Resumo: O presente trabalho objetiva analisar a compatibilidade do direito ao esquecimento com o sistema jurídico brasileiro, tendo em vista o crescente número de documentários retratando crimes que ocorreram no passado sendo gravados nas maiores redes de streamings. Para um melhor entendimento, é imperiosa a análise jurisprudencial, inclusive pela recente decisão do Supremo Tribunal Federal.
Palavras-chave: Direito ao esquecimento. Incompatibilidade. Jurisprudência.
Abstract: The present work aims to analyze the compatibility of the right to be let alone with the Brazilian legal system, in view of the growing number of documentaries portraying crimes that occurred in the past being recorded in the largest streaming’s network. For a better understanding, jurisprudential analysis is imperative, including the recent decision of the Federal Supreme Court.
Keywords: Right to be let alone. Incompatibility. Jurisprudence.
Introdução
Com a globalização e a internet, muito se debate sobre a perpetuidade das informações jogadas nas redes. O que antes era facilmente submetido ao esquecimento social, até porque veiculado em jornais, agora acaba tendo longa vida, principalmente em vista do crescente número de documentários e filmes retratando a vida dos mais famosos – bem como o vasto interesse da sociedade nesse tipo de conteúdo.
Aliado a isso, a popularização de redes de streaming acabou por subsidiar esse mercado, de forma que tem sido cada vez mais comum documentários retratando crimes famosos que aconteceram no Brasil, bem como a vida dos envolvidos hoje em dia, mesmo após terem cumprido suas penas.
Com o retorno do crime à memoria social, o que acontece é uma reviravolta na vida de quem já estava voltando ao convívio geral. Isso porque, a partir do momento em que a sociedade é lembrada de um ilícito que ocorreu em seu meio, o criminoso envolvido passa, automaticamente, ao posto de persona non grata.
Se o sistema penal é feito para essa ressocialização, a doutrina há de delimitar um instituto que possibilite a segurança jurídica daquele que já cumpriu o que deveria segundo a lei. É norte do direito penal brasileiro que o apenado seja ressocializado. E foi nesse sentido que surgiu o direito ao esquecimento objeto do presente trabalho.
Para além dessa repercussão, também há relação com outros aspectos. No âmbito cível, a possibilidade de rememorar fatos remotos podem acabar por constranger e atrapalhar o indivíduo, como o caso de alguém que era famoso e deseja cair no anonimato para viver de acordo com sua capacidade de autodeterminação – que é a exteriorização da autonomia dos indivíduos de viverem a vida de acordo com seu livre-arbítrio.
É de salutar que reconhecer os direitos da personalidade acaba por dar azo ao reconhecimento de que a pessoa pode mudar com o passar dos anos e essa mudança só é possível se houver uma permissão a uma renovação do julgamento social das pessoas.
Assim, analisaremos a compatibilidade do direito ao esquecimento com o ordenamento jurídico brasileiro, partindo da premissa de que esse é vital para a garantia dos direitos da personalidade garantidos na Constituição Federal, bem como contraria alguns direitos igualmente valiosos.
A noção da existência de prerrogativas inerentes à condição de humano foi um grande avanço da doutrina jurídica, tanto no viés legal quanto jurisprudencial. Os direitos da personalidade são direitos que, apesar de serem desprovidos de cunho econômico, se mostraram merecedores da guarida legal, e protetores das pessoas pelo simples fato de sua existência humana.
Estima-se que a sua origem se deu no direito natural – no pré-jurídico. Todavia, o reconhecimento formal dos direitos da personalidade se deu com a Declaração dos Direitos do Homem, em 1789, o que nos dá uma noção de que essa discussão sobre direitos do homem em razão de sua própria natureza é recente.
Segundo Carlos Roberto Gonçalves,
No âmbito do direito privado sua evolução tem-se mostrado lenta. No Brasil, têm sido tutelados em leis especiais e principalmente na jurisprudência, a quem coube a tarefa de desenvolver a proteção à intimidade do ser humano, sua imagem, seu nome, seu corpo e sua dignidade.
O grande passo para a proteção dos direitos da personalidade366 foi dado com o advento da Constituição Federal de 1988, que expressamente a eles se refere no art. 5º, X[1].
Assim, destaca-se o direito à vida, liberdade, nome, disposição do próprio corpo, à imagem e honra. E, nesse sentido é proclamado pela Constituição Federal, em seu art. 5º:
Art. 5º Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes: (...)
X - são invioláveis a intimidade, a vida privada, a honra e a imagem das pessoas, assegurado o direito a indenização pelo dano material ou moral decorrente de sua violação;
O código civil, por sua vez, dedicou um capítulo aos direitos da personalidade, mas, tendo em vista a complexidade da matéria e sua interligação com a noção de moral e ética, os enunciados são vagos, com pouco rigor e clareza, até para se encaixar nos moldes sociais à medida de sua evolução, pela possibilidade de interpretações a serem dadas pela jurisprudência.
Mas, conceituando-os, Maria Helena Diniz afirma que os direitos da personalidade são:
direitos subjetivos da pessoa de defender o que lhe é próprio, ou seja, a sua integridade física (vida, alimentos, próprio corpo vivo ou morto, corpo alheio vivo ou morto, partes separadas do corpo vivo ou morto); a sua integridade intelectual (liberdade de pensamento, autoria científica, artística e literária); e a sua integridade moral (honra, recato, segredo profissional e doméstico, identidade pessoal, familiar e social) [2].
Nos termos da codificação civilista, os direitos da personalidade são intransmissíveis e irrenunciáveis, não podendo seu exercício sofrer limitação voluntária. Mas, a doutrina entende que eles também são absolutos, ilimitados, imprescritíveis, impenhoráveis, inexpropriáveis e vitalícios.
As duas primeiras características denotam a sua indisponibilidade, que não é absoluta, mas relativa, tendo em vista que pode sofrer limitação voluntária, desde que não seja permanente nem geral. Haverá de ser segundo as intenções da própria pessoa, específico sobre o ato e temporário. Daí se afirmar que pode haver a doação de órgãos para fins de transplante.
Apesar de intransmissíveis e, portanto, personalíssimos, a pretensão de exigir reparação pecuniária pelo seu ferimento em caso de ofensa é transmitida aos sucessores. Isso foi positivado no art. 943 do Código Civil, e, sumulado pelo Superior Tribunal de Justiça[3]. Isso é possível porque o direito de ação por dano moral tem natureza patrimonial, em que pese o direito ferido não o tenha.
São imprescritíveis porque não há perda do direito pelo não uso nem pelo decurso do tempo. Todavia, assim como relativizamos anteriormente, aqui há uma ressalva: ação de dano moral, que consista na lesão à direito da personalidade se submete aos prazos prescricionais previstos em lei, isso porque, conforme dito, há natureza patrimonial na reparação.
Diz-se que os direitos da personalidade são absolutos porque são oponíveis erga omnes, impondo dever de abstração à coletividade que os respeite, e gerais porque, conforme já dito, são inerentes a toda pessoa humana.
O rol de direitos da personalidade é ilimitado, não podendo haver a expectativa de que eventual código conseguisse prevê-los taxativamente. Tanto é que novos direitos se percebem à medida que a sociedade evolui, sendo seguida pela doutrina jurídica.
Nesse sentido, Carlos Roberto Gonçalves[4] afirma:
O progresso econômico-social e científico poderá dar origem também, no futuro, a outras hipóteses, a serem tipificadas em norma. Na atualidade, devido aos avanços científicos e tecnológicos (Internet, clonagem, imagem virtual, monitoramento por satélite, acesso imediato a notícias e manipulação da imagem e voz por computador), a personalidade passa a sofrer novas ameaças que precisarão ser enfrentadas, com regulamentação da sua proteção. O direito de personalidade vai, pois, além das prerrogativas catalogadas na Constituição e na legislação ordinária.
Nessa senda, o código civil não previu um rol taxativo. E, à medida em que surgem direitos, questiona-se se são direitos da personalidade. Nesse sentido, temos o direito ao esquecimento e a dúvida quanto ao seu cabimento no ordenamento jurídico brasileiro.
Também chamado de direito de estar só, de ser deixado em paz ou right to be let alone, o que se tem é um desdobramento do direito à vida privada, intimidade e honra, bem como consequência legítima do princípio da dignidade da pessoa humana, norteador do ordenamento jurídico.
No âmbito de uma sociedade que resiste a ressocializar presos que já cumpriram a pena imposta pelo Estado, o direito ao esquecimento surge como o direito de uma pessoa poder barrar a publicidade de um fato que, em que pese verídico, aconteceu remotamente e, por isso, não mais merece ser exposto ao público, trazendo-lhe sofrimento e impedindo a sua socialização.
Isso, obviamente coloca em xeque alguns outros direitos fundamentais positivados, notadamente o da liberdade de expressão e informação, na medida em que, para proteger o indivíduo de ser constantemente submetido ao crivo social por algo remoto, tolhe-se o direito da imprensa de publicar uma informação verdadeira.
Segundo Anderson Schreiber[5]:
(...) o direito ao esquecimento é, portanto, um direito (a) exercido necessariamente por uma pessoa humana; (b) em face de agentes públicos ou privados que tenham a aptidão fática de promover representações daquela pessoa sobre a esfera pública (opinião social); incluindo veículos de imprensa, emissoras de TV, fornecedores de serviços de busca na internet etc.; (c) em oposição a uma recordação opressiva dos fatos, assim entendida a recordação que se caracteriza, a um só tempo, por ser desatual e recair sobre aspecto sensível da personalidade, comprometendo a plena realização da identidade daquela pessoa humana, ao apresenta-la sob falsas luzes à sociedade.
Nesse sentido, o STJ, em sua VI jornada de direito civil, entendeu que a tutela da dignidade da pessoa humana na sociedade da informação inclui o direito ao esquecimento.
Um caso bastante conhecido é o caso Lebach, que ocorreu na Alemanha. Quatro soldados alemães foram assassinados em uma cidade alemã, e três réus foram condenados: dois à prisão perpétua e um a seis anos de reclusão. Esse cumpriu devidamente a sua pena e, finda, haveria de retornar ao convívio social.
Só que às vésperas de deixar a cadeia, uma emissora de televisão decidiu exibir um programa especial sobre o crime, mostrando fotos dos condenados. O apenado, então, entrou com uma ação inibitória para impedir que o programa fosse televisionado.
A Corte alemã, então, decidiu que a proteção constitucional aos direitos da personalidade não permite que a imprensa explore eternamente a pessoa do criminoso, adentrando em sua vida privada. Num embate principiológico, o que a Corte entendeu foi pela prevalência do direito da personalidade em detrimento da liberdade de informação, isso em vista da ausência de um interesse atual na informação, eis que o crime já havia sido punido.
Tendo em vista, inclusive, que o sistema penal serve para, em tese, haver a retribuição de um ilícito com a ressocialização do apenado ao seio social posterior, a veiculação acabaria por tolher de eficácia a pena aplicada. Isso porque haveria um lembrete ao meio social do indivíduo que, anos antes, cometeu um ilícito, atrapalhando (ou inviabilizando) sua ressocialização, o que acabaria por culminar na manutenção da pessoa como um criminoso.
A ressocialização é indispensável à licitude das condutas do indivíduo quando solto. Até porque permanecendo isolado, não haverá outra saída que não permanecer na delinquência. Assim, na Alemanha, a emissora foi proibida de exibir o documentário.
A “sociedade da informação” ganha ainda mais importância com a internet, eis que, com a rede mundial de computadores, uma publicação de uma notícia é praticamente eternizada – estará lá sempre disponível para quem pesquisar seus termos, com todo o arcabouço midiático aplicável, e facilmente encontrável. Isso foi bem explicado por Isabella Frajhof[6]:
Esta memória social gerada pela internet garante que toda e qualquer informação compartilhada na rede esteja constantemente disponível. É como se a primeira página do jornal de ontem, com a manchete perturbadora, a imagem constrangedora, com as chamadas para as principais notícias do dia, que hoje estaria “forrando a gaiola do papagaio”, continuassem a ser a primeira página do jornal de todos os dias, acessível a qualquer momento e a qualquer tempo. Basta um clique, e menos de dez segundos, que qualquer conteúdo se torna acessível em uma pesquisa na internet. Considerando que mais de 80% dos adultos (entre 30 e 49 anos) preferem acessar notícias disponibilizadas online, e que no Brasil 48% das pessoas afirmam utilizar a internet como principal canal para acessar notícias, conclui-se que a internet transformou substancialmente o modo pelo qual as pessoas se informam, adquirem e acessam conhecimento.
Inclusive, em casos paralelos ao supramencionado, tem-se ganhado muita recorrência séries documentais sobre crimes antigos que se passaram no Brasil. Esses produzidos e veiculados nas maiores redes de streaming, o que acaba por dar repercussão para acontecimentos que não eram mais tão lembrados pela sociedade. E cujos criminosos estão em liberdade há pouco tempo.
Um esclarecimento se faz necessário: em que pese o exemplo dado na seara penal, quanto aos antecedentes criminais, trata-se de mero recurso didático. O direito ao esquecimento e sua discussão foram ampliados de tal maneira que hoje em dia se aplica em diversos outros âmbitos, como aspectos da vida de uma pessoa que ela mesma quer que sejam esquecidos.
Incide recorrentemente quanto a pessoas famosas, que no passado tenham feito obras ou atos dos quais não mais quer ser constantemente lembrado, sendo de se supor o direito de travar a proliferação de informação em prol da passagem do tempo, tendo em vista o potencial de que sejam causados prejuízos profissionais ou mesmo incômodos pessoais.
Seria o caso de uma pessoa que no passado fez uma obra da qual não se orgulhe e que, em virtude da passagem do tempo, não mais quer ver sua carreira profissional atrelada àquela. Pode até ser o caso dessa obra causar algum prejuízo financeiro ao seu autor, quando da mudança de profissão ou ramo.
Tem-se casos até mesmo de pessoas famosas que decidiram não mais o serem. Direito esse que deve ser preservado pelo ordenamento jurídico, e posto em xeque caso seja permitido veicular notícias desprovidas de atualidade. Foi o que aconteceu com a atriz Ana Paula Ambrósio que, vivendo o auge de sua carreira, decidiu largar a fama.
Garantir a decisão do indivíduo de se autodeterminar há de incluir o direito de não ser exposto a reportagens, entrevistas ou qualquer outra maneira de exposição pública que culmine na impossibilidade de ser a pessoa que quer ser, no caso, uma pessoa anônima. Havendo legitimidade em seu pleito e vontade.
A discussão quanto à aceitação desse direito se dá porque garanti-lo significa atenuar a liberdade de expressão e de imprensa, de índole igualmente constitucional, garantidas na CF em seu artigo 5º:
Art. 5º. (...) VI - é inviolável a liberdade de consciência e de crença, sendo assegurado o livre exercício dos cultos religiosos e garantida, na forma da lei, a proteção aos locais de culto e a suas liturgias; (...)
IX - é livre a expressão da atividade intelectual, artística, científica e de comunicação, independentemente de censura ou licença;
Ademais, o direito de atenuar a publicação de uma informação acaba por ser um desprestígio à história, na medida em que o direito ao esquecimento contraria o direito à memória da sociedade. Sendo essa um vetor do crescimento social, corroborado pela máxima de “aprender com os erros do passado nos permite não os repetir”.
Basta pensar nos casos de crimes que mudaram o curso da história, bem como possibilitaram a inovação da ciência criminal, e que, com a invocação em tela, acabariam por privar a proliferação de informações de inegável valor histórico, com interesse público subjacente. Esses, inclusive, permanecem presente mesmo com o decurso do tempo.
Um correto estudo do passado pressupõe, infelizmente, a relativização da privacidade de alguns dos envolvidos, como é o caso de crimes históricos, que determina a sua correta publicidade. Mas isso demanda uma análise casuística, até porque não são todos os acontecimentos que são históricos.
Por isso é que se diz que, ainda que se prestigie o direito ao esquecimento, seu deferimento não pode se dar de maneira genérica, devendo haver retida análise caso a caso, com ponderação dos direitos envolvidos concretamente. Nos termos da jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça:
Existindo evidente interesse social no cultivo à memória histórica e coletiva de delito notório, incabível o acolhimento da tese do direito ao esquecimento para proibir qualquer veiculação futura de matérias jornalísticas relacionadas ao fato criminoso cuja pena já se encontra cumprida.
O chamado direito ao esquecimento, apesar de ser reconhecido pela jurisprudência, não possui caráter absoluto.
Em caso de evidente interesse social no cultivo à memória histórica e coletiva de delito notório, não se pode proibir a veiculação de matérias jornalísticas relacionados com o fato criminoso, sob pena de configuração de censura prévia, vedada pelo ordenamento jurídico pátrio. Em tal situação, não se aplica o direito ao esquecimento[7].
Quando da aplicação do direito, o STJ afirmou, inclusive, que a guarida desse direito é reforçada pelo artigo 748 do Código de Processo Penal, que prevê a possibilidade de não serem mencionadas condenações prévias na folha de antecedentes do reabilitado, vejamos:
Art. 748. A condenação ou condenações anteriores não serão mencionadas na folha de antecedentes do reabilitado, nem em certidão extraída dos livros do juízo, salvo quando requisitadas por juiz criminal.
Por uma atividade hermenêutica tem-se que, se o ordenamento garante aos condenados que já cumpriram penas o direito de sigilo dos antecedentes e registro na identificação, é de se supor que haja garantia do mesmo direito aos que absolvidos foram de permanecer com algum estigma social. Deve ser assegurado o direito de serem esquecidos aos que ainda menos fizeram. Quem pode o mais, há de poder o menos, assegurando-se o direito aqui defendido a todos (condenados, absolvidos e até não investigados).
Mas, a internet facilita a leitura de fatos veiculados há anos, sem que haja uma republicação do conteúdo por parte dos portais de notícia. Razão pela qual, em época de globalização é quase impossível salvaguardar o direito ao esquecimento. Ainda que haja uma decisão nesse sentido, da retirada de uma publicação prévia, não há como retirar do meio cibernético em países que não mantém nem ao menos tratados internacionais de cooperação judiciária.
Nessa senda, o Supremo Tribunal Federal foi instado a se manifestar, tendo decidido pela incompatibilidade do direito ao esquecimento com o ordenamento jurídico brasileiro, colocando uma pá de cal na discussão aqui trazida.
Inicialmente, a Suprema Corte começou por delimitar direito ao esquecimento como sendo a pretensão do indivíduo de impedir a divulgação de fatos ou dados verídicos, licitamente obtidos, e, pelo transcurso do tempo, se tornado descontextualizados ou desprovidos de interesse público subjacente a nova publicação.
A conceituação é mister. Isso porque o direito ao esquecimento detém uma gama de significados. E, havendo esse necessário recorte, o que se determina pela incompatibilidade é unicamente o direito ao esquecimento nesse significado específico. Não se pode querer alegar que não é compatível o direito ao esquecimento quando da publicação de um fato inverídico, por exemplo.
Entendido como tal, não pode ser compatível com a Constituição Federal, no entendimento do STF, que será explicado adiante. Pelo seu teor didático, é mister trazer a ementa do julgado:
Recurso extraordinário com repercussão geral. Caso Aída Curi. Direito ao esquecimento. Incompatibilidade com a ordem constitucional. Recurso extraordinário não provido. 1. Recurso extraordinário interposto em face de acórdão por meio do qual a Décima Quinta Câmara Cível do Tribunal de Justiça do Estado do Rio de Janeiro negou provimento a apelação em ação indenizatória que objetivava a compensação pecuniária e a reparação material em razão do uso não autorizado da imagem da falecida irmã dos autores, Aída Curi, no programa Linha Direta: Justiça. 2. Os precedentes mais longínquos apontados no debate sobre o chamado direito ao esquecimento passaram ao largo do direito autônomo ao esmaecimento de fatos, dados ou notícias pela passagem do tempo, tendo os julgadores se valido essencialmente de institutos jurídicos hoje bastante consolidados. A utilização de expressões que remetem a alguma modalidade de direito a reclusão ou recolhimento, como droit a l’oubli ou right to be let alone, foi aplicada de forma discreta e muito pontual, com significativa menção, ademais, nas razões de decidir, a direitos da personalidade/privacidade. Já na contemporaneidade, campo mais fértil ao trato do tema pelo advento da sociedade digital, o nominado direito ao esquecimento adquiriu roupagem diversa, sobretudo após o julgamento do chamado Caso González pelo Tribunal de Justiça Europeia, associando-se o problema do esquecimento ao tratamento e à conservação de informações pessoais na internet. 3. Em que pese a existência de vertentes diversas que atribuem significados distintos à expressão direito ao esquecimento, é possível identificar elementos essenciais nas diversas invocações, a partir dos quais se torna possível nominar o direito ao esquecimento como a pretensão apta a impedir a divulgação, seja em plataformas tradicionais ou virtuais, de fatos ou dados verídicos e licitamente obtidos, mas que, em razão da passagem do tempo, teriam se tornado descontextualizados ou destituídos de interesse público relevante. 4. O ordenamento jurídico brasileiro possui expressas e pontuais previsões em que se admite, sob condições específicas, o decurso do tempo como razão para supressão de dados ou informações, em circunstâncias que não configuram, todavia, a pretensão ao direito ao esquecimento. Elas se relacionam com o efeito temporal, mas não consagram um direito a que os sujeitos não sejam confrontados quanto às informações do passado, de modo que eventuais notícias sobre esses sujeitos – publicadas ao tempo em que os dados e as informações estiveram acessíveis – não são alcançadas pelo efeito de ocultamento. Elas permanecem passíveis de circulação se os dados nelas contidos tiverem sido, a seu tempo, licitamente obtidos e tratados. Isso porque a passagem do tempo, por si só, não tem o condão de transmutar uma publicação ou um dado nela contido de lícito para ilícito. 5. A previsão ou aplicação do direito ao esquecimento afronta a liberdade de expressão. Um comando jurídico que eleja a passagem do tempo como restrição à divulgação de informação verdadeira, licitamente obtida e com adequado tratamento dos dados nela inseridos, precisa estar previsto em lei, de modo pontual, clarividente e sem anulação da liberdade de expressão. Ele não pode, ademais, ser fruto apenas de ponderação judicial. 6. O caso concreto se refere ao programa televisivo Linha Direta: Justiça, que, revisitando alguns crimes que abalaram o Brasil, apresentou, dentre alguns casos verídicos que envolviam vítimas de violência contra a mulher, objetos de farta documentação social e jornalística, o caso de Aida Curi, cujos irmãos são autores da ação que deu origem ao presente recurso. Não cabe a aplicação do direito ao esquecimento a esse caso, tendo em vista que a exibição do referido programa não incorreu em afronta ao nome, à imagem, à vida privada da vítima ou de seus familiares. Recurso extraordinário não provido. 8. Fixa-se a seguinte tese: “É incompatível com a Constituição a ideia de um direito ao esquecimento, assim entendido como o poder de obstar, em razão da passagem do tempo, a divulgação de fatos ou dados verídicos e licitamente obtidos e publicados em meios de comunicação social analógicos ou digitais. Eventuais excessos ou abusos no exercício da liberdade de expressão e de informação devem ser analisados caso a caso, a partir dos parâmetros constitucionais - especialmente os relativos à proteção da honra, da imagem, da privacidade e da personalidade em geral - e das expressas e específicas previsões legais nos âmbitos penal e cível”[8].
Em suma, apesar do ordenamento jurídico pátrio estar cheio de previsões que se prestem a proteger os direitos da personalidade, inclusive dando-lhes arcabouço jurídico à efetiva aplicação na dignidade da pessoa humana, não se pode tolerar que um direito (ao esquecimento) tolha de maneira prévia outro, ainda mais o direito à liberdade de expressão.
Válido lembrar que a Constituição de 1988, conhecida como cidadã tem a liberdade de expressão como um de seus vetores máximos, até pelo contexto em que foi promulgada, sendo a liberdade de expressar-se um pilar da democracia – de valor inenarrável ao ordenamento.
Assim, entender pela restrição à liberdade de expressão em situações legalmente definidas em que há afetação de outros direitos fundamentais seria compatível com o ordenamento. Mas, não se pode dizer o mesmo do reconhecimento do direito ao esquecimento, eis que seria um pretenso e prévio direito de se ver livre de dados e fatos por pura descontextualização simplesmente pelo transcurso do tempo, sem um dispositivo legal que lhe preveja expressamente.
Não se pode tolerar que uma presunção de que a passagem do tempo restringisse o direito à divulgação de informação verdadeira, obtida de acordo com os ditames legais. Outro panorama seria se houvesse um comando jurídico nesse sentido, tendo sido esse o maior fator da negativa do STF. Não havendo lei que o preveja, não se pode reconhecer o direito ao esquecimento pelo caminho judicial, sob pena de restringir um direito ilegitimamente. Mais um reforço do princípio democrático, na máxima da legalidade.
Mas, não se deixou esse direito da personalidade ao léu: garante-se a proteção pela via de responsabilização contra o excesso, eis que informações inverídicas, ilicitamente obtidas ou decorrentes de abuso a liberdade de expressão poderão submeter seus autores à responsabilização judicial. Proteção essa que se estende ao âmbito cível e penal.
O que se deve ter em mente é que no sopesamento feito pelo STF, a liberdade de expressão acabou por implicar a incompatibilidade do direito ao esquecimento no ordenamento jurídico pátrio.
Considerações Finais
Isso posto, concluir pela incompatibilidade parece mais acertado. A democracia, tal como pensada, impõe o princípio da legalidade. Isso porque as leis são fabricadas pelo parlamento, que são legitimamente elegidos pelo detentor do poder político, o povo.
Assim, através do princípio da legalidade, e tendo em vista que a feitura das leis é tarefa que compete ao parlamento, o povo apenas se obriga ao posto pelos que legitimamente o colocaram lá.
Ato contínuo, a essência do entendimento da Corte pela incompatibilidade é exatamente a ausência de lei que preveja essa indevida restrição da liberdade de expressão.
Não seria legítima a atuação do judiciário que criasse aos veículos de informação um dever negativo unicamente no sopesamento com os direitos da personalidade de outrem – até porque a liberdade de se expressar também é um direito de guarida constitucional.
Não se trata de uma última palavra absoluta. Isso em vista que o decidido pelo STF em sede de controle de constitucionalidade escapa ao entendimento de dois órgãos: do legislativo e da própria Suprema Corte. Assim, pode-se pensar na superveniência de uma reação legislativa que torne legítimo o direito ao esquecimento.
Essa reação, mais conhecida como backlash, é a resposta do parlamento ao entendimento jurisprudencial – uma superação do entendimento por dispositivo legal, cuja interpretação lhe compete. Mas, é válido lembrar que nenhuma interpretação é legítima quando contraria o texto legal.
Assim, apesar da conclusão ser pela incompatibilidade, essa é variável, podendo o direito ao esquecimento vir a ser compatibilizado no futuro. Mister se faz, assim, analisar a jurisprudência vindoura da Suprema Corte.
Referências
BRASIL. SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL. Plenário. RE 1010606/RJ, Rel. Min. Dias Toffoli, julgado em 11/2/2021 (Repercussão Geral – Tema 786) (Info 1005).
______. SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA. Corte Especial. Julgamento em 02/12/2020. RSSTJ vol. 49 p. 11. DJe 07/12/2020.
______. SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA. 3ª Turma. REsp 1.736.803-RJ, Rel. Min. Ricardo Villas Bôas Cueva, julgado em 28/04/2020 (Info 670).
FRAJHOF, Isabella Z. O direito ao esquecimento na internet: conceito, aplicação e controvérsias. São Paulo: Almedina, 2019.
GONÇALVES, Carlos Roberto. Direito Civil Brasileiro – Parte Geral. 20. ed. v. 1. São Paulo: SaraivaJur, 2022.
DINIZ. Maria Helena. Curso de direito civil brasileiro. 37. ed. São Paulo: Saraiva, 2020. v. 1.
SCHREIBER, Anderson. Direito ao esquecimento e proteção de dados pessoais na Lei 13.709/2018. In: TEPEDINO, G; FRAZÃO, A; OLIVA, M.D. Lei geral de proteção de dados pessoais e suas repercussões no direito brasileiro. São Paulo: Thomson Reuters Brasil, 2019, p. 376.
[1] GONÇALVES, Carlos Roberto. Direito Civil Brasileiro – Parte Geral. 20. ed. v. 1. São Paulo: SaraivaJur, 2022. p. 201.
[2] DINIZ, Maria Helena. Curso de direito civil brasileiro. 37. ed. São Paulo: Saraiva, 2020. v. 1, p. 153
[3] Súmula 642: O direito à indenização por danos morais transmite-se com o falecimento do titular, possuindo os herdeiros da vítima legitimidade ativa para ajuizar ou prosseguir a ação indenizatória. BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. Corte Especial. Julgamento em 02/12/2020. RSSTJ vol. 49 p. 11. DJe 07/12/2020.
[4] GONÇALVES, Carlos Roberto. Direito Civil Brasileiro – Parte Geral. 20. ed. v. 1. São Paulo: SaraivaJur, 2022. p. 204.
[5] SCHREIBER, Anderson. Direito ao esquecimento e proteção de dados pessoais na Lei 13.709/2018. In: TEPEDINO, G; FRAZÃO, A; OLIVA, M.D. Lei geral de proteção de dados pessoais e suas repercussões no direito brasileiro. São Paulo: Thomson Reuters Brasil, 2019, p. 376.
[6] FRAJHOF, Isabella Z. O direito ao esquecimento na internet: conceito, aplicação e controvérsias. São Paulo: Almedina, 2019. p. 19.
[7] BRASIL. SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA. 3ª Turma. REsp 1.736.803-RJ, Rel. Min. Ricardo Villas Bôas Cueva, julgado em 28/04/2020 (Info 670).
[8] BRASIL. SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL. Plenário. RE 1010606/RJ, Rel. Min. Dias Toffoli, julgado em 11/2/2021 (Repercussão Geral – Tema 786) (Info 1005).
Bacharel em Direito pela Universidade Federal da Paraíba (UFPB). Advogado. Pós-graduado em Direito Tributário e Direito Processual Civil pela Universidade Cândido Mendes (UCAM).
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: FREIRE, Pedro Borges Coelho de Miranda. Right to be let alone e a incompatibilidade com o ordenamento jurídico brasileiro: um desdobramento do princípio da legalidade Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 20 fev 2023, 04:44. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/artigos/61084/right-to-be-let-alone-e-a-incompatibilidade-com-o-ordenamento-jurdico-brasileiro-um-desdobramento-do-princpio-da-legalidade. Acesso em: 23 nov 2024.
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