Resumo: Este artigo resulta do estudo sobre o trabalho análogo ao de escravo e seus reflexos à efetivação do princípio da dignidade humana na esfera trabalhista. Em pleno Século XXI, ainda são encontradas situações trabalhistas que expõem o indivíduo à condição análoga à de escravo, sendo uma realidade mais comum do que se imagina. O tema é exaustivamente tratado nos cenários internacional e nacional. No desenvolvimento deste artigo, buscou-se a definição do conceito, a caracterização e os mecanismos adotados pelo Brasil, no combate deste trabalho. Para tanto, utilizou-se o método dedutivo, apoiando-se em pesquisa qualitativa de revisão bibliográfica.
PALAVRAS-CHAVE: Dignidade; Trabalho; Escravidão; Erradicação.
Sumário: Introdução. Contexto histórico. Conceito do trabalho análogo ao de escravo. Do principio da dignidade humana enquanto limitador do trabalho em condições análogas de escravo. Da proteção do trabalho análogo ao de escravo. Das políticas públicas brasileiras para a erradicação do trabalho análogo ao de escravo. Considerações finais. Referencias.
INTRODUÇÃO
O trabalho escravo na sua forma originária foi abolido com a Lei Aurea, em 1888, a qual proibiu o tráfico e permanência de pessoas no Brasil, na condição de escravo.
Entretanto, transcorrido mais de 130 anos da edição dessa lei, a existência de trabalho escravo insiste em perpetuar no Brasil. Ainda que de forma disfarçada, ocasionando a exploração de milhares de indivíduos e o consequente desrespeito às normas vigentes no país.
O trabalho análogo ao de escravo no Brasil é uma realidade incontestável, como demonstram os dados atualizados do Ministério do Trabalho e Emprego, os quais revelam que entre 1995 e 2010, 36.759 trabalhadores foram resgatados de condições análogas à de escravo.
Esse tema tem sido exaustivamente tratado no cenário internacional e nacional, visto o empenho global na efetivação do princípio da dignidade humana, que atenta para o fato de que cada ser humano, individualmente considerado, é insubstituível, não podendo ser vendido nem trocado por coisa alguma.
O Brasil reconheceu em 1995, a existência deste tipo de trabalho, atualmente, chamado de trabalho em condição análoga à de escravo, o que desencadeou diversas políticas públicas voltadas a sua erradicação. Um dos mecanismos de defesa foi a tipificação do trabalho análogo ao de escravo pela lei penal brasileira.
O trabalho análogo, conforme descrito no artigo 149, do Código Penal, tratou-o como gênero, composto de duas subespécies: trabalho forçado e trabalho em condições degradantes, que serão caracterizados em capítulo próprio.
CONTEXTO HISTÓRICO
A escravidão sempre esteve presente na história brasileira, desde seu descobrimento, no qual os portugueses utilizaram da mão de obra dos nativos e, posteriormente dos negros africanos.
A exploração do trabalho escravo, em sua maioria, formado por negros, permitiu o desenvolvimento de diversas atividades econômicas, dentre as quais as plantações agrícolas, passando pela mineração e produção de alimentos.
Em 1888, a Lei intitulada “Aurea” tornou proibida a manutenção de escravos no Brasil. Contudo, esta Lei impôs apenas a igualdade formal entre os cidadãos, visto que os ex-escravos não dispunham de educação, nem acesso a terra, nem a qualquer tipo de indenização por tempo de trabalho forçado, sendo vítimas, expostas a todo tipo de preconceito, fato pelo qual mesmo após a abolição, muitos continuaram a trabalhar nas mesmas propriedades em troca de moradia e alimentação.
De acordo com o economista Paul Singel “Infelizmente, a Lei Áurea apenas aboliu o apoio legal à escravidão. Ela não aboliu a pobreza, o atraso de grandes áreas do território nacional. Nelas muitos trabalhadores se deixam aliciar em troca de promessas e algum dinheiro para realizarem atividades em lugares longínquos e ermos, onde ficam à mercê dos patrões”.
Hodiernamente, a escravidão, também chamada de contemporânea apresenta-se sob uma nova roupagem, porém não menos cruel e desumana que a praticada no Brasil colonial, sujeitando indivíduos com baixa ou nenhuma capacitação, dispondo apenas da sua força manual, obrigando-os a aceitarem trabalhos degradantes, em troca da sobrevivência.
Nos últimos anos, de acordo com Eliézer de Queiroz Noleto tivemos uma piora acentuada nas condições de trabalho o que pode ser debitado, em grande parte, à crise do emprego. Há uma tendência mundial de crescimento dos índices de desemprego, e essa dificuldade dos trabalhadores em obter uma nova colocação no mercado de trabalho os leva a aceitar ocupações que não respeitam os direitos trabalhistas mínimos previstos em lei, aumentando, por sua vez, o número de trabalhadores que se encontram no mercado informal.
A Carta Magna, de 1988, veda o trabalho análogo ao de escravo, ao elencar, dentre os princípios fundamentais da República Federativa do Brasil, a dignidade da pessoa humana e os valores sociais do trabalho (art. 1º, III e IV); ao garantir a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade e à igualdade; ao asseverar que ninguém será submetido à tortura nem a tratamento desumano ou degradante; ao estatuir que é livre a locomoção no território nacional; ao assegurar que não haverá penas de trabalhos forçados e cruéis; ao preconizar que ninguém será privado da liberdade ou de seus bens sem o devido processo legal; e ao garantir que não haverá prisão por dívida, salvo a do responsável pelo inadimplemento voluntário e inescusável de obrigação alimentícia e a do depositário infiel (art. 5º, caput, e incisos III, XV, XLVII, c e e, LIV e LXVII).
Em 1995 o Governo Brasileiro reconheceu oficialmente a existência de trabalho em condição análoga à de escravo no país, iniciando uma série de estratégicas e adoção de instrumentos políticos para combater e erradicar essa prática, destacando-se a tipificação da conduta pelo art.149 do Código Penal (CP), que por sua vez, define e pune com reclusão de dois a oito anos e multa, além da pena correspondente à violência, o crime de redução à condição análoga à de escravo.
Além disso, pode ser citada a ação conjunta de diversos órgãos, dos mais variados setores da sociedade, em busca do combate ao trabalho forçado e análogo ao de escravo, a exemplo da Polícia Federal, Ministério do Trabalho e Emprego e Ministério Público do Trabalho que estão engajados na mesma luta: proporcionar melhores condições de trabalho, assim como resgatar a dignidade de cada trabalhador.
DO CONCEITO DO TRABALHO ANÁLOGO AO DE ESCRAVO
O trabalho em condições análogas às de escravo, segundo o Manual de combate ao trabalho em condições análogas às de escravo é aquele que não reúna as mínimas condições necessárias para garantir os direitos dos trabalhadores, que cerceie sua liberdade, avilte a sua dignidade, sujeite-o a condições degradantes, inclusive ao meio ambiente de trabalho.
A Organização Internacional do Trabalho conceitua da seguinte forma o trabalho análogo ao de escravo:
Toda a forma de trabalho escravo é trabalho degradante, mas o recíproco nem sempre é verdadeiro. O que diferencia um conceito do outro é a liberdade. Quando falamos de trabalho escravo, falamos de um crime que cerceia a liberdade dos trabalhadores. Essa falta de liberdade se dá por meio de quatro fatores: apreensão de documentos, presença de guardas armados e “gatos” de comportamento ameaçador, por dívidas ilegalmente impostas ou pelas características geográficas do local, que impedem a fuga.
A Convenção 29, de 1930, da OIT, ratificada pelo Brasil, adota a nomenclatura de trabalho forçado ou obrigatório, como sinônimo do trabalho análogo ao de escravo, definindo assim, em seu artigo 2º: “para fins desta Convenção, a expressão “trabalho forçado ou obrigatório” compreenderá todo trabalho ou serviço exigido de uma pessoa sob a ameaça de sanção e para o qual não se tenha oferecido espontaneamente”
Para Carlos H. Leite, o conceito de trabalho análogo ao de escravo deve ser bem delimitado, afastando, a tipificação de determinadas condutas que, mesmo infringindo normas administrativas, não podem ser classificadas como o crime propriamente dito, discorrendo que:
O fator determinante para caracterizar trabalho escravo é o cerceamento da liberdade. O trabalhador fica sem condições de sair do local onde está sendo explorado, sofrendo, a rigor, três tipos de coação:
1. coação econômica – dívida contraída com o transporte para fazenda e compra de alimento. O empregado tenta saldar a dívida, mas não consegue devido aos elevados valores cobrados;
2. coação moral/psicológica – ameaças físicas, e até de morte, por parte do responsável pela fazenda e constante presença de capataz, armado, em meio aos trabalhadores;
3. coação física – agressão aos trabalhadores como forma de intimidação.
Já para procurador do trabalho Jairo Sento-Sé, o conceito contemporâneo do trabalho escravo, seguindo a previsão do artigo 149 do Código Penal, consiste como sendo atividade laboral desenvolvida pelo trabalhador em benefício de terceiro, em que se verifica restrição à sua liberdade e/ou desobediência a direitos e garantias mínimos (sujeição a jornada exaustiva ou a trabalho degradante, dívida abusiva em face do contrato de trabalho, retenção no local de trabalho por cerceamento do uso de qualquer meio de transporte, manutenção de vigilância ostensiva e retenção de documentos) dirigidos a salvaguardar a sua dignidade enquanto trabalhador.
Atualmente, com base nos conceitos elencados, pode-se inferir que o trabalho análogo a de escravo, é representado pelo trabalho forçado e pelas condições degradantes que podem ser caracterizadas por aquelas que vão desde o constrangimento físico e/ou moral a que é submetido o trabalhador, até as péssimas condições de trabalho e de remuneração, como por exemplo, alojamento sem condições de habitação e higiene, falta de instalações sanitárias e de água potável, falta de fornecimento de EPI, jornadas exaustivas, remuneração irregular, promoção do endividamento pela venda de mercadorias aos trabalhadores, dentre outros.
Em palestra no I Congresso de Direito do Trabalho, Processual do Trabalho e Previdenciário no Estado de Mato Grosso do Sul, o procurador Luís Antônio Camargo de Melo, afirma que a característica mais comum do trabalho forçado é o impedimento da locomoção do trabalhador em razão de dívida contraída, visto que muitos se deslocam da sua cidade de origem para trabalhar em fazendas de difícil acesso, sob a promessa de vida melhor.
O mesmo palestrante, afirma que inúmeras são as situações em que o trabalhador aliciado nem sabe onde está trabalhando. Relata ainda, além de impedido o trabalhador sofre violência, exemplificando a situação de um trabalhador que tentou fugir e foi preso pelos pistoleiros do fazendeiro, que amarraram os pés e as mãos do trabalhador e jogou ele na caçamba da caminhonete, saindo pelas estradas esburacadas da Amazônia, onde o trabalhador foi tomando pancada da própria caçamba – situação conhecida como “banho de camionete”.
Com relação ao trabalho degradante, Camargo de Melo, exemplificou a questão de trabalhadores que morrem por exaustão física, trabalhando ininterruptamente, por receber o pagamento com base na produtividade. Como exemplo citou o caso do trabalhador cortador de cana, no interior de São Paulo, o qual cortou mais de 24 toneladas de cana em um dia, uma semana depois cortou 16 em um dia e poucos dias depois morreu e foi comprovado que a causa foi exaustão.
Salienta ainda, que além da jornada exaustiva, a condição degradante também é configurada quando se vê nas diligências trabalhadores perdidos no meio do mato, dormindo sobre troncos no chão e com uma lona, sem água, alimento, dentre outros.
Diante dos relatos, ressalta-se que a utilização do trabalho análogo ao de escravo ofende não só o individual que permanece exposto à situação, mas toda sociedade, estendendo a sua natureza ao interesse difuso nas relações trabalhistas, haja vista que viola o ordenamento jurídico e afronta a dignidade humana.
DO PRINCÍPIO DA DIGNIDADE HUMANA ENQUANTO LIMITADOR DO TRABALHO EM CONDIÇÕES ANÁLOGAS DE ESCRAVO
A Constituição de 1988, ao elencar nos princípios fundamentais os valores sociais do trabalho e da livre iniciativa, igualando os direitos dos trabalhadores urbanos e rurais apresenta novos paradigmas quanto aos direitos fundamentais do trabalho reforçados pelo princípio da dignidade da pessoa humana como vetor de todo o direito, além de possibilitar a criação de normas de efetivação das garantias ali previstas.
Adotar a dignidade da pessoa humana como valor básico do Estado democrático de direito é reconhecer o ser humano como o centro e o fim do direito.
Logo, pelo princípio da dignidade da pessoa humana, o homem existe como um fim em si mesmo e, portanto, não pode ser tratado como mero objeto de realização do capital econômico.
Segundo Ingo Wolfgang Sarlet a dignidade da pessoa humana é qualidade intrínseca, inseparável de todo e qualquer ser humano, é característica que o define como tal. Concepção de que em razão, tão somente, de sua condição humana e independentemente de qualquer outra particularidade, o ser humano é titular de direitos e devem ser respeitados pelo Estado e seus semelhantes.
Para José Afonso da Silva, a dignidade da pessoa humana não é uma criação constitucional, pois ela é um desses conceitos a priori, um dado preexistente a toda experiência especulativa, tal como a própria pessoa humana.
Flávia Piovesan entende que a condição humana é requisito único e exclusivo para a titularidade de direitos. Isto porque todo ser humano tem uma dignidade que lhe é inerente, sendo incondicionada, não dependendo de outro critério, senão ser humano.
O Procurador do Trabalho, Cicero Rufino Pereira, define que a dignidade da pessoa humana, no âmbito trabalhista, pode significar a busca de um ideal de vida para todo ser humano, o qual deseja um trabalho digno (trabalho decente), garantidor de sua sobrevivência (e de sua família), com vida protegida, com direito à habitação, saúde, alimentação, educação, previdência social, lazer, etc.
Em suma, a dignidade da pessoa humana é uma qualidade intrínseca e inseparável de todo e qualquer ser humano, sendo característica que o define como tal. E tão somente pela sua condição humana, o ser humano é titular de direitos que devem ser respeitados tanto pelo Estado quanto por seus semelhantes, não podendo ser sobreposto por interesses meramente mercantis.
Desse modo, a exposição do trabalhador à condição de trabalho análoga à de escravo, ofende e contraria bens jurídicos fundamentais consagrados na Constituição Federal de 1988, pois subtraí do ser humano não só a sua liberdade, mas o que há de mais sagrado: a sua dignidade.
Ressalta-se que na definição atual de trabalho análogo ao de escravo o principal bem jurídico lesado não é a liberdade, mas sim a dignidade da pessoa humana, bem maior e que repugna as duas espécies de trabalho com redução do homem a condição análoga à de escravo, a saber, o trabalho forçado e o degradante.
Observa-se que no trabalho forçado, ao ser privado de sua liberdade de locomoção e de autodeterminação, o ser humano é tratado como mera mercadoria, pertencente ao tomador dos serviços. Enquanto no trabalho degradante, embora não haja restrição à liberdade, o que se vê é a exposição do indivíduo às condições subumanas de trabalho e de vida, sendo tratado como mero instrumento de produção, suscitando a “coisificação” do ser humano.
Apesar dos relatos chocantes, sabe-se que são reais e atuais, sendo que o princípio que obsta a quantificação e a “coisificação” do ser humano é exatamente a dignidade da pessoa humana, pois conforme já defendido, todo homem tem dignidade e não um preço, como as coisas, sendo cada indivíduo ser único e insubstituível, não podendo ser vendido nem trocado por coisa alguma, sob pena de transgredir a lei maior do país.
Afirmativa esta defendida pelo Min. Joaquim Barbosa, em seu voto no Recurso Extraordinário nº 398041/ PA, conforme ementa transcrita:
DIREITO PENAL E PROCESSUAL PENAL. ART. 149 DO CÓDIGO PENAL. REDUÇÃO Á CONDIÇÃO ANÁLOGA À DE ESCRAVO. TRABALHO ESCRAVO. DIGNIDADE DA PESSOA HUMANA. DIREITOS FUNDAMENTAIS. CRIME CONTRA A COLETIVIDADE DOS TRABALHADORES. ART. 109, VI DA CONSTITUIÇÃO FEDERAL. COMPETÊNCIA. JUSTIÇA FEDERAL. RECURSO EXTRAORDINÁRIO PROVIDO. A Constituição de 1988 traz um robusto conjunto normativo que visa à proteção e efetivação dos direitos fundamentais do ser humano. A existência de trabalhadores a laborar sob escolta, alguns acorrentados, em situação de total violação da liberdade e da autodeterminação de cada um, configura crime contra a organização do trabalho. Quaisquer condutas que possam ser tidas como violadoras não somente do sistema de órgãos e instituições com atribuições para proteger os direitos e deveres dos trabalhadores, mas também dos próprios trabalhadores, atingindo-os em esferas que lhes são mais caras, em que a Constituição lhes confere proteção máxima, são enquadráveis na categoria dos crimes contra a organização do trabalho, se praticadas no contexto das relações de trabalho. Nesses casos, a prática do crime prevista no art. 149 do Código Penal (Redução à condição análoga a de escravo) se caracteriza como crime contra a organização do trabalho, de modo a atrair a competência da Justiça federal (art. 109, VI da Constituição) para processá-lo e julgá-lo. Recurso extraordinário conhecido e provido. (398041 PA , Relator: Min. JOAQUIM BARBOSA, Data de Julgamento: 30/11/2006, Tribunal Pleno, Data de Publicação: DJe-241 DIVULG 18-12-2008 PUBLIC 19-12-2008 EMENT VOL-02346-09 PP-02007)
DA PROTEÇÃO DO TRABALHO ANÁLOGO AO DE ESCRAVO
No âmbito internacional, o Brasil, atendendo as exigências decorrentes dos tratados e convenções dos quais é signatário, assumiu a obrigação de reprimir e eliminar toda e qualquer forma de escravidão. Nesse sentido, segue a observação de Flávia Piovesan:
(...)a proibição do trabalho escravo é absoluta no Direito Internacional dos Direitos Humanos, não contemplando qualquer exceção. Vale dizer, em nenhum caso poderão invocar-se circunstâncias excepcionais, como ameaça ou estado de guerra, instabilidade política interna ou qualquer outra emergência pública, como justificativa para o tratamento escravo. Tal proibição integra o jus cogens, que é o direito cogente e inderrogável no âmbito internacional. Tal como o direito de não ser submetido à tortura, o direito a não ser submetido à escravidão é um direito absoluto, insuscetível de qualquer relativização ou flexibilização, a não permitir qualquer juízo de ponderação.
Nesse diapasão, o Brasil, firmou como signatário, os diversos instrumentos abaixo relacionados:
1. Declaração Universal dos Direitos do Homem, firmado em 10 de dezembro de 1948, pela qual “Todas as pessoas nascem livres e iguais em dignidade e em direitos. São dotadas de razão e consciência e devem agir umas em relação às outras com espírito de fraternidade” (art. I); “Ninguém será mantido em escravidão ou servidão, a escravidão e o tráfico de escravos serão proibidos em todas as suas formas” (art. IV).
2. Convenção de 1926, ratificada pelo Brasil em 1966, estabelecendo o compromisso de abolir completamente a escravidão em todas as suas formas;
3. Convenção 29, de 1930 OIT – ratificada pelo Brasil em 1957, comprometendo-se a abolir a utilização do trabalho forçado ou obrigatório, em todas as suas formas, no mais breve espaço de tempo possível;
4. Convenção 105, de 1957 da OIT, ratificada pelo Brasil em 1965, comprometendo-se a adequar a legislação nacional às circunstâncias da prática de trabalho forçado, de modo que seja tipificada de acordo com as particularidades econômicas, sociais e culturais do contexto que se insere. Assim, a convenção determina que a legislação do País signatário deve prever sanções eficazes a inibir a pratica de trabalho forçado.
5. Em 1966 houve o pacto Internacional de Direitos Civis e Políticos das Nações Unidas, ratificado pelo Brasil em 1992, o qual proíbe todas as formas de escravidão nos países signatários.
6. Ainda em 1966, o Pacto Internacional de Direitos Econômicos, Sociais e Culturais das Nações Unidades, ratificado pelo Brasil em 1992, passou a garantir o direito de todos a condições de trabalho equitativas e satisfatórias;
7. Pacto de São José da Costa Rica, em 1969, ratificado pelo Brasil em 1992, determina a repressão à servidão e à escravidão em todas as suas formas;
8. Em 1972, a Declaração de Estolcomo, o qual estabelece que o homem tem o direito fundamental à liberdade, à igualdade e ao gozo de condições de vida adequadas num meio ambiente de tal qualidade que lhe permita uma vida digna de gozar o bem-estar;
9. Protocolo do Tráfico, em 2000, ratificado pelo Brasil em 2004, visa coibir o aliciamento de trabalhadores rurais no Brasil e de trabalhadores estrangeiros irregulares no intuito de submetê-los ao trabalho em condições análogas à de escravo, passando a igualar este ato ao tráfico de seres humanos.
No âmbito interno, a legislação brasileira tutela de forma objetiva a dignidade da pessoa humana, os direitos humanos, a igualdade de pessoas e os valores sociais do trabalho, conforme art. 1º, III e IV da CF, art. 4º, inciso II. Em seu artigo 7º, a CF prevê, além dos direitos dos trabalhadores urbanos e rurais ali elencados, outros que visem à melhoria de sua condição social.
Em cumprimento a legislação internacional, o Brasil, também tipificou o trabalho em condição análoga à de escravo, como crime, à luz do art. 149 do Código Penal, pelo qual especifica quatro condutas, a saber: (1) sujeição da vítima a trabalhos forçados; (2) sujeição da vítima a jornada exaustiva; (3) sujeição da vítima a condições degradantes de trabalho; e (4) restrição, por qualquer meio, da locomoção da vítima em razão de dívida contraída com o empregador ou preposto.
O jurista Cezar Bitencourt, em exegese do art. 149, do Código Penal Brasileiro sustenta que:
(...)o bem jurídico protegido nesse tipo penal, é a liberdade individual, isto é, o status libertatis, assegurado pela Carta Magna brasileira. Na verdade, protege-se aqui a liberdade sob o aspecto ético-social, a própria dignidade do indivíduo, também igualmente elevada ao nível de dogma constitucional. Reduzir alguém a condição análoga a de escravo fere, acima de tudo, o princípio da dignidade humana, despojando-o de todos os valores ético-sociais, transformando-o em res, no sentido concebido pelos romanos.
DAS POLÍTICAS PÚBLICAS BRASILEIRAS PARA ERRADICAÇÃO DO TRABALHO ANÁLOGO AO DE ESCRAVO
O governo brasileiro, como o primeiro país a reconhecer oficialmente, nos tempos atuais, a existência de formas modernas de escravidão tem tomado providências no sentido prover medidas de proteção aplicáveis às vítimas desta forma de exploração, sendo diversas as políticas públicas desenvolvidas para tal. Assim, no âmbito nacional, podem ser citadas:
1. Plano Nacional de Erradicação do Trabalho Escravo - elaborado pela Comissão Especial do Conselho de Defesa dos Direitos da Pessoa Humana (CDDPH), reúne entidades e autoridades nacionais ligadas ao tema. O referido Plano atende às determinações do Plano Nacional de Direitos Humanos e expressa uma política pública permanente que deverá ser fiscalizada por um órgão ou fórum nacional dedicado à repressão do trabalho escravo. Contempla como principais ações a prevenção, a reinserção dos trabalhadores e a repressão econômica.
2. Pacto Nacional pela Erradicação do Trabalho Escravo no Brasil - em vigor desde de 2005, é uma iniciativa do Observatório Social-OS/OIT em parceria com Instituto Ethos e a ONG Repórter Brasil. O Instituto Observatório Social (IOS) tem por objetivo monitorar e gerar relatórios sobre as ações empreendidas pelos signatários voltadas para a erradicação do trabalho análogo ao de escravo no Brasil e promover o intercâmbio dessas informações entre as empresas e sindicatos envolvidos. Ao acionar diferentes instituições, a ação de fiscalização gera para o infrator consequências nos planos civil, trabalhista, administrativo e criminal.
3. Cadastro “Lista Suja” – instituído no âmbito do Ministério do Trabalho e Emprego, o Cadastro de Empregadores Infratores, também conhecido como ‘Lista Suja’, tem por objetivo registra em lista própria as pessoas físicas e jurídicas flagradas utilizando mão-de-obra em condições análogas à de escravo, dando publicidade à fiscalização e desencadeando uma série de ações do governo, do setor privado e da sociedade civil para punir e desencorajar a prática. De acordo com coordenadora do Pacto nacional de erradicação do trabalho escravo, Andréa Bolzon uma das coisas mais interessante que a lista suja permitiu foi investigar a cadeia produtiva das fazendas nas quais se encontrou trabalhadores escravos. Essa pesquisa revelou que o trabalho escravo está muito mais próximo do que se pensa. Está no óleo de soja, está na carne que se consome diariamente. Ao identificar a cadeia produtiva, obteve-se que 62% (sessenta e dois porcento) das pessoas resgatadas estavam em fazendas de bovinocultura. Sendo que as grandes empresas componentes da cadeia foram convidadas a assinar o Pacto nacional de erradicação do trabalho escravo. Tendo o Brasil, sido reconhecido pela OIT como a melhor experiência do mundo no combate ao trabalho escravo.
4. Grupo Especial de Fiscalização Móvel – GEFM - criado em 1995, após o reconhecimento do Brasil sobre as condições de trabalho análogo ao de escravo, tendo uma composição interinstitucional nas suas operações com a participação de no mínimo três instituições, reunindo as competências necessárias para a eficácia da fiscalização, sendo as funções primordiais de cada integrante: (1) os auditores e as auditoras-fiscais do trabalho fazem coleta de provas, lavram autos de infração, emitem carteiras de trabalho, inscrevem trabalhadores no Seguro Desemprego e interditam locais de trabalho quando necessário; (2) o procurador do trabalho, além de ajudar na coleta de provas, tem competência para propor ações imediatas junto à justiça do trabalho; ajuizar Ações Civis Públicas; e firmar Termos de Ajuste de Conduta (TAC) com o infrator, no qual este se compromete a pagar em um prazo específico as verbas rescisórias que não puderem ser pagas de imediato, pagar Danos Morais Individuais e Danos Morais Coletivos e/ou regularizar as condições do local de trabalho e alojamento; (3) a Polícia Federal ou Polícia Rodoviária Federal é responsável pela segurança do grupo, pela coleta de provas para um eventual processo criminal, faz apreensão de armas, prisão de criminosos, interdição do local de trabalho e apreensão da produção quando se trata de atividade ilegal.
5. Coordenadoria Nacional de Combate ao Trabalho Escravo – CONAETE - criada em 2002, é uma das sete coordenadorias do Ministério Público do Trabalho. Sua criação possibilitou que a participação de procuradores do trabalho no Grupo de Fiscalização Móvel se tornasse sistemática.
Apesar do grande número de trabalhadores que ainda é submetido à situação análoga a de escravo no Brasil, registra-se avanços nos últimos anos no combate a esse tipo de crime. Antes o Brasil era denunciado pela omissão, hoje o país é referência no que se refere à criação de institutos de proteção ao trabalho humano.
Todavia, há ainda, um longo caminho a percorrer para que se obtenha de forma efetiva o combate do trabalho análogo ao de escravo no Brasil.
As ações conjuntas no Brasil, envolvendo a OIT e várias entidades e organizações, dentre essas o Ministério Público do Trabalho, o Ministério do Trabalho e Emprego e a Polícia Federal, têm sido determinantes no enfrentamento do trabalho análogo ao de escravo.
Ademais, depreende-se que o principal fundamento para a vedação de todas as espécies de trabalho análogo ao de escravo é a dignidade da pessoa humana, pois não há se falar em dignidade sem respeito à integridade física, mental e moral do ser humano, sem que haja liberdade, autonomia e igualdade em direitos, sem serem minimamente garantidos os direitos fundamentais previsto na Constituição Federal.
Percebe-se, por conseguinte, que o princípio da dignidade da pessoa humana impõe ao Estado não somente um dever de abster-se, que se exprime na obrigação de não praticar atos contrários à dignidade da pessoa humana, mas também uma obrigação positiva, no sentido de impor aos agentes públicos o dever de adotar condutas e estratégias políticas, com o fim de tornar efetiva e resguardar a dignidade pessoal dos indivíduos.
Logo, cabe ao Estado, não apenas conferir ao homem a oportunidade de acesso ao trabalho, mas também garantir que o mesmo seja executado em condições decentes, de forma a garantir a efetividade do princípio da dignidade instituído como fundamento do estado democrático de direito.
Nítida a compreensão de que a lei de abolição instituída em 1888, por si só, não foi suficiente para impedir que a exploração do trabalho análogo ao de escravo, consubstanciado em práticas igualmente discriminantes e supressoras da liberdade do trabalhador, persistisse aos tempos atuais, transcorridos os mais de 130 anos.
Observou-se também que a pratica do trabalho análogo ao de escravo, está impregnado principalmente no meio rural brasileiro profundamente marcado pela desigualdade no acesso e na distribuição da terra, e que tem na violência contra o trabalhador uma característica endêmica de sua estrutura.
Assim, embora a escravidão contemporânea seja diferente da existente no período colonial, por não ser mais possível juridicamente, como naquela, o exercício do direito de propriedade sobre a pessoa do escravo, as práticas atuais também aviltam a dignidade da pessoa humana, seja pela exposição do trabalhador a condições degradantes ou trabalhos forçados.
Conclui-se, que embora as ações governamentais tenham obtido êxitos, o problema ainda persiste no Brasil, o que requer também a participação efetiva da sociedade no combate a esta chaga social, bem como das entidades não governamentais organizadas e órgãos sindicais.
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Bacharel em Direito pela Universidade Federal de Mato Grosso do Sul. Especialista em Direito Constitucional pela Faculdade Damásio. Especialista em Teoria do Estado, relações privadas e processo pelo Centro Universitário da Grande Dourados-UNIGRAN. Servidora Pública do Ministério Público da União desde 2012.
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: OLIVEIRA, Vilma Jesus de. Princípio da dignidade na efetivação da erradicação do trabalho análogo ao de escravo Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 16 mar 2023, 04:22. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/artigos/61174/princpio-da-dignidade-na-efetivao-da-erradicao-do-trabalho-anlogo-ao-de-escravo. Acesso em: 23 nov 2024.
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