ISAMAYLA MACEDO PINHEIRO LEAL[1]
(coautora)
FRANCISCA JULIANA CASTELLO BRANCO EVARISTO DE PAIVA[2]
(orientadora)
RESUMO: O presente artigo visa discorrer de forma clara sobre as problemáticas que cercam o tema Poliamorismo. partindo-se de um apanhado da evolução histórica das formações familiares com vista a expressar a mutabilidade dos moldes de família e do entendimento doutrinário sobre o assunto. Ainda, demonstra-se, em contrapartida, a dificuldade de aceitação das diversas feições de família, centrando-se no entendimento doutrinário que elenca a reprodução do patriarcalismo como causa de resistência da sociedade, assim como aborda a tendente interpretação jurisprudencial engessada que desvela a omissão legislativa quanto a necessidade de acompanhar a evolução social e afetiva, fato que pode ser observado no posicionamento do Conselho Nacional de Justiça em Pedido de Providências – 0001459-08.2016.2.00.0000. Ocorre que tais posicionamentos geram um sistema excludente, no sentido de negar aos que fogem ao padrão reproduzido pela lei, ate o momento, o exercício de direitos fundamentais indiscutivelmente garantidos na Constituição Federal, tais quais, a liberdade de escolha, a livre formação familiar, a dignidade. Não obstante, elencou a atribuição de natureza principiológica a monogamia como fator para o cenário atual de desamparo ao modelo familiar Poliamorista. Para tanto, utilizou-se de pesquisa bibliográfica a partir de método indutivo.
Palavras-chave: poliamor, afeto, monogamia como valor, direito a felicidade, liberdade de escolha.
É inaceitável fechar os olhos ao fato de as relações amorosas e formatos de família estarem cada vez mais flexíveis. O espaço dominado pela monogamia em uma sociedade estruturada com base no patriarcalismo hoje é marcado pelo surgimento de novas constituições familiares e afetivas, com formatos diversos.
Ocorre que, tais mudanças geram discussões sociais, uma vez que, não é de fácil aceitação pelos ainda atados a noções patriarcais padronizadas de família formada por um homem e uma mulher, apenas, o que é refletido em nosso ordenamento jurídico. Ocorre que, tal flexibilização ganhou amparo legal pela constituição de 1998, pela qual fica assegurada a família a especial proteção do Estado, abarcando suas diferentes formas e arranjos e respeitando a diversidade das constituições familiares, entretanto, o mesmo não ocorreu no código civil, o que implica nas interpretações hostis dadas ao tema.
Resta importante frisar sobre a figura do poliamorismo que é, em poucas palavras, a relação estável que envolve afetividade entre mais de duas pessoas que se conhecem e se aceitam amorosamente, que vem desacortinando discussões no direito, como, a decisão do CNJ (Conselho Nacional de Justiça) pela qual restou vedado aos cartórios brasileiros proceder as escrituras públicas de relações poliafetivas.
Não obstante, entre os argumentos para tal tomada de decisão está o de que a sociedade brasileira tem a monogamia como elemento estrutural o que faz com que os tribunais repilam relacionamentos que apresentem paralelismo afetivo. Ocorre que, ao vedar que seja a união poliamoristica matéria de lavratura de escritura pública como união estável acaba por limitar à autonomia de vontade das partes e impossibilitar para tais casais a conquista de livre afetividade e vivência digna na sociedade brasileira.
Ainda, é argumentado pelo CNJ que a família é um fenômeno social e cultural com aspectos antropológico, social e jurídico que refletem a sociedade de seu tempo e lugar. As formas de união afetiva conjugal – tanto as “matrimonializadas” quanto as “não matrimonializadas” – são produto social e cultural, pois são reconhecidas como instituição familiar de acordo com as regras e costumes da sociedade em que estiverem inseridas.
Quanto ao tema, em decorrência da resistência da sociedade e do não amadurecimento do debate, paira a ideia de ilegalidade ou mesmo de equiparação ao concubinato, entretanto, os institutos não podem ser equiparados ou confundidos. Ainda em se tratando do entendimento de ilegalidade, argumenta-se que não está de acordo com os moldes do ordenamento constitucional e civil, visto que apenas se prevê a figura da relação baseada na monogamia, nesse viés, vale ressaltar que não existe nenhum regramento que expressamente proíba o poliamorismo, como faz com o concubinato.
Nesse viés, em um país alicerçado no pluralismo político, a intervenção do estado deve se voltar a proteção e não de exclusão, não podendo predeterminar quais modelos de entidade familiar que se pode constituir. Deste modo, evidencia-se a necessidade da sociedade efetivar a prática e reprodução de respeito que deve ser dado ao direito de liberdade de escolha e constituição familiar, uma vez que, tal direito, assim como outros que são garantidos pelo ordenamento são inatos a dignidade humana.
O presente artigo foi desenvolvido através de uma pesquisa bibliográfica narrativa com abordagem indutiva com vista a analisar a decisão tomada pelo Conselho Nacional de Justiça, diante Pedido de Providências – 0001459-08.2016.2.00.0000, quanto ao registro por cartórios de uniões não monogâmicas e as questões que essa decisão levanta quanto a formação familiar moderna, assim como busca estabelecer possíveis respostas, ou nos aproximarmos de respostas, a partir de questões mais amplas, partindo-se do estudo ou análise de materiais já elaborados, preferencialmente livros e artigos científicos.
Ainda, segundo Monteiro (2019), o método indutivo possibilita a comprovação de verificação de uma tese particular para o geral a partir da observação. Nesse sentido, o método de abordagem utilizado foi o indutivo, partindo da consulta de obras, legislação e jurisprudência brasileira atinente à temática para que sejam geradas conclusões amplas, gerais, universais organizando o raciocínio sem intenção de esgotar o assunto que merece especial atenção.
A família é a realidade sociológica que constitui a base do Estado, o núcleo fundamental do qual todas as organizações sociais dependem em qualquer situação cotidiana ao considerá-la, a família parece ser um elemento necessário e Sagrado, merece a mais ampla proteção do Estado (GONÇALVES, 2022).
A família é, obviamente, a instituição que mais sofre e é afetada por pela cultura, sociedade, direito e religião, pois atualmente, cada entidade familiar busca a felicidade porque são apoiadas nos relacionamentos para sobreviver. Assim, o conceito de família já não se limita ao aspecto exclusivo da relação heterossexualidade, tornando o casamento e a fertilidade obsoletos, indica a existência de uma entidade familiar (DOMINGOS, 2013).
Durante o Século VIII, as civilizações Gregas e Romanas, tinham relações diferentes do que vemos atualmente, pois a família girava em torno do poder patriarcal, ou seja, no marido ou no pai. No entendimento de (JATOBÁ, 2016), a história é bem clara em seu rito temporal, que na Idade Média, a Igreja Católica teve grande influência na formação de núcleo familiar que por muitos é considerado certo, caracterizada ou composta por uma relação monogâmica entre homem e mulher.
Já no século XVI, os Jesuítas tiveram uma importante parcela na formação e catequização dos índios e com isso impondo formações sociais e morais nos costumes dos indígenas, como a valorização da castidade e da repreensão de famílias que moravam e se agrupavam debaixo do mesmo teto, como também a união de parentes da mesma família.
No século XX, a sociedade brasileira ainda era patriarcal, hereditária e conservadora. Orientada pelos princípios, a composição familiar mais aceita era a de pai, mãe e filhos. Assim, o casamento devia ser monogâmico e indissolúvel. Além disso, é a eventual entrada da mulher no mercado de trabalho, o controle da natalidade por meio da disseminação de anticoncepcionais, o surgimento de novos valores na criação dos filhos e a despersonalização nas relações sociais. Aos poucos, as pessoas reconheceram o enfraquecimento da igreja e a impossibilidade de manter casamentos baseados em relacionamentos insatisfatórios.
Assim Dias (2021, p.145) ensina:
A família tinha viés patriarcal, e as regras legais refletiam esta realidade. A influência religiosa persistiu. Somente era reconhecida a família ungida pelos sagrados laços do matrimônio, por ser considerado um sacramento, ou seja, sagrado em sua origem. Não havia outra modalidade de convívio aceitável. O casamento era indissolúvel. A resistência do Estado em admitir outros relacionamentos era de tal ordem, que a única possibilidade de romper com o casamento era o desquite, que não dissolvia o vínculo matrimonial e, com isso, impedia novo casamento.
Segundo Maria Berenice Dias, no Código Civil de 1916, o casamento é inseparável, portanto, mesmo que a possibilidade de separação seja de fato ocasionada por “disputas”, sob esse ponto de vista a relação conjugal ainda é imutável, dominante, formal, mesmo em o fim de um casamento, o fardo da preocupação passa do homem para a mulher. Como o casamento não é dissolvido, o ônus do cuidado ainda existe, pelo menos do homem para a mulher, dependendo de sua inocência e necessidade, e assim é reconhecido no processo de divórcio. A preocupação não é a necessidade, mas o comportamento moral da mulher.
O judiciário brasileiro tem tomado decisões que aplicam os princípios e normas previstos na Constituição Federal de 1988, em alguns casos, contrariando o sentido literal de suas
disposições, como, por exemplo, no Acórdão nº 4.277 Ação Direta Inconstitucional, estendendo os direitos e obrigações inerentes às uniões estáveis heterossexuais às uniões estáveis homossexuais.
No texto da Carta Magna de 1988 foi aceito um conceito mais amplo de família, tendo uma pluralidade em suas formações, como a família monoparental, homoafetiva, anaparental e unipessoal, tendo os vínculos afetivos como base para tornar aqueles que não têm um dos pais, por algum motivo específico, sendo esse fruto da adoção, e é bem-vindo.
Ensina Maria Berenice Dias (2021):
Faz-se necessário ter uma visão pluralista da família, abrigando os mais diversos arranjos familiares, devendo-se buscar a identificação do elemento que permita enlaçar no conceito de entidade familiar todos os relacionamentos que têm origem em um elo de afetividade, independentemente de sua formação. O desafio de hoje é achar o toque identificador das estruturas interpessoais que permita nominá-las como família. Esse referencial só pode ser identificado na afetividade.
Vale salientar, que durante a história o Direito de Família foi o que mais evoluiu em todos os seus aspectos, principalmente no âmbito legislativo, onde os diferentes tipos de formação familiar ganharam força nas leis que resguardam o direito de amar, independentemente de qual forma seja.
Para Engels (2002), a monogamia foi a primeira espécie de formação familiar não baseada em condições naturais, mas em condições econômicas, um triunfo da propriedade privada espontânea sobre a propriedade privada (Engels, 2002, p. 75). Basicamente uma forma de perpetuar uma propriedade. Ele, ainda, descreve claramente a heterogeneidade masculina, que está ligada ao casamento monogâmico, uma vez que os homens mantêm relações fora do casamento, consideradas naturais, e apenas os filhos ilegítimos não são reconhecidos.
Nesse sentido, a monogamia é um sistema de propriedade privada estabelecido na Grécia antiga e no Oriente Médio que visa delinear as constituições familiares, restringir a liberdade sexual das mulheres, proteger as relações entre pais e filhos e iniciar o patriarcado com homens solteiros como núcleo.
Os princípios são a fonte do direito, têm a natureza de obrigações e são proposições ideais que restringem e orientam a compreensão do ordenamento jurídico. Eles são normativos e são as diretrizes centrais que sustentam a lei e fornecem subsídios para sua adequada interpretação e aplicação.
Não obstante, um princípio, enquanto lei moral, é um valor que orienta um indivíduo a aderir a um determinado comportamento, e está relacionado à liberdade pessoal, pois, apesar de ser influenciado pelo processo de socialização, um princípio se estabelece sem imposição. Como a monogamia é um princípio que “deveria” ser imposto a todos, suprime a liberdade individual e mina a autonomia privada.
A monogamia é a teoria enraizada e reproduzida na sociedade brasileira quanto a estruturação do Direito de Família, sendo, consequentemente, o argumento predominante utilizado diante de levantamento em sentido contrário ao reconhecimento da formação familiar poliafetiva. Nesse âmbito de discussão paira a inserta classificação do tema, se deve ser entendida como de natureza principiológica ou valorativa, quando de sua interpretação e aplicação.
Diante a celeuma, é imprescindível diferenciar-se a força normativa e o papel que exerce o valor e o princípio no âmbito hermenêutico. Vale destacar que não podem ser confundidos, já que, resultam em consequências jurídicas diversas.
Enquanto os princípios têm sentido deontológico- relativo às normas e aos preceitos que guiam o sujeito moralmente-, os valores não indicam consequências jurídicas pelo não cumprimento do comportamento desejado; portanto, os valores não são considerados normas, indicam apenas relações de preferência de ação. Em outras palavras, ao contrário dos valores que apenas refletem valor qualitativo as condutas, os princípios têm conteúdo de caráter normativo; pertencem ao plano deondôntico com tônus de coercibilidade e sua aplicação implica um dever ser que propõe uma avaliação de lícito ou ilícito (FIÚZA; POLI, 2016).
Tendo então essa força obrigatória e cerceadora, a definição da monogamia como princípio deve ser entendido como ameaça à igualdade, ameaça à autonomia privada de escolha dos sujeitos com vista a pluralidade familiar, ou seja, a liberdade, liberdade essa alcançada com a ampliação efetivada pelos da CF/88 que mitigou o patriarcado enraizado, também motivo para a perpetuação do padrão monogâmico e inflexível.
Considerar a monogamia como um princípio é dar a esse instituto a força de norma, e dar-lhe essa força de norma é dar respaldo a interpretações destoadas ao texto constitucional. Adotar essa postura de interpretação é alijar ou mesmo desconsiderar a diversidade de realidades familiares e negar proteção a diversos núcleos familiares (FIÚZA; POLI, 2016).
Corrobora a esse entendimento a jurista Maria Berenice Dias (2022), ao dizer:
Principalmente no âmbito do Direito das Famílias, vã é a tentativa de engessar comportamentos dentro de parâmetro pré-estabelecidos e conservadores. As consequências são desastrosas.
Afinal, condenar à invisibilidade o que foge do modelo convencional eleito como único e aceitável, provoca injustiças enormes.
Garantido constitucionalmente o primado do direito à liberdade, à igualdade e à solidariedade, é preciso reconhecer que o direito fundamental almejado por todos é o direito à felicidade. Para isso é necessário respeitar as diferenças. É o que permite retirar da invisibilidade, impor responsabilidades e garantir a todos, todos os direitos. Assim, é indispensável admitir que o elemento identificador das relações de conjugalidade e parentalidade é o vínculo de natureza afetiva. Enquanto não houver respeito ao direito de as pessoas amarem e exercerem a livre expressão de sua sexualidade, não é possível afirmar que se vive em uma sociedade livre, pluralista e igualitária.
O despertar dos direitos humanos, apregoando a liberdade e a igualdade, colocou a pessoa como sujeito de direito e a dignidade humana tornou-se o valor maior.
Nesse viés, resta claro o entendimento de que a adoção e interpretação da monogamia como princípio normativo perpetra uma ameaça aos verdadeiros princípios norteadores do direito de família e resulta na exclusão de famílias paralelas que se fazem invisíveis aos olhos da lei e da proteção que é dada aos grupos familiares monogâmicos. Como exemplo, diretamente violado resta o princípio do pluralismo familiar, pelo qual, contrariamente, como se pode e deve extrair da normativa constitucional, se garante a liberdade de escolha com vista a dinamicidade da composição familiar como meio de alcance da dignidade da pessoa, conquistadas a duras penas (CARVALHO, 2019).
Não obstante, atualmente, o reconhecimento da família tem como requisito não preponderantemente a lei mas sim o afeto, ou seja, a constituição familiar antes restrita a definição jurídica e padronizada do casamento passa a ser fática, tendo o afeto e a realização mutua de dignidade como elemento essencial de constituição, ultrapassando as previsões de definição trazidas pela lei e abarcando todo e qualquer grupo em que os membros que ali se encontrem vejam e considerem uns aos outros como ente familiar se escolhendo para viver como uma família. Assim, as constituições diversificadas de família hoje não se amoldam ou se acomodam a modelos padronizados e reproduzidos pela sociedade ate pouco tempo. As famílias da contemporaneidade são plurais, abertas e tem como elemento essencial e suficiente a sua formação o intuito familiae e o afeto como elemento volitivo não se podendo limitar sua validade a moldes legais que se encontram em desarmonia com a evolução social (CARVALHO, 2019).
Dias (2021) corrobora ao pensamento e discorre que:
Como as uniões extramatrimoniais não eram consideradas de natureza familiar encontravam abrigo somente no direito obrigacional, sendo tratadas como sociedades de fato. Mesmo que não indicadas de forma expressa, outras entidades familiares, como as uniões homossexuais – agora chamadas de uniões homoafetivas – e as uniões paralelas – preconceituosamente nominadas de ”concubinato adulterino”- são unidades afetivas que merecem ser abrigadas sob o manto do direito das famílias.
Nesse sentido, o posicionamento em apresso de vedar a lavratura de escritura pública que tenha por objeto a união “poliafetiva” tem como consequência a limitação a autonomia da vontade das partes e o não acompanhamento do atual e predominante entendimento de que o objetivo da família é o desenvolvimento digno da pessoa, estando intrinsecamente ligado a liberdade de escolha de como e com quem viver, tendo como elemento suficiente à sua configuração o afeto.
Ainda, é importante discutir a temática quanto os limites de intervenção do Estado nas relações afetivas. Deve-se entender que, desde que respeitada reste a dignidade e o interesse dos terceiros, é as partes envolvidas que cabem estabelecer as regras de convivência, o que aceitam, não cabendo ao Estado violar essa esfera de intimidade e dizer o que pode ou não pode de modo inflexível de forma que impossibilite que as partes se sintam realizadas.
Pablo Estolze Gagliano e Rodolfo Pamplona Filho (2021, p.193) asseveram
A atuação estatal não poderia invadir essa esfera de intimidade, pois, em uma relação de afeto, são os protagonistas que devem estabelecer as regras aceitáveis de convivência, desde que não violem a sua dignidade, nem interesses de terceiros. Qual é a legitimidade que o Estado tem para dizer quando alguém deve ser perdoado ou se alguma conduta deve ser aceita? O que dizer, por exemplo, do casal que vive em poliamorismo?
Vê-se pois que a imposição de natureza valorativa da monogamia deve ser impetrada com vista a limitar o Estado de cercear a liberdade do indivíduo, consagrando-se a monogamia como uma faculdade, uma escolha de modo de vida, não cabendo juízo de validade, como é caracterizado ao ser aplicada a monogamia como princípio, coercitivo por natureza, e sim de qualidade dos arranjos familiares, não gerando assim exclusão as conformações afetivas plurais ou poliamoristicas posto que resta nessa conformação respeitada a dignidade e a vontade das partes.
Ao tratar desse possível posicionamento é interessante considerar a tendência, pode-se dizer, inerente ao tema do poliamorismo, de ser constantemente confundido com o concubinato. Ocorre que, como já desenvolvido ao longo desse trabalho, enquanto o poliamorismo é a afeição a formação familiar não monogâmica mas com consentimento e ciência das partes, não havendo infidelidade, ou melhor, não havendo desrespeito ao valor juridicamente tutelado da fidelidade, o concubinato reflete o completo oposto, ou seja, a deslealdade, entre os cônjuges, a infidelidade.
Ainda, nessa linha de raciocínio, diz Pablo Estolze Gagliano e Rodolfo Pamplona Filho (2021, p.193):
Embora a fidelidade (e a monogamia, por consequência) seja consagrada como um valor juridicamente tutelado, não se trata de um aspecto comportamental absoluto e inalterável pela vontade das partes. Nessa linha, por coerência lógica, preferimos simplesmente encarar a monogamia como uma nota característica do nosso sistema, e não como um princípio, porquanto, dada a forte carga normativa desse último conceito, é preferível evitá-lo, mormente em se considerando as peculiaridades culturais de cada sociedade.
O que deve se entender é que não existe uma escolha melhor que a outra devendo se observar a particularidade, a significância de cada uma, não devendo existir uma verdade acabada, visto que todos os caminhos são possibilidades.
Nesse sentido, importante observar que a monogamia talvez devesse ser considerada um princípio só no casamento, vedando-se o concubinato, nos termos de configuração de falta de fidelidade, lealdade e cumprimento do contrato, não de forma genérica e excludente de realidades afetivas dignas que não envolvem infidelidade, como o poliamorismo.
Bem destaca a jurista Maria Berenice Dias (2021) que:
A historica omissão do legislador não pode ensejar a exclusão de direitos, perversa tentativa de não ver o que foge do modelo do que não é espelho. Esta falta de visão só vem em prejuízo de quem tem o direito de viver com quem quiser.
Enquanto houver segmentos alvos da exclusão social, enquanto o direito à livre expressão da sexualidade não for respeitada, não se está vivendo em um Estado Democrático de Direito.
Pautando-se nesse entendimento, difícil é coadunar com o posicionamento adotado pelo Conselho Nacional de Justiça (CNJ)- uma instituição pública voltada a aperfeiçoar o desempenho do sistema judiciário brasileiro, com especial zelo quanto a garantir a transparência no âmbito administrativo e no processual, além de controlar o cumprimento dos deveres por parte dos juízes. Tudo isso buscando, em tese, melhorar a atuação desse poder, de modo que ele possa atender melhor às necessidades dos cidadãos no país- diante do tema de relações não monogâmicas. A decisão atendeu a pedido da Associação de Direito de Família e das Sucessões (ADFAS), que acionou o CNJ contra dois cartórios de comarcas paulistas, em São Vicente e em Tupã, que teriam lavrados escrituras de uniões estáveis poliafetivas.
Na ocasião do dia 26/06/2018 posicionou-se o ministro e relator do processo, João Otávio de Noronha, pelo impedimento aos cartórios de registrar união entre mais de duas pessoas. De acordo com Noronha as competências do CNJ se limitam ao controle administrativo, não jurisdicional, conforme estabelecidas na Constituição Federal.
Nesse diapasão, o registro de união estavél poliamoristica, de acordo com o ministro Noronha, não tem respaldo na legislação nem na jurisprudência do Supremo Tribunal Federal (STF), que, por exemplo, só reconhece direitos a benefícios previdenciários, como pensões, a herdeiros em casos de associação por casamento ou união estável. Nesse viés, a permissão da escrituração em questão junto aos cartórios na interpretação atual de desamparo legislativo deixaria também tais grupos familiares desamparados quanto a questões previdenciárias.
Como diz Maria Berenice dias (2022), afinal, as pessoas precisam agir segundo as normas legais. E quando não há lei, não há direito. Simples assim.
Ainda, argumentou sobre uma suposta imaturidade da matéria perante a sociedade. Em outras palavras, quis dizer que os relacionamentos simultâneos de mais de duas pessoas seriam praticamente inexistentes e que por isso não seriam uma matéria que merecesse normatização ou de relevância social suficiente a provocar a criação de normas sobre ela, uma vez que a lei esta condicionada a refletir o meio social.
Em contrapartida ao argumento acima, Maria Berenice Dias (2021) defende que:
Não ver, dizer que uniões de diferentes conformações não existem, é incentivar comportamentos antiéticos.
Sequer é necessária expressa previsão legal para que os vínculos afetivos – todos eles – sejam enlaçados pelo direito, com a imposição de responsabilidades recíprocas.
Ainda, é interessante observar que, ainda no viés de que a arte imita a vida, as novelas, principalmente, costumam ter um cunho argumentativo, retratando as questões discutidas ao tempo. Atualmente, questões recorrentes nas mesmas são o descobrir-se das personagens quanto ao que gosta, como se define e onde se enquadra quanto a sua sexualidade, bem como a flexibilização dos formatos familiares. Mostram o medo e retração que envolvem personagem que fogem aos padrões, as idealizações. Ocorre que, a mensagem que se passa é a de que amor é fluido, é algo idealizado de forma diferente em cada indivíduo, tendo em vista que cada um tem uma origem diferente, e que existem vários tipos de amor.
Lins (2007, p.327), quando versa sobre o poliamor, diz que:
Existem pessoas que sentem necessidade de mais, e essas pessoas buscam compartilhar seus sentimentos com aqueles que também sentem essa necessidade, abrindo assim espaço para múltiplas relações interpessoais amorosas, as quais negam a monogamia tanto como um princípio, quanto uma necessidade.
Se paira na arte a fluidez das relações e feições afetivas como reflexo da vida, da sociedade, e nos pareceres doutrinários se repete o mesmo entendimento, arisca-se então a concluir que o argumento de que por não ser madura e relevante a pauta não coube ainda a lei resguardar a matéria não tem sustentabilidade.
Nesse viés, a necessidade de admitir as inúmeras e inusitadas feições de familia é latente, não se podendo negar que as normas jurídicas devem se adequar e assumir contornos dinâmicos ou não farão mais sentido, regraram o vazio, o ultrapassado, já que a sociedade passa por diuturnas mutações (FIÚZA; POLI, 2016).
No entanto, em análise ao dinamismo social o que se constata é a falha dos institutos jurídicos em seu dever de acompanhar o mundo dos fatos com vista a garantir a tutela devida o que gera uma desarmonia socio-normativa, um alijamento dos interessados, no caso, as pessoas que se entendem não monogâmicas, ou em desafeto a relações monogâmicas, aqui se destacando em especial, a nova composição familiar poliamoristica que vem emergindo na sociedade e desvelando a tendência de os tribunais repelirem relacionamentos que apresentam paralelismo afetivo com o argumento de que o ordenamento não os regulamenta, esquecendo-se de considerar que não é, em contrapartida, defeso pelo mesmo.
Observando o estudo em comento, verifica-se que o contemporâneo trabalho se justifica pela necessidade de se levantar a evolução do Direito das Famílias no Brasil, a diferença de poliamorismo e concubinato e a vedação dos cartórios nas uniões poliamoristas.
Diante disso, a pesquisa pautou-se em fundamentações e doutrinas para o melhor entendimento dos relacionamentos poliafetivos e suas implicações no Direito das Famílias.
Atendido este aspecto, é mister destacar que a partir do decorrer da história, é nítido a mudança na Constituição e no Direito civil, onde as relações mudaram com o tempo e as formações familiares obtiveram novas identidades que envolve a afetividade como base, e ainda há uma intolerância e a perpetuação dessa, implica em restrições por parte do Conselho Nacional de Justiça (CNJ) para com uniões poliamoristicas.
A diferenciação da monogamia como valor e princípio, que é algo estabelecido por uma cultura advinda principalmente pelos primórdios da religião e sua perpetuação pelo mundo e suas implicações na sociedade atual.
Além disso, rebaixar uma entidade familiar para invisível não só vai contra própria Constituição Federal, mas também, constitui uma atitude desumana, uma vez que confere tratar indivíduos na mesma posição de maneira diferente, até mesmo prejudicando a segurança jurídica é estabelecida pela produção de várias decisões contrastantes entre si.
Tal cenário, se concretizado, além de configurar mais uma vitória ao legado do patriarcado e do preconceito dará à sociedade esperança de que a lei será eventualmente aplicada ser fiéis aos seus próprios princípios e normas, e a própria justiça.
Diante do exposto, pode-se dizer que a pesquisa traz relevância social, principalmente no que diz respeito às atualizações na seara de diálogo das fontes do Direito Constitucional brasileiro e Direito Civil, e por seguinte, no Direito das Famílias, e a evolução que as novas relações pautadas no afeto, e que as mudanças de comportamento e de pensamento possam mudar a decisão do Conselho Nacional de Justiça e a vedação ao poliamorismo.
REFERÊNCIAS
BRASIL. Conselho Nacional de Justiça. Pedido de Providências 0001459-08.2016.2.00.0000. CF/1988 art :226 paragrafo3º; Lei-8935/1994, art.6º Lei-10.406/2002, art.1.513. Pedido de providências. união estável poliafetiva. entidade familiar. reconhecimento. impossibildade. família. categoria sociocultural. imaturidade social da união poliafetiva como família. declaração de vontade. inaptidão para criar ente social. monogamia. elemento estrutural da sociedade. escritura pública declaratória de união poliafetiva. lavratura. vedação. Requerente: Associação de Direito de Família e das sucessões- ADFAS. Requerido: Terceiro Tabelião de Notas e Protestos de letras e títulos de São Vicente-SP e outros. Relator Min. João Otávio de Noronha, 26 de junho de 2018. Disponivel em: https://www.cnj.jus.br/InfojurisI2/Jurisprudencia.seam?jurisprudenciaIdJuris=51260&indiceListaJu ri. Acesso em: 21/abr/2022
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MONTEIRO, Cláudia Servilha; MEZZAROBA, Orides. Manual de Metodologia da Pesquisa no Direito. 8. ed. São Paulo: Saraiva, 2019. E-book. ISBN: 9788553611553. Disponível em: https://bibliotecadigital.saraivaeducacao.com.br/books/648284. Acesso em: 28/abr/2022
graduando do Curso de Direito do Centro Universitário Santo Agostinho(UNIFSA).
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: LIMA, Jefte de Souza. Conselho nacional de justiça e a vedação do poliamorismo Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 01 dez 2022, 04:03. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/artigos/60357/conselho-nacional-de-justia-e-a-vedao-do-poliamorismo. Acesso em: 23 nov 2024.
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