RESUMO: A presente pesquisa visa compreender o posicionamento do Supremo Tribunal Federal (STF) e do Superior Tribunal de Justiça (STJ), acerca da concessão de medicamentos, principalmente no que tange aos parâmetros e requisitos para o fornecimento, e analisar a importância dessas teses para a garantia do direito fundamental à saúde frente à possibilidade financeira do Estado. O artigo em apreço, elaborado pelo método hipotético-dedutivo, faz um estudo do arcabouço constitucional da saúde no ordenamento jurídico, e posiciona a prestação de medicamentos na realidade social, com destaque para as diretrizes fixadas pelos Tribunais Superiores.
Palavras-Chave: Direito à saúde; Judicialização da saúde; Concessão de medicamentos. Reserva do possível. Posicionamento dos Tribunais Superiores.
SUMÁRIO: 1. Introdução. 2. Direito à saúde: um panorama constitucional. 3. Judicialização da saúde. 4. Concessão de medicamentos: posicionamento dos Tribunais Superiores. 4.1. Medicamentos não incorporados à lista do SUS. 4.2 Medicamentos para uso off label. 4.3. Medicamentos sem registro na ANVISA. 5. Reserva do possível. 6. Considerações finais. 7. Referências.
1.Introdução
A saúde possui uma relevância especial para o ordenamento jurídico brasileiro. Em diversas passagens, a Constituição Federal demonstra preocupação em vê-la protegida, tanto o é, que a classifica como direito fundamental de todos. O dever de proteção recai sobre o Estado, que se organizará para promover políticas públicas e reservar recursos para assegurá-la.
Quando a mencionada prestação é ineficiente a sociedade se socorre ao Judiciário, com vistas à condenação do Poder Público à tomada de providências de ordem prática. A quantidade de demandas judiciais cujo objeto é a saúde é expressiva, dentre as quais destacam-se as que se destinam ao fornecimento de fármacos.
Em razão do vultoso gasto público decorrente das ações de medicamentos somado ao fato de que os recursos públicos são limitados e escassos, fez-se urgente o acionamento dos Tribunais Superiores para a fixação de parâmetros para o julgamento de casos sobre o tema.
A importância dessas diretrizes perpassa pela orientação dos julgadores de primeiro e segundo graus, que disporão de subsídios objetivos para tomarem decisões mais equânimes e justas sem sobrecarregar em demasiado os cofres públicos, até atingir o cidadão, para que ele, quando entenda fazer jus à concessão de um determinado medicamento, apenas acione o Poder Judiciário se preenchidos os requisitos fixados pelos Tribunais Superiores, a fim de evitar o colapso do sistema judicial.
2.Direito à saúde: um panorama constitucional
Há muito, o direito à saúde faz parte das Constituições Federais Brasileiras. Trata-se de um desdobramento do Estado Social de Direito, que sofreu forte influência das Constituições Mexicana de 1917 e Alemã de 1919. A doutrina o enquadra como direito fundamental de 2ª dimensão, de caráter social, que visa assegurar adequadas condições de vida e dignidade para a sociedade, fundamento da República Federativa do Brasil.
Mas o que é saúde? O que a Constituição visa proteger?
Segundo a Organização Mundial da Saúde (OMS), saúde é “um estado de completo bem-estar físico, mental e social e não somente ausência de afecções e enfermidades”. Essa não é uma conceituação simples, mas, trazendo-a para um olhar jurídico, pode-se compreendê-la como um estado de equilíbrio e bem estar físico, mental, social e espiritual que buscam os homens e que deve ser proporcionada e garantida pelo Estado.
Em diversas passagens, a Carta Maior da república brasileira demonstra interesse na positivação do direito à saúde, bem como na determinação dos responsáveis pelas práticas necessárias à garantia do exercício. A necessidade de tanta atenção por parte da Constituição se deveu à necessidade de o Brasil acompanhar a preocupação mundial com o tema, o que se constatou após o advento das principais declarações internacionais de direitos humanos.
Segundo o art. 196 da Carta Magna, a saúde é direito de todos e dever do Estado. Afirma, ainda, que o Estado deve exercer seu múnus por meio de políticas sociais e econômicas, ratificando o caráter programático do instituto. Veja-se:
Art. 196. A saúde é direito de todos e dever do Estado, garantido mediante políticas sociais e econômicas que visem à redução do risco de doença e de outros agravos e ao acesso universal e igualitário às ações e serviços para sua promoção, proteção e recuperação.
Observe-se que o constituinte originário fez constar expressamente que é um “dever” do Estado, isto é, os destinatários da norma, que são os entes federativos, precisarão montar uma estrutura administrativa, através de políticas públicas, sociais e econômicas que suporte garantir a saúde de que necessita a população.
Nesse contexto, e com vistas à segurança desse direito, foi criado o Sistema Único de Saúde (SUS), uma das principais conquistas democráticas do Brasil. É um modelo de sistema de saúde pública, com mais de 30 (trinta) anos, sustentado pelos pilares da universalidade, igualdade de acesso e integralidade no atendimento, reconhecido internacionalmente, apesar de enfrentar constantes problemas de ordem financeira e de gestão, os quais abordaremos mais detidamente adiante.
A Lei Maior determina, ainda, que cuidar da saúde e da assistência pública é da competência administrativa comum da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios (art. 23, II). Já para legislar sobre o tema, a competência é concorrente entre todos os entes federativos, o que é possível concluir pelo cotejo do art. 24, XII c/c 30, VII.
Art. 24. Compete à União, aos Estados e ao Distrito Federal legislar concorrentemente sobre: XII - previdência social, proteção e defesa da saúde;
(...)
§ 1º No âmbito da legislação concorrente, a competência da União limitar-se-á a estabelecer normas gerais.
§ 2º A competência da União para legislar sobre normas gerais não exclui a competência suplementar dos Estados.
§ 3º Inexistindo lei federal sobre normas gerais, os Estados exercerão a competência legislativa plena, para atender a suas peculiaridades.
§ 4º A superveniência de lei federal sobre normas gerais suspende a eficácia da lei estadual, no que lhe for contrário.
Art. 30. Compete aos Municípios: VII - prestar, com a cooperação técnica e financeira da União e do Estado, serviços de atendimento à saúde da população;
Desse modo, União, Estados e Municípios, ainda que cada esfera possua responsabilidades setorizadas para melhor distribuições das funções e, assim, melhor atender à população, devem sempre agir em harmonia e estarem integrados, pois a saúde é dever de todos eles.
Segundo Pedro Lenza (2017), a doutrina aponta dupla vertente dos direitos sociais, principalmente no tocante à saúde: a) natureza negativa: o Estado ou particular devem abster-se de praticar atos que prejudiquem terceiros; b) natureza positiva: fomenta-se um Estado prestacionista para implementar o direito social.
É com fulcro na natureza positiva do direito à saúde que se destacam recentes posicionamentos dos Tribunais Superiores no que tange à concessão de medicamentos, os quais serão analisados nesse estudo.
3.Judicialização da saúde
Apenas na Constituição da República (sem falar das diversas normas infraconstitucionais sobre o tema), vários normativos retratam a supramencionada preocupação do legislador em dar efetividade plena ao direito da saúde. Dentre elas, destacam-se a previsão de percentual mínimo de aplicação da receita de impostos na saúde para todos os entes, a vinculação de receitas, a possibilidade de intervenção federal, destinação percentual decorrente de emendas orçamentárias, dentre outros.
Em que pese nem todas as normas constitucionais sejam de eficácia plena e aplicabilidade imediata, nos termos da acepção do professor José Afonso da Silva, as de eficácia limitada e que necessitam de integração para tornarem-se completas, gozam de alguma eficácia jurídica, nem que seja de impedir a edição de lei que viole seus preceitos.
Ademais, as normas da CF/88 definidoras de princípios programáticos, como é o caso de boa parte das que tratam sobre saúde, são aquelas que traçam as metas e princípios para serem cumpridos pelos órgãos integrantes dos poderes públicos. Tais preceitos são voltados para os órgãos estatais, exigindo destes a consecução de determinados programas.
O fato é que todas elas (no caso, seu descumprimento) podem ser utilizadas como parâmetro para demandas judiciais em que se questionem ações ou decisões cujo objeto é a saúde. E são.
Auditoria realizada pelo Tribunal de Contas da União, em 2017, identificou que “gastos com processos judiciais da União aumentaram 1.300% em sete anos. O fornecimento de medicamentos, alguns sem registro no Sistema Único de Saúde, corresponde a 80 % das ações judiciais”. Estudo elaborado pelo Insper para o CNJ concluiu que, só em 2016, o gasto com demandas judiciais na saúde consumiu R$ 1,3 bilhões. O aumento do valor cresceu mais de 10 vezes em 6 anos. A lista com os dez medicamentos mais caros é responsável por 90% desse valor.
O incremento das demandas sobre concessão de medicamentos é galopante e o valor gasto com as condenações judiciais é alarmante. Diante desse cenário, e tendo em vista a necessidade de serem estabelecidos parâmetros objetivos para orientar os aplicadores da lei e uniformizar o fornecimento dos fármacos, com fulcro nos princípios constitucionais e na justiça social, os Tribunais Superiores foram instados a pronunciarem-se sobre o tema. A seguir, observe-se os mais recentes entendimentos.
4.Concessão de medicamentos: posicionamento dos Tribunais Superiores
4.1 Medicamentos não incorporados à lista do SUS
O SUS possui um rol taxativo de medicamentos que está compelido a fornecer gratuitamente à população. Segundo o STJ, existe hipótese em que o Poder Público está obrigado ao fornecimento, ainda que o fármaco solicitado não esteja listado.
Para esse Tribunal, a concessão dos medicamentos não incorporados em atos normativos do SUS exige a presença cumulativa dos seguintes requisitos[1]:
a) Comprovação, por meio de laudo médico fundamentado e circunstanciado expedido por médico que assiste o paciente, da imprescindibilidade ou necessidade do medicamento, assim como da ineficácia, para o tratamento da moléstia, dos fármacos fornecidos pelo SUS;
b) incapacidade financeira de arcar com o custo do medicamento prescrito;
c) existência de registro do medicamento na Agência Nacional de Vigilância Sanitária (ANVISA), observados os usos autorizados pela agência.
Convém salientar que, durante as discussões, ficou estabelecido que o laudo deve ser emitido pelo médico que assiste o paciente, seja ele público ou privado, não precisando ser vinculado ao SUS, sendo competência do juiz avaliar o documento e verificar se as informações constantes nele são suficientes para a formação de seu convencimento quanto à imprescindibilidade do medicamento.
Ademais, não se exige comprovação de pobreza ou miserabilidade, mas, apenas prova de que o interessado não tem condições de adquirir o medicamento sem prejuízo do seu sustento e da sua família.
A tese acima, firmada em sede de recurso repetitivo, teve os seus efeitos modulados, de modo que os requisitos acima elencados sejam exigidos de forma cumulativa somente quanto aos processos distribuídos a partir da data da publicação do referido acórdão, ou seja, 04/05/2018.
Destaca-se, por fim, importante discussão jurisprudencial entre os Tribunais Superiores acerca do ente federativo legítimo para figurar no polo passivo de demandas cujo pedido seja o fornecimento de medicação registrada, mas não incorporada aos protocolos do SUS.
Para o STJ[2], em demandas relativas a direito à saúde, é incabível ao juiz estadual determinar a inclusão da União no polo passivo da demanda se a parte requerente optar pela não inclusão, ante a solidariedade dos entes federados. Já para o STF, a inclusão da União é obrigatória nesses casos[3]. Acompanhemos o deslinde dessa controvérsia.
4.2 Medicamentos para uso off label
A regra é que serão fornecidos pelo Poder Público os medicamentos cujo uso destinado for o indicado pelo fabricante quando do registro do medicamento na ANVISA. Uso off label é a expressão utilizada para identificar aqueles fármacos cujo escopo seja atingir o fim a que ele não se destina originalmente, mas outro para o qual detectou-se, com o tempo, na prática, que ele também serve. Um exemplo comum é o comercialmente denominado “Minoxidil”, que foi proposto para controle de pressão arterial, mas hoje é difundido o seu uso para estímulo de crescimento capilar.
A Administração Pública não está obrigada a fornecer os medicamentos para uso off label, já que não foi esse o uso indicado quando do registro na agência reguladora. Porém, o Tribunal da Cidadania recentemente fixou tese no sentido de que, excepcionalmente, será possível que o paciente exija o medicamento caso esse determinado uso fora da bula tenha sido autorizado pela ANVISA. Observe-se trecho da decisão:
ADMINISTRATIVO. PEDIDO DE UNIFORMIZAÇÃO DE INTERPRETAÇÃO DE LEI. FORNECIMENTO DE MEDICAMENTOS PELO PODER PÚBLICO. VEDAÇÃO DE FORNECIMENTO DE MEDICAMENTO PARA USO OFF LABEL. PRECEDENTE DA PRIMEIRA SEÇÃO. 1. Cuida-se na origem de ação ordinária na qual a parte autora, ora requerida, pleiteia em juízo a condenação do Município de Belo Horizonte e do Estado de Minas Gerais ao fornecimento do fármaco RITUXIMABE 500mg, para o tratamento de Lúpus Eritematoso Sistêmico, CID M32.8. 2. A primeira Seção deste Superior Tribunal, no julgamento dos EDcl no REsp 1.657.156/RJ, submetido ao rito dos recursos representativos de controvérsia repetitiva, firmou tese no sentido de que "a concessão dos medicamentos não incorporados em atos normativos do SUS exige a presença cumulativa dos seguintes requisitos: i) Comprovação, por meio de laudo médico fundamentado e circunstanciado expedido por médico que assiste o paciente, da imprescindibilidade ou necessidade do medicamento, assim como da ineficácia, para o tratamento da moléstia, dos fármacos fornecidos pelo SUS; ii) incapacidade financeira de arcar com o custo do medicamento prescrito; iii) existência de registro do medicamento na ANVISA, observados os usos autorizados pela agência". 3. Caso concreto em que Turma Recursal recorrida, ao admitir a utilização off label do medicamento em tela, a um só tempo divergiu do entendimento firmado no acórdão apontado como paradigma, oriundo da 4ª Turma Recursal da Comarca de Curitiba, como também da tese estabelecida pela Primeira Seção desta Corte no julgamento do aludido recurso repetitivo. 4. Pedido de uniformização de interpretação de lei conhecido e provido.STJ - PUIL: 2101 MG 2021/0130533-5, Relator: Ministro SÉRGIO KUKINA, Data de Julgamento: 10/11/2021, S1 - PRIMEIRA SEÇÃO, Data de Publicação: DJe 18/11/2021.
Insta salientar que esse entendimento se aplica tão somente à saúde pública. Para a saúde suplementar (que não é objeto desse estudo), aquela promovida via seguradoras de plano de saúde, a regra é outra: o STJ[4] entende que a operadora de plano de saúde não pode negar o fornecimento de tratamento prescrito pelo médico que assiste o paciente, sob o pretexto de que a sua utilização em favor desse está fora das indicações descritas na bula/manual registrado na ANVISA (uso off-label), ainda que se trate de medicamento experimental, pois não cabe ao plano de saúde fazer juízo de valor acerca dos diagnósticos e dos tratamentos indicados para doenças cobertas pelo seguro.
4.3 Medicamentos sem registro na ANVISA
A ANVISA é uma autarquia sob regime especial, vinculada ao Governo Federal, que funciona como agência de regulação sanitária e que faz, dentre outros, o controle de registro dos medicamentos cuja circulação está autorizada no país.
Para o Supremo Tribunal Federal, a ausência de registro na ANVISA impede o fornecimento de medicamento por decisão judicial, já, que, em tese, a sua circulação e consumo não está permitida no país, não podendo o Poder Judiciário se imiscuir na análise técnica da agência, e também porque é vedado a concessão de medicamentos experimentais pelo Poder Público.
Recentemente, contudo, a Suprema Corte excepcionou essa regra, fixando tese em sede de repercussão geral. Atente-se à ementa:
Direito Constitucional. Recurso Extraordinário com Repercussão Geral. Medicamentos não registrados na Anvisa. Impossibilidade de dispensação por decisão judicial, salvo mora irrazoável na apreciação do pedido de registro. 1. Como regra geral, o Estado não pode ser obrigado a fornecer medicamentos não registrados na Agência Nacional de Vigilância Sanitária (ANVISA) por decisão judicial. O registro na Anvisa constitui proteção à saúde pública, atestando a eficácia, segurança e qualidade dos fármacos comercializados no país, além de garantir o devido controle de preços. 2. No caso de medicamentos experimentais, i.e., sem comprovação científica de eficácia e segurança, e ainda em fase de pesquisas e testes, não há nenhuma hipótese em que o Poder Judiciário possa obrigar o Estado a fornecê-los. Isso, é claro, não interfere com a dispensação desses fármacos no âmbito de programas de testes clínicos, acesso expandido ou de uso compassivo, sempre nos termos da regulamentação aplicável. 3. No caso de medicamentos com eficácia e segurança comprovadas e testes concluídos, mas ainda sem registro na ANVISA, o seu fornecimento por decisão judicial assume caráter absolutamente excepcional e somente poderá ocorrer em uma hipótese: a de mora irrazoável da Anvisa em apreciar o pedido (prazo superior ao previsto na Lei nº 13.411/2016). Ainda nesse caso, porém, será preciso que haja prova do preenchimento cumulativo de três requisitos. São eles: (i) a existência de pedido de registro do medicamento no Brasil (salvo no caso de medicamentos órfãos para doenças raras e ultrarraras); (ii) a existência de registro do medicamento pleiteado em renomadas agências de regulação no exterior (e.g., EUA, União Europeia e Japão); e (iii) a inexistência de substituto terapêutico registrado na ANVISA. Ademais, tendo em vista que o pressuposto básico da obrigação estatal é a mora da agência, as ações que demandem fornecimento de medicamentos sem registro na ANVISA deverão necessariamente ser propostas em face da União. 4. Provimento parcial do recurso extraordinário, apenas para a afirmação, em repercussão geral, da seguinte tese: “1. O Estado não pode ser obrigado a fornecer medicamentos experimentais. 2. A ausência de registro na ANVISA impede, como regra geral, o fornecimento de medicamento por decisão judicial. 3. É possível, excepcionalmente, a concessão judicial de medicamento sem registro sanitário, em caso de mora irrazoável da ANVISA em apreciar o pedido de registro (prazo superior ao previsto na Lei nº 13.411/2016), quando preenchidos três requisitos: (i) a existência de pedido de registro do medicamento no Brasil (salvo no caso de medicamentos órfãos para doenças raras e ultrarraras); (ii) a existência de registro do medicamento em renomadas agências de regulação no exterior; e (iii) a inexistência de substituto terapêutico com registro no Brasil. 4. As ações que demandem fornecimento de medicamentos sem registro na Anvisa deverão necessariamente ser propostas em face da União”. STF - RE: 657718 MG, Relator: MARCO AURÉLIO, Data de Julgamento: 22/05/2019, Tribunal Pleno, Data de Publicação: 09/11/2020.
Nesse contexto, a concessão judicial de medicamento sem registro sanitário passou a ser possível, desde que haja mora irrazoável da ANVISA em apreciar o pedido e estejam preenchidos, cumulativamente, 03 (três) requisitos:
a) A existência de pedido de registro do medicamento no Brasil, salvo medicamentos órfãos para doenças raras e ultrarraras;
b) A existência de registro do medicamento em renomadas agências de regulação no exterior;
c) A inexistência de substituto terapêutico no Brasil.
Posteriormente ao supratranscrito posicionamento, o STF, no tema 1161 de Repercussão Geral, elencou outra exceção à vedação de concessão de medicamento sem registro, nos casos em que, apesar disso, a importação do fármaco é autorizada pela agência, fixando que “cabe ao Estado fornecer, em termos excepcionais, medicamento que, embora não possua registro na Anvisa, tem a sua importação autorizada pela agência de vigilância sanitária, desde que comprovada a incapacidade econômica do paciente, a imprescindibilidade clínica do tratamento, e a impossibilidade de substituição por outro similar constante das listas oficiais de dispensação de medicamentos e os protocolos de intervenção terapêutica do SUS.[5]”
Ainda, observe-se que, no julgado acima colacionado, o STF faz expressamente constar que as ações que demandem o fornecimento de medicamentos sem registro na ANVISA deverão ser necessariamente propostas em face da União. Ressalva relevante, pois o tratamento, como visto alhures, não é o mesmo para os medicamentos registrados, mas não incorporados ao protocolo do SUS, exposto no item 4.1, ao qual remete-se o leitor.
5.Reserva do possível
Apesar de o direito à saúde ser constitucionalmente assegurado, a concessão de medicamentos a quem deles necessita encontra um importante obstáculo de ordem fática: a falta de recursos da Administração Pública.
A conta não é tão simples de ser feita. Existe o direito das pessoas. Existe o dever do Poder Público. Muitas são as demandas judiciais. Altíssimos são os valores decorrentes das condenações. E como o Estado dá conta de tudo isso na prática?
Não dá. O Estado não pode atender a todos. A “universalidade” proposta pelo SUS, por ora, está no plano do “dever ser”.
É certo que cabe ao Poder Público a eleição do que é de investimento prioritário com os recursos que possui. Mas essa escolha deve ser feita sem perder de vista a segurança do mínimo existencial, no qual sem dúvida inclui-se vida saudável.
É para moldar essa seleção, evitar abusos e garantir a igualdade e a proporcionalidade, que os Tribunais Superiores são constantemente provocados para estabelecer novas balizas à concessão dos medicamentos, a fim de balancear a garantia do direito fundamental à saúde com as possibilidades financeiras do Estado de promovê-la.
6.Considerações finais
Dentre os direitos fundamentais que devem ser protegidos e garantidos pelo Estado, um dos que mais tem sua prestação (ou falta dela) questionada judicialmente é, sem dúvida, o direito à saúde. No rol de motivos para as demandas, cresce vertiginosamente o apelo pela concessão de medicamentos por parte do Poder Público.
Com a finalidade de restringir as discussões judiciais aos casos excepcionais, os Tribunais Superiores têm se debruçado cada vez mais sobre o tema, preocupando-se em firmar teses bem estruturadas que funcionem como moldura para nortear a conduta dos julgadores.
Essa adequação envolve o equilíbrio de valores muito caros à sociedade e o sopesamento de elementos fáticos muito delicados, que abarca questões sociais, políticas e principalmente financeiras. Isso porque nem o Estado pode conceder medicamentos a todos que deles precisam, nem o Governo pode deixar sua população adoecer sem diligenciar a respeito.
Os parâmetros estabelecidos pelo STF e pelo STJ são frutos dessa tentativa de estabelecimento de uma maior efetividade no equilíbrio entre a concessão dos medicamentos e a realidade orçamentária do país, sempre com vistas à igualdade e à proporcionalidade das providências.
Por fim, ressalte-se que a fixação dessas balizas pelos Tribunais Superiores é essencial para condução dos trabalhos nesse sentido, no âmbito local e regional, bem como para orientação dos magistrados, quando da tomada de decisões, e, principalmente, para que a população interessada disponha da possibilidade de enquadrar sua situação nas hipóteses elencadas nesse trabalho, para, apenas em sendo o caso, acionar o Poder Judiciário.
Portanto, em uma previsão de médio a longo prazo, estar-se-ia não só atenuando o abarrotamento do sistema judicial, mas também garantindo que os recursos públicos sejam destinados de forma mais efetiva para aquele nicho de pessoas que mais precisam dos medicamentos.
7.Referências
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CAVALCANTE, Márcio André Lopes. Estado pode ser obrigado a fornecer medicamento não registrado na ANVISA, se a sua importação estiver autorizada, ele se mostrar imprescindível ao tratamento e houver incapacidade financeira do paciente. Buscador Dizer o Direito, Manaus. Disponível em: <https://www.buscadordizerodireito.com.br/jurisprudencia/detalhes/c11cb55c3d8dcc03a7ab7ab722703e0a>. Acesso em: 29/12/2022.
CAVALCANTE, Márcio André Lopes. É possível obrigar o Estado a fornecer medicamento off label?. Buscador Dizer o Direito, Manaus. Disponível em: <https://www.buscadordizerodireito.com.br/jurisprudencia/detalhes/ae502204564aafbffb712be630e3910b>. Acesso em: 29/12/2022.
CAVALCANTE, Márcio André Lopes. Em demandas relativas a direito à saúde, o juiz pode determinar a inclusão da União no polo passivo da demanda se a parte requerente optou pela não inclusão?. Buscador Dizer o Direito, Manaus. Disponível em: <https://www.buscadordizerodireito.com.br/jurisprudencia/detalhes/92316afaebe71e3e55c62c02659c6d5d>. Acesso em: 29/12/2022.
CAVALCANTE, Márcio André Lopes. Fornecimento pelo Poder Judiciário de medicamentos não registrados pela ANVISA. Buscador Dizer o Direito, Manaus. Disponível em: <https://www.buscadordizerodireito.com.br/jurisprudencia/detalhes/4d7a968bb636e25818ff2a3941db08c1>. Acesso em: 29/12/2022.
CAVALCANTE, Márcio André Lopes. Requisitos para a concessão judicial de medicamentos não previstos pelo SUS. Buscador Dizer o Direito, Manaus. Disponível em: <https://www.buscadordizerodireito.com.br/jurisprudencia/detalhes/27b09e189a405b6cca6ddd7ec869c143>. Acesso em: 29/12/2022.
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STJ. 3ª Turma. REsp 1721705-SP, Rel. Min. Nancy Andrighi, julgado em 28/08/2018 (Info 632) e STJ. 3ª Turma. AgInt no AREsp 1819953/SP, Rel. Min. Moura Ribeiro, julgado em 22/06/2021. Disponível em: https://www.jusbrasil.com.br/jurisprudencia/stj/622839864/inteiro-teor 622839868. Acesso em: 28 de dez. de 2022.
TCU. Aumentam os gastos com judicialização da saúde. Disponível em: https://portal.tcu.gov.br/imprensa/noticias/aumentam-os-gastos-publicos-com-judicializacao-da-saude.htm. Acesso em 29 de dez. de 2022.
[1] STJ. 1ª Seção. EDcl no REsp 1.657.156-RJ, Rel. Min. Benedito Gonçalves, julgado em 12/09/2018 (recurso repetitivo) (Info 633).
[2] STJ. 1ª Seção. AgInt no CC 182080-SC, Rel. Min. Manoel Erhardt (Desembargador convocado do TRF da 5ª Região), julgado em 22/06/2022 (Info 742).
[3] STF. 1ª Turma. RE 1286407 AgR-segundo/PR, Rel. Min. Alexandre de Moraes, julgado em 26/4/2022 (Info 1052).
[4] STJ. 3ª Turma. REsp 1721705-SP, Rel. Min. Nancy Andrighi, julgado em 28/08/2018 (Info 632) e STJ. 3ª Turma. AgInt no AREsp 1819953/SP, Rel. Min. Moura Ribeiro, julgado em 22/06/2021.
[5] STF - RE: 1165959 SP, Relator: MARCO AURÉLIO, Data de Julgamento: 21/06/2021, Tribunal Pleno, Data de Publicação: 22/10/2021
Bacharela em Direito pela Universidade Católica de Pernambuco (UNICAP). Pós-graduada em Direito Tributário pelo IBMEC. Analista Judiciária do Superior Tribunal de Justiça.
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: PEREIRA, Juliana Studart. A concessão de medicamentos pelo poder público, segundo os tribunais superiores Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 01 fev 2023, 04:16. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/artigos/60954/a-concesso-de-medicamentos-pelo-poder-pblico-segundo-os-tribunais-superiores. Acesso em: 03 dez 2024.
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