ANA LÚCIA MACÉA ORTIGOSA[1]
RODOLFO GIOVANE ORTIZ MONTEIRO CARVALHO[2]
(Coautores)
Resumo: O presente artigo analisa o fenômeno da desinformação, por meio da disseminação de fake news, tratando de seus efeitos negativos quanto ao desenvolvimento da autonomia da pessoa e à sua participação democrática, por atingir o substrato do direito à informação. Busca-se perquirir sua influência na formação do pensamento e do processo decisório, além de identificar seus contornos jurídicos e as propostas de contenção de sua disseminação, bem como os institutos jurídicos em vigor que se façam aplicáveis a tal escopo.
Abstract: This article analyzes the phenomenon of disinformation, through the dissemination of fake news, dealing with its negative effects on the development of the person's autonomy and their democratic participation, by reaching the substrate of the right to information. It seeks to look at its influence on the formation of thought and decision-making process, in addition to identifying its legal contours and the proposals to contain its dissemination, as well as the legal institutes in force that are applicable to this scope.
Palavras – chave: desinformação; fake news, autonomia; participação democrática.
Keywords: misinformation; fake news, autonomy; democratic participation.
O presente artigo objetiva analisar o fenômeno das fake news, buscando sua definição, efeitos e mecanismos de combate a sua disseminação.
Utilizou-se, para tanto, o método indutivo, partindo-se da observação do cotidiano atual para a análise do instituto por premissas teóricas, aplicáveis de forma genérica, além de pesquisa bibliográfica a respeito do tema e de assuntos correlatos.
É composto por quatro capítulos, com subitens, nos quais se procede a análise da liberdade de expressão e informação, do conceito e elementos do instituto e da formação do pensamento para a formulação decisória, das medidas de combate a disseminação e dos institutos jurídicos em vigor já aplicáveis, bem como a conclusão.
2 – Liberdade de Expressão e Autonomia
2.1 – Natureza jurídica e relevância da liberdade de expressão no desenvolvimento e consolidação da autonomia da pessoa
A liberdade de expressão constitui um aspecto específico da esfera de autonomia humana, caracterizada pela faculdade de manifestação do pensamento (ou também de não se manifestar), com a exteriorização de ideias, opiniões ou fatos, sem óbice por parte de ente público ou de particulares (por censura ou repressão posterior), por meio da qual o indivíduo interage na vida social e participa da conformação democrática estatal.
Trata-se, pois, de direito da personalidade e fundamental, estabelecido como cláusula pétrea no art. 5º, IV, da CF/88.
Por sua própria natureza, a liberdade de expressão é essencial tanto ao desenvolvimento da personalidade quanto à dignidade da pessoa. Nesse sentido, leciona Sarmento (2006):
Sendo a pessoa humana essencialmente gregária e social, a sua comunicação com o outro, mais do que uma faculdade, constitui uma verdadeira necessidade. A possibilidade de cada um de exprimir as próprias idéias e concepções, de divulgar suas obras artísticas, científicas ou literárias, de comunicar o que pensa e o que sente, é dimensão essencial da dignidade humana. Quando se priva alguém destas faculdades, restringe-se a sua capacidade de realizar-se como ser humano e de perseguir na vida os projetos e objetivos que escolheu. Trata-se de uma das mais graves violações à autonomia individual que se pode conceber, uma vez que nossa capacidade de comunicação – nossa aptidão e vontade de exprimir de qualquer maneira o que pensamos, o que sentimos e o que somos – representa uma das mais relevantes dimensões da nossa própria humanidade.
O mesmo autor indica, ainda, a relevância da liberdade de expressão para o desenvolvimento do ideário democrático:
A liberdade de expressão é peça essencial em qualquer regime constitucional que se pretenda democrático. Ela permite que a vontade coletiva seja formada através do confronto livre de idéias, em que todos os grupos e cidadãos devem poder participar, seja para exprimir seus pontos de vista, seja para ouvir os expostos por seus pares. Por isso, o ideário democrático não se circunscreve à exigência de eleições livres e periódicas. Na verdade, uma democracia real pressupõe a existência de um espaço público robusto e dinâmico, em que os temas de interesse geral possam ser debatidos com franqueza e liberdade (SARMENTO, 2006).
A liberdade de expressão, assim, integra o desenvolvimento pessoal, caracterizando-se como um dos fatores para o alcance da autonomia, da autodeterminação, tanto no concernente ao plano de vida quanto no que tange a participação democrática.
A autonomia, em seu sentido comum, constitui a capacidade de dirigir-se por vontade própria, a independência pessoal do indivíduo. O direito de tomar suas decisões livremente.
Tal sentido comum se espraia pelas diversas áreas da vida da pessoa, implicando, sempre, a liberdade de dirigir sua própria vida, por meio de escolhas livres e conscientes. Assim, por exemplo, na seara da biomédica, Aquino Paula (2019) aponta que:
A autonomia, um dos princípios bioéticos descritos pelos autores Beauchamp e Childress (2013, p. 137), corresponde à capacidade das pessoas de decidir sobre ou buscar algo que seja melhor para si segundo os seus próprios valores e, para que isso ocorra, o indivíduo deve ser livre para decidir, sem coações externas de controle que influenciem as suas decisões, bem como deve possuir consciência, razão e compreensão das opções que lhe são ofertadas. O respeito à autonomia envolve o respeito aos direitos fundamentais do indivíduo, considerando-o um ser biopsicossocial e espiritual, dotado de capacidade para tomar suas próprias decisões.
A liberdade de expressão constitui um aspecto da autonomia da pessoa, não apenas enquanto meio de manifestação (a emissão de opiniões, crenças, ideários, decisões), mas também viabilizando a livre constituição do conteúdo do que é manifestado (formação das opiniões, crenças, ideários, decisões), por meio da interação social, da informação e do livre debate de ideias.
2.2 – Liberdade de expressão e de informação
A liberdade de expressão, de modo amplo, compreende também a liberdade de informação, tanto em sentido ativo, consistente na faculdade de exteriorizar fatos, quanto em sentido passivo, por meio da recepção dos fatos manifestados por outrem, para conhecimento e formação de ideias, opiniões e decisões a respeito.
Nesse sentido, a Declaração Universal dos Direitos Humanos, preceitua que o ser humano tem direito à livre opinião e expressão, o qual “inclui a liberdade de, sem interferência, ter opiniões e de procurar, receber e transmitir informações e idéias por quaisquer meios e independentemente de fronteiras” (artigo 19).
Doutrinariamente, no entanto, é feita uma distinção entre as liberdades de expressão e de informação, conforme seu conteúdo, sendo a primeira relacionada a pensamentos (ideias, opiniões), enquanto a segunda se refere a divulgação e informação a respeito de acontecimentos, fatos, apontando-se, como diferencial em seu regime jurídico, sua ligação com a verdade. Quanto a tal aspecto, a lição de Barroso (2004):
A informação não pode prescindir da verdade - ainda que uma verdade subjetiva e apenas possível (o ponto será desenvolvido adiante) - pela circunstância de que é isso que as pessoas legitimamente supõem estar conhecendo ao buscá-Ia. Decerto, não se cogita desse requisito quando se cuida de manifestações da liberdade de expressão. De qualquer forma, a distinção deve pautar-se por um critério de prevalência: haverá exercício do direito de informação quando a finalidade da manifestação for a comunicação de fatos noticiáveis, cuja caracterização vai repousar sobretudo no critério da sua veracidade.
Também Sarmento (2013/2014, p. 255/256) aponta o referido fator de distinção:
Para fins didáticos, é possível desdobrar a liberdade de expressão em dois campos: manifestação de pensamento e divulgação de fatos. Com grande frequência, a narração de fatos e a manifestação do pensamento são atividades que se amalgamam, tornando-se praticamente indissociáveis. Sem embargos, há certas diferenças entre os respetivos regimes jurídicos, sobretudo no que concerne à questão da verdade, que pode ter relevo quando estão em jogo fatos, mas não tem pertinência no campo das ideias.
No contexto da comunicação social (que, a par dos meios tradicionais, deve abranger os novos meios, gerados pelo avanço tecnológico), o mesmo autor aduz que “o foco principal é a proteção e promoção dos direitos e interesses dos cidadãos em geral, que constituem o público da mídia” (op. cit., p. 2037), incluindo-se em tal proteção o âmbito do debate democrático plural, no qual a verdade já era reconhecida como essencial na antiguidade grega, como relata Bobbio (2020, p. 135), ao se referir a Atenas: “Quando o povo estava reunido, escreve Glotz, o arauto amaldiçoava quem quer que procurasse enganar o povo”.
A exigência da verdade, embora deva ser buscada de forma incessante, não pode chegar ao ponto de tornar o debate estático ou inviabilizar versões e opiniões divergentes, minoritárias, seja no campo das ideias, seja no dos fatos em si.
Stuart Mill (2011, p. 50), em clássica obra, já defendia a necessidade de expressão e discussão de opiniões divergentes, a qual apontava como vantajosa e necessária ao bem estar da humanidade, sob diversos aspectos, dentre eles a possibilidade de que a opinião dominante seja falsa; de que se aprofunde a compreensão e sentimento da verdade de uma opinião dominante (pelo contraponto da outra), bem como que as opiniões tragam, cada qual, uma parte da verdade. Enfatiza, assim, que:
Nenhumas opiniões de alguém em relação a qualquer assunto merecem o nome de conhecimento, exceto na medida em que lhe tenha sido imposto por outros, ou autoimposto, o mesmo processo mental que lhe tenha sido requerido ao manter uma discussão ativa com adversários. Portanto, é mais do que absurdo privarmo-nos daquilo que quando ausente é tão indispensável, mas tão difícil de gerar, quando espontaneamente se oferece! Se há quaisquer pessoas a contestar uma opinião dominante, ou que o farão se a lei e a opinião os deixarem, agradeçamos-lhes por isso, façamo-nos receptivos a escutá-los, e fiquemos felizes pelo fato de que há alguém para fazer por nós o que caso contrário teríamos o dever de fazer – se temos qualquer respeito quer pela certeza que peça vitalidade das nossas convicções – com muito mais esforço sozinhos.
A questão das fake news, portanto, adquire relevância no que concerne a liberdade de informação (não se descurando que a expressão de fatos é, no mais das vezes, integrante ou associada a difusão de opiniões), bem como no âmbito do debate público livre e plural que constitui substrato essencial da ordem democrática.
A desinformação, seja pela divulgação de notícias falsas, distorções de conteúdos verdadeiros, criação de teorias conspiratórias, desconstrução de biografias, prolação de discursos de ódio, criação e barreiras informativas, dentre outras formas, com os mais diversos objetivos e relacionadas a distintas áreas da vida, desde situações comezinhas até afirmações em momentos críticos da vida política e social de países, instilando a mentira e/ou inviabilizando o debate, não constitui novidade na história humana.
Assim, por exemplo, Eco (2006) refere a mentira na construção de mitologia e poder pessoal, em texto a respeito do Conde de Cagliostro, enunciando como mistério verdadeiro e inquietante não a conduta daquele que assim atua, ora sendo desmascarado, ora obtendo vantagens, mas “que uma pessoa presumivelmente de inteligência mediana, com deveres políticos e religiosos, se deixe convencer por tais intrigas, fascinada, obnubilada (...)”.
Há situações, também, de manipulação da opinião pública, por meio de falsidades e sensacionalismo, para obtenção de seu apoio a um ou outro lado em um guerra, como na Hispânico – Americana, na qual, “desde o final do século XIX, grades jornais norte – americanos liderados por Pulitzer e Hearst já contaminavam a opinião pública fabricando falsas informações sobre o que ocorria em Cuba, para fazer a opinião publica colocar-se a favor da guerra contra a Espanha (MARCONDES FILHO, s.d) ou durante a Guerra Civil Espanhola, indicando Orwell (2006, p. 222-223), nas memórias a respeito de sua participação no conflito, as falsidades publicadas para obtenção de apoio internacional a um ou outro lado da contenda:
Todos nos lembramos do cartaz do Daily Mail: ‘VERMELHOS CRUCIFICAM FREIRAS’, enquanto para o Daily Worker a Legião Estrangeira de Franco era ‘composta de assassinos, aliciadores de mulheres, drogados e o rebotalho de todos os países europeus’. Até mesmo o New Statesman, em outubro de 1937, nos brindava com histórias sobre barricadas fascistas feitas com os corpos de crianças vivas’.
Na mesma obra refere a utilização da tática de acusações fabricadas de traição, utilizadas pelos comunistas contra os anarquistas, após a eliminação e desaparecimento dos expoentes destes, para alcançar a liderança das tropas republicanas.
Castells (2019, p. 219-243) indica também a influência da propagação de informações distorcidas, por parte do governo norte americano, para obtenção de apoio à Guerra do Iraque, informando que um relatório publicado pelo subcomitê da Câmara sobre Reforma Governamental dos Estados Unidos (2004), incluía um banco de dados com 237 razões enganosas para justificar o conflito, dentre as quais figuram a existência de armas de destruição em massa no Iraque, a ligação de Saddam Hussein com a al-Qaeda e sua participação no ataque de 11 de setembro e a libertação do povo da opressão, molduras que foram se sucedendo, conforme as anteriores perdiam a credibilidade.
Há, ainda, mentiras que não alcançam relevo social, como a teoria do falecimento de Paul MacCartney em acidente de veículo e sua substituição por sósia, do que haveria pistas dispostas nas capas dos álbuns da icônica banda The Beatles, as inúmeras aparições de Elvis Presley e outros artistas em locais públicos, após sua morte, dentre outras, a bem demonstrar o gosto humano por teorias da conspiração, sejam de que cunho forem.
Como dito, pois, a mentira acompanha a humanidade durante toda sua evolução, sob as mais diversas formas e com as mais variáveis finalidades, desde aquelas relevantes a persuasão da coletividade pelo poder pessoal ou estatal, até as que simplesmente atiçam a imaginação e curiosidade das pessoas.
3. 2 – Fake News – conceituação e elementos distintivos
Consideradas as premissas indicadas acima, pode-se afirmar que a utilização de notícias falsas integra o fenômeno de “desordem informativa”, definido por Wardle e Derakshaw (apud MELATI, 2020) como “uma poluição informacional em escala global”, constituído, basicamente, por três situações distintas: difusão não intencional de informações falsas (informação errada ou “mis-information”); divulgação de informações verdadeiras, mas manipuladas para levar a entendimento/interpretação enganosos (informação negativa ou “mal-information”) e divulgação intencional de informações falsas, com objetivo predeterminado de gerar confusão informacional (informação falsificada ou “dis-information”) (FORSTER; MONTEIRO DE CARVALHO; FILGUEIRAS e AVILA, 2021) (MELATI, 2020).
A caracterização autônoma das Fake News, como forma de manipulação contemporânea, a gerar maior preocupação quanto a sua utilização, decorre, basicamente, de seu imenso potencial de propagação pela utilização das modernas tecnologias de comunicação, de alcance mundial e instantâneo por meio da internet, pela disseminação de redes sociais e aplicativos de mensagens instantâneas, a viabilizar a criação rápida e sem custos (ou com poucos) por uma imensa gama de usuários, com possibilidade de replicação massiva (uso de robôs, por exemplo), aliados aos objetivos de desinformação, potencialmente causadores de danos coletivos e/ou individuais.
Insere-se, ademais, no contexto da pós – verdade, no qual os argumentos retóricos são fundados em elementos de crenças e emocionais, na formação da opinião pública, em detrimento dos fatos.
A expressão passou a ser utilizada em caráter geral, basicamente, a partir de 2006, relacionadas as circunstâncias levantadas nas eleições presidenciais norte-americanas e votação do Brexit na Inglaterra, alcançado, no entanto, sentidos diversos, seja como refutação a fatos ou alegações com as quais não se concorda (independentemente de sua veracidade ou de debates a respeito), seja no significado de disseminação intencional daquilo que se sabe não ser verdadeiro, com objetivo determinado.
No que tange ao conceito de Fake News, os economistas Hunt Allcott e Matthew Gentzkow (apud ZUBOFF, 2019), a definem como “’sinais distorcidos não relacionados com a verdade’ que impõem ‘custos privados e sociais tornando mais difícil (...) inferir o verdadeiro estado do mundo (...)’”.
Binembojm (2020) refere que a melhor tradução possível para Fake News é a de notícias fraudulentas; no mesmo sentido, Rais (2018), em entrevista ao Conjur, esclarecendo que para sua identificação como objeto do direito devem concorrer os elementos da falsidade, dolo e dano, caracterizando-a como “o conteúdo comprovada e propositadamente falso, mas com aparência de verdadeiro, capaz de provocar algum dano, efetivo ou em potencial”.
Nery Júnior e Andrade Nery advertem, ainda, que o conceito em questão não se constitui apenas pelo conteúdo falso da informação, mas também pela utilização de fatos verdadeiros, manipulados para desacreditar a veracidade de outra informação:
(...) não somente de fatos inverídicos se compõe o conceito de Fake News, mas também de ardiloso e bem urdido conjunto de fatos verdadeiros que desmerecem uma afirmação, também verdadeira, mas que se quer seja recebida como falsa. Está incluída nesse conceito a meia – verdade, ou a mentira recebida por várias vezes para criar no destinatário a certeza de que essas mentiras reiteradas se apresentam como verdade (2021, p. 232).
Pode-se afirmar, com base nos conceitos acima, que as fake news constituem notícias fraudulentas, caracterizadas pela falsidade de seu conteúdo ou pela manipulação de conteúdo verdadeiro que distorça seu sentido, criadas e/ou divulgadas e/ou difundidas intencionalmente, com o objetivo de acarretar dano, visando uma vantagem.
Assim, são elementos que as distinguem da simples mentira: a ciência de seu conteúdo falso ou da distorção do contexto; a intencionalidade ao criar, divulgar e difundir o conteúdo falso; a potencialidade de gerar dano individual ou coletivo e a finalidade de obtenção de vantagem por meio da desinformação produzida.
Inserem-se, pois, no âmbito mais amplo da desinformação, constituindo-se por informações falsificadas (divulgação intencional de conteúdo falso) e negativas (manipulação do contexto verdadeiro para gerar interpretações enganosas), que se vale, dentre outros e como instrumento, da informação errada (divulgação de informações falsas, sem ciência da falsidade de seu conteúdo ou contexto), em correlação ao fenômeno da desordem informativa, definido por Wardle e Derakshaw (apud MELATI, 2020), em lição citada no início deste tópico.
3.3 – Comunicação e formação do pensamento para a tomada de decisões
A difusão intencional de conteúdo falso ou distorcido, busca influir e manipular a autonomia das pessoas, quanto à tomada de suas decisões, mecanismo voltado a obtenção de uma vantagem.
Há estudos neurocientíficos que põe em xeque a própria autodeterminação das pessoas, enquanto liberdade de fazer escolhas conscientes. Harari (2016) menciona estudos que afirmam que as decisões são tomadas por uma reação em cadeia de ocorrências bioquímicas, por processos que são determinísticos ou aleatórios (ou uma combinação de ambos), afastando o livre – arbítrio.
Sarmento (2020, p. 137, nota de rodapé 9), também informa a respeito de tais estudos:
Uma objeção ao livre – arbítrio que vem causando comoção decorre de descobertas recentes no campo da neurociência. Nós temos impressão que os nossos atos são causados por decisões conscientes que tomamos. Porém, comprovou-se empiricamente que os impulsos elétricos no cérebro que disparam as ações ocorrem cerca de meio segundo antes que haja a tomada consciente de qualquer decisão.
Ao tratar da comunicação e da formação do pensamento, lastreado também em pesquisas de neurociência (com a expressa advertência por parte do autor de que não está reivindicando competência especial na referida área, mas apenas introduzindo o processo da mente humana como elemento da análise da comunicação, sob uma perspectiva científica interdisciplinar), Castells (2019, p. 191-194) afirma que a mente é um processo em interação com o corpo, caracterizado por imagens mentais que podem ou não ser conscientes, integrando emoções, sentimentos e raciocínio, que levam a tomada de decisões.
O mesmo autor indica que pesquisas na área demonstram a existência de integração entre a cognição e a emoção na tomada de decisões políticas (aspecto específico sob análise na obra, podendo-se estender a conclusão para as demais áreas de decisão), sem oposição entre ambas, mas com articulação entre elas, de modo que a “cognição política é formada emocionalmente” (op. cit, p. 199).
Refere que “Esperança e medo se combinam no processo político, e mensagens de campanha são muitas vezes direcionadas para estimular a esperança e provocar o medo do oponente”. E, ao se intensificar o conflito interno entre cognição e emoção, afirma que:
Uma pluralidade de estudos parece indicar que as pessoas tendem a acreditar naquilo em que querem acreditar. Com efeito, estudos mostram que as pessoas são muito mais críticas na avaliação de fatos que contradizem suas crenças do que no caso de questões que estão de acordo com o que elas pensam. (...). Quanto mais instruídos forem os cidadãos, mais capazes serão de elaborar interpretações das informações disponíveis em apoio de suas preferências políticas predeterminadas (Op. Cit., p. 207).
Fato é que o ser humano tem a capacidade não só de formar opiniões e agir em conformidade com elas, mas também de modificá-las, sejam ou não tais fenômenos originados por processos eletroquímicos aleatórios.
As fake news lidam exatamente com as emoções das pessoas, envolvendo, no mais das vezes, esperança, medo, ódio. Buscam exacerbar tais emoções, o que, com efeito, tem o condão de levar as pessoas a “acreditar naquilo que acreditam” e desenvolver argumentos que apoiem a informação fraudulenta, mesmo quando seu conteúdo não resista ao mínimo argumento crítico. Muda-se a realidade, desacredita-se a evolução científica, acrescendo argumentos que buscam consolidar a validade da informação fraudulenta, por adequada aos sentimentos e preferências pessoais, potencializando o isolamento ideológico e a polarização de ideias. Castells (2019, p. 202-203) expressa que “(...). Partidários fortes tendem a fazer parte de redes políticas homogêneas. As atitudes dos sujeitos são influenciadas por sentimentos em relação a outras pessoas na rede.” Esclarece, ainda, que:
Quando buscam informações, as pessoas começam com seus valores e depois buscam informações que confirmem aqueles valores. (...) os indivíduos são “avarentos cognitivos” que procuram informações que confirmem suas crenças e hábitos já existentes, um atalho cognitivo que reduz o esforço mental necessário para desempenhar uma tarefa (Popkin, 1991; Schreiber,, 2007).
Como exemplo de mecanismo relacionados ao quanto exposto, pode-se referir os filtros bolha, caracterizados pela personalização de mensagens direcionadas a certos grupos, com lastro em perfis elaborados a partir de dados fornecidos por eles próprios durante o uso da rede. Souza e Teffé (2021, p. 305) mencionam a possibilidade de que, com isso, os internautas sejam “afastados de conteúdos que de alguma maneira os desafiassem e fossem contrários a suas opiniões, gostos ou preferências, o que poderia prejudicar a capacidade deles de aprender e inovar”.
Macedo Júnior (2021, p. 259-260) relaciona a produção do “efeito da câmara de eco”, pelo qual as pessoas, na utilização das redes sociais, direcionam-se a informações que reforçam suas próprias opiniões e preconceitos.
Depreende-se, pois, que as decisões são formadas não apenas por racionalidade, mas também pela integração de sentimentos, os quais, quando exacerbados, levam a pessoa a buscar a confirmação daquilo em que já acredita, elemento que, ao que se verifica, é aproveitado pela elaboração das fake news e mecanismos utilizados para sua difusão.
4 – Propostas de Mecanismos de Controle e Responsabilidade
No que tange ao controle da disseminação das Fake News, há diversas propostas, além de alertas quanto ao risco de que se recaia em censura.
Binebojm (2020), alertando quanto a possibilidade de censura e de utilização do tema como pretexto para “exclusão de posição inconvenientes, antieconômicas ou politicamente incorretas”, indica como meio de combate a atuação de agências de checagens de notícias, a permitir, inclusive, o debate e formulação do senso crítico quando houver divergência entre elas, em razão da inviabilidade de adoção de solução baseada em imposição unilateral de alguma verdade, além do “controle social da mídia” na única expressão que indica como constitucional, ou seja, decorrente da liberdade de escolha do público, que tenderá a optar por veículos de maior credibilidade, em razão dos debates gerados a respeito dos conteúdos vinculados.
Rais (2021, p. 285) também faz advertência em tal sentido, quanto ao controle abstrato e preventivo:
(...). Por estarmos diante de um conteúdo, removê-las ou impedi-las por meio de ferramentas jurisdicionais exigiria uma análise caso a caso. Caso o Judiciário, de forma repressiva, o fizesse de modo abstrato e preventivo, a agressão à liberdade de expressão significaria censura.
De um lado, a definição de fake news mediante leis significaria a restrição à liberdade pelo Legislativo. Por outro, uma definição imprecisa permitiria aos juízes que, aleatoriamente e segundo seu próprio entendimento, restringissem todas as mensagens que entendessem como fake news, gerando insegurança jurídica.
O controle da desinformação pode decorrer de seu próprio conteúdo falso e da crítica por seu contraponto, pelo amplo debate gerado a respeito, com o fomento de uma educação que, desde suas etapas iniciais, permitam preparar as pessoas ao desenvolvimento de um pensamento crítico (ONUMA, 2020).
Nesse ponto, o uso da própria rede social mostra-se relevante mecanismo não estatal para combate a desinformação, constituído pelas agências de checagem, indicando Rais (2021, p. 286-288) alguns deles, como a agência Aos Fatos, o Lupe, o Trueet, o Comprova, dentre outros.
Sob o aspecto normativo, Cueva (2021, p. 292-295) aponta a existência de dois modelos de regulamentação, que podem complementar um ao outro, consistentes na reserva de jurisdição, no qual apenas o Poder Judiciário pode determinar a remoção do conteúdo ilícito, quando provocado pelo interessado, por via processual, sempre a posteriori, e o de autorregulação, pelo qual incumbe aos próprios provedores remover o conteúdo indevido, após provocação do ofendido.
No que concerne a imputação pela disseminação de Fake News, tratando-se de elemento fraudulento com potencialidade de causar danos, como referido quando analisado o conceito do instituto, pode se caracterizar a responsabilidade civil daquele que o cria e/ou divulga, pessoa física ou jurídica, observados os requisitos dos respectivos institutos, como o elemento subjetivo que informa a conduta (ou alguma das hipóteses legais de responsabilização objetiva, como o fato do serviço em relação de consumo), dano gerado e o nexo causal entre um e outro.
Possível, também, a responsabilidade penal, em caso de ofensa a outrem, com a caracterização de crimes de calúnia, difamação e injúria.
A responsabilidade do provedor por conteúdo gerado por terceiros, de seu turno, é subsidiária, somente incidindo quando descumprir ordem judicial específica para tornar indisponível o conteúdo ofensivo, conforme disposto no artigo 19 da Lei 12.965/14 (Marco Civil da Internet).
Nery Júnior e Andrade Nery (2021, p. 242-243) referem, ademais, a possibilidade de violação de bem jurídico difuso ou coletivo, aduzindo que:
Quando a notícia falsa atinge bem jurídico de natureza difusa ou coletiva, qualquer entidade constante do rol do CDC 82 e LACP 5º tem legitima tio ad causam para promover ação civil pública na defesa desses direitos, tanto para pleitear reparação de dano material, como de dano moral coletivo.
Pode ser utilizada, também, como meio processual, a tutela inibitória (buscado impedir a prática do ilícito) e a de remoção do ilícito, no âmbito individual ou coletivo, com fulcro nos artigos 536 do CPC e 84 da Lei 8.078/90.
A divulgação da fake news pode ensejar, ademais, a utilização do direito de resposta, estabelecido no artigo 5º, V, da CF.
Há diversos projetos de lei em trâmite nas casas legislativas, sendo que o Projeto de Lei 2630/20, que visa instituir a Lei Brasileira de Liberdade, Responsabilidade e Transparência na Internet, é o que se encontra em fase mais adiantada, com texto aprovado no Senado Federal e remetido à Câmara dos Deputados, onde foi apresentado substitutivo, com rejeição de requerimento de prioridade de tramitação.
A distorção da realidade, embora fenômeno antigo, adquiriu maior relevo na atualidade, em virtude do desenvolvimento da tecnologia de comunicação e da internet, bem como de redes sociais e aplicativos de mensagens, que propiciam a criação de conteúdos por número indeterminado de pessoas e sua rápida e ampla disseminação em âmbito mundial, inclusive por meios artificiais (utilização de robôs), a acarretar preocupação com a magnitude da manipulação que podem produzir e seus efeitos sobre aspectos relevantes, quando não fundantes, da estrutura da comunidade e do Estado.
Nesse contexto, a potencialidade de desinformação de uma notícia adquiriu maior relevo, passando-se a usar a terminologia fake news, a qual pode ser entendida como a informação fraudulenta, criada e/ou disseminada intencionalmente, com o intuito de obtenção de vantagem e aptidão para causar dano, coletivo ou individual.
A liberdade de expressão, enquanto direito da personalidade que viabiliza o pleno desenvolvimento da pessoa, além de constituir substrato do regime democrático, envolve também o direito a informação, o qual não prescinde da veracidade do fato, elemento violado frontalmente pelas fake news.
A formação do pensamento, conforme os mais recentes estudos da neurociência, advém de impulsos bioquímicos determinísticos ou aleatórios, pondo em xeque a existência do livre arbítrio. Estudos na mesma área científica indicam, ainda, que o pensamento é constituído não apenas por racionalidade, mas também por emoções, existindo uma tendência, quando estas sobrelevam, de que a pessoa opte e defenda o ponto de vista que já possui, aproveitando-se as fake news, no mais das vezes, exatamente da exacerbação dos sentimentos do receptor.
No tratamento e combate as fake news há o risco da aplicação da censura sob a roupagem de defesa social, indicando-se a necessidade de se propiciar o desenvolvimento do senso crítico das pessoas, desde as fases iniciais de sua educação, a fim de coadunar o exercício da liberdade de expressão com a tutela da sociedade, por meio de debate e contrapontos que superem os efeitos da desinformação, além de se mencionar mecanismos decorrentes da própria tecnologia de rede (agências de checagem) e os institutos jurídicos já em vigor que podem ser utilizados na situação.
Não obstante o cenário atual, caracterizado pela polarização social, pelo aumento da vigilância e da potencialidade de manipulação das pessoas e diminuição do senso crítico, não é a primeira oportunidade em que a humanidade passa por profundas alterações, ousando-se manter a esperança quanto a superação dessa etapa, pois, nos dizeres de Bauman (2013, p. 140):
(...) é o destino (nome genérico de tudo que não podemos evitar ou alterar significativamente) que estabelece para nós a gama de opções disponíveis e realistas, mas é o caráter (nome genérico daquilo que podemos tentar conscientemente controlar, alterar ou cultivar) que faz a seleção entre elas. A copresença e a interação desses dois fatores amplamente autônomo tornam os feitos humanos indeterminados, e, no fim das contas, jamais totalmente previsíveis. Nem os nazistas e os comunistas, em seus campos de concentração, conseguiram eliminar de todo as escolhas humanas!
As inverdades (mesmo aliadas a opressão), de fato, não eliminaram a autodeterminação humana ao longo da história, cabendo-nos utilizar e estimular o senso crítico, livre e independente, para a superação desta era de pós – verdade, buscando, sempre, que a humanidade trilhe um caminho comum, tendo por ponto de chegada o seu desenvolvimento e completa integração.
BAUMAN, Zygmunt; LYON, David. Vigilância Líquida; tradução Carlos Alberto Medeiros – Rio de Janeiro: Zahar, 2013
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Mestrando em Direito Civil Comparado pela PUC/SP. Juiz de Direito no Estado de São Paulo.
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