RESUMO: O presente trabalho objetiva abordar os reflexos do pensamento contemporâneo e da nova doutrina da hermenêutica constitucional no bojo do controle difuso de constitucionalidade, implicando no tratamento temperado dado aos efeitos temporais da decisão jurisdicional, impactando sobremaneira na visão do Supremo Tribunal Federal enquanto intérprete máximo da ordem constitucional. O resultado da confluência entre a fonte constitucional e elementos externos a seu texto, como a ordem social, política e econômica, culminou na adoção mitigada da teoria da nulidade das normas inconstitucionais trazendo um novo olhar sobre a possibilidade de modulação dos efeitos das decisões proferidas em tal circunstância. No que tange aos efeitos temporais, visa-se conferir a legítima proteção a situações consolidadas pelo tempo, cuja decisão com eficácia ex tunc não poderia prosperar diante das peculiaridades do caso concreto, ponderando-se entre os valores fundamentais em jogo e conferindo um peso maior à segurança jurídica, boa-fé, justiça social, o que torna cada vez mais tênue a linha distintiva entre controle difuso e concentrado.
Palavras-chave: controle; difuso; efeitos temporais; modulação; ponderação de valores; segurança jurídica; boa-fé; justiça
O contexto do Estado Absolutista Teocrático, marcado pelo Poder Ilimitado do Soberano e no “direito divino dos reis”, faz eclodir no seio social – na massa popular majoritária e desfavorecida - o sentimento sobre a necessidade de fixação de limites ao poder do governante, com vistas a conter abusos na atuação estatal através da previsão de garantias fundamentais aos indivíduos, impondo, por conseguinte, deveres de não intervenção do Estado na esfera individual. Neste cenário, exsurge o constitucionalismo moderno caracterizado pelo surgimento das primeiras constituições escritas e rígidas da história, com ênfase na constituição norte-americana promulgada em 1787 e a francesa de 1789 dentro do modelo de Estado de Direito Liberal, lastreado na ideia da separação de poderes e na garantia de direitos fundamentais individuais de primeira dimensão - direitos civis e políticos. Com a crescente desigualdade econômica-social instalada pela postura absenteísta de governança, é inaugurando um novo ciclo constitucional, marcado pela promulgação de Constituições do Estado Social de Direito ou Welfare state, destacando-se a Constituição alemã de Weimar em 1919 e mexicana de 1917, assegurando, a par do rol das prerrogativas fundamentais negativas (liberdades públicas), um conjunto de direitos de prestações positivas – direitos sociais de segunda dimensão, fundada no valor da igualdade material, com vistas a exigir das autoridades públicas uma atuação intervencionista nas relações econômicas e sociais, adotando-se uma postura estatal assistencialista. Com as sucessivas guerras mundiais e o agravamento da desigualdade fática social e econômica durante a primeira metade do século XX, a crise humanitária, instalada a nível global, faz emergir um novo modelo de Estado Constitucional, no movimento cunhado de Constitucionalismo Contemporâneo ou Neoconstitucionalismo, que tem como marcos, no plano teórico, o reconhecimento da força normativa da Constituição, a expansão da jurisdição constitucional e o desenvolvimento de uma nova dogmática da interpretação constitucional.
Assim, enquanto norma de grau hierárquico máximo e fundamento de validade de todas as demais espécies normativas do ordenamento jurídico, são aprimorados e ampliados os mecanismos de controle de constitucionalidade dos atos hierarquicamente inferiores, tornando-se crescente o rol de instrumentos de fiscalização do cumprimento do bloco de constitucionalidade.
Com o reconhecimento da superioridade jurídica da Constituição, tem-se, por consequência lógica, a impossibilidade de permanência válida no ordenamento de qualquer ato normativo inferior que ofenda formal (análise procedimental) e/ou materialmente (análise de conteúdo) o texto constitucional, contexto em que exsurge a jurisdição constitucional para atestar e aferir a validade/invalidade da norma impugnada, declarando-a compatível ou incompatível com a Lei Suprema.
Neste cenário, o mecanismo do controle de constitucionalidade destaca-se como instrumento importante para invalidar e paralisar a eficácia de atos normativos que afrontam o texto constitucional e, no Brasil existe, na forma incidental, desde a primeira Constituição republicana de 1891, sendo ampliado por meio da previsão da ação genérica de controle abstrato e concentrado - a atual ADI - por meio da EC 16/65 até sua expansão e aperfeiçoamento no modelo consagrado pela Constituição da República Federativa de 1988.
Neste ponto, o Constituinte Originário conferiu ao Supremo Tribunal Federal a função de intérprete máximo da Carta Constitucional, competindo-lhe o exercício da jurisdição constitucional pelas vias difusa ou abstrata. Em sede de controle difuso, caberá a fiscalização incidental do ato impugnado no bojo das ações de sua competência originária, em recurso ordinário e, especialmente, pela via do recurso extraordinário (art. 102, incisos I a III da CRFB/88).
Desse modo, alicerçado no contexto histórico do constitucionalismo democrático pós-guerra, é que se vislumbra uma releitura da hermenêutica constitucional, notadamente pela compreensão contemporânea de que a norma jurídica é, na verdade, o produto da interpretação, e não o seu objeto, considerando-a como fruto da interação do texto abstrato – enunciado normativo – e da realidade circundante.
Além da mudança de compreensão sobre o conceito de norma jurídica, soma-se uma nova metodologia empregada na construção do texto constitucional objetivando alcançar situações não expressamente contempladas em seu bojo. Com efeito, por meio da utilização de termos vagos e de cláusulas gerais, como igualdade, justiça, segurança ou dignidade humana, o Constituinte permite ao intérprete da Lei Fundamental construir conclusões para além do texto e dos fatos externos nele considerados.
Neste contexto, ensina Luís Roberto Barroso na obra “Curso de Direito Constitucional Contemporâneo - Os conceitos Fundamentais”, 10th Edition. Saraiva Jur, 2022, página 96, sobre as peculiaridades de interpretação das normas constitucionais:
a) Quanto ao seu status jurídico: as normas constitucionais desfrutam de superioridade jurídica em relação às demais normas do sistema, ditando o seu modo de produção e estabelecendo limites ao seu conteúdo.
b) Quanto à natureza da linguagem: as normas constitucionais se apresentam, com frequência, com a textura aberta e a vagueza dos princípios e dos conceitos jurídicos indeterminados, circunstância que permite sua comunicação com a realidade e a evolução do seu sentido.
c) Quanto ao seu objeto: as normas constitucionais, do ponto de vista material, destinam-se tipicamente a (i) organizar o poder político (normas constitucionais de organização), (ii) definir os direitos fundamentais (normas constitucionais definidoras de direitos) e (iii) indicar valores e fins públicos (normas constitucionais programáticas). Sua estrutura normativa, portanto, não é a das normas de conduta em geral, inclusive pelas peculiaridades que dominam a compreensão e aplicação dos direitos fundamentais das diferentes gerações.
d) Quanto ao seu caráter político: a Constituição é o documento que faz a travessia entre o poder constituinte originário – fato político – e a ordem instituída, que é um fenômeno jurídico. Cabe ao direito constitucional o enquadramento jurídico dos fatos políticos. Embora a interpretação constitucional não possa e não deva romper as suas amarras jurídicas, deve ela ser sensível à convivência harmônica entre os Poderes, aos efeitos simbólicos dos pronunciamentos do Supremo Tribunal Federal e aos limites e possibilidades da atuação judicial.
Sob essa nova perspectiva interpretativa, exsurge o temperamento dos efeitos da decisão pela via do controle difuso-incidental como a saída para a proteção de valores constitucionais relevantes, preferindo-se, assim, prestigiar, no caso concreto, uma série de interesses/garantias fundamentais em detrimento da aplicação da teoria tradicional da nulidade.
Neste contexto, a técnica da ponderação, aplicada às situações que envolvam colisões de princípios ou de direitos fundamentais, foi incorporada pelo Supremo Tribunal Federal para prolação de decisões, sobretudo em casos difíceis, inclusive no cenário das sentenças declaratórias de inconstitucionalidade proferidas em sede de controle difuso na via incidental.
Em paralelo, a aplicação da técnica da modulação temporal dos efeitos decisórios passou a ser expressamente prevista com advento da Lei 9.868/99, porém, voltada especificamente para o controle de constitucionalidade abstrato pela via da propositura de ações genéricas/diretas objetivando, especificamente, a análise da compatibilidade da norma infraconstitucional com o parâmetro (a Constituição).
Assim, verifica-se que, na atualidade, a jurisprudência do Supremo Tribunal Federal consagrou a possibilidade de modulação dos efeitos decisórios na via incidental, ora com base na ponderação dos interesses, ora outra alicerçado na aplicação analógica do diploma infraconstitucional (art. 27, da Lei 9.868/99), tornando cada vez mais tênue a distinção dos modelos difuso ou abstrato.
1 O CONTROLE DE CONSTITUCIONALIDADE NO ORDENAMENTO JURÍDICO BRASILEIRO
1.1 A SUPREMACIA DA CONSTITUIÇÃO FEDERAL DE 1.988
A República Federativa do Brasil, conforme preleciona o art. 1º da Lex Fundamentalis, constitui-se em um Estado Democrático de Direito. A principal marca desse modelo estatal está arraigada em sua origem, isto é, nas forças responsáveis pelo surgimento da Carta Política, visto que ela é fruto da manifestação legítima da vontade do povo – legitimidade democrática – enquanto titular do Poder Constituinte, consagrando-se a ideia de soberania popular em detrimento de um modelo de Estado de regime autoritário.
Com fulcro na ideia de uma superioridade jurídica, adota-se como processo de alteração das normas constitucionais um modelo rígido, caracterizado pela previsão de um processo legislativo mais solene com quórum mais qualificado em comparação com o processo de alteração das normas infraconstitucionais. Neste contexto, a ideia de supremacia da Constituição balizará o modelo de fiscalização dos atos normativos inferiores, hipótese em que a constatação de incompatibilidade vertical do ato jurídico de grau inferior, culminará na declaração de sua nulidade (DA SILVA, 2006).
1.2 A JURISDIÇÃO CONSTITUCIONAL
A jurisdição constitucional brasileira, no que diz respeito ao sistema de controle de constitucionalidade, foi aprimorada com o advento da Constituição de 1988.
O ordenamento pátrio vigente adotou no que concerne à natureza do Órgão responsável pelo exercício do controle de constitucionalidade repressivo, o sistema jurisdicional, à medida que é função precípua (mas não exclusiva) do Poder Judiciário reconhecer a incompatibilidade de lei ou ato normativo com a Constituição Federal. Assim, pode-se dizer que, no Brasil, a última palavra quanto à inconstitucionalidade de uma norma infraconstitucional, será dada na via jurisdicional quando acionada (MORAES, 2007).
Em nosso ordenamento jurídico fala-se na existência de um controle misto de constitucionalidade (difuso e concentrado), conforme entendimento do Supremo Tribunal Federal na ADI 74-DF, Rel. Min. Celso de Mello, do ano de 1992. A competência para desempenhar a jurisdição difusa ou norte-americana é conferida a todos os órgãos do Poder Judiciário. Por seu turno, o controle concentrado ou sistema austríaco, é realizado apenas por determinado Órgão Jurisdicional. Daí o seu nome, ou seja, é concentrado porque a competência (originária) para exercer o controle concentra-se em um só órgão ou em um número limitado de órgãos (LENZA, 2012).
Sob outro ângulo, em relação à finalidade do controle, no sistema pátrio, o controle judiciário de constitucionalidade pode ser realizado por duas vias: via de exceção ou incidental e via de ação ou principal (MORAES, 2007).
Ademais, Barroso (2012), ao conjugar a classificação quanto à competência do órgão jurisdicional, bem como à finalidade, conclui que a regra, no Brasil, é o controle difuso exercido pela via incidental, ao passo que o controle concentrado é exercido pela via principal.
A Constituição da República de 1891 foi a grande responsável pela introdução do controle de constitucionalidade no Brasil, inserindo no ordenamento pátrio, o controle difuso incidental, que permanece até hoje como a única possibilidade do cidadão comum tutelar seus direitos subjetivos constitucionais.
É sua característica principal a análise de uma questão concreta de constitucionalidade levada ao Magistrado mediante ação judicial comum, em que uma das partes suscita – ou mesmo através do reconhecimento de ofício pelo juiz - a violação de um direito individual por lei/ato que entende ser inconstitucional. Neste caso, para que seja garantido o direito subjetivo violado, é necessário que incidentalmente o juiz reconheça a inconstitucionalidade da norma de forma prévia à análise do pedido principal da ação, visando com tal controle resguardar os direitos subjetivos em jogo (NOVELINO, 2013).
No tocante ao objeto do controle, são incluídas todas as normas jurídicas emanadas dos três Poderes, de qualquer das esferas da Administração Direta (federal, estadual, municipal - mesmo as secundárias) e inclusive as anteriores à Constituição Federal de 1988, desde que a análise da (in)constitucionalidade seja feita em relação ao texto vigente à época do ato impugnado (NOVELINO, 2013).
Desta forma, o parâmetro invocado poderá ser qualquer norma formalmente constitucional, mesmo quando já revogada, com a ressalva de que seja levado em consideração o texto constitucional vigente ao tempo da ocorrência do fato (tempus regit actum). Logo, é possível asseverar que os tribunais estaduais, ainda que incompetentes para declarar a inconstitucionalidade de lei/ato federal em ação abstrata, podem assim proceder nos casos de ações concretas subjetivas, onde essa inconstitucionalidade será arguida como questão prejudicial, no intuito de afastar a aplicação da lei viciada do caso sub judice, o que é indispensável ao julgamento do mérito (BARROSO, 2012).
3 OS EFEITOS DA DECISÃO NO CONTROLE DIFUSO INCIDENTAL DE CONSTITUCIONALIDADE
3.1 EFICÁCIA SUBJETIVA E OBJETIVA DA DECISÃO
A principal característica do controle difuso de constitucionalidade é o fato de que ele é exercido – por qualquer juízo ou órgão jurisdicional - no bojo de um processo subjetivo, no qual a questão constitucional, trazida como causa de pedir, é analisada apenas na fundamentação da decisão (e não no dispositivo, que deve se ater à procedência ou improcedência do pedido, objeto principal da lide), configurando-se como um incidente processual, prejudicial ao exame do mérito. Ou seja, pede-se algo ao juízo, fundamentando-se na inconstitucionalidade de uma lei ou ato normativo. Assim, a alegação de inconstitucionalidade será a causa de pedir processual (LENZA, 2012).
Em razão da prejudicial de (in)constitucionalidade não integrar a parte dispositiva da sentença, a questão constitucional não será alcançada pelo manto da coisa julgada, sobretudo porque a última palavra sobre a interpretação da Constituição é competência exclusiva da Suprema Corte. Como conclui Barroso (2012), “por dicção legal expressa, nem os fundamentos da decisão, nem a questão prejudicial integram os limites objetivos da coisa julgada, de modo que não há falar em auctoritas rei iudicata em relação à questão constitucional.
É importante notar que, em regra, a eficácia subjetiva da coisa julgada se restringe às partes do processo, ou seja, não afetará terceiros não citados, de modo que os efeitos do reconhecimento da inconstitucionalidade de uma lei ou ato normativo terão repercussão apenas inter partes. No tocante à eficácia objetiva, se restringirá ao que foi pedido e decidido, pois o objeto da ação é delimitado pelo pedido do autor, não podendo o juiz se manifestar nem além, nem aquém disso, em razão do princípio da congruência do pedido (DIDIER, 2011).
3.2 A POLÊMICA REGRA DO ART. 52, INCISO X, DA CF/88 E A ABSTRATIVIZAÇÃO DO CONTROLE DIFUSO
O controle difuso incidental realizado no bojo de um processo constitucional subjetivo, como regra geral, tem a decisão nele proferida eficácia subjetiva inter partes, máxime porque os efeitos de qualquer sentença valem somente para as partes que litigaram em juízo, não extrapolando os limites estabelecidos na lide. Por sua vez, diante da importação no ordenamento jurídico brasileiro do sistema norte-americano de nulidade dos atos inconstitucionais, a eficácia objetiva da decisão opera efeitos ex tunc, atingindo a norma impugnada – e qualquer ato normativo - desde a sua edição, tornando-a nula de pleno direito, gerando efeitos retroativos. Assim, no controle difuso, para as partes os efeitos serão: a) inter partes e b) ex tunc (LENZA, 2012).
A fim de ampliar o alcance subjetivo da decisão proferida no bojo do controle difuso exercido pelo Supremo Tribunal Federal, a Constituição de 1988 trouxe em seu art. 52, X, a previsão de que compete privativamente ao Senado “suspender a execução, no todo ou em parte, de lei declarada inconstitucional por decisão definitiva do Supremo Tribunal Federal”. Logo, caso o Senado suspenda a execução do ato declarado inconstitucional pelo STF, as decisões definitivas sobre inconstitucionalidade proferidas no bojo dos recursos extraordinários passarão a ter eficácia erga omnes (MENDES, 2014).
Tradicionalmente, entendia-se que, tão logo o Supremo Tribunal Federal julgasse uma lei ou ato normativo inconstitucional pela via incidental, deveria fazer a comunicação da decisão prolatada, em sede de recurso extraordinário, ao Senado Federal que, num juízo discricionário e facultativo, decidia acerca da viabilidade de suspender a execução da norma impugnada. Logo, como ensina Lenza (2012), caberia à Casa Legislativa a opção de agir, após realizar um juízo de conveniência e oportunidade (caráter discricionário), e porventura expedindo a resolução suspensiva do ato normativo.
Neste cenário, uma das grandes polêmicas versava sobre a discussão doutrinária quanto aos efeitos temporais da suspensão de ato normativo inconstitucional pelo Senado Federal.
Uma primeira corrente doutrinária defendia que os efeitos da resolução não retroagem, sendo, portanto, ex nunc. Nesse sentido, Pedro Lenza, Marcelo Novelino, José Afonso da Silva e Regina Macedo Nery Ferrari. Para Lenza:
[...] desde que o Senado Federal suspenda a execução, no todo ou em parte, da lei levada a controle de constitucionalidade de maneira incidental e não principal, a referida suspensão atingirá a todos, porém valerá a partir do momento que a resolução do Senado for publicada na Imprensa Oficial. O nome ajuda a entender: suspender a execução de algo que vinha produzindo efeitos significa dizer que se suspende a partir de um momento, não fazendo retroagir para atingir efeitos passados. Assim, por exemplo, quem tiver interesse em “pedir de volta” um tributo declarado inconstitucional deverá mover a sua ação individualmente para reaver tudo antes da Resolução do Senado, na medida em que ela não retroage. Assim, os efeitos serão erga omnes, porém ex nunc, não retroagindo (LENZA, 2012, p. 277).
Em sentido contrário, como exemplo, citam-se as doutrinas de Luís Roberto Barroso, Clèverson Merlin Clève e Gilmar Ferreira Mendes, defendendo que a suspensão da execução pelo Senado Federal é dotada de efeitos retroativos (ex tunc), máxime porque o objetivo do instituto é justamente conferir igual tratamento jurídico às partes do processo subjetivo e a terceiros não participantes da relação jurídica processual. Ademais, falar-se em efeitos ex nunc geraria o inconveniente de não ser atingido o objetivo do instituto em sua plenitude, exigindo dos interessados o ingresso com ações judiciais a fim de discutir os efeitos da declaração de constitucionalidade incidental (CLÉVE, 1995). Assim, considerando os princípios da isonomia, da economia processual, com principal ênfase no princípio da supremacia da Constituição, a resolução suspensiva do Senado deve ser dotada de efeitos retroativos.
Nesse mesmo diapasão, o entendimento tradicional doutrinário e jurisprudencial sempre foi no sentido de que os efeitos da decisão de inconstitucionalidade no controle difuso pelo Supremo Tribunal Federal seriam inter partes, enquanto decorrência lógica do modelo difuso-incidental.
Não obstante, em processo de mutação constitucional da interpretação tradicional conferida ao artigo 52,X, da Constituição Federal, a Suprema Corte passou a consagrar o modelo de abstrativização do controle difuso, visto que o seu atual entendimento é no sentido de que decisões proferidas no âmbito daquele Tribunal em sede de controle de constitucionalidade, independentemente se pelo método difuso ou concentrado, terão sempre os mesmos efeitos, quais sejam, vinculante, erga omnes e ex tunc. Logo, a abstrativização do controle difuso consiste em conferir os efeitos típicos do controle abstrato ao processo constitucional subjetivo, ou seja, significa transferir os elementos típicos do controle abstrato ao difuso (NOVELINO, 2013).
Destarte, sob essa nova perspectiva, a resolução do Senado Federal tornar-se-ia desnecessária para fins de ampliação subjetiva-objetiva da eficácia decisória do controle difuso de constitucionalidade, passando a servir apenas para conferir maior publicidade às decisões proferidas pelo Supremo Tribunal Federal, no 4.335/AC, Rel. Min. Gilmar Mendes, 2007.
É a explanação de Gilmar Mendes:
Parece legítimo entender que a fórmula relativa à suspensão de execução da lei pelo Senado Federal há de ter simples efeito de publicidade. Dessa forma, se o Supremo Tribunal Federal, em sede de controle incidental, chegar à conclusão, de modo definitivo, de que a lei é inconstitucional, essa decisão terá efeitos gerais, fazendo-se a comunicação ao Senado Federal para que publique a decisão no Diário do Congresso. Tal como assente, não é (mais) a decisão do Senado que confere eficácia geral ao julgamento do Supremo. A própria decisão da Corte contém essa força normativa (..)Assim, o Senado não terá a faculdade de publicar ou não a decisão, uma vez que não cuida de decisão substantiva, mas de simples dever de publicação, tal como reconhecido a outros órgãos políticos em alguns sistemas constitucionais (Constituição austríaca, art. 140, 5, publicação a cargo do Chanceler Federal, e Lei Orgânica da Corte Constitucional Alemã, art. 31, 2, publicação a cargo do Ministro da Justiça). A não publicação não terá o condão de impedir que a decisão do Supremo assuma a sua real eficácia (MENDES, 2014, p. 1101).
Esse entendimento é fundado em diversos argumentos, dentre os quais podem ser considerados como sendo os mais relevantes, a força normativa da Constituição, o princípio da supremacia da Constituição e sua aplicação uniforme a todos os destinatários, o Supremo Tribunal Federal enquanto guardião da Constituição e seu intérprete máximo e a dimensão política de suas decisões (LENZA, 2012).
Frise-se, entretanto, que há corrente doutrinária contrária à nova interpretação conferida ao papel do Senado Federal, tecendo críticas ao entendimento restritivo da atuação da Casa Legislativa a mero instrumento de publicização dos efeitos da decisão. Em essência, destaca-se entre os argumentos contrários à nova interpretação o fato de que a Constituição prevê expressamente o papel a ser realizado pelo Senado Federal. Além disso, anota-se que a Carta Constitucional é categórica quanto à produção de efeito erga omnes apenas para as decisões prolatadas em sede de controle abstrato e para a súmula vinculante. Desse modo, os opositores defendem a necessidade de uma reforma constitucional, a fim de ser possível a aplicação dos efeitos erga omnes e vinculante para todas as decisões do Supremo em controle de constitucionalidade (LENZA, 2012).
4 A MODULAÇÃO DOS EFEITOS TEMPORAIS NO CONTROLE DIFUSO DE CONSTITUCIONALIDADE
A teoria da nulidade da norma inconstitucional, de origem norte-americana, caracteriza-se por estabelecer que a declaração de inconstitucionalidade afeta o plano de validade, na medida em que o ato viciado seria nulo. Assim, a sentença apenas declarará nula a lei inconstitucional (ato nulo), que apresenta vício congênito, de nascimento, ou seja, teria, assim, a norma infraconstitucional nascida morta, reconhecendo a decisão apenas uma situação pretérita, preexistente. Logo, trata-se de um vício de origem, impassível de convalidação (LENZA, 2012).
Como consequência da adoção do sistema de nulidade do ato jurídico inconstitucional, a decisão judicial apenas declarará a inconstitucionalidade, não sendo, portanto, constitutiva. O resultado disso é que não serão admitidos efeitos válidos a esse ato, devendo todas as relações jurídicas constituídas com base nele retornarem ao status quo ante (BARROSO, 2012).
Entretanto, destaca-se que, na atualidade, a teoria da nulidade dos atos jurídicos inconstitucionais é adotada com temperamento pela jurisprudência do Supremo Tribunal Federal.
É possível perceber que, com o passar dos anos, exsurgiram situações nas quais se restou demonstrado à inevitabilidade da admissão de temperamento da regra geral, fazendo-se imprescindível suprimir ou atenuar o caráter retroativo das decisões, contemplado na teoria da nulidade, em homenagem a valores como a boa-fé, justiça e segurança jurídica (BARROSO, 2012).
Por meio da teoria da ponderação de valores fundamentais conflitantes, a Suprema Corte passou a afastar o caráter absoluto da teoria da nulidade diante das implicações de seus efeitos retroativos no caso concreto, como demonstra sua jurisprudência.
Para ilustrar, no Recurso Extraordinário 78.533/SP, foi discutida a validade dos atos da penhora realizada por oficial de justiça nomeado com fundamento em lei posteriormente declarada inconstitucional. Diante do conflito entre a teoria da nulidade e da boa-fé de terceiros, o Supremo decidiu, com base na teoria da aparência e considerando que tal penhora foi realizada por funcionário investido no cargo, que ela seria válida, deixando, na ocasião, de aplicar a teoria da nulidade para invalidar tais atos.
Em outra situação, ao deliberar pela inconstitucionalidade de remuneração percebida por magistrados, a Suprema Corte pronunciou-se no sentido de que a “retribuição declarada inconstitucional não é de ser devolvida no período de validade inquestionada da lei declarada inconstitucional – mas tampouco paga após a declaração de inconstitucionalidade”, prestigiando o direito adquirido alegado, com base na irredutibilidade de vencimentos assegurada pela Constituição Federal, visto no RE 122.202/MG, Rel. Min. Francisco Rezek, do ano de 1994.
Verifica-se, dessa forma, que a jurisprudência do Supremo já vinha realizando o temperamento da teoria da nulidade do ato normativo inconstitucional com base na ponderação de valores no caso concreto, antes mesmo do advento da Lei 9868/99.
Com o advento da Lei 9868/99, o Legislador passou a admitir, no artigo 27, expressamente a possibilidade de modulação dos efeitos temporais da decisão declaratória de inconstitucionalidade em sede de controle abstrato de constitucionalidade. Assim, a legislação infraconstitucional acolheu a famigerada prática de modulação dos efeitos, a qual, todavia, já era adotada em casos concretos pelo Pretório Excelso.
Não obstante, pelo sentido literal da normativa, a modulação temporal dos efeitos decisórios passa a ser admitida apenas para casos de controle de constitucionalidade abstrato, permanecendo, portanto, a inviabilidade de tal técnica na seara do controle difuso em razão da ausência de norma legal permissiva sobre o assunto.
Malgrado a inexistência de dispositivo legal expresso autorizativo, o STF, por meio do processo interpretativo da dogmática constitucional, ora com apoio na interpretação analógica do artigo 27 da Lei 9868/99, ora com apoio nas cláusulas gerais, faz uso da técnica da modulação temporal na via difusa, não só atribuindo a decisão eficácia ex nunc, mas também pela fixação de efeitos a partir de data futura (eficácia pro futuro).
No intuito de elucidar tal assertiva, é possível citar, como exemplo, a Medida Cautelar na Reclamação 2.391/PR. Nesta ocasião, discutia-se, incidentalmente, a constitucionalidade de dispositivos legais que impediam ou limitavam o direito do réu de recorrer em liberdade, situação esta em que o Ministro Gilmar Mendes, ao proferir seu voto, esclareceu que:
Tendo em conta o fato de que, na espécie, estar-se-ia revisando jurisprudência firmada pelo STF, amplamente divulgada e com inegáveis repercussões no plano material e processual –, admitindo a possibilidade de limitação dos efeitos da declaração de inconstitucionalidade prevista no art. 27 da Lei 9.868/99, em sede de controle difuso, emprestou à decisão efeitos ex "nunc", como publicado no Informativo 334 do Supremo Tribunal Federal.
É possível vislumbrar neste julgado, a referência expressa à aplicação analógica do artigo 27 da Lei 9.868/99.
Nesse mesmo diapasão, todavia sem referir-se expressamente ao uso da analogia à regra do art. 27 da mencionada lei, no Habeas Corpus 82.959/SP, a Suprema Corte decidiu, em sede de controle difuso, modificando seu entendimento consolidado há muitos anos, pela inconstitucionalidade do dispositivo legal que vedava a concessão do benefício da progressão de regime prisional para os indivíduos condenados pela prática de crime hediondo e equiparados. A modulação dos efeitos para atribuir eficácia ex nunc à decisão, foi no sentido de ressalvar o descabimento de indenização por erro judiciário aos indivíduos que já tivessem cumprido integralmente suas penas.
Na mesma linha, no Conflito de Competência 7.204/MG, decidiu a Corte, com respaldo na segurança jurídica, por atribuir eficácia prospectiva à decisão, na hipótese de revisões de jurisprudência definidora de competência ex ratione materia, não mencionando, na ocasião, a aplicação analógica da Lei 9.868/99. O Relator, Ministro Carlos Britto, determina que:
O Supremo Tribunal Federal, guardião-mor da Constituição Republicana, pode e deve, em prol da segurança jurídica, atribuir eficácia prospectiva às suas decisões, com a delimitação precisa dos respectivos efeitos, toda vez que proceder a revisões de jurisprudência definidora de competência ex ratione materiae. O escopo é preservar os jurisdicionados de alterações jurisprudenciais que ocorram sem mudança formal do Texto Magno.
Por fim, é relevante mencionar que, no Recurso Extraordinário 197.917/SP, em que houve a discussão acerca da constitucionalidade de lei municipal que previa o aumento do número de vereadores no município de Miraestrela-SP, considerado o leading case em matéria de modulação, foi conferida eficácia pro futuro à decisão declaratória de inconstitucionalidade em sede de controle difuso (LENZA, 2012). Com relação ao julgado, o site do Supremo Tribunal Federal noticiou que:
‘Como se pode ver, se se entende inconstitucional a lei municipal em apreço, impõe-se que se limitem os efeitos dessa declaração (pro futuro)’, afirmou Mendes. O ministro ressaltou que o sistema difuso ou incidental de controle de constitucionalidade e, em casos determinados, acolheu até mesmo a pura declaração de inconstitucionalidade com efeito exclusivamente pro futuro. Para Gilmar Mendes, no caso em tela, observa-se que eventual declaração de inconstitucionalidade com efeito ex tunc (retroativo) ocasionaria repercussões em todo o sistema atual, atingindo decisões tomadas em momento anterior à eleição, que resultou na atual composição da Câmara Municipal: fixação do número de vereadores, fixação do número de candidatos, definição do quociente eleitoral. Igualmente, as decisões tomadas posteriormente ao pleito eleitoral também seriam atingidas, tal como a validade da deliberação da Câmara municipal nos diversos projetos e leis aprovados. O ministro ressaltou que a doutrina e jurisprudência entendem que a margem de escolha conferida ao Tribunal para a fixação dos efeitos da decisão de inconstitucionalidade não legitima a adoção de decisões arbitrárias, estando condicionada pelo princípio de proporcionalidade.
Por todo exposto, tendo por base alguns julgados de extrema relevância no que pertine ao assunto, conclui-se que a modulação temporal dos efeitos em sede de controle difuso já era realizada antes mesmo do advento da Constituição Federal de 1988, de modo que a superveniência de previsão expressa dessa técnica por meio de legislação aplicável para os casos de controle concentrado de constitucionalidade, apenas interferiu na fundamentação de algumas decisões, passando a ser o dispositivo que trata do tema, a ser aplicado analogicamente nas situações envolvendo a via difusa incidental, o que se mostra, em nosso sentir, de importância incontestável, prestigiando-se valores irrenunciáveis em nosso sistema, tais como a segurança jurídica, a boa-fé e a justiça.
Após a colheita de vasto material acerca da problemática envolvendo o objeto de estudo do presente artigo, com o apoio em teses doutrinárias e jurisprudenciais, bem como a legislação vigente, pode-se inferir as conclusões a seguir expostas.
No que diz respeito à relação entre o Estado de Direito e o controle de constitucionalidade, verifica-se que são fenômenos indissociáveis, à medida que só é pertinente cogitar em uma fiscalização de leis num país que consagre, em seu ordenamento jurídico, a Constituição como sua norma suprema e fundamento de validade de todo o sistema normativo.
Notou-se que no tocante à coisa julgada, a eficácia subjetiva da decisão declaratória de inconstitucionalidade, nos casos de controle difuso, alcançará, em regra, apenas as partes da relação processual, cabendo somente a estas arcarem com os efeitos da sentença. No tocante à eficácia objetiva da coisa julgada apenas abarcará a parte dispositiva do ato decisório, sendo que a matéria constitucional, por se tratar de questão incidental (e não do objeto principal da lide), será analisada e decidida só no fundamento da sentença, sendo excluída da abrangência da coisa julgada.
Ademais, discutiu-se sobre a regra do art. 52, inciso X, da CF/88, havendo divergência na doutrina e jurisprudência quanto à natureza da resolução do Senado Federal que suspende à execução de lei declarada inconstitucional em sede de controle difuso incidental, entendendo a jurisprudência atual do STF que a resolução da Casa Legislativa tem por escopo apenas conferir publicidade às decisões da Corte.
Ao final, para melhor análise do tema da modulação dos efeitos temporais da decisão, explanou-se sobre a teoria da nulidade da norma constitucional como regra no ordenamento brasileiro.
Ocorre que, em determinados casos, ficou demonstrada a necessidade de manutenção de alguns efeitos produzidos por determinados atos praticados em virtude de norma posteriormente declarada inconstitucional, o que culminou na modulação dos efeitos da decisão, quando presentes valores de maior relevância, numa verdadeira ponderação de interesses, antes mesmo da vigência expressa de norma neste sentido.
Por fim, surgiu então a Lei 9.868/99, que trouxe expressamente, em seu artigo 27, a possibilidade da modulação em sede de controle de constitucionalidade abstrato, vindo tal regra a ser aplicada analogicamente para modular os efeitos da decisão em sede de controle difuso de constitucionalidade; porém, averiguou-se que, em outras oportunidades realizou a mitigação sem mencionar tal norma legal, com base na ponderação de interesses.
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Direito na UEL e pós graduação em direito constitucional na universidade de anhanguera e direito civil e processo civil na Faculdade Legale.
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: CASTANHEIRA, ALANA CHAMA. Modulação dos efeitos temporais no controle de constitucionalidade difuso Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 22 fev 2023, 04:51. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/artigos/61091/modulao-dos-efeitos-temporais-no-controle-de-constitucionalidade-difuso. Acesso em: 23 nov 2024.
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