RESUMO: O presente trabalho versa acerca da violação do direito à honra e à imagem dos cidadãos situados na margem da sociedade brasileira. De fato, há, na presente sociedade, altos índices de violência atrelada aos povos marginalizados refletindo no crescimento das ofensas contra à honra e à imagem dos cidadãos que se encontram no ostracismo social. Objetivando a salvaguarda desses direitos na observância dos Direitos Humanos e à dignidade da pessoa humana, o estudo em tela parte de preceitos constitucionais, humanos e doutrinárias, versando sobre os preconceitos sociais junto ao levantamento de dados referentes ao assunto, expondo o grau de desrespeito entrelaçado com a alta taxa de violação e a forma pejorativa de tratamento da população não residente nas favelas e as grandes mídias para com o povo marginalizado.
PALAVRAS CHAVES: Violação; Direitos da Personalidade; Honra; Imagem; Periferia.
CONSIDERAÇÕES INTRODUTÓRIAS
A presente pesquisa pretende discutir a violação do direito à honra e à imagem da população marginalizada, a partir da incidência do preconceito contra a população periférica.
Honra e imagem estão presentes no rol dos direitos de personalidade inseridos pelo Código Civil brasileiro em seus artigos 11 ao 21, integrando o mesmo capítulo onde estão dispostos outros direitos essenciais como a intimidade, a vida e ao nome. Esses direitos de características inatas, absolutas, irrevogáveis, irretratáveis, irrenunciáveis, intransferíveis, entre outras, além de constituírem os elementos básicos para vida humana e o convívio social, salvaguardam os meios necessários para a promoção do desenvolvimento da personalidade, tutelando a busca por uma vida digna ao indivíduo. Nas disposições relativas a tais direitos estão presentes as prerrogativas de proteção jurídica às pessoas naturais, representando mais um meio garantidor da tutela do princípio da dignidade da pessoa humana, a qual constitui o fundamento basilar da ordem jurídica pátria.
Diante disso, é evidente a relação intrínseca entre os direitos que são objeto deste estudo e os Direitos Humanos, visto que, o contexto humanista das codificações atuais como a Declaração Universal dos Direitos Humanos (DUDH), o Pacto de São José da Costa Rica e os direitos e garantias fundamentais da Constituição Federal brasileira (CF/88) representam pano de fundo para os direitos da personalidade.
Baseado nesse aspecto, é imperioso lembrar que os ícones da honra e imagem se relacionam diretamente com a vida digna de um indivíduo e seus direitos mais basilares, sendo assim, são protegidos de modo que evitem possíveis lesões. Dessa forma os diplomas legais dos vários planos hierárquicos normativos vigentes nessa Pátria - a exemplo dos art. 12 da Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão/48; art. 5º, V e X, da Constituição Federal /88; art. 11 da Convenção Interamericana de Direitos Humanos de 1969; art. 20 CC/02; art. 138 ao 141 CP/40 - põe a salvo o cidadão contra possíveis ameaças a esses direitos.
Todavia, em que pese as variadas disposições legais para salvaguardar tais direitos, o contexto fático atual da sociedade brasileira denota uma massiva violação a esses bens jurídicos, haja vista que a honra e imagem de uma parte da população, os habitantes da periferia, são lesadas diariamente pela reprodução de uma imagem pejorativa a respeito desses habitantes.
As demais classes, aquelas que não sejam habitantes das áreas periféricas, ao repassarem a imagem que todos moradores das favelas são bandidos, assaltantes, estupradores, aproveitadores, más pessoas, usuários de drogas, ou seja, “não prestam” na linguagem popular, realizam um julgamento sumário sem oportunidade de defesa e condenam todos os habitantes das comunidades a uma situação de criminalidade; desse modo, a honra e a imagem de todos os cidadãos favelados são afetados drasticamente.
A situação se agrava quando analisada conjuntamente com o exame do sujeito reprodutor desse preconceito, visto que se constata que, na maioria das vezes, é uma pessoa de classe mais elevada que maltrata e despreza os cidadãos das classes inferiores. Ademais, soma-se a isso, a disseminação da pejoratividade realizada pelas mídias comunicativas, em que só retratam a favela como ambiente hostil, sujo, de criminalidade e pessoas de má índole. Decorre disto grave prejuízo aos marginalizados, já que, através dessa reprodução desenfreada, cria-se na sociedade como um todo uma transformação de uma inverdade em convicção geral que passa a integrar o pensamento das demais pessoais, contribuindo para que aumente o número de desprezo, humilhações e preconceito em geral em relação àqueles que compõem as classes maginalizadas da comunidade.
Nesse contexto, o trabalho em tela objetiva analisar e discutir a ocorrência de violação dos direitos de personalidade no tocante a honra e imagem da população marginalizada frente aos índices de preconceito e reprodução pejorativa da imagem do povo periférico na sociedade brasileira, e as consequentes implicações jurídicas, a exemplo da possibilidade de a situação ensejar danos morais coletivos.
Isto posto, visando a universalidade do exercício dos direitos da personalidade e efetivação dos direitos humanos, o estudo exibido se justifica pela necessidade de reconhecer que o preconceito contra esse grupo marginalizado afeta diretamente a honra e, imagem individual e coletiva daqueles habitantes. Outrossim, baseia-se na crescente necessidade de suscitar discussões acerca das violações aos direitos elementares dos habitantes periféricos, fato que representa grave empecilhos para a consecução de uma sociedade igualitária, justa e solidária, refletindo ainda, no obste da garantia da efetivação plena dos direitos fundamentais e o devido exercício da cidadania dos indivíduos.
METODOLOGIA
MÉTODO DE ABORDAGEM
Os métodos de abordagem foram o dialético e o indutivo. O primeiro se justifica pela necessidade do pesquisador contrapor e questionar conceito prontos e concretos, aplicando perspectivas distintas mediante um fenômeno, permitindo assim obter conclusões novas a respeito do tema e contextualizar o objeto de estudo com a dinâmica social que ele está inserido. A aplicação desse método deu-se num primeiro momento ao analisar a dialeticidade dos autores a respeito da possibilidade de violação da honra e imagem da população periférica como um todo, e aplicar a possibilidade de danos morais coletivos. O segundo método justifica-se pela necessidade do pesquisador a partir de observação suficientes de casos concretos, generalizar e confirmar uma dada realidade. Diante disso, foi realizado uma generalização a partir de dados específicos de comunidades periféricas com vistas a traçar uma realidade nacional.
TÉCNICAS DE PESQUISA
O desenvolvimento das pesquisas deste estudo baseia-se na classificação advertida por Vergara (1998), a qual divide os tipos de pesquisa em relação aos meios e os fins:
Quanto aos fins, a pesquisa foi descritiva, bem como explicativa. Descritiva, porque descreveu o cenário da violação aos direitos da personalidade, relativo aos ícones da honra e a imagem no âmbito brasileiro e as possíveis providências que podem ser tomadas para a reparação dos danos. Explicativa, porque justificou quais os motivos que levam a essa discriminação, esclarecendo assim os elementos que deram causa ao problema.
Quanto aos meios, a pesquisa foi bibliográfica e documental. Bibliográfica, porque para a fundamentação teórico-metodológica do trabalho realizou-se investigação em doutrinas, leis, artigos científicos, periódicos sobre assuntos de: população marginalizada, preconceito com as periferias, reprodução de imagem pejorativa das favelas, danos morais coletivos, entre outros. Documental, porque foi realizada análise dados em documentos de pesquisas realizadas por instituições especializadas no assunto, referente a opinião pública sobre a favela e seus habitantes.
UNIVERSO E AMOSTRA
O trabalho teve como universo as periferias em âmbito nacional, seus habitantes e a população não residente nas favelas, pois assim pôde-se ter uma visão ampla da opinião pública sobre o assunto. A amostra da pesquisa documental correspondeu as pesquisas realizadas por instituto especializados, a saber os Instituto Data Favela e Data Popular, os quais realizaram estudos acerca da população marginalizada e respectiva imagem disseminada nas comunidades periféricas do Rio de Janeiro.
POPULAÇÃO MARGINALIZADA
Está presente no imaginário social quando se refere a favela brasileira um cenário que reflete um misto de indagação e desconfiança das condições de vida e da população que lá reside. Pobreza, insegurança criminalidade, violência, precariedade de vida, são as primeiras imagens que vem em mente do senso comum quando se pensa em favela. Essa realidade não é exclusiva do presente, sendo reproduzida ao longo da história da terrae brasilis, ultrapassando gerações e gerações como se fosse um ensinamento hereditário.
Ao lançar um olhar para o passado pode-se perceber que a sociedade brasileira é marcada por um curso histórico de preconceitos oriundos de uma cultura de exclusão de milhares e milhares de brasileiros que sempre estiveram à margem da sociedade, a exemplo dos afrodescendentes, ameríndios, nordestinos, imigrantes trabalhadores das lavouras, entre outros.
Essa discriminação não ignorou o fenômeno do surgimento dos grandes centros urbanos, haja vista que com a eclosão das cidades, e o intenso êxodo rural, a sociedade brasileira se construiu fundada em uma dicotomia das pessoas dos asfalto e pessoas das favelas – expressões que aludem ao desenvolvimento das respectivas áreas e por si só evidenciam o preconceito arraigado no seio social -, sendo essas últimas habitantes de áreas periféricas das cidades.
Desse modo, criou-se as favelas nas margens das cidades, sendo suas habitantes pessoas de baixas classes sociais pois eram nesses locais onde achavam condições que as permitiam sobreviver. Assim, essas pessoas representavam o desvio dos padrões da normalidade dos cidadãos das demais áreas urbanas, pois nestas haviam condições muito melhores e mais condizentes com uma vida digna de uma pessoa do que aquelas. A partir disso, aquele preconceito que acometera por muito tempo aos negros, índios, e demais marginalizados, agora incidia sobre os moradores dessas periferias, em razão do fato dos favelados não representarem aquele modelo de pessoa esperada para a sociedade comum. Pautando nisso, por representarem a anormalidade e o pobre da sociedade, não demorou muito para os fatos negativos, acontecimentos ruins e anomias sociais recaírem sobre tais indivíduos, uma vez que as condutas maléficas, criminosas, não eram esperadas do “cidadão normal”
Diante disso, paulatinamente, construiu-se na sociedade um estigma do perfil desses indivíduos que rapidamente por meio das mídias e das pessoas que eram acometidas pelos flagelos sociais foi reproduzido, acometendo assim a imagem de todo e qualquer cidadão que se dissesse habitar na periferia. Analisando tal fato, Goffman (1998) faz importante ponderação em seus estudos acerca de sujeitos excluídos da sociedade, aduzindo que as marcas sociais são construídas historicamente pelos estigmas que impõe os sujeitos marginalizados como padrão fora da normalidade, estando assim inabilitado para ter a aceitação social plena.
Essa identificação negativa cada vez mais assentou raízes no imaginário popular, chegando a construir uma imagem sólida, porém falsa do que representa a favela. Grande influência nessa visão pejorativa teve a mídia, pois grande maioria da retratação dos marginalizados nos diversos veículos de comunicação era referente a assaltos, violência, âmbito das drogas, desonestidade, entre outras. Novelas, programas de entretenimento, noticiário informativo, sempre se deu no Brasil com assuntos vinculados a imagens atinentes a criminalidade, raramente evidenciando aspectos positivos das comunidades, já que veicular informações acerca da criminalidade e violência - muitas vezes de forma sensacionalista – angariava mais audiência do que mostrar a realidade de fato. Pautando no exame deste cenário de atuação reprovável da mídia, que Correa pondera que a favela:
já foi representada como foco de doenças; o local da pureza do samba e, mais recentemente, assumiu a conotação de antro da marginalidade, habit de classes perigosas. A favela, agora mais do que nunca, carrega o peso de ser o território, por
excelência, de traficantes de droga. A violência é a associação mais corriqueira quando o assunto favela é debatido, mencionado ou representado nas narrativas que circulam na cultura das mídias (CORRÊA, 2006, p.52)
Ante a isso, não é de se espantar que a sociedade em geral, ao ouvir constantemente discursos com visões negativas do povo da favela, ver o noticiário diário e se deparar com crimes praticados por marginalizados, além de ser telespectadora de programas que reproduz uma imagem pejorativa dos habitantes das comunidades, consolidou estereótipos e a realidade passou a ser vista de forma distorcidas, com generalizações indevidas, distorcidas e prematuras.
Frente a isso, com uma imagem pejorativa consolidada em grande parte da população e o constante medo de ser acometido pelas calamidades da sociedade (aqui atribuindo a autoria aos favelados) o “cidadão comum”, começou a alimentar a imagem produzida ao seu redor e passou a reproduzir para os demais.
Assim, os ambientes mais afastados do centro da cidade tenderam a ficar cada vez mais isolados do núcleo social ante o crescimento urbano e, devido a isso, aqueles que estavam a margem da sociedade foram aprofundados ainda mais para o ostracismo e preconceito. Os fatos aqui discutidos são comprovados na realidade pelos dados divulgados no 2º Fórum da Nova Favela Brasileira, em 2015, onde o Instituto Data Popular apresentou uma pesquisa nacional que denuncia que 69% das pessoas que não moram nas periferias têm medo ao passar em frente a uma favela, além de que 51% dos entrevistados afirmaram que as primeiras palavras que lhe vêm à mente quando ouvem falar de periferia são drogas e violência.
Diante disso, é notório que um dos principais fatores desse quadro é a reprodução da imagem difamatória do povo marginalizado. Corroborando o exposto, ainda no mesmo evento foi divulgada a pesquisa do Instituto Data Favela onde expõem que 84% dos habitantes dessas comunidades afirmam sofrer preconceito, aliado com os 64% que acreditam que as favelas são noticiadas de forma negativa.
Relativo ao exposto, insta lembrar que não se ignora o fato de índices de violência, drogas e criminalidade existentes em algumas favelas do Brasil; contudo, tal argumento não justifica a reprodução desenfreada da imagem negativa de todo e qualquer habitante da favela, não podendo assim atribuir todos os males da sociedade, principalmente os delitos, a esses cidadãos; visto que a autoria de um crime vindouro tem-se seu sujeito como indeterminado, podendo ser qualquer pessoa, seja ela do asfalto ou da favela.
Sendo assim, é perceptível a ocorrência de reprodução negativa da imagem dos favelados, fato esse que é vedado pela lei, pois há proteção jurídica aos direitos da imagem de tais indivíduos, e no contexto social hoje, este bem jurídico resta-se lesado, devendo assim ser protegido através das vias legais. Ademais, cabe destaque que por meio dessa visão negativa dos marginalizados, fica afetada também a repercussão social do indivíduo e assim a sua honra. Ambos os direitos, imagem e honra, constituem direitos da personalidade, e sua tutela é indistinta, ou seja, deve abranger a todos, não podendo assim, sofrer quaisquer mitigações, sobretudo, em razão de pertencimento a uma comunidade periférica ou não. Destarte, faz-se necessário analisar as disposições legais e os direitos lesados nessa situação.
DIREITO A IMAGEM E A HONRA E OS DIREITOS DA PERSONALIDADE
Os direitos da personalidade, os quais estão inseridos a imagem a honra, constituem direitos básicos fundamentais de todos os cidadãos. Tais direitos como lembra Karl Larenz (1973) foi produto de uma conquista frente ao desprezo e menosprezo da dignidade humana por parte do Estado, e nas constantes lesões as personalidades dos indivíduos. Sendo assim, muitos desses direitos vieram a fazer parte de diversos ordenamentos e Declarações de Direito, para salvaguardar os cidadãos perante as arbitrariedades do Estado. Dessa forma, com vistas a assegurar a dignidade humana, conferindo consecução a esse fundamento da República, que foram protegidos os bens jurídicos necessários a uma vida digna e tais direitos foram inseridos no nosso ordenamento jurídico.
Destarte, é importante destacar no que consiste esses direitos da personalidade. Maria Helena Diniz, buscando uma conceituação que abrangesse toda sua amplitude, os definiu por
“ direitos subjetivos da pessoa de defender o que lhe é próprio, ou seja, sua integridade (vida, alimentos, próprio corpo, vivo ou morto, partes separadas do corpo vivo ou morto); a sua integridade intelectual (liberdade de pensamento, autoria científica, artística ou literária) e sua integridade moral (honra, recato, segredo pessoal, profissional, e doméstico, imagem , identidade pessoal, familiar e social). (DINIZ, Maria Helena, 2005, p. 135)
Pelo conceito transcrito, ver-se que os direitos da personalidade são direitos fundamentais inerente a todo e qualquer indivíduo que, sem eles, não tem condições mínimas para possuir uma vida digna, tampouco desenvolver-se como pessoa ou cidadão. Por essa importância, é que são considerados direitos imprescritíveis, inatos, absolutos, irrenunciáveis, inalienáveis, intransmissíveis, impenhoráveis, entre outras características. Tais direitos representam principalmente a promoção da pessoa humana como cerne de uma ordem jurídica, ou seja, toda atuação seja do Estado ou de particulares devem guardar obediência a esses direitos.
Devido a sua relevância foram disciplinados nos mais variados planos hierárquicos do ordenamento jurídico nacional e internacional, como forma de realizar não apenas a proteção e formalização, como também buscou-se dar materialidade aos mesmos. De acordo com toda a legislação referente a tema, principalmente o disposto entre os artigos 11 e 21 do Código Civil de 2002, pode-se afirmar que os direitos da personalidade compreendem: a vida e a integridade física, norma da pessoa natural e jurídica; imagem, classificada em imagem retrato e imagem atributo. A primeira diz respeito a reprodução corpórea da imagem, representada pela fisionomia de alguém, enquanto que a segunda é a soma ou a repercussão social de alguém; honra, subclassificada em honra subjetiva (pensamento psíquico sobre si, autoestima) honra objetiva (repercussão social da honra); Intimidade. Insta ressaltar que este rol é um rol exemplificativo como prevê o enunciado 274 da IV Jornada de Direito Civil.
Assim por esses direitos pautarem-se na dignidade da pessoa humana, o Ordenamento Jurídico deve protegê-los e promovê-los para todos indivíduos indistintamente, ou seja, independente de raça, crença, ideologia, posição social, ou qualquer outra divergência que possa existir entre as pessoas.
Pautado nessas explanações, pode-se notar que os direitos em comento devem amparar todos os indivíduos; desse modo, trazendo para análise da problemática em debate, deve amparar de maneira plena os moradores que residam nas favelas, pois mitigar ou negar proteção a esses direitos seria afetar a dignidade humana das pessoas.
Nessa conjuntura, os ícones da imagem e honra dos cidadãos marginalizados devem ser salvaguardados, não podendo sofrerem lesão. Esses elementos da personalidade não são inferiores aos outros, com exceção da vida. Nesse ínterim, considerando a relevância de tais direitos para uma vida plena e digna, foi que sugiram variados dispositivos buscando regulamentar o tema, e oferecer proteção jurídica. Pode-se constatar, a prima facie, no mais importante documento sobre direitos do homem, a Declaração Universal dos Direitos Humanos de 1948 que em seu art. 12 dispõe que:
“ ninguém será sujeito à interferências em sua vida privada, em sua família, em seu lar ou em sua correspondência, nem a ataques à sua honra e reputação. Todo ser humano tem direito à proteção da lei contra tais interferências ou ataques”. (grifos nossos)
Na mesma linha, a Convenção Intramericana de Direitos Humanos de 1969, mais conhecida como pacto San José da Costa Rica, a qual o Brasil é signatário, estabelece em seu art. 11 a proteção a honra e a dignidade. Não obstante a legislação internacional que também vigora na pátria verde-amerela, o ordenamento jurídico interno elenca na Constituição Federal de 1988 – Lei Suprema – que “são invioláveis a intimidade, a vida privada, a honra e a imagem das pessoas, assegurando o direito a indenização material e moral” art 5 X (grifos nossos). Continuando, dispõe também acerca do direito a imagem em seu art. 5 V, versando que “é assegurado o direito de resposta, proporcional ao agravo, além da indenização por dano material, moral ou à imagem.
Na disciplina infraconstitucional, o Código Civil também regula a proteção de tais bens jurídicos, estabelecendo em dispositivo próprio especifico dos direitos aqui discutidos. Essa previsão está importa no art. 20 da lei, dispondo:
Salvo se autorizadas, ou se necessárias à administração da justiça ou à manutenção da ordem pública, a divulgação de escritos, a transmissão da palavra, ou a publicação, a exposição ou a utilização da imagem de uma pessoa poderão ser proibidas, a seu requerimento e sem prejuízo da indenização que couber, se lhe atingirem a honra, a boa fama ou a respeitabilidade, ou se se destinarem a fins comerciais.
Sem embargos a essas disciplinas, o Código penal traz ainda capítulo próprio para regular o tema, sendo ele Capitulo V - Dos Crimes Contra a Honra, disposto nos arts 138 a 140.
Outrossim, insta lembrar que o ato de reprodução da imagem pejorativa dos habitantes das periferias além de violar todas as disposições retro narradas, ainda lesa quatro princípios básicos constitucionais. O primeiro é o da dignidade da pessoa humana, pois há lesão de direitos fundamentais e necessários ao homem para uma vida digna, vez que lesando a imagem e a honra, há o abalo de reputação social, causando danos drásticos não só na sua imagem externa, mas também pode ensejar problemas psíquicos do indivíduo em virtude do opressão e preconceito decorrente da visão negativa que os outros tem dele. O segundo princípio é o da solidariedade social, o qual representa objetivo da República Federativa do Brasil, visto que aduz “construção de uma sociedade livre, justa, e solidária”(art 3 I CF); aqui, tem-se o desrespeito em virtude da quebra da solidariedade entre seu povo, pois invés de estarem buscando agirem solidariamente uns com os outros na busca da redução das desigualdades, faz-se exatamente ao contrário, já que disseminam uma visão pejorativa de parcela da população aumentando mais ainda as desigualdades existente, afastando-se também da justiça prevista pelo dispositivo. O terceiro principio violado é o da igualdade lato sensu, ou isonomia, eis que “todos são iguais perante a lei” (art 5º, caput CF/1988), e os atos descritos anteriormente traduz-se uma discriminação inaceitável na ordem jurídica do nosso país, haja vista que não é o local onde a pessoa reside que determinará sua índole, e tampouco se aptidão para o crime. Por fim, o último principio violado é o da presunção de inocência, pois, ao reproduzirem a generalização que os habitantes da periferia são os responsáveis pelas desgraças da sociedade, sobretudo, responsáveis sobre o crime, é realizado um julgado sumário, sem provas e sem o devido processo legal, fato que não se adequa a um Estado Democrático de Direito e uma Sociedade igualitária.
Muito embora esteja claro as lesões, ainda há um embate doutrinário discutindo se tais situações se encaixariam na violação da imagem e honra ou não, em razão dos eventos fáticos serem contra um grupo, ou seja, transindividuais, contrariando assim o caráter pessoal dos direitos da personalidade. Contudo, entendemos com esse estudo que ocorre sim a lesão aos ícones dos direitos da personalidade; uma vez que, a doutrinária pauta-se na divisão entre honra objetiva e subjetiva que indicam repercussão social e sentimento do indivíduo respectivamente. Desta maneira, as ações de reprodução de imagem pejorativa dos marginalizados e o preconceito para com esses, fazem com que a repercussão dos habitantes do subúrbio seja afetada, ofendendo desse modo a honra objetiva. Por outro lado, a discriminação causada por tais ocorrências fáticas pode ferir o sentimento desses cidadãos, afetando a sua honra subjetiva.
Partindo do pressuposto da violação à honra e à imagem dos indivíduos que se encontram à margem da sociedade, a lesão não está relacionada apenas com o estado físico dos indivíduos da periferia, mas também ao direito da personalidade no âmbito psique, na qual afeta diretamente o estado psíquico do ser humano, sendo sua reparação é impossível. Com isso há apenas a retratação e compensação material, direito assegurado pela art 12 do Código Civil de 2002. Em consonância a isso, ressalta-se ainda a violação da imagem-atributo, no tocante ao dano dos valores que aquelas pessoas representam para a coletividade, pois, o que se verifica na sociedade brasileira é essa reprodução desenfreada da imagem pejorativa da população periférica, referente a estereótipos, atitudes e qualidades criando padrões difamatórios, denunciando assim erroneamente as características e representações daquele povo.
Para a ratificação da possibilidade de ocorrência de dano sob o grupo de indivíduos e não apenas a pessoa em singular, é importante destacar a crescente posição doutrinária sobre o dano moral em coletivo. Carlos Bittar Filho (1994) versa que esse instituto é uma injusta lesão da esfera moral da comunidade, violando a esfera psíquica e moral da personalidade em ambas a dimensões: individual ou coletiva.
REPARABILIDADE DO DANO
Perante ao supra narrado, surge o questionamento acerca da reparabilidade desse dano. O art. 12 CC/02 versa sobre a possibilidade de exigência para que cesse a ameaça, ou lesão, a direito da personalidade, e reclamar perdas e danos, sem prejuízos de outras sanções previstas em lei. Dessa forma, ocorrendo tais lesões, pode o cidadão ou o grupo de indivíduos pedir que a tal vinculação a imagem pejorativa deixe ser feita tanto pelos canais midiáticos, quanto pelas pessoas que são identificadas produzindo tais atos. Decerto que como o problema já está em dimensões exorbitantes, pode no início parecer pífio o resultado e eficácia das demandas judiciais, porém acredita-se que uma sanção cominada também tem caráter educativo e poder de conscientização, podendo vir a trazer benefícios a longo prazo.
Relativo a isso, há de ser ressaltado que existe um conflito dos direitos a honra e a imagem e o direito fundamental de liberdade de expressão estabelecido na Constituição em seu art. 5 IV CF/88, o qual prevê que “é livre a manifestação do pensamento, sendo vedado o anonimato”. Coaduna com esse dispositivo o inciso IX do mesmo artigo, o qual expressa “é livre a expressão da atividade intelectual, artística, científica e de comunicação, independente de censura ou licença”. Por fim, tutelando esse direito, estabelece a Lei Suprema em seu art. 220 que “a manifestação do pensamento, a criação, a expressão e a informação, sob qualquer forma, processo ou veículo não sofrerão qualquer restrição, observado o disposto nesta Constituição.” Completando, no parágrafo segundo do mesmo artigo versa que “é vedada toda e qualquer censura de natureza política, ideológica e artística.”
Nesse caso agora o que existe é uma contraposição entre si de direitos fundamentais, os quais representam normais gerais, ou seja, princípios norteadores, sendo assim para a solução do problema deve ser a aplicação da técnica de ponderação, na qual o aplicador mediante análise do caso irá ponderar pela utilização de um ou de outro. Cabe destaque aqui, que o presente artigo é totalmente contrário a prática de censura, o que se objetiva apurar são as manifestações e reproduções rasas e inverídicas, que não guardam relação com a realidade, e tendem a macular a honra e a imagem do povo marginalizado, tendo consequências drásticas para a vida de milhares de pessoas. Assim, cabe nos casos apreciados começar a realizar tal controle desses sofismas que tanto prejudicam a população.
Por outro lado, a respeito não mais das reproduções pejorativas vindouras, mas acerca das já concretizadas, entende-se que pode ensejar dano moral coletivo. A primeira sustentação para tal assertiva é a previsão constitucional onde o Texto Maior assegura “o direito de resposta, proporcional ao agravo, além da indenização por dano material, moral ou à imagem”, considerando ainda “invioláveis a intimidade, a vida privada, a honra e a imagem das pessoas, assegurado o direito à indenização pelo dano material ou moral decorrente de sua violação” em seu artigo 5º V, X.
Segundo Pereira (2005) o entendimento individualista dos conflitos sociais que resiste a dar espaço à visão coletiva pode levar o interprete afirmar que a reparabilidade do dano é exclusivamente para pessoas físicas individualmente consideradas. Todavia, a norma constitucional não torna adstrita a reparação do dano a tais pessoas. Assim sendo, a coletividade tem o direito de reclamar os danos que venha a sofrer, em virtude da Constituição não excluir outros direitos decorrentes do regime de princípios por ela adotados, ou dos tratados internacionais em que o Brasil seja parte (art. 5º §2º).
Nesse sentido, há possiblidade da reparação por dano moral coletivo, pois deve-se levar em consideração o tratamento transindividual dado os interesses coletivos, vez que há uma importância de tais interesses em ser defendido pela coletividade. Nessa perspectiva, o interesse acaba surgindo uma vez que a dor psíquica que embasou a teoria do dano moral individual, acaba cedendo lugar a um dano moral coletivo, já que há na coletividade um sentimento de perda de valores, de desprezo que afeta negativamente toda o grupo (RAMOS, 2001).
Baseado nesses argumentos, pode-se afirmar que a reprodução da imagem pejorativa de toda população periférica enseja o dano moral coletivo, porque o interesse pretendido e tutelado transcende a individualidade de cada um e abarca a pluralidade da população periférica como um todo. Dessarte, uma única reprodução pejorativa acarreta danos a toda coletividade e não apenas ao indivíduo singular.
Para corroborar tal entendimento, faz-se necessário lançar a mão da caracterização do dano moral coletivo construída por Pereira (2005) enquadrando no caso concreto. Em sua tese, aduz que o dano moral coletivo é constituído de três componentes. O primeiro é a agressão a um conteúdo relevante implicando em repulsa coletiva, e tal fato pode ser percebido no interesse do povo da favela. O Segundo constitui-se de fato danoso ou irreversível, haja vista que a ofensa pode acarretar impossibilidade de desfazimento do ato donoso, fato esse que se constata no objeto de estudo desse trabalho, pois a disseminação de inverdades e conteúdo pejorativo acerca dos suburbanos não há como ser revertida. Por fim, o autor entende que é componente do dano moral coletivo também as consequências históricas para a coletividade, podendo romper com o equilíbrio social, cultural e patrimonial, e afetar significantemente a qualidade de vida futura. Aqui reside a principal adequação, porque o dano da imagem da população periférica macula a reputação dos habitantes das periferias não só do presente, como também do futuro, trazendo assim danos imensuráveis àquele povo. Por tudo isso, entende-se aqui que há sim a possibilidade de pleitear dano moral coletivo frente a essa problemática.
CONSIDERAÇÕES CONCLUSIVAS
Diante do exposto, conclui-se que no Brasil há uma consistente violação a honra e a imagem do povo marginalizado, devendo-se principalmente ao grau de propagação de calúnias, inverdades e preconceitos pelas pessoas que não residem nas favelas, potencializado pelas veiculações de informações midiáticas negativas acerca desses residentes em zonas periféricas que formam no senso comum da população uma imagem distorcida da periferia e de seus habitantes. Dessa forma, é perceptível que a sociedade brasileira segue seu curso de discriminação dos povos marginalizados, acarretando grande barreira para que parte da população seja tratada de maneira igualitária e possa ter a chance de viver dignamente.
Assim com tais atitudes de disseminação, há uma clara lesão a princípios básicos estruturantes de todo ordenamento jurídico e de direitos essenciais, principalmente àqueles que se referem a promoção e tutela da pessoa humana, a exemplo do direito da personalidade. Com isso, esse cenário contribui para o aumento das desigualdades existentes no país e a elevação de níveis de preconceito, fato que afasta a consecução de um dos principais objetivos da República “A construção de uma sociedade justa e solidária”.
Por fim, em que pese o cenário quase crônico de preconceito com os marginalizados, a atitude de reproduzir pejorativamente a imagem dos habitantes da favela, ferindo sua honra, enseja a possibilidade de tomadas de providências judiciais para evitar o dano vindouro, ou reparar o dano concretizado através da indenização por danos morais coletivos.
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Faculdade de Ciências Aplicadas e Sociais de Petrolina - FACAPE
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: CAVALCANTI, BÁRBARA ISADORA. Violação do direito à honra e imagem da população marginalizada no Brasil Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 10 maio 2023, 04:20. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/artigos/61428/violao-do-direito-honra-e-imagem-da-populao-marginalizada-no-brasil. Acesso em: 21 nov 2024.
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