EDUARDO SOARES DE MELO[1]
(coautor)
RESUMO: O intuito perseguido a partir do presente estudo se circunscreve em uma análise das possíveis interpretações que podem ser extraídas do julgamento realizado pelo Supremo Tribunal Federal em sede do julgamento do Recurso Extraordinário n.º 593.849/MG, sujeito à repercussão geral, que primordialmente tratou de questão relacionada ao reconhecimento do direito de o contribuinte substituído reaver valor pagos indevidamente ou a maior pelo contribuinte substituto em decorrência de não realização do fato gerador do Imposto sobre Circulação de Mercadorias e Serviços (ICMS) quando da aplicação do denominado regime de substituição tributária progressiva, notadamente naquilo que concerne a aspectos que foram suscitados, paralelamente, no voto de alguns ministros, como a questão da complementação do imposto. Isso deve ser visto, no decorrer das análises sob uma perspectiva crítica da aplicação da estrita legalidade em matéria tributária, abordando-se temas como o do consequencialismo e da intepretação econômica no âmbito do Direito Tributário.
Palavras-chave: sujeição passiva; ICMS; complemento; consequencialismo; interpretação econômica.
Abstract: This article focuses on the possible outcomes derived from the ruling’s interpretations of the Brazilian Supreme Court (STF) in the Lawsuit n.º 593.849/MG, which was an Extraordinary Appeal decided under the institute of general repercussion. This piece of jurisprudence tackles the issue of the substituted taxpayers’ rights regarding the recovery of (i) unduly; or (ii) overpaid taxes derived from the substitute taxpayers. This phenomenon happens due to a non-realization of the triggered taxation event, which falls into the scope of the Tax on Commerce and Services (ICMS), especially when applying the tax regime of ICMS-ST (ICMS tax substitution regime). Among the concerning aspects raised in this study, it is worth pointing out that some of the votes from the case’s judges raise concerns for discussions, such as the problem involving tax complementation. The analyses presented in this study take a critical point of view aligned with the idea of applying strict legality in tax matters and its intersections with themes such as consequentialism and economic interpretation in the scope of Tax Law.
Keywors: Tax substitution, ICMS, Brazilian Supreme Court, legal consequentialism, economic interpretation
I. Introdução
Frente à questão acerca do fato de, em determinados casos, os Tribunais Superiores se negarem a aplicar a denominada subsunção do fato à norma, seja por motivos que se alegam jurídicos ou, por vezes, extrajurídicos, a proposta do presente trabalho é explorar os motivos intrínsecos, de cunho econômico ou sociológico, que levaram alguns ministros do Supremo Tribunal Federal (STF) a se posicionarem, mesmo frente à ausência de lei complementar, a favor da incidência do denominado dever de complemento ou complementação do ICMS, por parte do substituído, sujeito à sistemática de substituição tributária (ICMS-ST) que se dá por meio de recolhimento antecipado do tributo em face de toda a cadeia mercantil que venha a suceder o momento do referido recolhimento, o que se denominada de substituição tributária progressiva, ou “para frente”.
A questão não se vê como algo simples, tendo em vista que a própria Constituição Federal (CF) exige que a matéria esteja sujeita à denominada lei complementar tributária, como se deduz a partir do artigo 150, inciso I, e do artigo 146, inciso III, alínea “a”, da CF, no que diz respeito às normas gerais em matéria tributária, e, igualmente, ao artigo 155, inciso XII, alínea “b”, do texto constitucional, que particularmente trata da reserva de lei complementar quando se refere á substituição tributária para fins de ICMS.
Nesse sentido, em uma espécie de “burla” ao texto constitucional, e sem qualquer previsão em lei complementar, alguns ministros do STF chegaram a emitir opinião acerca da do dever de complemento ou complementação do ICMS-ST, notadamente demonstrando um viés lógico no sentido de que, se existe o direito á restituição reconhecido pelo STF, o direito de complementar se deduz a partir do seu oposto.
Por mais que não se tenha entrado do mérito acerca da necessidade ou não de lei complementar para a fundar a referida exigência, indiretamente a posição de alguns ministros do STF fez com que os Estados se apressassem e instituir e cobrar, o quanto antes, o valor de complementação do ICMS-ST, sem que esteja claro na lei complementar quem deve ser responsável por esse recolhimento, assim como os parâmetros de cálculo de referido montante não tenha sido parametrizados pelo legislador complementar, fazendo com que cada Estado da Federação defina, por si próprio e sem qualquer tipo de ideal de uniformização de tratamento, qual seria o sujeito passivo a ser cobrado e a forma de cálculo do referido montante, levando a resultados díspares e com falta de congruência sistêmica.
Como se demonstra, parece um evidente caso em que não seria conveniente ao STF aplicar a norma constitucional ou, até mesmo, a Lei Complementar n.º 87, de 1996, que sequer menciona ou referência, mesmo que indiretamente, a figura do complementa ou complementação do imposto em tais circunstâncias.
Em sentido mais radical ao aqui sustentado, há, inclusive, quem se insurja, em nossa doutrina pátria, contra a cobrança complementar do ICMS-ST, independentemente de haver a previsão expressa em lei complementar para tanto, como se depreende das palavras de Marco Aurélio Greco, ao analisar o parágrafo 7º do artigo 150 da Constituição:
O sentido do dispositivo constitucional é claramente o de proteger o contribuinte contra exigências maiores do que as que resultam da aplicação do modelo clássico do fato gerador da obrigação tributária. (...) O objeto específico desta norma constitucional é não permitir que a antecipação torne-se um instrumento indireto de oneração dos contribuintes. Confirma o cabimento do mecanismo, mas procura deixar claro que sua instituição não pode resultar em tributação maior do que a resultante do modelo clássico do fato gerador da obrigação tributária.[2]
(grifos próprios)
Portanto, na visão do doutrinador, resta evidente que a finalidade do referido dispositivo constitucional é a de amparar os contribuintes e não dar mais poder de tributar ao Fisco. Nesse sentido, ainda esclarece Marco Aurélio Greco:
Ao instituir a figura, o Fisco definiu a carga tributária aplicável, por isso aquelas operações que tiverem um valor final maior do que o adotado para fins de antecipação não ensejarão cobrança complementar (o cobrado foi o que o Fisco previu), e aquelas que tiverem um valor menor ensejarão ressarcimento ao contribuinte, pois a carga terá sido superior à constitucionalmente admissível (direito oponível ao Estado).[3]
(grifos próprios)
Constata-se, a partir de suas palavras, que não bastaria o assunto ser tratado por lei complementar, que até hoje não o fora, tendo em vista que o real intuito do dispositivo normativo constante do artigo 150, § 7º, da Constituição sempre foi o de servir como algo protetivo ao contribuinte, já que a presunção de se tributar o ICMS por antecipação já é algo benéfico ao Fisco.
Desse modo, para a compreensão do problema posto, sugere-se uma investigação que iria além do simples raciocínio de que o julgador estaria vinculado ao texto normativo posto, por parte do Poder Legislativo, ou seja, ao clássico Direito Positivo, de forma que, ao menos em tese, deveria se limitar a realizar a subsunção do fato à norma.
Assim, uma investigação nesse sentido põe em dúvida a própria concepção clássica de ciência do direito, como algo adstrito à formatação de um Direito Positivo, dentro de uma concepção infalível e incondicionada de subsunção normativa.
Nesses termos, após uma séria investigação acerca da temática mais geral da vinculação do julgador – quando prefere suas decisões em casos concretos – à norma jurídica posta pelo Legislativo; no qual investiga a fundo a questão relacionada ao momento de interrupção do prazo prescricional no âmbito da execução fiscal, notadamente ao que foi julgado em sede do Recurso Especial n.º 1.120.295/SP, além de outros casos particulares, Renato Lopes Becho chega à seguinte inferência:
A conclusão inarredável é que a ciência do direito, não consegue explicar quando os juízes não aplicam as leis. Ele só possui instrumentos para apresentar quando os julgadores as aplicam.
Talvez possa ser útil à comunidade jurídica questionar a existência da ciência do direito. Sem seus dogmas, talvez possamos começar a compreender como as decisões judiciais são tomadas e, eventualmente, ver se é possível predizer qual possa ser o resultado dos processos judiciais, o que permitiria a tomada de decisão prévia dos envolvidos, notadamente dos sujeitos passivos tributários e seus advogados, em situações conflituosas.[4]
Parte-se de uma provocação no sentido de que a ciência do direito, ao menos como classicamente formulada, não estaria preparada ao enfrentamento de tais situações, isto é, nas quais o julgador não viesse, necessariamente, a aplicar a lei ou a Constituição na solução de um conflito.
Tais situações exigiriam um esforço maior, e até multidisciplinar, para se poder propor uma investigação mais percuciente acerca dos rumos tomados, por exemplo, em determinada decisão judicial, não se limitando, portanto, a aspectos estritamente normativos, perpassando pelas críticas tradicionalmente feitas por parte significativa da doutrina tributária nacional à interpretação econômica do direito, e, particularmente, do direito tributário.
No caso em particular, ora analisado, em que ministros do STF vieram a se pronunciar, em detrimento ao que está disposto na Constituição e na Lei Complementar n.º 87/96, de forma a entender cabível o dever de complemento ou complementação do ICMS-ST pelo contribuinte substituído, não há indicio de subsunção do fato à norma, muito pelo contrário, de sorte que os referidos ministros parecem se apegar, muito mais, a inferências de cunho arrecadatório ou econômico para fins de fundar a referida incidência tributária.
Com isso, será investigada uma espécie do que aqui denominamos, talvez de modo simplificado ou sumarizado, de interpretação teleológica de cunho econômico, na linha sustentada por Eros Roberto Grau, como se passará a desenvolver mais detidamente no próximo tópico do presente estudo, que tanto pode, a depender das circunstâncias, ir ao encontro dos interesses fiscalizatórios ou arrecadatórios dos Estados interessados em incrementas suas o recursos que ingressam em seus orçamentos, como, também, atuar em sentido contrário, igualmente em prol do contribuinte, neste último caso para que não se aniquile a fonte de riqueza a partir da qual o ente fazendário extrai seus recursos para suportar as finanças do Estado.
No caso concreto posto, tentar-se-á demonstrar que a interpretação, ao mesmo a extraída a partir de alguns votos proferidos por ministros do Supremo quando do julgamento do Recurso Extraordinário nº 593.849/MG, tendeu a uma teleologia econômica eminentemente preocupada com a pretensão arrecadatória do ente estatal, embora, como será detalhado, a menção à questão do complemento do ICMS por alguns ministros tenha representado tão somente um obter dictum da decisão, devendo ser alvo de futuro e específico enfrentamento por parte do STF, no futuro.
II. Da não vinculação dos julgadores ao pressuposto da “subsunção do fato à norma” e a denominada interpretação econômica no âmbito do Direito Tributário
Partindo da conclusão que uma concepção geral de decisão é correlata a uma concepção de conflito jurídico, de modo que os conflitos sociais decorrem da interação comunicativa de agentes, entre emissores e receptores de mensagens, ou porque quem transmite recusa-se a transmitir, ou porque quem recebe recusa-se a receber[5], pode-se concluir que, no conflito, tudo passa a se submeter à vontade de um terceiro comunicador institucionalizado.
Como propugna Tércio Sampaio Ferraz Júnior[6], conflito jurídico se qualifica, e até se diferencia de um mero conflito social, pelo seu caráter institucionalizado, em que um terceiro comunicador deve intervir.
O nosso questionamento, entretanto, vai além dessas premissas, já que o nosso intuito no presente estudo é investigar aquilo que esse terceiro comunicador institucionalizado irá considerar para efeitos de sua decisão de resolução de conflito, notoriamente nos casos em que não há uma mera subsunção do fato à norma, como já exposto, particularmente sob a perspectiva alguns votos que foram proferidos no bojo do julgamento do Recurso Extraordinário n.º 593.849/MG.
Nesse sentido, demonstra-se uma certa inclinação para uma espécie de consequencialismo econômico que veio a guiar o entendimento, assim como a interpretação tomada por parte de três ministros do STF na época, nomeadamente a Exma. Ministra Rosa Weber, o Exmo. Ministro Marco Aurélio de Melo e o Exmo. Ministro Teori Zavascki, embora este último, diferentemente dos demais, tenha negado provimento ao recurso.
Em relação à evidenciação de uma finalidade econômica almejada pela legislação fiscal, que busca constatar a diferença de uma dimensão econômica antes inalcançável pelo Fisco, o ministro Luiz Roberto Barroso chegou a se pronunciar em seu voto nos seguintes termos: “Mudança na situação normativa porque diversos estados passaram a ter leis permitindo essa restituição e mudança na situação fática porque, anteriormente, não era possível à fiscalização constatar essa diferença na dimensão econômica e, hoje em dia, já é possível.”[7]
Já no que diz respeito ao voto proferido pelo ministro Edson Fachin, embora tenha negado provimento ao Recurso extraordinário em apreço, utiliza-se do discurso interpretativo de cunho econômico para defender o fator presuntivo da norma de tributação que trata do regime de substituição tributária progressiva no ICMS, o que o faz na seguinte linha de raciocínio:
O fato gerador presumido, de outra parte, não está “alheio à narrativa extraída da realidade do processo econômico”. Pelo contrário, na fixação de sua dimensão econômica, o fisco está submetido a critérios objetivos, inteiramente relacionados à realidade, a saber: LC 87/1996, art. 8º, §§ 3º e 4º. É claro que nem sempre haverá perfeita coincidência entre o valor presumido e o valor efetivamente realizado. Mas – ressalvadas as óbvias situações de excessos injustificáveis e desarrazoados – é condição inerente ao sistema de substituição tributária progressiva (art. 150, § 7º, da CF).
Outro voto que parece demonstrar um viés fortemente consequencialista, notadamente em termos econômicos, foi o proferido pelo então ministro Marco Aurélio de Mello, em que se extrai trecho com o seguinte teor: “Outro dia, fiquei perplexo quando obtive a informação de que o Estado do qual sou originário tem folha de pessoal que não é satisfeita com o que arrecada a título de ICMS, principal tributo do estado. É algo a causar grande perplexidade!”[8]
Extrai-se a partir dos trechos de voto acima destacados, referentes ao Recurso Extraordinário n.º 593.849/MG, além de outros trechos que aqui não se julgou necessário expor, que os argumentos e fundamentos que guiam as decisões dos ministros do STF não se reduzem a uma esfera estritamente normativa, como se houvesse a simples limitação de se subsumir o fato analisado ao dispositivo normativo em tese aplicável, alcançando, portanto, patamares que vão muito além, tratando-se de uma espécie de consequencialismo arrecadatório ou econômico, que se vê como estritamente necessário para que seja utilizado como ferramenta para que decidam acerca do caso concreto.
Acerca dessa questão em específico, importante ressaltar que vozes doutrinárias de forte influência costumam se insurgir contra tais vieses interpretativos, notadamente quando se tenta extrair uma intepretação que se diria “econômica” do Direito Tributário, por risco de malferimento à estrita legalidade e à segurança jurídica. A título de exemplo, por todos, reproduzem-se as palavras de Hugo de Brito Machado, que induz a métodos de interpretação que intitula como próprios do direito, que não se confundem com a interpretação econômica:
Não há dúvida que o tributo é uma realidade econômica. A relação tributária é de conteúdo econômico inegável. Não se pode, entretanto, afastar os métodos de interpretação, e os meios de integração, para buscar o sentido da regra jurídica só e exclusivamente tendo em vista os efeitos econômicos dos fatos envolvidos na relação de tributação. Tal atitude implicaria negar o Direito, afetando a segurança que o mesmo empresta às relações humanas em sociedade.[9] (grifos próprios)
Dentro de uma argumentação muito bem construída, o autor parece, entretanto, não se afastar de um discurso de métodos de interpretação e meios de integração que são próprios ao Direito Positivo – e exclusivo e inevitavelmente vinculados a ele – e que, caso afastados, implicariam a negação do próprio Direito, sob o pressuposto que isso levaria a uma inevitável falta de segurança jurídica emprestada às relações humanas.
Ocorre que nem sempre os métodos interpretativos e meios de integração normativa típicos de um discurso positivista parecem suficientes para solucionar os conflitos postos, além do que, em determinados casos, os julgadores simplesmente, por algum fundamento, decidem não os aplicar, chegando até mesmo a ignorar o que está prescrito textualmente no dispositivo normativo que, ao mesmo em tese – seria aplicável ao caso concreto.
Indo para além da doutrina nacional, faz-se mister ressaltar que Ricardo Guastini[10] chega a dizer que não seria possível, na cultura jurídica moderna uma decisão fundada apenas nos caprichos do juiz nos seus sentimentos de justiça, em um objetivo qualquer da política social que pretenda alcançar etc., devendo somente ser considerada fundamentada ou justificada a partir de uma inferência lógica de uma norma geral, em conjunto com a proposição factual que descreve as circunstâncias do caso[11].
Fica claro, com isso, que o intuito é justamente garantir que a interpretação tributária, assim como a solução proposta a um conflito, seja em esfera administrativa e judicial, não esteja contaminada por elementos que se dizem extrajurídicos, ou até mesmo, denominados como elementos que não pertencem ao direito.
Ocorre que essa concepção parte muito mais de uma ideia extraída das teorias positivistas típicas, em que predomina uma necessidade de não contaminação da ciência do direito por parte de outras ciências, assim como demais áreas do conhecimento humano, como a Sociologia, a História, a Psicologia etc., sendo também alheio esse positivismo típico a qualquer juízo ético ou moral, propondo-se um recorte epistemológico para fins de sua análise que implica o afastamento de qualquer teor axiológico ao direito, abstraindo-se, por exemplo, de uma busca pela justiça, retirando a possibilidade de que se faça presente uma teoria dos valores inserida em seu discurso interpretativo e argumentativo. Em olhar bastante crítico sob essa perspectiva, relacionada a um juspositivismo estrito, Renato Lopes Becho[12] destaca a necessidade de um estudo dos valores, constatando que o estudo do conhecimento é praticamente comum aos pensadores em geral.
Ignorar a possibilidade de os julgadores serem, por essência, assim como os advogados, procuradores etc., consequencialistas em sua forma de argumentar e interpretar o direito, inserindo fatores que seriam rotulados por muitos como extrajurídicos, parece ser o mesmo que ignorar uma importante parcela desse processo, tanto argumentativo, como interpretativo, que hoje povoa os mais diversos processos administrativos e judiciais em matéria tributária.
No mais, em opúsculo escrito ainda em meados da década de oitenta, e insurgindo-se contra a doutrina predominante em âmbito nacional que tratava e trata do assunto, Eros Roberto Grau dá uma outra perspectiva no que diz respeito à sua concepção acerca da possibilidade e, até mesmo, da necessidade em se falar de uma interpretação econômica do Direito Tributário, sem qualquer contrariedade à legalidade tributária, o que faz nos seguintes termos:
A doutrina da interpretação econômica surgiu em 1919, consubstanciada em disposições consignadas no Código tributário Alemão, cujo ante-projeto foi elaborado por ENNO BECKER. Fundamentalmente considera que, na interpretação das leis tributárias, deve-se ter em conta a sua finalidade, o seu significado econômico e a evolução das circunstâncias, sendo certo, por outro lado, que a obrigação tributária não pode ser evitada ou reduzida mediante abusos de formas e da possibilidade de adaptações formais do Direito privado.
Motivo de intensa polêmica, esta colocação tem sido frequentemente criticada por induzir – segundo afirmam os autores de tais críticas – a incerteza e o arbítrio, resultado a que chega a escola da livre indagação do Direito. Com efeito, tal ocorreu na Alemanha, tendo-se tornado antológicos certos julgados proferidos sob a inspiração do próprio ENNO BECKER, juiz da Corte Suprema Alemã.
Evidentemente, não se poderá admitir, no caso brasileiro, que a adoção desse método venha ferir o princípio da legalidade da tributação. Certo, porém, por outro lado, que o Direito Tributário encontra seu universo na obrigação tributária, estruturado sobre a existência de realidades econômicas subjacentes, das quais o fato gerador é signo presuntivo ou elemento detectador. Logo, o seu pressuposto é a realidade econômica, unidade teleológica que se deve observar independentemente das características formais que possa revestir. Para nós, não há incompatibilidade entre os princípios da interpretação econômica e o da legalidade da tributação, sendo evidentemente plausível a plena coexistência entre ambos.[13](grifos próprios)
Isso induz que a concepção clássica de ciência do direito, como algo alheio às interferências rotuladas como extrajurídicas, seja de cunho sociológico, econômico ou até psicológico, devem ser vistas em termos, de sorte que se faz inevitável a constatação de que hoje já existe uma forte teleologia de cunho eminentemente econômico, seja com viés arrecadatório ou não, aplicada pelos tribunais e juízes na solução de lides tributárias.
A partir das lições de Eros Roberto Grau, identifica-se, como defendido na passagem acima transcrita, uma espécie interpretação teleológica de cunho econômico, tendo em vista a inevitável constatação que o Direito Tributário e, particularmente, a obrigação tributária tem como pressuposto a realidade econômica, sendo definida pelo autor como unidade teleológica que se deve observar independentemente das características formais que a obrigação tributária possa revestir. Isso nos faz atribuir a tal aspecto a terminologia de “interpretação teleológica de cunho econômico” no Direito Tributário, como, como dito na introdução ao presente estudo, pode se dar tanto em favor, como contra a pretensão arrecadatória do ente estatal, a depender de circunstâncias políticas, sociais, psicológicas etc. de cada caso analisado.
Para a melhor compreensão dos fatores sociais e econômicos que se encontram subjacentes ao caso hora analisado, que envolve tanto o direito de restituição o ICMS-ST, como o seu posto lógico, o dever de complementação, deve-se fazer uma digressão mais profunda de como o assunto sofreu evolução tanto na legislação, no entendimento do órgão fazendário, como notadamente na jurisprudência, para, com isso, se tentar chegar a uma compreensão, ao menos mais clara, dos questionamentos ora propostos.
III. Da natureza e limitações intrínsecas ao regime de substituição tributária do ICMS
Segundo definição do jurista italiano que classicamente tratou do assunto, Francesco Tesauro, a substituição tributária se dá em qualquer caso em que obrigação tributária é colocada a cargo de um sujeito diferente daquele que concretiza o pressuposto do tributo[14], ou seja, daquele que efetivamente pratica o fato gerador da espécie tributária.
Assim, a substituição tributária no ICMS, como sistemática de recolhimento do tributo por outro sujeito que não aquele que efetivamente praticou o fato gerador, alterando-se a esfera passiva da relação tributária, pode se dar de forma tanto regressiva (“para trás”), como de forma progressiva (“para frente”), neste segundo caso, de forma presumida e com retenção antecipada do imposto na cadeia mercantil.
Nesse sentido, importante se reproduzirem as elucidativas lições do professor José Eduardo Soares de Melo, que traz interessante definição – e reflexão – acerca da substituição tributária do ICMS:
Na substituição – num plano pré-jurídico – o legislador afasta, por completo, o verdadeiro contribuinte, que realiza o fato imponível, prevendo a lei – desde logo – o encargo da obrigação a uma outra pessoa (substituto), que fica compelida a pagar a dívida própria, eis que a norma não contempla dívida de terceiro (substituído).[15]
Nesse contexto, e analisando sob a perspectiva de nossa jurisprudência, como já bem expôs o Ministro Edson Fachin,
(...) substituição tributária progressiva no âmbito do antigo Imposto sobre Circulação de Mercadorias (ICM) já era prevista originalmente no Código Tributário Nacional, em seus artigos 58, parágrafo 2.º, inciso II, e 128, pois era permitido que lei atribuísse a responsabilidade ao industrial ou ao atacadista pelo pagamento do imposto devido pelo comerciante varejista, mediante acréscimo ao preço praticado.[16]
Interessa, para a presente análise, a substituição tributária dita progressiva, ou “para frente”, como também é chamada, em que há uma antecipação do recolhimento do tributo estadual, previamente retido em momento antecedente da cadeia mercantil, muitas vezes pelo industrial ou importador daquela mercadoria.
Tem-se que a técnica de antecipação do imposto independe de haver substituição tributária, embora possam coexistir antecipação e substituição num mesmo fenômeno jurídico, como ocorre com a substituição tributária progressiva. Nesse sentido são as lições de Hugo de Brito Machado:
Em relação a algumas mercadorias, alguns Estados praticam também cobrança antecipada do ICMS, sem substituição tributária. O imposto é cobrado no momento da entrada da mercadoria no território do Estado. Ou é pago no momento da entrada, ou em certo prazo a partir desta (...).[17]
Em resumo, enquanto a substituição tributária é sistemática de tributação que mexe com o polo passivo da obrigação tributária, a antecipação é mera técnica de arrecadação, que pode acompanhar aquela ou não. No caso da substituição “para frete”, acompanha-a.
Com isso, a substituição “para frete”, justamente porque agrega a técnica de antecipação da cobrança do imposto, gera uma presunção de que um fato gerador futuro irá ocorrer, e nas condições presumidas pelo legislador, como o fato presuntivo do preço que será praticado para efeitos de estabelecimento, geralmente, de uma Margem de Valor Agregado (MVA) à operação mercantil.
Dessa forma, a sistemática de substituição tributária para progressiva representa norma tributária de presunção, e, justamente por conta disso, naqueles casos em que a presunção não se confirma ou afronta a norma constitucional de competência do imposto, deve ser afastada essa presunção. A norma decorrente da EC n.º 03/93, e que trouxe a redação do § 7º do art. 150 da CF, só veio explicitar esse fato, ao tratar do direito de restituição na inocorrência do “fato gerador presumido”.
Nesse contexto, o Convênio ICM n. 66/88, que dispôs sobre a técnica da substituição progressiva (‘para frente’) no §3.º de seu art. 2.º, in verbis: “Os Estados poderão exigir o pagamento antecipado do imposto, com a fixação, se for o caso, do valor da operação ou da prestação subsequente, a ser efetuada pelo próprio contribuinte”.
Com a edição da Emenda Constitucional n. 3/93, a presente matéria se constitucionalizou conforme redação dada ao §7.º do art. 150 da Constituição Federal. Como se verá em mais detalhes e com base no mais recente entendimento do STF acerca do tema, o direito à restituição/ressarcimento do valor pago a título de ICMS-ST em excesso representa em verdade um direito adquirido do contribuinte e uma garantia constitucionalmente assegurada.
A partir da constitucionalização do instituto da substituição tributária progressiva, a Lei Complementar 87/96 (LC n.º 87/96 ou Lei Kandir), veio a revogar o convênio ICM n. 66/88, e dispor sobre a regulamentação desse regime nos seus artigos 8º a 10.
Deve-se salientar, que o fato de se tratar de norma de presunção, não torna a denominada substituição progressiva do ICMS inconstitucional, como já teve oportunidade de se posicionar o STF em mais de uma oportunidade (RE-AgR n.º 474241-MG; RE-AgR n.º 362231-SP; RE-AgR n.º 150992-RN). A norma de presunção, por outro viés, embora não seja considerada inconstitucional, sofre limitações que decorrem de sua própria natureza. Nessa linha de raciocínio, decidiu o pleno do STF em sede de julgamento do RE n.º 593.849/MG, que assim esclareceu:
RECURSO EXTRAORDINÁRIO. REPERCUSSÃO GERAL. DIREITO TRIBUTÁRIO. IMPOSTO SOBRE CIRCULAÇÃO DE MERCADORIAS E SERVIÇOS - ICMS. SUBSTITUIÇÃO TRIBUTÁRIA PROGRESSIVA OU PARA FRENTE. CLÁUSULA DE RESTITUIÇÃO DO EXCESSO. BASE DE CÁLCULO PRESUMIDA. BASE DE CÁLCULO REAL. RESTITUIÇÃO DA DIFERENÇA. ART. 150, §7º, DA CONSTITUIÇÃO DA REPÚBLICA. REVOGAÇÃO PARCIAL DE PRECEDENTE. ADI 1.851. 1. Fixação de tese jurídica ao Tema 201 da sistemática da repercussão geral: “É devida a restituição da diferença do Imposto sobre Circulação de Mercadorias e Serviços – ICMS pago a mais no regime de substituição tributária para frente se a base de cálculo efetiva da operação for inferior à presumida”. 2. A garantia do direito à restituição do excesso não inviabiliza a substituição tributária progressiva, à luz da manutenção das vantagens pragmáticas hauridas do sistema de cobrança de impostos e contribuições. 3.O princípio da praticidade tributária não prepondera na hipótese de violação de direitos e garantias dos contribuintes, notadamente os princípios da igualdade, capacidade contributiva e vedação ao confisco, bem como a arquitetura de neutralidade fiscal do ICMS. 4. O modo de raciocinar “tipificante” na seara tributária não deve ser alheio à narrativa extraída da realidade do processo econômico, de maneira a transformar uma ficção jurídica em uma presunção absoluta. 5.De acordo com o art. 150, §7º, in fine, da Constituição da República, a cláusula de restituição do excesso e respectivo direito à restituição se aplicam a todos os casos em que o fato gerador presumido não se concretize empiricamente da forma como antecipadamente tributado. 6. Altera-se parcialmente o precedente firmado na ADI 1.851, de relatoria do Ministro Ilmar Galvão, de modo que os efeitos jurídicos desse novo entendimento orientam apenas os litígios judiciais futuros e os pendentes submetidos à sistemática da repercussão geral.[18]
Assim, a margem de valor agregado imputada a um determinado produto, de forma a presumir o preço final a ser praticado na cadeia mercantil, é norma generalizante fechada, cujo intuito é o estabelecimento de uma presunção de que todos os contribuintes ao final dessa cadeia praticarão a mesma margem em suas vendas.
Para tanto, osso gera praticidade na atuação da administração fiscal que, entretanto, deve seguir todos os limites imputados a uma norma de presunção, podendo ser afastada a depender de particularidades do caso concreto. Como bem mencionado pelo próprio Ministro Edson Fachin em seu voto,
Na esteira do professor Marco Aurélio Greco, a coerência e validade da substituição tributária progressiva remanesce na cláusula de restituição. Em síntese, “o que justifica a exigência antecipadamente feita é o evento que ocorrerá posteriormente; não ocorrendo este evento o recolhimento perde seu fundamento, sua justificação, e o excesso recolhido deve ser restituído (Substituição Tributária: antecipação do fato gerador. 2 ed. São Paulo: Malheiros, 2001, p. 31). (RE n.º 593.849 – MG)
Uma importante limitação que se impõe à norma de presunção é a impossibilidade de se utilizar da dita presunção, caso afastada, a favor de quem a institui e dela se beneficia por essência, sob pena de configurar um malferimento ao non venire contra factum proprium da Administração Pública, como será analisado em mais detalhes mais a frente.
Vale ressaltar, ainda, que quem tem direito à repetição do indébito é o contribuinte de direito, que pratica o fato gerador presumido, isto é, o substituído, e não o consumidor final da mercadoria, o que se alinha ao referido precedente. E esse direito deve ser exercido independentemente de qualquer prova de repercussão econômica no caso. Como muito bem leciona Roque Antonio Carrazza,
Pouco importa, a nosso ver, se o contribuinte repassou, ou não, a carga econômica do tributo recolhido a maior. Mesmo nos chamados tributos indiretos, presente o indébito tributário, tem o direito inafastável de reavê-lo, a despeito das restrições contidas no art. 166 do CTN.[19]
Ademais disso, o comando constitucional contido no artigo 150, parágrafo 7º, da Constituição é claro no sentido que o contribuinte substituído é o legitimado para reaver o indébito quando não realização do fato gerador do tributo como presumido na sistemática de substituição tributária. A regra constitucional é explicitada, ainda, na Lei Complementar n.º 87/96, em seu artigo 10 e parágrafos.
IV. Do direito à restituição de indébito e do dever de complementação de ICMS-ST
Quanto ao âmbito constitucional que delimita o denominado regime de substituição tributária progressiva do ICMS, o dispositivo normativo constante do art. 150, §7.º, da CF, com redação dada a partir da edição da Emenda Constitucional n.º 03/93, assim passou a disciplinar a matéria da substituição tributária progressiva:
(...) §7.º A lei poderá atribuir a sujeito passivo de obrigação tributária a condição de responsável pelo pagamento de imposto ou contribuição, cujo fato gerador deva ocorrer posteriormente, assegurada a imediata e preferencial restituição da quantia paga, caso não se realize o fato gerador presumido.
Como se pode observar da leitura do dispositivo constitucional em referência, assegura-se ao contribuinte substituído a imediata e preferencial restituição do tributo pago indevidamente pelo substituto, que reteve antecipadamente o ICMS pela cadeia, e o direito à referida restituição independe do que dispõe o art. 166 do CTN, isto é, de qualquer prova relativa à repercussão do ônus econômico do tributo, como já bem entendeu, inclusive, o Superior Tribunal de Justiça[20], que negou provimento ao Recurso especial interposto pelo Estado do Rio Grande do Sul para permitir que uma concessionária de veículos se creditasse da diferença do ICMS pago a maior no regime de substituição tributária, no qual acertadamente prevaleceu o entendimento da ministra Assusete Magalhães, não prevalecendo a tese contrária defendida pelo ministro Francisco Falcão, que chegou a defender a aplicação do art. 166 ao caso – a nosso ver, interpretação essa equivocada do ministro.
Já por seu turno, a Lei Complementar n.º 87/96 (Lei Kandir), no dispositivo normativo constate de seu art. 10, passou a prever o seguinte acerca da matéria, em consonância com a disciplina constitucional:
Art. 10. É assegurado ao contribuinte substituído o direito à restituição do valor do imposto pago por força da substituição tributária, correspondente ao fato gerador presumido que não se realizar.
§ 1º Formulado o pedido de restituição e não havendo deliberação no prazo de noventa dias, o contribuinte substituído poderá se creditar, em sua escrita fiscal, do valor objeto do pedido, devidamente atualizado segundo os mesmos critérios aplicáveis ao tributo.
§ 2º Na hipótese do parágrafo anterior, sobrevindo decisão contrária irrecorrível, o contribuinte substituído, no prazo de quinze dias da respectiva notificação, procederá ao estorno dos créditos lançados, também devidamente atualizados, com o pagamento dos acréscimos legais cabíveis.
Em rigor, a matéria desse dispositivo não é propriamente a substituição tributária (definição de sujeitos passivos, a sua responsabilidade, os critérios de cobrança etc.), mas sim uma consequência lógica gerada a partir da operacionalização do mecanismo da antecipação com a substituição tributária, gerando um descompasso entre previsão e realidade.
Nesse aspecto, extrai-se desses dispositivos normativos (§§ 1.º e 2.º e caput do art. 10 da LC n.º 87/96) a essência do regime jurídico da restituição de ICMS-ST, de forma que se podem resumir algumas inferências relevantes extraídas a partir do regime tributário aplicável nessas situações.
Em primeiro turno, como antevisto pelo §1.º do art. 10 da LC n.º 87/96, a restituição do tributo pago indevidamente poderá estar condicionada a pedido formulado por parte do contribuinte, a depender da legislação de cada Estado, não sendo regra obrigatória e inexorável, podendo o Estado disciplinar de forma diversa a questão, como no caso em que a restituição se dá de forma independente de aviso prévio e com autorização direta para compensar, trazendo procedimento menos oneroso ao contribuinte.
Em segundo plano, importante frisar que o sentido atribuído à expressão “fato gerador presumido” pode ser entendido em sentido mais restrito, como também em sentido amplo. Quando compreendido em sentido estrito, só se aplicaria se de fato não ocorresse o fato gerador por completo. Já em sentido amplo, basta que não tenha ocorrido como presumidamente pressuposto. Tem-se em vista que a base de cálculo compõe elemento do fato gerador do tributo, o que justifica sua correlata presunção.
Em último lugar, deve ser analisado à luz da jurisprudência dos Tribunais Superiores que tiveram a oportunidade de tratar acerca do tema em maior profundidade, como passamos a analisar.
Em razão da norma constitucional (§7.º do art. 150 da CF) e do disposto no art. 10 da LC n.º 87/96, todas as unidades da Federação foram quase que obrigadas a permitir a restituição nas hipóteses em que o fato gerador tido por presumido não se concretizasse de fato.
Com base no Convênio ICMS n.º 13, de 1997, isso só ocorreria naqueles casos em que o fato presumido não se realizasse integralmente, como no caso de roubo, furto, deterioração etc., hipóteses que sequer ocorreria operação subsequente, como se depreende da redação literal das cláusulas primeira e segunda do referido diploma:
Cláusula primeira. A restituição do ICMS, quando cobrado sob a modalidade da substituição tributária, se efetivará quando não ocorrer operação ou prestação subsequentes à cobrança do mencionado imposto, ou forem as mesmas não tributadas ou não alcançadas pela substituição tributária.
Cláusula segunda. Não caberá a restituição ou cobrança complementar do ICMS quando a operação ou prestação subsequente à cobrança do imposto, sob a modalidade da substituição tributária, se realizar com valor inferior ou superior àquele estabelecido com base no artigo 8º da Lei Complementar 87, de 13 de setembro de 1996.
Em que pese essa interpretação do comando constitucional atribuída pela maioria dos Estados através da edição do Convênio n. 13/97, os Estados de Pernambuco, São Paulo e Santa Catarina seguiram uma posição mais abrangente acerca da situação que define a não realização do “fato gerador presumido”. Tanto assim, que esses três Estados não aderiram ao Convênio 13/97, por entenderem que a restituição/ ressarcimento seria aplicável em caso de se comprovar que a operação final (e preço final) foi realizada a valor inferior à base de cálculo presumida.
O Estado de São Paulo alterou, em 1995, a sua Lei instituidora do ICMS (Lei n.º 6.374/89), por meio da edição da Lei n.º 9.176/97[21], acrescentando o dispositivo constante do art. 66-B, inciso II do referido diploma legal, a partir do qual se autorizou o ressarcimento em caso de preço final realizado por valor inferior à base de cálculo presumida.
Da mesma forma, prescreveram os dispositivos normativos constantes do inciso II, do art. 19, da Lei n.º 11.408/96, de Pernambuco, e art. 30 a art. 32 da Lei n.º 11.580/96, do Estado de Santa Catarina.
Em razão dessa divergência entre o entendimento dos Estados, a cláusula segunda do Convênio n.º 13/97 foi objeto de questionamento perante do Supremo Tribunal Federal. A Confederação Nacional do Comércio de Alagoas ingressou com a ADI n.º 1.851, de relatoria do ex-Ministro Ilmar Galvão, em 01.07.98, afrontando a redação desse dispositivo do Convênio, por entender que não era a intenção do legislador constitucional atribuir uma visão restritiva e limitada ao direito de restituição do imposto pago a maior por presunção.
Dentro desse contexto, a ADI n.º 1.851 foi julgada somente em maio de 2002, sem dar um termo definitivo à discussão, embora tenha firmado entendimento de que a cláusula segunda do Convênio ICMS n.º 13/97 seria constitucional, pois a Constituição só admitiria a restituição em caso de não ocorrer a operação que concretizasse o fato gerador, dando assim um caráter de definitividade à incidência do ICMS-ST.
Caso se analise mais atentamente e com mais cautela a decisão constante dessa ação direta de inconstitucionalidade, pode-se concluir que, já que o Estado de Alagoas havia concedido uma redução de ICMS a uma carga de 12% em caso de não se optar pelo ressarcimento, para o primeiro semestre do ano de 1998, condicionada à assinatura de um Termo de Acordo renunciando ao direito de restituição do ICMS-ST, os contribuintes resolveram contestar tal prática.
Conclui-se, portanto, que a situação é diversa daquela em que o contribuinte é obrigado por Lei a aplicar a substituição tributária.
De qualquer forma, votaram pela inconstitucionalidade de cláusula segunda do Convênio n.º 13/93 os então ministros Carlos Veloso, Celso de Mello e Marco Aurélio de Mello. Votaram, como votos vencedores, pela constitucionalidade do dispositivo os ministros Ilmar Galvão, Maurício Corrêa, Moreira Alves, Sepúlveda Pertence, Sydney Sanches e Ellen Gracie. Em suma, todos os ministros do STF que votaram à época a favor não compõem mais o quadro de ministros do Excelso Tribunal.
Sustentando-se nessa decisão do STF, e com o intuito de ver a própria permissiva legal afastada, o Estado de São Paulo ajuizou a ADI n.º 2.777, questionado a redação do art. 66-B da Lei n.º 6.374/89, que conferia aos contribuintes a possibilidade de requererem o ressarcimento do ICMS em caso de a operação final (e preço final) praticado ao final da cadeia mercantil se dar em valor inferior à base de cálculo presumida.
Posteriormente, o Estado de São Paulo editou a Lei n.º 13.291/08, mesmo sabendo que a matéria acerca da constitucionalidade ou inconstitucionalidade do art. 66-B da Lei n.º 6.473/89 não estava definida, sendo matéria pendente de apreciação pelo STF por meio de ação direta de inconstitucionalidade proposta pelo próprio Estado de São Paulo, alterando a redação do art. 66-B, inciso II, para restringir o ressarcimento somente àqueles casos que configurassem ‘preço tabelado’ ou ‘pauta’.
Na prática, o Estado veio a inviabilizar o ressarcimento do imposto nas circunstâncias em que houvesse divergência entre a base de cálculo presumida e a realizada, isto é, efetivamente praticada.
Isso por dois principais motivos: (1) são excepcionais as situações em que se pode cogitar de preço tabelado ou pauta; e (2) aqueles casos que representam suposta aplicação de ‘preço tabelado’, a legislação utiliza termos diversos justamente para camuflar o fato de se tratar de preço tabelado com a participação da autoridade competente.
Para tanto, o STJ já teve a oportunidade de se posicionar, antes da apreciação da ADI n.º 2.777 pelo STF, no sentido de que o entendimento do STF na ADI n.º 1.851 não se aplicaria ao Estado de São Paulo, como se depreende da seguinte ementa:
TRIBUTÁRIO. EMBARGOS DE DIVERGÊNCIA NO RECURSO ESPECIAL. MANDADO DE SEGURANÇA. ICMS. SUBSTITUIÇÃO TRIBUTÁRIA PARA FRENTE. ADI 1.851/AL. INAPLICABILIDADE AO ESTADO DE SÃO PAULO. PRECEDENTES DA 1a. SEÇÃO.
1. Consoante entendimento da Primeira Seção desta Corte, não se aplica a ADI 1.851/AL ao Estado de São Paulo, por não ser signatário do Convênio 13/97. Precedentes: EREsp 773.213/SP, Rel. Min. Eliana Calmon, DJ de 20.11.06; EREsp 937.301/SP, Rel. Min. Castro Meira, Primeira Seção, DJ de 7.4.2008; AgRg no Ag 896.838/SP, Rel. Min. Herman Benjamin, Segunda Turma, DJ de 31.10.2008; EAg 387.556/SP, Rel. Min. João Otávio de Noronha, Primeira Seção, DJ de 9.5.2005.
2. Embargos de divergência providos.[22].(grifos próprios)
O entendimento do STJ parece ter confirmado que a atitude do Estado de São Paulo, ao ter aprovado uma alteração legislativa, em 2008, que, na prática, inviabilizou a restituição/ressarcimento do ICMS-ST retido a maior pelo substituto tributário, foi no mínimo imprudente, configurando um efetivo abuso do poder público, provavelmente contando que a questão restaria assegurada quando do julgamento da ADI 2.777.Posteriormente a isso, em 19.10.2016, o STF julgou conjuntamente o RE n.º 593.849-MG e as ADI’s ns.º 2.675 e 2.777, RE n.º 593.849-MG.
Vale ressaltar que o RE n.º 593.849 possui origem em um Mandado de Segurança impetrado pela sociedade Parati Petróleo, que intentava conferir interpretação mais estendida ao art. 150, § 7.º, da CF, no sentido de que a não realização do fato gerador presumido abrangeria tanto a hipótese (i) em que o fato gerador presumido não se realiza quanto (ii) aquela em que a base de cálculo presumida se vê como superior à real.
Essa tese, de uma interpretação mais abrangente do dispositivo constante do § 7.º do art. 150 da CF terminou prevalecendo, segundo entendimento firmado no Excelso Tribunal em sede de repercussão geral (Tema 201), como consta da ementa do referido acórdão:
RECURSO EXTRAORDINÁRIO. REPERCUSSÃO GERAL. DIREITO TRIBUTÁRIO. IMPOSTO SOBRE CIRCULAÇÃO DE MERCADORIAS E SERVIÇOS - ICMS. SUBSTITUIÇÃO TRIBUTÁRIA PROGRESSIVA OU PARA FRENTE. CLÁUSULA DE RESTITUIÇÃO DO EXCESSO. BASE DE CÁLCULO PRESUMIDA. BASE DE CÁLCULO REAL. RESTITUIÇÃO DA DIFERENÇA. ART. 150, §7º, DA CONSTITUIÇÃO DA REPÚBLICA. REVOGAÇÃO PARCIAL DE PRECEDENTE. ADI 1.851. 1. Fixação de tese jurídica ao Tema 201 da sistemática da repercussão geral: “É devida a restituição da diferença do Imposto sobre Circulação de Mercadorias e Serviços – ICMS pago a mais no regime de substituição tributária para frente se a base de cálculo efetiva da operação for inferior à presumida”. 2. A garantia do direito à restituição do excesso não inviabiliza a substituição tributária progressiva, à luz da manutenção das vantagens pragmáticas hauridas do sistema de cobrança de impostos e contribuições. 3.O princípio da praticidade tributária não prepondera na hipótese de violação de direitos e garantias dos contribuintes, notadamente os princípios da igualdade, capacidade contributiva e vedação ao confisco, bem como a arquitetura de neutralidade fiscal do ICMS. 4. O modo de raciocinar “tipificante” na seara tributária não deve ser alheio à narrativa extraída da realidade do processo econômico, de maneira a transformar uma ficção jurídica em uma presunção absoluta. 5.De acordo com o art. 150, §7º, in fine, da Constituição da República, a cláusula de restituição do excesso e respectivo direito à restituição se aplicam a todos os casos em que o fato gerador presumido não se concretize empiricamente da forma como antecipadamente tributado. 6. Altera-se parcialmente o precedente firmado na ADI 1.851, de relatoria do Ministro Ilmar Galvão, de modo que os efeitos jurídicos desse novo entendimento orientam apenas os litígios judiciais futuros e os pendentes submetidos à sistemática da repercussão geral.[23]
Na mesma oportunidade, o STF julgou improcedente a ADI n.º 2.777, promovida pelo Estado de São Paulo, de forma a declarar constitucional o dispositivo estadual impugnado, que estava em conformidade com a decisão tomada em sede de repercussão geral, tendo em vista o caráter dúplice da Ação Direta de Inconstitucionalidade.
Ademais disso, após a emissão do Parecer PAT n.º 03/2018 da Procuradoria Geral do Estado de São Paulo, a Secretaria da Fazenda (SEFAZ) publicou, final de maio de 2018, o Comunicado CAT n° 06/18, com o objetivo de esclarecer o seu particular entendimento acerca das decisões proferidas pelo STF quando do julgamento RE n.° 593.849 e da ADI n.° 2.777(SP). Assim prescreveu o Comunicado CAT n.º 06/18:
Comunica que, nos termos do Parecer PAT 03/2018, somente haverá direito ao ressarcimento do imposto pago antecipadamente pelo regime de substituição tributária, em virtude de operação final com mercadoria ou serviço com valor inferior à base de cálculo presumida, nas situações em que o preço final a consumidor, único ou máximo, tenha sido autorizado ou fixado por autoridade competente (§ 3º do artigo 66-B da Lei estadual 6.374/1989).
Nos casos em que a base de cálculo do ICMS devido por substituição tributária não é fixada nos termos do artigo 28 Lei estadual 6.374/1989 (preço final a consumidor, único ou máximo, autorizado ou fixado por autoridade competente), não será objeto de ressarcimento o valor do imposto eventualmente retido a maior, correspondente à diferença entre o valor que serviu de base à retenção e o valor da operação realizada com consumidor final.
Além de ter extrapolado sua competência no sentido de não poder inovar em matéria jurídica, por (i) tratar-se de normativa infralegal e (ii) ter discorrido acerca de questão relativa à interpretação do art. 66-B da Lei n.º 6.374/89 em conformidade à Constituição[24], o Comunicado CAT n.º 06/18 tomou por base sistemática de apuração (‘pauta fiscal’) no mínimo questionável (Súmula n.º 431 do STJ).
Importante perquirir, adicionalmente, se há argumentos sustentáveis no sentido de autorizar o ressarcimento ou restituição do ICMS-ST retido em excesso relativamente ao período anterior a decisão do STF, em outubro de 2016, respeitado o prazo decadencial de 5 (cinco) anos. Para tanto, importante se enfrentar algumas questões que se apresentam, de forma a conferir a segurança e certeza necessárias aos contribuintes para efetivar esse pretenso direito.
Sabe-se que nos precedentes judiciais que trataram do tema, quando do julgamento das ADI’s ns.º 2.675 e 2.777, assim como do RE n.º 593.849-MG, restou fixada a modulação dos efeitos de tais decisões para quem não possuísse ação proposta à época do julgamento (19.10.2016).
Em que pese a modulação dos efeitos de tais decisões, deve-se considerar que a repetição do ICMS-ST retido em valor superior ao devido já era autorizada por São Paulo desde a vigência da Portaria CAT n.º 17/99, passando pelas Portarias CAT ns.º 158/15 e 42/18.
O próprio Estado de São Paulo, sujeito ativo da obrigação tributária e interessando na arrecadação do tributo, veio a propor a ADI n.º 2.777, justamente por se objetivar uma decisão semelhante à constante da ADI n.º 1.851.
Isso quer dizer que a promulgação da Lei n.º 13.291, de 2008, representou uma burla à matéria que estava sub judice, pendente de ser julgada pelo STF em sede de controle concentrado de constitucionalidade, representando, ferindo o princípio do non venire contra facto proprium.
Isso porque, como pontuado, na prática inviabilizou-se a restituição do indébito tributário no caso particular em que a operação final praticada se desse por valor inferior do que aquele utilizado para o cálculo da base presumida.
Isso por dois principais motivos: (1) são excepcionais as situações em que se pode cogitar de “preço tabelado” ou “pauta”; e (2) aqueles casos que representam suposta aplicação de “preço tabelado”, a legislação utiliza termos diversos justamente para camuflar o fato de se tratar de preço tabelado com a participação da autoridade competente.
Além de a edição do dispositivo constante da Lei n.º 13.291/08, que veio a alterar a redação original do ter representado um venire contra factum proprium do Estado, o dispositivo em comento possui um vício insanável, pois traça um pressuposto de que o que virá a ser decidido no bojo da ADI 2.777 já lhe é favorável, tendo em vista que limita apenas o ressarcimento aos casos de “preço tabelado” ou “pauta”, e não o caso de eventual complemento.
Tal tratamento conferido pela Lei de 2008, além de afrontar o princípio da isonomia tributária (art. 150, inciso II, da CF), por tratar contribuintes que se encontram em situações equivalentes de modo diferente, parte ainda do pressuposto de que a questão do complemento seria algo superado, e talvez nem merecesse tratamento específico pela legislação, tendo em vista que o STF já teria resolvido a questão quando do julgamento da ADI n.º 1.851, o que não veio, entretanto, a se confirmar quando do julgamento do RE n.º 593.849-MG e da ADI n.º 2.777.
Outro ponto que torna ilegal e inconstitucional a norma constante do art. 66-B da Lei 6.374/89 (com nova redação dada pela Lei n.º 13.291/08), ao limitar a restituição/ressarcimento do ICMS pago maior aos casos de ‘preço tabelado’ ou ‘pauta fiscal’ (por serem instituídas por autoridade fiscal), é que tal sistemática de tributação do ICMS-ST já foi declarada com não compatível com o texto constitucional pelo STF, como decorre da redação da Súmula n.º 431 do STJ, o que, em tese, nem poderia ser sugerido pelo legislador ordinário como parâmetro de tributação, e muito menos utilizado tal conceito (“preço tabelado” ou “pauta”) como parâmetro para se autorizar o ressarcimento.
Tendo em vista os argumentos ora expostos, entende-se que há linha de interpretação que poderia ser sustentada no sentido de se considerar como ainda vigente a sistemática de ressarcimento de ICMS-ST instituída a partir da redação original da Lei n.º 6.374/89, ou seja, antes da alteração trazida pela legislação de 2008.
Essa linha interpretativa se sustenta, igualmente, pelo fato de que o posicionamento do STF em relação ao julgamento do RE n.º 593.849-MG e da ADI n.º 2.777 não ter afetado a legislação do Estado de São Paulo para antes da data de seu julgamento (19.10.2016), a não ser para os contribuintes que já tivessem demandas propostas antes dessa data.
Isso porque, como já bem mencionado, a legislação vigente antes das alterações trazidas a partir da Lei n.º 13.291/08, com base na redação original do art. 66-B Lei n.º 6.374/89 já autorizava o ressarcimento do valor de base presumido que superasse o valor empiricamente praticado na operação com o consumidor final.
V. Da impossibilidade de exigir o complemento do ICMS-ST relativo ao valor pago a menor
Além de os Estados passarem a prever a obrigatoriedade do recolhimento do complemento ou complementação pelo substituído em razão da parcela do ICMS-ST pago a menor pelo contribuinte substituto, as autoridades fiscais estaduais vêm insistindo em cobrar a referida diferença sob o argumento de que isso deve ser tratado, em última instância, como uma foram de garantia subjetiva ao crédito fiscal, que a Fazenda faria jus por conta do direito oposto, o de restituição.
Como será visto mais a frente, a questão do dever de complemento ou complementação do imposto por parte do substituído tributário na cadeia mercantil foi matéria tratada pelo Supremo Tribunal Federal como obiter dictum, que não importa em vinculação para os casos subsequentes, não formatando, ao fim e ao cabo, o precedente judicial.
Em que pese isso, parece-nos haver alguns motivos determinantes que representariam obstáculos de difícil transposição, ou até intransponíveis, para que o Fisco tente exigir o complemento de imposto em caso de o preço praticado na operação praticada com consumidor final represente montante inferior à base de cálculo presumida para efeitos de substituição tributária “para frente”, como se passa a resumir nos seguintes termos:
(i) A regra jurídica que estabelece o complemento do imposto representaria um venire contra factum proprium da Administração Fiscal, por ser categorizada como “norma de presunção”;
(ii) A norma constitucional constante do art. 150, § 7º, da CF, e que é fundamento de validade à restituição do imposto pago a maior, é regra de limitação ao poder de tributar;
(iii) Ausência de disposição acerca do complemento na LC 87/96 ou em qualquer outro dispositivo de Lei Complementar acerca do complemento, malferindo prescrição constante do art. 146, inciso III, alínea “a”, e art. 155, inciso XII, alínea “b”, da CF;
(iv) O complemento não foi regulado por Lei em São Paulo, mas por norma infralegal (e.g., portarias), malferindo o art. 150, inciso I, da CF;
(v) A praticidade buscada pelo regime de substituição tributária restaria inócua e ineficaz, pondo em dúvida a própria necessidade de se sustentar tal sistemática de tributação.
Passamos a analisar cada um dos argumentos num maior nível de detalhes, a fim de que se possa compreender as dificuldades da aplicação da sistemática de complemento no caso concreto, sem afrontar normas constitucionais.
Em primeiro lugar (i), a norma de presunção não pode ser utilizada pela Administração fiscal nos casos em que a dita presunção, caso afastada, a favor de quem a institui e dela se beneficia, sob pena de malferir o postulado do non venire contra factum proprium, em relação ao ente tributante.
Isso decorre de sua própria natureza, por ter o intuito de facilitar o procedimento fiscal, como norma generalizante e de praticidade, e, por conta disso, em caso de sua invalidade declarada judicialmente, não pode o próprio Estado se beneficiar de um erro ou uma imprecisão que partiu dele mesmo ao instituir a norma de presunção.
Em segundo lugar (ii), a norma constitucional que dá fundamento de validade aos casos de necessidade de restituição do ICMS-ST pago a maior pelo substituto, constante do art. 150, § 7º, da Constituição Federal, sequer cita a figura do complemento, ao passo que se trata de dispositivo normativo e que consta da Seção II, Capítulo I, Título IV da Constituição Federal intitulado de Limitações constitucionais ao Poder de Tributar.
Nesse caminho, quem tem o poder de tributar, sendo, por conta disso, titular de uma competência impositiva outorgada constitucionalmente, é o próprio entre tributante competente, sendo norma direcionada a limitar casos de abuso ou desvio de poder por parte desse ente tributante, e não o contrário, limitando qualquer ação do contribuinte.
Isso guia a interpretação constitucional do dispositivo em comento, de forma que não pode ser utilizada tal garantia outorgada em favor do contribuinte contra ele mesmo, por se tratar de norma que nasceu para proteger o contribuinte de uma presunção criada pelo Fisco, para fins de mera praticidade de fiscalização e arrecadação.
A teleologia do dispositivo constitucional (art. 150, § 7º, da CF) decorre do fato, já suscitado, de que a denominada norma de presunção deve sofrer limitações, justamente privilegiar o princípio da praticidade em favor da Administração Pública.
Em terceiro lugar (iii), há completa ausência de tratamento na LC 87/96 ou em outra norma que tenha esse status, ou seja, de Lei Complementar, acerca do instituto do complemento do ICMS-ST, o que afronta os dispositivos constantes do art. 146, inciso III, alínea “a”, e art. 155, inciso XII, alínea “b”, da CF. Reproduz-se a redação do art. 146, inciso III, alínea “a”, da CF:
Art. 146. Cabe à lei complementar:
(...)
III - estabelecer normas gerais em matéria de legislação tributária, especialmente sobre:
definição de tributos e de suas espécies, bem como, em relação aos impostos discriminados nesta Constituição, a dos respectivos fatos geradores, bases de cálculo e contribuintes;
A exigência do complemento do ICMS-ST do contribuinte substituído é situação de responsabilidade tributária e de definição de elementos importantes para a configuração de seu fato gerador, sujeita à regulação por Lei Complementar, o que não ocorre no caso concreto, tendo em vista que o art. 10 da LC n.º 87/96 só tratou da restituição do ICMS-ST, mas não do complemento.
Vale mencionar, ainda, decisão do STF que deferiu parcialmente o pedido cautelar no âmbito da ADI n.º 5.866, suspendendo Cláusulas do Convênio n.º 52/17, por afronta ao princípio da reserva legal, previsto nos art. 146, inciso III, art. 150, § 7.º, e art. 155, § 2.º, inciso XII da CF, ao invadir a competência constitucional da Lei Complementar de dispor acerca de normas gerais em matéria tributária, dispondo que:
As determinações dos arts. 146, inc. III, e 155, § 2º, inc. XII, da Constituição de República direcionam-se à lei complementar nacional, nas quais devem ser estabelecidas diretrizes básicas para regulamentação geral do imposto discutido na espécie vertente, que, repita-se, a despeito de sua instituição reservada à competência estadual é de configuração nacional.
Outra decisão, esta proferida em sede de Mandado de Segurança Coletivo no bojo do Processo n.º 1010278-54.2018.8.26.0053, assim se pronunciando a Exma. juíza Simone Gomes Rodrigues Casoretti, da 9.ª vara da Fazenda Pública de São Paulo, acerca do tema, transcrita in verbis:
Numa primeira análise, verifico a relevância dos fundamentos invocados, pois admitir a incidência de ICMS sobre o software padronizado por transferência eletrônica por download (o conteúdo é baixado da internet e armazenado no aparelho do usuário) e por acesso remoto, o chamado streaming (o conteúdo acessado, um filme, por exemplo, não é armazenado no aparelho e somente poderá ser acessado novamente por meio de outro acesso à internet), com base em convênio e decreto afronta, sem qualquer dúvida, o disposto no art. 146 da Constituição Federal, pois compete somente a lei complementar dispor sobre conflitos de competência, em matéria tributária, entre os entes da federação; regular as limitações constitucionais ao poder de tributar e estabelecer normas gerais em matéria de legislação tributária (base de cálculo, fato gerador e contribuintes responsáveis). (grifos próprios)
Como se passa a tratar em mais detalhes, a criação do regime de complemento no Estado de São Paulo foi feita sempre à margem de qualquer participação do legislativo, em flagrante afronta ao princípio da legalidade tributária (art. 150, inciso I, da CF).
Em quarto lugar (iv), o princípio da legalidade tributária foi novamente desrespeitado quando da internalização do regime tributário de complementação do imposto. Isso porque não há Lei em sentido formal e material que tenha internalizado a responsabilidade do contribuinte substituído pelo complemento.
O fato se evidencia quando da análise do art. 66-B da Lei n.º 6.374/89, que só tratou da possibilidade de restituição/ ressarcimento do imposto, sem contundo abordar a questão do complemento, o que só veio a ser disciplinado quando da edição da Portaria CAT n. 17/99, o que seguiu com as Portarias CAT n.º 158/15 e n.º 42/18.
Reiteremos, ainda, que a norma constante do art. 10 da Lei Kandir, além de não tratar da figura do complemento, é norma que presume que o ônus financeiro do tributo está sendo suportada pelo contribuinte que efetua a última operação da cadeia.
Considerando os fundamentos mais específicos relativos à questão ora posta, interessante, nesse sentido, a colocação de Marco Aurélio Greco (1998, pp. 129-130), ao analisar o art. 10 da Lei Complementar n.º 87/96 em conjunto com o art. 166 do CTN, chegando a seguinte conclusão:
(...) não é porque o art. 10 da LC 87/96 dispõe que a restituição será feita ao substituído que isso “revogou” o art. 166. A verificação quanto a quem suportou o encargo financeiro do ICMS continua pertinente. Ter suportado o encargo financeiro do ICMS é um requisito de legitimidade para pleitear a restituição de indébito. A regra é que, havendo cobrança antecipada, com o desembolso pelo substituto do respectivo montante, e não ocorrendo o fato gerador, ou ocorrendo em dimensão menor que a prevista, quem suportou o encargo financeiro do ICMS foi o substituído.
Assim, quando o caput do art. 10 assegura ao substituído a devolução do excesso está, na realidade, prevendo uma presunção juris tantum de legitimidade do substituído para obter a restituição, pois isso é o que geralmente ocorre (quod plerumque fit). Em tese, a lei complementar poderia ter previsto que a devolução do excesso far-se-ia a quem demonstrasse ter suportado o respectivo encargo financeiro; em vez de uma cláusula aberta, preferiu qualificar diretamente o substituído para esse fim. Esta opção tem relevante efeito em se tratando de ônus de prova. De fato, se o critério tivesse sido o de assegurar a restituição a quem provasse ter suportado o encargo, o ônus da prova seria do pleiteante; vale dizer, quem pretendesse receber o excesso deveria demonstrar ter suportado o encargo, como condição de sua legitimidade.
No que se refere ao complemento, a Lei Kandir não previu algo semelhante, no sentido de quem deveria se presumir legitimado para o complemento o contribuinte substituído. Nesse sentido, mesmo que a norma de complemento se reputasse como válida, estaria submetida à regra genérica do art. 166 do CTN, exigindo em cada caso a prova de que o encargo teria recaído sobre a figura do substituído.
E mesmo que houvesse norma expressa em Lei Ordinária do Estado de São Paulo autorizando e indicando o sujeito passivo da obrigação tributária que arcaria com o complemento do imposto (o que não há!), isso deveria ser tratado antes por Lei Complementar, por tratar de matéria concernente à responsabilidade pelo recolhimento do tributo.
Tais questões – repita-se – independem da modulação de efeitos realizada pelo STF quando da apreciação do RE n.º 593.849-MG e das ADI’s n.º 2.675 (PE) e n.º 2.777 (SP), tendo em vista que isso sequer já foi alvo de apreciação pelo STF em algum momento.
Em quinto lugar (v), a praticidade buscada pelo regime de substituição tributária – e que funda a norma de presunção – restaria inócua, pondo em dúvida a própria necessidade de se sustentar tal sistemática de tributação antecipada. Como bem colocado pelo STF em sede do julgamento do RE n.º 593.849/MG,
O princípio da praticidade tributária não prepondera na hipótese de violação de direitos e garantias dos contribuintes, notadamente os princípios da igualdade, capacidade contributiva e vedação ao confisco, bem como a arquitetura de neutralidade fiscal do ICMS. 4. O modo de raciocinar “tipificante” na seara tributária não deve ser alheio à narrativa extraída da realidade do processo econômico, de maneira a transformar uma ficção jurídica em uma presunção absoluta.
Isso faz deduzir que o postulado da praticidade, embora um mal necessário, possui suas limitações legais. Assim, a substituição tributária, naqueles casos em que sequer consegue atender à sua razão de existência, isto é, à praticidade tributária por meio de um racional denominado de “tipificante” ou “generalizante”, se perde em seu fundamento de validade.
A ineficiência atestada a partir de um regime de tributação eleito pelo legislador não pode ser imputada, dessa forma, ao contribuinte que se sujeita à aplicação de uma norma de ficção ou presunção jurídica. Em outras palavras, como bem argumenta Marco Aurélio Greco (1998, p. 27),
Impor um recolhimento em função de um fato que se imagina venha a ocorrer posteriormente envolve sempre um risco. O risco de errar na previsão, seja da ocorrência, seja da dimensão respectiva. Esse é um risco assumido pelo Fisco quando impõe compulsoriamente aos contribuintes a sistemática da antecipação. Se o Fisco pretender a certeza quanto à base, cumpre-lhe aguardar a ocorrência do fato gerador para aí, então, exigir todo o tributo.
Não é por outra razão que a doutrina denomina a figura “antecipação do fato gerador”, pois sua adoção implica ter ocorrido efetivamente o fato gerador no momento em que é exigida a antecipação. Se a previsão não foi adequadamente feita e ficou aquém do montante efetivamente praticado no momento subsequente, este foi o risco assumido ao se instaurar o mecanismo. Não se trata de figura semelhante à estimativa, nem se trata de um recolhimento “por conta” de fatos geradores que estão ocorrendo. Trata-se de uma exigência definitivamente dimensionada no momento da antecipação e que não pode apenas ser superior ao critério tradicional; mas nada impede que ela seja inferior, pois, neste caso, ter-se-á uma carga tributária menor pelo simples fato de que a Lei assim o determinou. (grifos próprios)
Ademias disso, não procede o argumento de que, assim como ocorre para o contribuinte em relação ao recolhimento do excesso, o Fisco possuiria um direito adquirido à cobrança de eventual insuficiência no recolhimento do tributo. Isso porque o próprio STF já se posicionou no sentido de que as garantias constitucionais (ato jurídico perfeito, direito adquirido, irretroatividade da lei etc.) só poderiam ser invocados pelo contribuinte, e não pelo Fisco.
Esse racional coaduna com o fato de que o §7º da art. 150 da CF está – e não por acaso – inserido no capítulo que trata das “Limitações Constitucionais ao Poder de Tributar”. Não é norma que serve ao Fisco, mas sim ao contribuinte, para salvaguardar seus direitos e garantias fundamentais.
Por fim, como citado pelo Min. Edson Fachin em seu voto, “O sentido do dispositivo constitucional é claramente o de proteger o contribuinte contra exigências maiores do que as que resultam da aplicação do modelo clássico do fato gerador da obrigação tributária.” (RE n.º 593.849/MG)
Parece, com isso, não ter sido à toa que o STF acabou não se pronunciando acerca da questão do complemento, em que pese não se poder afirmar que há precedente ainda favorável ao contribuinte nesse sentido.
Vale mencionar que a Assembleia Legislativa do Estado de São Paulo, em 15 de outubro de 2020, por meio da aprovação da Lei estadual n.º 17.293/2020, instituiu e passou a prever o complemento do ICMS-ST para os contribuintes substituídos estabelecidos nesse Estado.
Desse modo, dispôs em seu artigo 24 o seguinte acerca do complemento, alterando a redação original atribuída ao dispositivo constante do art. 66-H da Lei estadual n.º 6.374/1989 (denominada também de “Lei do ICMS do Estado de São Paulo”):
Artigo 24 - Fica acrescentado, com a redação que se segue, o artigo 66-H à Lei nº 6.374, de 1º de março de 1989:
“Artigo 66-H - O complemento do imposto retido antecipadamente deverá ser pago pelo contribuinte substituído, observada a sua regulamentação pelo Poder Executivo, quando:
I - o valor da operação ou prestação final com a mercadoria ou serviço for maior que a base de cálculo da retenção;
II - da superveniente majoração da carga tributária incidente sobre a operação ou prestação final com a mercadoria ou serviço.
Parágrafo único - Fica o Poder Executivo autorizado a instituir regime optativo de tributação da substituição tributária, para segmentos varejistas, com dispensa de pagamento do valor correspondente à complementação do imposto retido antecipadamente, nas hipóteses em que o preço praticado na operação a consumidor final for superior à base de cálculo utilizada para o cálculo do débito de responsabilidade por substituição tributária, compensando-se com a restituição do imposto assegurada ao contribuinte.”
(grifos próprios)
Em primeiro lugar, vale ressaltar alguns aspectos atrelados ao princípio constitucional da legalidade tributária (art. 150, inciso I, da Constituição Federal), notadamente no que se refere à (i) imputação da responsabilidade tributária no recolhimento do complemento e (ii) na definição de sua base de cálculo.
Em que pese o referido dispositivo normativo faça referência ao contribuinte substituído, como responsável pela complementação do imposto, não especifica qual dos substituídos presentes numa mesma cadeia mercantil (digamos que haja mais de um) seria, de fato, o responsável por esse recolhimento do complemento, se seria, por exemplo, o estabelecimento atacadista ou seria o varejista. Deixou com isso, a questão da definição da responsabilidade a cargo da regulamentação infralegal do complemento, a ser implementada pelo Poder Executivo, em malferimento ao princípio da legalidade tributária (art. 150, inciso I, da Constituição Federal).
E não seria válido o argumento (falacioso) eventualmente levantado pela autoridade fiscal no sentido de que a imputação da responsabilidade ao último contribuinte substituído da cadeia deveria emanar da própria lógica instituída a partir do dispositivo constante do art. 166 do CTN, porque tal dispositivo refere-se exclusivamente à lógica da repetição do indébito no âmbito dos tributos indiretos, ou seja, que, por essência, repercutem economicamente na cadeia, como ocorre na própria sistemática de ressarcimento/restituição do ICMS-ST.
A imputação de responsabilidade é outro instituto jurídico completamente diverso e distinto da repetição do indébito tributário, que necessita, inclusive, atentar às normas de responsabilidade em matéria de ICMS, conforme dispostas em Lei Complementar.
No que diz respeito à mensuração legal da base de cálculo do complemento, com o detalhamento de toda a sua fórmula de cálculo, entende-se a sua subordinação também ao princípio da legalidade tributária (art. 150, inciso I, da Constituição Federal), não podendo ser matéria a ser tratada diretamente pelo Poder Executivo.
Em que pese tal fato, como se vê, o legislador ordinário, quando da aprovação das alterações trazidas a partir da edição da Lei estadual n.º 17.293/2020, com a “instituição” do complemento, sequer fez referência à base de cálculo, quanto mais à fórmula de cálculo específica que deverá ser utilizada para efeitos de complemento do imposto.
Além de todas as questões até agora levantadas, vale mencionar que a base de cálculo para efeitos de mensuração do valor do complemento de ICMS-ST a ser arcado pelo substituído será disciplinada integralmente por norma infralegal.
E não se pode alegar, sob qualquer argumento, que o cálculo se deduz de uma simples operação lógica de diferença de bases de cálculo (presumida e praticada), tendo em vista que, na prática, as metodologias de cálculo aplicadas pelos diferentes Estados, a exemplo de São Paulo[25], Minas Gerais[26] e Rio Grande do Sul[27], são completamente diversas, levando a resultados matemáticos completamente discrepantes.
Em segundo lugar, o denominado ‘regime optativo de tributação’, ao qual se refere o parágrafo único do referido dispositivo deverá seguir a mesma sistemática de arrecadação e procedimento de regimes semelhantes que são hoje praticados em outros Estados da Federação em matéria de complemento do ICMS-ST, à semelhança do que ocorre nos Estados do Rio Grande do Sul e de Minas Gerais. Entende-se, com isso, que a referida “opção” de que trata a norma, que permanece em caráter definitivo para o contribuinte por um prazo de 1 (um) ano, torna-se meio oblíquo e disfarçado de o Fisco limitar o direito de restituição/ressarcimento do ICMS-ST reconhecido pelo STF (RE n.º 593.849/MG, ADI n.º 2.777/SP e ADI n.º 2.675/PE).
Com isso, a título meramente comparativo em relação a como hoje funciona esse regime de opção em outros Estados (Rio Grande do Sul, Minas Gerais, etc.), além das novas disposições sobre a complementação do ICMS-ST, o Decreto Estadual nº 47.621, de 2019, o qual também trouxe alterações ao RICMS/MG, veio a limitar o pleno exercício do direito de restituição/ressarcimento, constitucionalmente reconhecido pelo E. STF (RE nº 593.849/ MG e das ADI’s nº 2.777/ SP e 2.675/ PE), acrescentando o seguinte dispositivo:
Art. 31-J - Em substituição ao disposto nos arts. 31-A a 31-I desta subseção, os contribuintes abaixo especificados poderão acordar a definitividade da base de cálculo do ICMS devido por substituição tributária por meio de opção no Sistema Integrado de Administração da Receita Estadual - SIARE -, hipótese em que não será devido imposto a complementar nem a restituir:
I - contribuinte substituído exclusivamente varejista;
II - contribuinte substituído atacadista e varejista, em relação às operações em que atuar como varejista.
§ 1º - O contribuinte que exercer a opção de que trata este artigo permanecerá vinculado a partir do primeiro dia do mês de realização da opção até o término do mesmo exercício financeiro, ressalvada a revogação de ofício promovida pela Secretaria de Estado de Fazenda.
(...)
§ 5º - A opção pela definitividade poderá ser revogada a qualquer tempo pelo Delegado Fiscal, quando ocorrerem situações que a justifiquem, segundo critérios estabelecidos em resolução do Secretário de Estado de Fazenda, visando à preservação dos interesses da Fazenda Pública, hipótese em que o contribuinte será cientificado da decisão e, se desejar, poderá apresentar, no prazo de dez dias, recurso hierárquico ao Superintendente Regional de Fazenda, cuja decisão é definitiva.
§ 6º - Na hipótese de revogação da opção, nos termos do § 5º, fica vedada nova opção no mesmo ano-calendário.(grifos nossos)
A partir da edição da normativa acima transcrita, o Estado mineiro fixou que o contribuinte substituído poderia optar pela fixação de uma base de cálculo do ICMS-ST devido definitiva, hipótese em que não será devido imposto a complementar nem a restituir, ou seja, fixa-se a base de cálculo e não se recolhe o complemento, com a condição de que o contribuinte renuncie ao direito constitucional de restituição/ressarcimento da parcela do imposto retido a maior, isto é, indevidamente, durante todo o ano-calendário.
Em outras palavras, para a Lei paulista também seria dispensado o dever de complementação nesses casos, mas seria igualmente vedada a restituição, de modo flagrantemente inconstitucional e contrário ao parágrafo 7º do art. 150 da Constituição Federal, em caso de pagamento a maior a título de recolhimento antecipado do ICMS-ST pelo substituto.
Embora confusa a redação do referido dispositivo, parece ser esse o significado que realmente lhe tentou atribuir o legislador ordinário estadual, ao falar em
(...) dispensa de pagamento do valor correspondente à complementação do imposto retido antecipadamente, nas hipóteses em que o preço praticado na operação a consumidor final for superior à base de cálculo utilizada para o cálculo do débito de responsabilidade por substituição tributária, compensando-se com a restituição do imposto assegurada ao contribuinte.
Vale mencionar que a Portaria CAT n.º 42/18, no que diz respeito ao dever de complementação do contribuinte substituído, não pode produzir efeitos em relação ao passado, ou seja, períodos anteriores à vigência da referida Lei estadual que instituiu o complemento para o Estado de São Paulo.
Também não haveria como proceder à regular aplicação da Portaria CAT n.º 42/2018, no que trata do complemento, antes da ‘regulamentação pelo Poder Executivo’, o que só foi feito recentemente por meio de edição do Decreto n.º 65.471/21, com vigência imediata e produção de efeitos a partir de 15 de janeiro de 2021, devendo, em tese, seguir os termos da nova redação atribuída ao dispositivo constante do art. 66-H da Lei estadual n.º 6.374/1989. Válido, com isso, transcrever o teor textual da norma regulamentar em apreço:
Artigo 1º - Passa a vigorar, com a redação que se segue, o artigo 265 do Regulamento do Imposto sobre Operações Relativas à Circulação de Mercadorias e sobre Prestação de Serviços de Transporte Interestadual e Intermunicipal e de Comunicação - RICMS, aprovado pelo Decreto 45.490, de 30 de novembro de 2000:
“Artigo 265 - O complemento do imposto retido antecipadamente deverá ser pago pelo contribuinte substituído, observada a disciplina estabelecida pela Secretaria da Fazenda e Planejamento, quando (Lei 6.374/89, art. 66-H, acrescentado pela Lei 17.293/20, art. 24):
I - o valor da operação ou prestação final com a mercadoria ou serviço for maior que a base de cálculo da retenção;
II - da superveniente majoração da carga tributária incidente sobre a operação ou prestação final com a mercadoria ou serviço.” (NR).
Artigo 2° - Este decreto entra em vigor na data de sua publicação, produzindo efeitos a partir de 15 de janeiro de 2021.
Palácio dos Bandeirantes, 14 de janeiro de 2021.
Ocorre que a redação atribuída ao referido Decreto n.º 65.471/21 incidiu em grave falta, (i) seja porque sequer fez referência à base de cálculo do complemento; (ii) seja devido ao fato de ter se resumido a imputar responsabilidade pelo pagamento ‘ao contribuinte substituído’, sem maiores detalhes acerca de qual substituído da cadeia a norma se refere, como já comentado, em nítida afronta ao princípio da legalidade tributária (art. 150, inciso I, da CF).
Ademais disso, o inciso II, conforme inserido à redação do art. 265 do RICMS/SP, poderá representar, a depender do caso concreto, malferimento aos princípios jurídicos da não surpresa e da segurança jurídica, tendo em vista que se tentaria impor uma exação imprevisível ao contribuinte à época em que contratou a aquisição de um determinado produto sujeito à sistemática de substituição tributária, podendo trazer, inclusive, problemas de cunho concorrencial para as empresas afetadas.
Especificamente em relação à Portaria CAT n.º 42/18, pela opção atribuída ao contribuinte em sua adoção, o Fisco sequer regulou ainda de forma clara o dever de complementação do imposto, o que reforça a necessidade de regulamentação mais precisa por parte do Poder Executivo, ainda pendente de se realizar. Quanto aos demais aspectos atrelados à inconstitucionalidade da cobrança do complemento do ICMS-ST, em si considerado, faz-se referência a tudo o que foi exposto acerca de sua inconstitucionalidade, conforme as 5 (cinco) principais razões já dispostas no início do presente capítulo.
Relativamente à obrigação de os contribuintes no Estado de São Paulo ter que calcular o eventual complemento do ICMS-ST na hipótese de observar diferenças a maior entre a base presumida e a efetivamente realizada, frisamos que o STF não enfrentou esse tema, ao menos de forma mais específica, como deve fazê-lo no futuro, quando do julgamento conjunto do RE n.º 593.849/MG, ADI n.º 2.777/SP e ADI n.º 2.675/PE.
Vale ressaltar, por último, que não é objeto de análise do presente estudo o denominado “Regime Optativo de Tributação da Substituição Tributária” (ROT-ST), a exemplo da denominação atribuída pela legislação paulista ao regime tributário cuja adesão seria uma forma de abdicar de qualquer direito de restituição pelo substituído do valor pago a maior pelo substituto, assim como a dispensa do dever de complementação, o que geraria um discussão apartada do tema em referência.
VI. Definição da base de cálculo por norma infralegal e do malferimento ao princípio da legalidade tributária
Além de todas as questões até agora levantadas, vale mencionar que a base de cálculo para efeitos de mensuração do valor do complemento de ICMS-ST a ser arcado pelo substituído foi disciplina integralmente por norma infralegal.
E não se pode alegar, sob qualquer argumento, que o cálculo se deduz de uma simples operação lógica de diferença de bases de cálculo (presumida e praticada), tendo em vista que, na prática, as metodologias de cálculo aplicadas pelos diferentes Estados, a exemplo de São Paulo[28], Minas Gerais[29] e Rio Grande do Sul[30], são completamente diversas, lavando a resultados matemáticos completamente discrepantes.
Isso quer dizer que, quando o Decreto n.º 54.308, de 2018, trata do assunto, ele inova em matéria tributária, especificamente ao instituir e determinar o aspecto quantitativo da norma de incidência tributária.
Nos termos do art. 25-A do Decreto Estadual n.º 54.308/2018, a base de cálculo do imposto, para fins de complemento ou complementação, resultará de uma operação matemática só aplicável aos contribuintes substituídos localizados no Estado do Rio Grande do Sul, como se transcreve:
Art. 25-A - O contribuinte substituído varejista, para fins de ajuste do montante do imposto retido por substituição tributária decorrente da diferença entre o preço praticado na operação a consumidor final e a base de cálculo utilizada para o cálculo do débito de responsabilidade por substituição tributária, deverá apurar mensalmente, considerando todas as operações com mercadorias recebidas pelo estabelecimento no período que tenham sido submetidas ao regime de substituição tributária:
I - o montante do imposto presumido, que corresponderá ao valor obtido pela aplicação da alíquota interna sobre o valor da base de cálculo utilizada para o cálculo do débito de responsabilidade por substituição tributária, informado nos documentos fiscais de aquisição das mercadorias, deduzido o valor correspondente às mercadorias que não sejam objeto de saídas destinadas a consumidor final deste Estado, ou cuja saída a consumidor final deste Estado seja isenta ou não tributada;
(...)
II - o montante do imposto efetivo, que corresponderá ao valor obtido pela aplicação da alíquota interna sobre o preço praticado na operação a consumidor final deste Estado constante nos documentos fiscais de saída das mercadorias.”(grifos nossos)
Caso se consulte legislações de outros Estados, como ocorre com São Paulo, como consta da Portaria CAT nº 42/2018, ver-se-á que há outras variáveis que são utilizadas para efeitos de cálculo, chegando a outro resultado, que não coincidem com o cálculo proposto pela legislação gaúcha.
Ocorre que isso tudo está disciplinado por norma infralegal, com notório malferimento ao princípio constitucional da legalidade tributária, conforme consta do artigo 150, inciso I, da Constituição Federal.
Como já dito, porém, não foi o princípio da estrita legalidade tributária, nem sua vertente mais específica referente às matérias reservadas à lei complementar que foram levadas em consideração no voto de alguns ministros do STF que tiveram a oportunidade de enfrentar o tema em específico, como se passa a demonstrar em um maior nível de detalhes a partir do próximo tópico.
VII. Interpretações extraídas a partir dos votos proferidos no bojo do Recurso Extraordinário nº 593.849/MG pelos ministros do STF que trataram do dever de complementação do ICMS-ST
Como mencionado em tópico inicial do presente estudo, há três ministros do STF que, há época da apreciação e julgamento do Recurso Extraordinário nº 593.849/MG, se pronunciaram acerca da figura do dever de complemento ou complementação do ICMS-ST, um negando provimento do recurso e os outros dois concedendo provimento, de sorte que, em outras palavras, os referidos ministros não restringiram a declarar o mero direito de restituição do tributo pago a maior por parte do substituído na cadeia mercantil, entrando, com isso, no mérito do dever de complementar aquilo que não fora retido pelo substituto tributário.
Nesse sentido, interessante analisar o teor presente em trecho do voto proferido pela ministra Rosa Weber, que se pronunciou acerca do direito de restituição e do dever de complementação do tributo nos seguintes termos:
As posições já foram, como eu disse, amplamente destacadas. Estamos com ICMS, que é um tributo indireto cobrado por dentro, mas tanto o voto do Ministro Fachin quanto o voto do Ministro Luís Roberto destacam a possibilidade de perfeita identificação. E, nesse caso, se a base de cálculo presumida não se concretizar, só nessa hipótese é que haveria sim a restituição ou, no caso, a cobrança pela Fazenda do valor recolhido a menor.
Destaque-se que, a partir do voto da ministra, não se extrai qualquer condicionante para que se dê tanto o direito à restituição, como venha o Fisco a exercer sua pretensão arrecadatória cobrando o completo do imposto. Isso quer dizer que, em momento algum, seja para se valer da restituição, seja para que o Fisco exerça sua pretensão arrecadatória, a reserva de lei complementar sequer foi suscitada.
Pode-se extrair duas interpretações a partir desse voto, pelo menos, quais sejam: (i) que a ministra ao vislumbrar as duas possibilidade, direito à restituição e dever de complementação, pressupôs que a matéria fosse tratada ou, ao menos, devesse ser tratada por lei complementar antes de sua instituição pelos Estados; ou que (ii) pouco importa a reserva de lei complementar no caso, sendo o dever de complementação do ICMS-ST pressuposto a partir do próprio reconhecimento do direito à restituição, como se bastasse tão somente um racional lógico-matemático para findar a incidência e a determinação da sujeição passiva em tais circunstâncias.
O problema de raciocinar seguindo a segunda alternativa (ii) posta é que não há a previsão de que a sujeição passiva, assim como a base de cálculo para o complemento não é necessariamente uniforme, a depender do tratamento atribuído por cada ente federado. Afinal de contas, o contribuinte substituído a que se impõe a cobrança do imposto complementar pode ser qualquer um da cadeia mercantil que seja substituído na operação, atacadista, varejista etc., não estando isso claro em qualquer norma jurídica do sistema, o que abre um rol de possibilidades para o Estado, fora o fato, já demonstrado, que há diferentes formas de se chegar a valores diferentes da base de cálculo do imposto complementar em tais circunstâncias, o que reforça a necessidade de tratamento da matéria por lei complementar.
Ocorre que o que pode ter predominado no voto da ministra tenha sido um racional de lógico-matemático, para se chegar a um resultado econômico específico, sem que se frustrem as pretensões arrecadatórias envolvidas no caso concreto.
Já no que diz respeito ao voto proferido pelo então ministro Marco Aurélio de Mello, reiterando as razões de seu voto já sustentado à época da ADI n.º 2.777, fez questão de transcrevê-los em sua fundamentação de voto, o que restou pronunciado nos seguintes termos abaixo transcritos:
O que sustento a respeito do § 7º em comento revela uma estrada de mão dupla. Tanto admito que o contribuinte, verificado o negócio, possa reclamar diferença – valor recolhido a maior – como também o fato de o estado vir a pretender a satisfação do tributo, considerado o valor real do negócio jurídico, no que haja se mostrado superior àquele por ele próprio estimado.
Também em relação ao voto do ministro Marco Aurélio, não se consegue, ao menos com um certo nível de precisão e clareza, se definir se o ministro entendeu prescindível a reserva de lei complementar para o caso, ou se apenas vislumbrou a possibilidade de instituição do complemento, mas desde que se seguissem todos os trâmites cabível, incluindo a necessidade de lei complementar expressamente autorizando tal instituição e cobrança por parte dos Estados.
Por fim, passa-se a analisa trecho do voto proferido pelo então ministro do Teori Zavascki, pronunciando-se na seguinte linha:
Se nós dissermos que o valor fixado na substituição tributária progressiva é provisório, ele iria permitir qualquer dessas duas alternativas: seja o contribuinte pedir a restituição, seja o fisco cobrar a diferença - é o que está na lei. Por isso, a lei mineira disse exatamente isso: "Olha, nós estamos criando aqui um regime de substituição tributária; o valor presumido é um valor definitivo" - e mais adiante eu vou voltar ao assunto. Portanto, não se vai permitir nem que o Estado seja obrigado a devolver, nem que o Fisco possa cobrar a diferença, caso, no futuro, a operação final venha a ser diferente. De modo que, até pela posição dos votos antecedentes, seria importante que se esclarecesse como ficaria a posição do Fisco nessa história: se o Fisco também poderia, eventualmente, cobrar a diferença.
Em relação particularmente ao trecho do voto do ministro Teori Zavascki que enfrenta particularmente o tema, pode-se inferir, diferentemente dos demais aqui analisados anteriormente, que o ministro deduz como revés lógico do direito de restituição, o referido dever de complementação do imposto recolhido por substituição, o que, pelo seu discurso, parece de fato prescindir de outra norma que valide tal cobrança ademais daquelas instituídas pelos próprios Estados, já que isso já estaria indiretamente disciplinado quando se legisla acerca do direito de restituição, sendo o simples “outro lado da moeda”, que funda a pretensão arrecadatória por si próprio.
Além desses aspectos, importante mencionar que o próprio STF foi provocado a analisar especificamente a questão da obrigatoriedade do complemento, nos Embargos de Declaração opostos pela procuradoria fazendária no Recurso Extraordinário nº 593.849/MG, e o ministro relator Edson Fachin foi categórico ao afirmar que tal matéria não foi requerida ou aventada no processo, fato esse que já foi reconhecido, inclusive, em sede de outras decisões judiciais, como é o caso da 22ª Câmara Cível do Tribunal de Justiça do Estado do Rio Grande do Sul, quando do julgamento da Apelação n.º 0340784-09.2018.8.21.7000, que já atestou que “não houve debruçamento sobre tal hipótese, descabendo-se, desta forma, estender o posicionamento adotado pela Corte Suprema”.
Tais questões só revelam o quão complexa se coloca a discussão em pauta, logo porque o pronunciamento incidental acerca da matéria, que partiu de trechos de votos de apenas três ministros do STF, e não conclusivos, não fazem voz de precedente vinculante, de forma a não servir de paradigma à questão, necessitando-se de uma análise específica a ser provocada no Excelso Tribunal.
Em outras palavras, representam o que a doutrina processual denomina de obiter dictum, que não importa em vinculação para os casos subsequentes, não perfazendo o precedente vinculante. Em outras palavras, o Supremo deverá ainda se pronunciar expressamente, e isso parece uma tendência bastante provável, acerca da matéria relacionada à constitucionalidade ou não do complemento do ICMS-ST, o que ainda propriamente não ocorreu.
De todo modo, a questão auxilia o estudioso da ciência jurídica a identificar aspectos atrelados aos fatores que influenciam não só o raciocínio dos julgadores; mas, especificamente, o que os motiva ao decidir questões desse teor, o que torna a recusa da compreensão de racionais decisórios rotulados como consequencialistas um obstáculo intransponível à sua necessária compreensão.
VIII. Consequencialíssimo com fundamentos extrajurídicos de cunho econômico e o afastamento da estrita legalidade
Ao se deparar com complexidades jurídicas como a infinidade de leis existentes, em que em número crescente de normas deixa de preencher a sua função primordial, como já prenunciava Francesco Carnelutti[31], de modo que a ordem jurídica, que deveria ter o maior dos méritos na simplicidade, se tornou uma espécie de labirinto em que nem os seus guias conseguem, por vezes, se orientar.
A publicação incessante de normas legais, e, principalmente, infralegais em matéria tributária mostra do fator endêmico e deletério pelo qual perpassa o nosso sistema jurídico positivo, recorrendo-se e uma infinidade de instrumentos normativos cercados da maior complexidade, tendo em vista a falta de unicidade de tratamentos, procedimentos e planejamento de como se devem dar as relações de tributação.
Isso parece ser um fator adicional para que o Poder Judiciário se afaste das soluções arquitetadas a partir de uma infinidade de leis, regulamentos, instruções normativas, portarias, comunicados, dentre tantos outros instrumentos normativos, que já não parecem alcançar, ao menos da melhor forma seu desiderato.
Muitas vezes a referida complexidade do sistema normativo fiscal é imputada ao próprio Estado, que estaria se utilizando dessa complexidade em seu próprio benefício em face de sua pretensão primordialmente arrecadatória.
Ocorre que a ideia de uma teleologia interpretativa de cunho econômico, ou, em seu viés fiscalista, de cunho arrecadatório, não se restringe à esfera da Administração Pública, que precisa garantir a arrecadação em proveito de seus cofres, tentando salvaguardar suas finanças; mas, também, tal teleologia interpretativa também se vê presente em outras esferas, como nos julgados administrativos e judiciais que tratam de matéria fiscal.
Como se viu isso está incorporado no próprio discurso dos ministros do STF, notadamente no caso ora objeto de análise, referente ao julgamento do Recurso Extraordinário nº 593.849/MG, que, por mais que tenha tido o objetivo de tratar do direito de restituição do ICMS-ST retido pelo substituído em montante maior que o devido e presumido em relação à toda a cadeia mercantil, tratou, igualmente, mesmo que de forma pontual em alguns votos, da possibilidade de se aceitar a cobrança do imposto complementar, mesmo sem disciplina expressa na Constituição Federal ou na Lei Complementar n.º 87/96.
Pode-se inferir, a partir daí, um discurso consequencialista de cunho eminentemente econômico e, particularmente, arrecadatório, mas que não tem base legal, estando fora de uma concepção clássica de estrita legalidade, afastando-se de um racional de simples subsunção do fato à norma.
Em que pese concordemos com Francisco Laporta[32], quando afirma que as posturas interpretativa e aplicativa adotadas pelo interpreto ou aplicador da norma não poderem ser um opção estratégica de natureza meramente consequencialista, deve-se reconhecer, por outro viés, que qualquer decisão tem um cunho, menor que seja, de consequencialismo, de modo que o julgador não é uma figura alheia ao que ocorre na sociedade, ao que se passa em termos de processos psíquicos em sua mente e à situação econômica de seu país.
Antes de se decretar um completo repúdio a tais comportamentos de interpretação e decisão, por parte de alguém que foi legitimado a tanto, deve-se primeiro perquirir das razões, mesmo que se rotulem como extrajurídicas, que levaram um determinado julgador, por exemplo, a tomar determinada decisão com o intuito de solucionar um conflito que lhe foi posto.
Ademais disso, vale ressaltar que a questão de o juiz ou tribunal adotar posturas que se rotulam como consequencialistas não evidencia uma completa falta de coerência em suas decisões nem que tais decisões sejam alheias a quaisquer valores suportados pela sociedade, tendo em vista que, como bem pondera Neil Maccormick[33], o juiz, inclusive, se obriga a tratar de modo similar casos semelhantes, apresentando razões universais ou universalizáveis para fundar a sua decisão, o que demonstra que o consequencialismo não se trata de um total arbítrio no momento de decidir.
No mais, é inevitável que aspectos políticos, econômicos, sociológicos, por exemplo, povoem a mente de quem tem a função de decidir, notadamente naquelas situações difíceis, em que se identificam áreas indeterminadas nas quais se vê, em certa medida, uma maior discricionariedade na tomada de decisões. Nesse sentido, fazendo as devidas distinções ao sistema brasileiro, interessantes são as reflexões produzidas por Richard A. Posner:
Naturalmente, um juiz não deve valer-se da liberdade advinda de seu cargo, para tentar, em larga escala, impor à nação, em nome da Constituição, as visões de São Tomás de Aquino acerca do direito natural, ou então as de Herbert Spencer, ou ainda a filosofia utilitarista de Bentham, ou mesmo a de Mill. A tolerância e o comedimento são virtudes importantes no ato de julgar. Mas as visões filosóficas, religiosas, econômicas e políticas de um juiz devem orientá-lo nos casos situados naquelas áreas indeterminadas nas quais ele possui poder discricionário para tomar decisões.[34]
Tal consequencialismo, no presente caso analisado, parece coadunar com aquilo que denominamos, para fins didáticos, de intepretação teleológica de cunho econômica, nos termos extraídos a partir da análise realiza por Eros Roberto Grau[35], o que nos possibilita trabalhar em uma conclusão, mesmo que ainda parcial, a partir das questões propostas até no presente estudo.
IX. Conclusão
Como já salientado no início do presente estudo, nem sempre os métodos interpretativos e meios de integração normativa típicos de um discurso positivista parecem suficientes para solucionar os conflitos postos, além do que, em determinados casos, os julgadores simplesmente, por algum fundamento, decidem não os aplicar, chegando até mesmo a ignorar o que está prescrito textualmente no dispositivo normativo que, ao mesmo em tese – seria aplicável ao caso concreto.
A conclusão de Renato Lopes Becho[36] no sentido de que a ciência do direito, ao menos nos moldes em que a conhecemos, não está preparada para explicar quando os juízes não aplicam as leis corrobora com tal questão, ao passo que se vê como inevitável uma reflexão multidisciplinar para melhor compreender como os juízes e tribunais decidem, notadamente quando não aplicam a denominada subsunção do fato à norma.
Além dessa questão, importante ressaltar que o discurso consequencialista, seja rotulado como jurídico ou extrajurídico, particularmente atrelado ao precedente aqui analisado, referente ao julgamento do Recurso Extraordinário nº 593.849/MG está presente, igualmente, em vários outros julgados do STF e espraiados na jurisprudência dos Tribunais Superiores, de modo que não se trata de um caso pontual, mas sim de um fenômeno que se repete em diversas situações, o que torna imperativa a sua compreensão.
Para o caso ora posto, referente a esse precedente do STF, conclui-se que o Supremo, notadamente a partir do voto proferido por alguns de seus ministros na referida decisão, parece ter aplicado uma intepretação teleológica de cunho eminentemente econômico em relação à validação da figura do complemento ou complementação do ICMS-ST, adotando um método de interpretação, sob notória e intensa pressão política, que parece ter, de algum modo, atendido o intuito de favorecer a pretensão arrecadatória dos diversos Estados da Federação, seguindo um critério meramente lógico-matemático de que se vale a restituição, vale também a complementação do imposto; mas, por outro viés, carente de fundamentação no texto da lei, que não coaduna com uma aplicação formal dos dispositivos hoje constantes de nossa Constituição e nem da lei Complementar n.º 87/96.
Bibliografia
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[1] Advogado e Consultor Tributário. Mestrando em Direito Tributário (PUC/SP). Pós-graduado em Direito Tributário (PUC/SP). Especialista em Direito Tributário (CEU-LAW). Juiz do Tribunal de Impostos e Taxas de São Paulo (TIT/SP). Ex-Conselheiro Julgador do Conselho Municipal de Tributos (CMT/SP). Conselheiro e Vice-Presidente do Comitê ICMS/ISS da Associação Brasileira de Advocacia Tributária (ABAT). Professor em diversas instituições.
[2] GRECO, Marco Aurélio. Substituição Tributária: ICMS, IPI, PIS e Cofins. São Paulo: IOB, 1998, pp. 22-23.
[3] Idem, p. 28.
[4] BECHO, Renato Lopes. Filosofia do direito tributário. 1.ed. São Paulo: Saraiva, 2009, p. 226.
[5] JUNIOR, Tércio Ferraz Sampaio. Introdução ao estudo do direito: técnica, decisão, dominação. 11.ed. São Paulo: Atlas, 2022, p. 276.
[6] Idem, pp.276-277.
[7] STF - RE nº 593.849/MG, Rel. Min. Edson Fachin, data de julgamento:19.10.2016.
[8] STF - RE nº 593.849/MG, Rel. Min. Edson Fachin, data de julgamento:19.10.2016.
[9] MACHADO, Hugo de Brito. Curso de direito tributário. São Paulo: Malheiros, 2014, p. 114.
[10] GUASTINI, Ricardo. Interpretar e argumentar. Vol. 1. Belo Horizonte: D’Plácido, 2021, p. 230.
[11] Idem, 230.
[12] BECHO, Renato Lopes. Filosofia do direito tributário. 1.ed. São Paulo: Saraiva, 2009, p. 27.
[13] GRAU, Eros Roberto. Conceito de tributo e fontes do direito tributário. São Paulo: IBET/ Resenha Tributária, 1975, pp. 75-76.
[14] TESAURO, Francesco. Instituições de direito tributário. São Paulo: IBDT, 2017, p. 135.
[15] MELO, José Eduardo Soares de. ICMS: Teoria e Prática. 15ª ed. (revista e atualizada), 2020, p. 177.
[16] STF - RE nº 593.849/MG, Rel. Min. Edson Fachin, data de julgamento:19.10.2016.
[17] MACHADO, Hugo de Brito. Aspectos fundamentais do ICMS. São Paulo: Dialética, 1999, pp. 117-118.
[18] STF - RE nº 593.849/MG, Rel. Min. Edson Fachin, data de julgamento:19.10.2016
[19] CARRAZZA, Roque Antonio. ICMS. 18.ed. Revista e ampliada. São Paulo: Malheiros/jusPOIVM, 2020, p. 150.
[20] STJ- Resp. nº 525.625/RS, 2ª Turma, Rel Min. Francisco Falcão, data de julgamento: 09.08.2022.
[21] Como salientou o Min. Eros Roberto Grau em seu voto-vista: “A hipótese prevista no inciso I desse artigo 66-B é a estipulada no § 7º do artigo 150 da Constituição do Brasil.” (STF - RE nº 593.849/MG, Rel. Min. Edson Fachin, data de julgamento:19.10.2016)
[22] STJ - EREsp 978.130/SP, Rel. Min. Maur Campbell Marques, DJe: 6.4.2009.
[23] STF - RE nº 593.849/MG, Rel. Min. Edson Fachin, data de julgamento:19.10.2016.
[24] Acerca da interpretação conforme a Constituição, interessante o ponto de vista de Paulo Bonavides: “Como se vê, esse meio de interpretação contém um princípio conservador da norma, uma determinação de fazê-la sempre subsistente, de não eliminá-la com facilidade do seio da ordem jurídica, explorando ao máximo e na mais ampla latitude todas as possibilidades de sua manutenção.” (Curso de Direito Constitucional. 33ª edição, São Paulo: Malheiros, 2018, p. 531).
[25] Portaria CAT nº 42/2018.
[26] Decreto nº 47.547/2018.
[27] Decreto nº 54.308/2018.
[28] Portaria CAT nº 42/2018
[29] Decreto nº 47.547/2018.
[30] Decreto nº 54.308/2018.
[31] CARNELUTTI, Francesco. Como nasce o direito. 5ª.ed. Tradução de Hiltomar Martins de Oliveira. Belo Horizonte: Líder, 2010, p. 34.
[32] LAPORTA, Francisco J.. El império de la ley. Del Rey, 2007, p. 192.
[33] MACCORMICK, Neil. On Legal Decisions and their Consequences: from Dewey to Dworkin. New York University Law Review. V. 58. N. 2. New York: New York University, May 1983, pp. 249-250.
[34] POSNER, Richard A. Para além do direito. Tradução de Evandro Pereira e Silva. São Paulo: WMF Martins Fontes, 2009, p. 210.
[35] GRAU, Eros Roberto. Conceito de tributo e fontes do direito tributário. São Paulo: IBET/ Resenha Tributária, 1975, pp. 75-76.
[36] BECHO, Renato Lopes. Ativismo jurídico em processo tributário: crise teoria dos precedentes e efeitos do afastamento da estrita legalidade. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2021, p. 226.
Advogado. Mestrando em Direito Tributário pela PUC-SP. Especialista em Direito Empresarial pela FGV-SP. MBA em Gestão Tributária pela USP. Membro da comissão organizadora do Tax Moot Brazil. Professor da Pós-graduação em Direito Tributário da Faculdade CEDIN.
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: BRUNO NOGUEIRA REBOUçAS, . O dever de complementação do ICMS-ST e as razões intrínsecas do consequencialismo econômico aplicado ao caso pelo Supremo Tribunal Federal Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 08 fev 2023, 04:20. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/artigos/61004/o-dever-de-complementao-do-icms-st-e-as-razes-intrnsecas-do-consequencialismo-econmico-aplicado-ao-caso-pelo-supremo-tribunal-federal. Acesso em: 23 nov 2024.
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