos consignados não há essa opção.
A lei nº 10.820/2003 determina, de forma expressa, que a contratação é irrevogável e irretratável. Assim, ao efetivar a referida contratação, o consumidor deverá honrar sem direito a ajustes ocasionais e pelo prazo que foi contratado.
Fica evidente que o efeito nefasto sobre a renda do beneficiário é imenso, pois é contínuo e até o fim do contrato. Para poder se financiar o idoso então opta por novos empréstimos, tão logo as margens são disponibilizadas, o que torna algo que seria provisório quase que permanente, virando refém dos empréstimos como parte de sua renda familiar.
Para uma avaliação mais aprofundada do tema precisamos transitar pelas normas vigentes e a atuação dos órgãos e entes públicos ou privados.
A lei federal nº 10.820/2003 foi editada para regular as consignações em folha de pagamento de prestações de diversas operações financeiras, dentre elas os empréstimos pessoais. A lei regula a contratação em geral e abrange o público de aposentados e pensionistas do INSS e do serviço público, nos termos dos artigos abaixo:
Art. 1o Os empregados regidos pela Consolidação das Leis do Trabalho - CLT, aprovada pelo Decreto-Lei no 5.452, de 1o de maio de 1943, poderão autorizar, de forma irrevogável e irretratável, o desconto em folha de pagamento dos valores referentes ao pagamento de empréstimos, financiamentos e operações de arrendamento mercantil concedidos por instituições financeiras e sociedades de arrendamento mercantil, quando previsto nos respectivos contratos.
Art. 6o Os titulares de benefícios de aposentadoria e pensão do Regime Geral de Previdência Social poderão autorizar os descontos referidos no art. 1o nas condições estabelecidas em regulamento, observadas as normas editadas pelo Instituto Nacional do Seguro Social - INSS.
Em sua redação inicial (em 2003), o limite máximo de consignação era de 30% da remuneração. Em 2015, com a edição da lei nº 13.172, o referido limite aumentou para 35%, sendo que os 5% adicionais seriam para a amortização de despesas contraídas por meio de cartão de crédito ou a utilização com a finalidade de saque por meio do cartão de crédito.
Com o advento da pandemia, foi editada a medida provisória nº 1.006/2020, depois convertida na lei nº 14.131/2021, aumentando temporariamente o limite de consignação para 40%, até 31/12/2021.
Em 18/03/2022 foi editada a medida provisória (MPV) nº 1.106/2022 fixando que o limite percentual de 40%, majorado temporariamente, passe a ser aplicado de forma definitiva.
A medida provisória foi alterada e convertida na lei 14.431/2022 que permitiu a consignação até 45% do benefício previdenciário e até 40% dos assistenciais e de transferência de renda.
Observa-se, assim, que o objetivo inicial da lei, de regular e limitar o comprometimento da renda dos contratantes de empréstimos consignados, vem cada vez mais sendo alterado, tornando-se mais permissivo e avançando sobre a renda em um importe significativo que pode violar, sobremaneira, o mínimo existencial do idoso (condições mínimas para uma vida digna).
Além disso, passou a autorizar titulares de benefícios assistenciais a se utilizarem de sua renda mínima para pagamento de empréstimos.
Entre a proteção dos contratantes-consignados e o maior retorno aos ofertantes de crédito, a legislação vem amplamente favorecendo as instituições financeiras.
5 – PROTEÇÃO LEGAL E EFETIVIDADE
O CDC, como norma legal principiológica e de proteção geral, traça os princípios, normas gerais e específicas para a proteção do consumidor nas diversas condutas violadoras. Contudo, evidentemente não consegue abarcar todas as situações vivenciadas na sociedade de consumo.
Por outro lado, os princípios e as normas gerais já existentes no CDC e no estatuto do idoso têm densidade jurídica suficiente para o enquadramento do que seria violador ou não dos direitos do consumidor idoso. Entretanto, talvez por uma cultura jurídica mais voltada à normatização, as violações passaram a acontecer reiteradamente sem que o CDC fosse suficientemente utilizado para evitar e punir os abusos.
O INSS, ao editar normas internas regulando o procedimento de consignação (a norma base é a instrução normativa 28/2008, reiteradamente atualizada), passou a prever regulações protetivas específicas contra os abusos cometidos pelas instituições financeiras.
Nela há previsão de que os benefícios de aposentadoria e pensão por morte, após a concessão, ficam bloqueados até a autorização expressa do desbloqueio. Prevê ainda a proibição de marketing ativo para convencer beneficiário do INSS a celebrar contrato de empréstimo pessoal ou cartão de crédito antes do decurso de 180 (cento e oitenta dias) da data de despacho do benefício.
A instrução normativa ainda reconhece que a realização do assédio comercial (se realizado dentro do prazo de vedação - 180 dias) sujeita as instituições financeiras e equiparadas à punição com suspensão de novas consignações/retenções/RMC[2] por prazos crescentes e, na hipótese de reiteração ou descumprimento das determinações do INSS, rescisão do convênio e proibição de realização de um novo convênio pelo prazo de cinco anos.
As penalidades são economicamente severas, mas ainda assim não foram suficientes para inibir, de forma eficaz, o abuso comercial das instituições financeiras.
A Federação Brasileira de Bancos (FEBRABAN) e a Associação Brasileira de Bancos (ABBC), buscando uma autorregulação da matéria entre seus componentes, instituiu o sistema de autorregulação de operações de empréstimo pessoal e cartão de crédito com pagamento mediante consignação, que entrou em vigor no dia 2 de janeiro 2020. As normas dele decorrentes preveem boas práticas voltadas a contratações sem abuso das vulnerabilidades dos consumidores e punições a diversas condutas violadoras nele previstas.[3]
Alguns estados, vendo as crescentes violações e a insuficiência protetiva, passaram a editar leis que melhor protegessem esse grupo vulnerável. É o caso do Estado do Paraná, que editou a lei nº 20.276/2020, proibindo, em seu território, a realização de qualquer atividade de telemarketing ativo, oferta comercial, proposta, publicidade ou qualquer tipo de atividade tendente a convencer aposentados e pensionistas a celebrar contratos de empréstimo de qualquer natureza, bem como proibiu a contratação através de ligação telefônica.
O mercado financeiro reagiu e o tema chegou ao STF através da ação direta de inconstitucionalidade, proposta pela Confederação Nacional do Sistema Financeiro (ADI 6727), levantando que a matéria legislada seria competência privativa da União.
O STF, seguindo o voto da relatora Ministra Carmem Lúcia, entendeu pela constitucionalidade da lei estadual, por se tratar de competência legislativa concorrente em matéria de defesa do consumidor, e destacou a importância da proteção dos grupos vulneráveis:
Deve ser acentuado também que o consumidor aposentado ou pensionista, em geral ou, pelo menos, em grande parte, põe-se em situação de inquestionável vulnerabilidade econômica e social, dependendo dos proventos para a sua subsistência e da família e para a manutenção dos cuidados com a saúde. Expressivo número de aposentados e pensionistas é de pessoas idosas, é dizer, com idade superior a sessenta anos, nos termos do art. 1º da Lei n. 10.741/2003, devendo, portanto, receber tratamento prioritário e proteção integral pela sociedade.
Tenha-se presente que “a família, a sociedade e o Estado têm o dever de amparar as pessoas idosas, assegurando sua participação na comunidade, defendendo sua dignidade e bem-estar e garantindo-lhes o direito à vida” (art. 230 da Constituição da República).
Os princípios da proteção integral e da prioridade também estão previstos naquele Estatuto . No inc. II do § 1º do art. 2º da Lei n. 10.741/2003, impõe-se a garantia de prioridade e preferência na formulação e na execução de políticas públicas voltadas ao idoso.
O que se dispõe na Lei paranaense aqui questionada é a adoção de política pública para a proteção econômica do idoso contra o assédio publicitário, não raro gerador de endividamento por onerosidade excessiva e de exposição a fraudes.
Destacou ainda a ministra a prevalência da dignidade humana e da defesa do consumidor quando em confronto com a livre iniciativa:
A livre iniciativa não obsta a regulação das atividades econômicas pelo Estado, que pode mostrar-se indispensável para resguardar os valores prestigiados pela Constituição, como, por exemplo a dignidade da pessoa humana, a valorização do trabalho humano, a livre concorrência, a função social da propriedade, a defesa do consumidor e do meio ambiente e a busca do pleno emprego.
Observa-se, portanto, avanço nos últimos anos, em termos de legislação; entretanto, ainda assim, o ímpeto de aumentar os clientes dos créditos consignados (em especial os idosos) não parece arrefecer. Ao lado disso, enorme número de empréstimos consignados decorrentes de fraude[4], os quais não são devidamente evitados pelas instituições financeiras, violando ainda mais o direito dos idosos, que sequer realizaram os empréstimos, mas sofrem de imediato os descontos indevidos.
Levantamento do Instituto Brasileiro de Defesa do Consumidor (Idec) [5] mostrou que, em 2020, as ocorrências envolvendo o crédito consignado ficaram em primeiro lugar, com aumento de 179% nos registros em relação a 2019. A pesquisa utilizou os dados do portal Consumidor.gov.br e do Banco Central.
Reportagem da Época Negócios[6] demonstra que somente no quesito sobre “cobrança de produto não contratado”, o aumento foi de 441%. No ranking do Banco Central, houve aumento de 56% nos registros de “oferta ou informação de forma inadequada”. “Os consumidores dizem: ‘Eu não fiz contrato nenhum e alguém teve acesso ao meu benefício’.”.
Dentro de todo esse contexto de abuso na oferta de empréstimos consignados e fraudes generalizadas, bem como da clara fragilização do sistema de proteção aos idosos consumidores nesse tipo de contratação, foi editada a lei nº 14.181/2021 (publicada em 02/07/2021).
A lei vem aperfeiçoar a disciplina do crédito ao consumidor e dispor sobre a prevenção e o tratamento do superendividamento. A legislação foi muito bem-vinda por suprir um vácuo legislativo acerca do tratamento do superendividado pessoa física de boa-fé e, além disso, trouxe também previsões legislativas específicas para proteção do idoso no consumo do crédito.
A lei nº 14.181/2021 incluiu o art. 54-C no CDC, com a previsão de vedação de condutas abusivas nela especificadas:
Art. 54-C. É vedado, expressa ou implicitamente, na oferta de crédito ao consumidor, publicitária ou não: (...)
IV - assediar ou pressionar o consumidor para contratar o fornecimento de produto, serviço ou crédito, principalmente se se tratar de consumidor idoso, analfabeto, doente ou em estado de vulnerabilidade agravada ou se a contratação envolver prêmio;
Impôs ainda aos fornecedores e intermediários de crédito a realização de condutas voltadas à concretização do direito à informação, não somente das cláusulas contratuais, como também da repercussão da contratação e do seu inadimplemento:
Art. 54-D. Na oferta de crédito, previamente à contratação, o fornecedor ou o intermediário deverá, entre outras condutas:
I - informar e esclarecer adequadamente o consumidor, considerada sua idade, sobre a natureza e a modalidade do crédito oferecido, sobre todos os custos incidentes, observado o disposto nos arts. 52 e 54-B deste Código, e sobre as consequências genéricas e específicas do inadimplemento;
A lei é um avanço, especialmente no assédio ao idoso consumidor de crédito pessoal e na obrigação de uma informação mais detalhada das suas cláusulas para esse grupo mais vulnerável, contudo referidas obrigações já poderiam ser deduzidas das normas vigentes no CDC e no estatuto do idoso. Entretanto, como não vinham sendo efetivamente cumpridas e o sistema protetivo não conseguia inibir de forma eficaz, a norma veio para afastar qualquer dúvida da abusividade das condutas.
Claro que toda normatização que venha a reforçar direitos fundamentais de um grupo hipervulnerável nunca será em demasia, porém a realidade vem mostrando que as violações não decorrem de omissão legislativa e sim de uma ausência de fiscalização e punição, bem como da necessidade de maior conscientização do grupo vulnerável de seus direitos.
Levantamento do INSS retrata a quantidade ínfima de reclamações dos contratantes de consignados. Em 2019, o percentual foi de apenas 0,14%, sendo 56.379 reclamações para um montante de 37.926.521 contratos consignados ativos[7].
Essa ausência de reclamação junto ao INSS por parte dos beneficiários demonstra a falta de conhecimento dos usuários dos seus direitos e meios de solução, cabendo ao INSS e órgãos de defesa do consumidor a implantação de campanhas de conscientização dessa população alvo, para que tomem conhecimento das condutas abusivas que podem estar sofrendo, bem como dos mecanismos e canais para solução.
Uma contratação de empréstimo consignado por um consumidor idoso envolve muitas variáveis que podem demonstrar abusividade. A gama de mecanismos que os fornecedores possuem para seduzir, de forma abusiva, os consumidores, em especial os mais vulneráveis, deve ser sempre analisada em uma relação de consumo, não se podendo aceitar a “ideia simplista e falaciosa de que todos são livres para optar por aquilo que desejam ou necessitam” (MORAES, 2009, p. 174-175).
É necessário também que o sistema de justiça (incluindo advogados, ministério público e poder judiciário) esteja efetivamente preparado para as especificidades do grupo hipervulnerável e possa concretizar os princípios basilares do direito do consumidor aliado à prioridade absoluta da pessoa idosa, prevista do estatuto do idoso.
Os atores do sistema de justiça, nos processos relacionados a empréstimos consignados, devem sempre se guiar, como um pressuposto inafastável, pela hipervulnerabilidade do idoso na relação de consumo. A vulnerabilidade, como princípio fundante do microssistema do direito do consumidor deve sempre estar presente em qualquer julgamento, independente da alegação das partes envolvidas.
A atuação mais protetiva de todos que participam, de qualquer forma, na cadeia que envolve as contratações de empréstimos consignados, não prejudica aquele consumidor idoso que, talvez, não precisasse da maior assistência das instituições, mas com certeza alterará de forma significativa o ato de consumo daqueles mais vulneráveis.
6 - CONCLUSÃO
Os idosos na relação de consumo são hipervulneráveis e essa característica deve ser reconhecida em todas as etapas da relação de consumo, inclusive quando da formulação de normas e políticas públicas que os afetem.
As alterações legislativas recentes vêm atuando de forma dúbia e conflitante na proteção do idoso vulnerável. Por um lado, foi editada a lei 14.181/2021 que trata do superendividamento e do assédio comercial, por outro, a lei 14.431/2022, que ampliou o limite de consignação nos benefícios previdenciários e passou a permitir a consignação em benefícios assistenciais e de transferência de renda.
As duas normas afetam diretamente as relações de consumo dos contratos de empréstimo consignado, contudo, enquanto a primeira cria instrumentos de proteção aos abusos sofridos pelos consumidores, em especial os idosos, a segunda facilita o abuso e o endividamento do idoso, podendo comprometer parte significativa da renda do idoso beneficiário do INSS.
É relevante destacar que a população brasileira não teve educação financeira no ensino regular e somente em 2020, por meio de determinação Conselho Nacional de Educação, tornou-se obrigatória sua inclusão no currículo escolar fundamental e médio.
Assim, em um país com boa parte da população com dificuldades financeiras e renda baixa, especialmente a população idosa, qualquer alteração que permita endividamento de quase metade da renda deveria ser embasada em alto grau de escolaridade da população e políticas públicas de educação financeira, sob pena de se criar um contingente imenso de idosos vivendo com apenas 65% do salário mínimo, claramente insuficiente para uma vida digna.
A proteção do idoso deve ocorrer de forma integrada, não podendo um sistema protetivo permitir conflitos diretos na proteção do público protegido. Além disso, não deve se contentar somente com a previsão normativa, devendo lhe dar efetividade através da fiscalização e punição adequada aos violadores da lei, e, principalmente, conscientização dos direitos pelo grupo vulnerável.
A garantia do mínimo existencial, em especial na idade avançada, deve ser um norte na legislação e no julgamento dos processos relacionados ao endividamento das pessoas idosas.
Tendo como norte esse viés de vulnerabilidade do idoso, e das diversas restrições que envolvem o envelhecimento, deve a legislação buscar um equilíbrio entre eventuais limitações que ele possua e o exercício de todos os seus direitos, sem reduzir suas potencialidades, mas lhe dando poder de decisão efetivamente consentida.
7 - REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
BERTONCELLO, K. R. D. Crédito consignado ao idoso e 'diálogo das fontes': consequência da coordenação das normas do Direito brasileiro. Revista de Direito do Consumidor, v. 88, p. 83-102, 2013.
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[1] Disponível em https://biblioteca.ibge.gov.br/visualizacao/livros/liv98965.pdf Acesso em 14.08.2021
[2] Reserva de Margem Consignável.
[3] Disponível em https://cms.autorregulacaobancaria.com.br/Arquivos/documentos/PDF/Documento %20Correlato%20-%20Texto%20Vigente.pdf. Acesso em 28.08.2021
[4] Disponível em https://www.camara.leg.br/noticias/781193-associacoes-de-aposentados-relatam-fraudes-contra-idosos-na-concessao-de-emprestimo-consignado/ Acesso em 28.08.2021
[5] Disponível em https://idec.org.br/idec-na-imprensa/idec-cobra-solucoes-contra-fraudes-do-credito-consignado-durante-pandemia Acesso em 28.08.2021
[6] Disponível em https://epocanegocios.globo.com/Brasil/noticia/2021/04/reclamacoes-sobre-consignado-do-inss-dobram-apos-aumento-da-margem.html Acesso em 28.08.2021
[7] Informações constantes de contestação do DATAPREV no processo 0801077-29.2021.4.05.8300 (SJPE).
Juíza Federal na Seção Judiciária de Pernambuco. Mestranda em Historicidade dos Direitos Fundamentais na Faculdade Damas de Pernambuco. Especialista em Direitos Fundamentais e Tutela Coletiva pela Escola Superior do Ministério Público do Rio Grande do Norte
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: RIBEIRO, ETHEL FRANCISCO. A vulnerabilidade do idoso nas contratações de crédito pessoal consignado Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 20 out 2022, 04:40. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/artigos/59605/a-vulnerabilidade-do-idoso-nas-contrataes-de-crdito-pessoal-consignado. Acesso em: 04 dez 2024.
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