GUSTAVO ANTÔNIO NELSON BALDAN
(Orientador)
RESUMO: O presente trabalho tem por finalidade realizar um estudo sobre a Lei Federal 14.382/2022 e normatização correlata, que teve grande importância para sociedade na medida em que passou a permitir a pessoa transgênero o direito de alterar seu prenome e sexo nos Livros de Registros Públicos sem necessidade da realização de procedimento cirúrgico de redesignação sexual, e nem mesmo o ajuizamento de ação judicial. Também busca analisar a repercussão dessas inovações na vida dos transgêneros, sob a ótica do princípio da dignidade da pessoa humana, e do direito ao nome, e quais são as implicâncias que essa nova legislação trouxe para a sociedade, e trazer situações de ordem prática para melhor ilustrar de que forma as conquistas alcançadas com o advento da Lei nº 14.382/2022, que relativizou ainda mais o princípio da imutalidade de nome com a nova redação dada ao artigo 56 da Lei 6.015/73.
Palavras-Chave: Nome. Alteração. Gênero. Sociedade. Identificação Social
ABSTRACT: The purpose of this work is to carry out a study on Federal Law 14.382/2022 and related regulations, which were of great importance to society insofar as they began to allow transgender people the right to change their first name and gender in Public Records Books without need to perform a sexual reassignment surgical procedure, and not even the filing of a lawsuit. It also seeks to analyze the impact of these innovations on the lives of transgender people, from the perspective of the principle of human dignity, and the right to a name, and what are the implications that this new legislation has brought to society, and bring practical situations to better illustrate how the achievements achieved with the advent of Law nº 14.382/2022, which further relativized the principle of immutability of name with the new wording given to article 56 of Law 6.015/73.
Key words: Name. Amendment. gender. Society. Social Identification
O nome é um direito de toda pessoa, direito da personalidade e elemento essencial e principal pelo qual nós somos identificados na sociedade. Por sua vez, é consabido que a utilização de nomes que não refletem a identificação de seu titular, é capaz gerar diversos constrangimentos, e muitas das vezes também sofrimento psíquico.
Por muito tempo vigorou no Brasil o princípio da imutabilidade do nome, postulado este que permitia a alteração do nome somente em situações excepcionais, como por exemplo a exposição do seu titular ao ridículo ou para proteção de testemunha, o que por sua vez somente era permitido através de um processo jurisdicional (Art. 57 da Lei 6.015/73).
Com a evolução da sociedade, aliado ao recorrente ajuizamento de ações judiciais em busca da alteração ou retificação de nome, esse princípio da imutabilidade passou, com o tempo, a ser relativizado pela doutrina e jurisprudência, que via como seu principal fundamento para tanto a necessidade dos livros de registros públicos se adequarem à dinâmica realidade das pessoas, e não o contrário, no sentido de obrigar estas pessoas a se adaptarem aos assentos registrais.
Essa evolução de imutabilidade para mutabilidade relativa do nome tem por fundamento precípuo a dignidade da pessoa humana (art. 1º, inciso III, da Constituição Federal de 1988). Sobre o conteúdo da dignidade da pessoa humana, Ingo Wolfgang Sarlet assevera que:
Assim sendo, temos por dignidade da pessoa humana a qualidade intrínseca distintiva reconhecida a cada ser humano que o faz merecedor do mesmo respeito e consideração por parte do Estado e da comunidade, implicando, neste sentido, um complexo de direitos e deveres que assegurem a pessoa tanto contra todo e qualquer ato de cunho degradante e desumano, como venham a lhe garantir as condições existenciais mínimas para uma vida saudável, além de proporcionar e promover sua participação ativa e corresponsável nos destinos da própria existência e da vida em comunhão com os demais seres humanos, mediante o devido respeito aos demais seres que integram a rede da vida (Sarlet,2001.p 41).
O reconhecimento da dignidade da pessoa humana como fundamento do Estado Democrático de Direito, juntamente com as transformações sociais paulatinamente verificadas desde o início deste século, possibilitaram que o ordenamento jurídico fosse reinterpretado para se adequar ao presente, culminando com isso, na alteração de algumas regras vigentes e na revisitação de outros conceitos arraigados na sociedade para permitir que alteração do nome e sexo das pessoas transgêneros pudessem ser concretizados extrajudicialmente, sem a necessidade dessas pessoas enfrentarem a via crucis de um processo judicial.
Por isso, que hoje, a negativa de alteração ou retificação do nome da pessoa em situações que a lei permite não mais se sustenta, uma vez que administrativamente e perante os cartórios já é contemplada essa possibilidade, ainda que para isso sejam exigidos uma série de informações e documentos para o procedimento, o que se justifica para garantir a segurança jurídica do ato; deixar de aplicar a legislação contemporânea nesse sentido implicará invariavelmente em violação dos direitos humanos, da dignidade da pessoa humana.
Posto isto será possível uma análise de questões relacionadas ao tema e sobre os direitos dos transgêneros na sociedade, a discussão sobre os impactos gerados por esses direitos, bem como os casos especiais de transgêneros e suas conquistas ao longo dos anos, mesmo diante do desamparo do ordenamento jurídico.
No que se refere à abordagem a pesquisa pode ser dita qualitativa. Qualitativa porque pretende trazer as percepções, ou seja, das representações e subjetividades jurídico-sociais dos operadores (sujeito objeto), concernentes ao tema proposto, identificando os aspectos comuns e incomuns de tais representações.
Do ponto de vista do método a pesquisa proposta seguirá a lógica indutivo-dedutiva, pois fará induções a partir das representações dos sujeitos-objetos, bem como deduções das normas existentes.
Quanto à coleta de dados o estudo proposto se caracteriza como análise de conteúdo e, por conseguinte se valerá de dados recolhidos de leituras e pesquisas feitas em fontes como documentos, a pesquisa se enquadra como sendo de revisão bibliográfica, cujos dados secundários serão obtidos em sites oficiais do Governo, nas Leis Civis e Leis de Registro Públicos, sendo passadas por artigos eletrônicos, e ainda na doutrina e na jurisprudência.
A pesquisa, quanto ao nível de profundidade é exploratória, visando proporcionar maior proximidade com o tema escolhido, através da leitura e documentação sobre os meios de retificação do registro civil dos transexuais antes dos procedimentos cirúrgicos.
O presente artigo tem como objetivo proporcionar a maior compreensão e assegurar a inclusão da pessoa transgênero e garantir o respeito de sua condição na sociedade, resguardar os demais direitos e principalmente demonstrar a possibilidade de modificação e alteração do prenome dessas pessoas e desempenhando, assim, um olhar mais atento para essas peculiaridades, que condiciona a alteração do prenome.
O objetivo específico é estudar a possibilidade de mudança do prenome e gênero dos transgêneros no Registro Civil, esclarecer minuciosamente a diferença entre os conceitos jurídicos acerca da identidade de gênero, sexo e orientação sexual e reconhecer a necessidade e a importância do nome.
No primeiro capitulo será abordada a importância da conquista desse direito que hoje é um assunto que tem muitos diálogos para ser estudado. Já no segundo capitulo será feita uma análise sobre a elevação dos princípios como base para a tomada de decisões que visam garantir os direitos da personalidade, com fulcro na liberdade, igualdade e dignidade da pessoa humana, os quais justificam o direito à autodeterminação de gênero. E por último no terceiro capitulo estudo sobre a Lei Federal 14.382/2022, que teve grande importância para sociedade na medida em que passou a permitir a pessoa transgênero o direito de alterar seu prenome e sexo nos Livros de Registros Públicos sem necessidade da realização de procedimento cirúrgico de redesignação sexual, e nem mesmo o ajuizamento de ação judicial.
2 BREVE ANÁLISE TEÓRICA DA TRANSGENERIDADE: CONCEITOS E CONSIDERAÇÕES GERAIS.
Primeiramente para melhor compreensão da temática é válido destacar as diferenciações conceituais entre as nomenclaturas: transexual, travesti e gênero.
TRANSEXUAL: Pessoa que se identifica com o gênero oposto ao seu sexo biológico. Ela pode ter feito a cirurgia de mudança ou não, e aceita seu corpo exatamente como ele é.
Já o TRAVESTI é a pessoa que tem papel de gênero feminino, mas não se reconhece como mulher ou homem. É o “terceiro gênero”. Mas elas sempre devem ser tratadas no feminino. A palavra "travesti" é muito estigmatizada, e discute-se que ela seja substituída apenas por transgênero".
E por último o conceito de GÊNERO referem-se a uma ideologia no sentido semelhante a sexo. Não obstante “gênero” ser empregado no sentido semelhante a sexo, este diz respeito às distinções sociais compreendidas como papel de gênero.
Dessa forma, Judith Butler explica que o gênero expressa “a estilização repetida do corpo, um conjunto de atos repetidos no interior de uma estrutura reguladora altamente rígida” (2003, p. 59). Esclarecendo desde já que grupo vulnerável e minoria não são sinônimos; grupo vulnerável tem uma relação com gênero, já minoria são apenas grupos que estão incluídos no grupo de vulneráveis e têm apenas relação cultural diferente da maioria.
A partir da vigência da Constituição Federativa do Brasil de 1988, atentou-se no ordenamento jurídico brasileiro a valorização dos direitos humanos e a busca do ideal de justiça e ética; nesse raciocínio as pessoas transgêneros como quaisquer outras também são tuteladas pelos preceitos constitucionais, desenvolvendo assim, para o Direito alcance da harmonização, dignidade e igualdade plena entre todos os indivíduos; quando se busca resguardar a dignidade da pessoa humana, não há que se distinguir entre trans e não trans, todos são seres humanos e merecem o mesmo respeito perante à lei.
3 DIREITO À DIGNIDADE DA PESSOA HUMANA.
A dignidade da pessoa humana é princípio basilar do ordenamento jurídico, o qual tem o condão de proporcionar o amplo desenvolvimento da personalidade humana em sua plenitude, tanto no aspecto material quanto no psicológico, devendo ser observado por todo o ordenamento jurídico.
O Princípio Constitucional da Dignidade da Pessoa Humana identifica um espaço de integridade moral a ser assegurado a todas as pessoas por sua só existência no mundo. A dignidade da pessoa humana é de origem filosófica, o qual não abarca somente caráter normativo, mas, compõe-se, também, de aspectos ético-valorativos.
A despeito de sua importância, a conceituação da dignidade da pessoa humana é algo extremamente difícil, talvez impossível, pois se trata de um conceito fluido,multifacetário e multidisciplinar. Por isso, o direito necessita recorrer a outras áreas do saber humano, como a filosofia, a política, a sociologia, a teologia, a história etc., as quais se ocupam há mais de um problema, o que não significa que o tenham resolvido.
Por ser tal princípio tão amplo e universal, conduz todo o ordenamento jurídico e é o núcleo de todos os direitos fundamentais, com isso consagra se que os princípios insculpidos no art. 1º, da CF são princípios estuturantes do Estado, ou seja, manifesta-se em toda estrutura do Estado, não ´podendo nehuma medida, política ou decisão a ser adotada violá-lo. Nos dizeres de Ingo Sarlet:
A dignidade evidentemente não existe apenas onde é reconhecida pelo Direito e na medida que este a reconhece, já que constitui dado prévio, não esquecendo, todavia, que o Direito poderá exercer papel crucial na sua proteção e promoção, não sendo, portanto, completamente sem razão que se sustentou até mesmo a desnecessidade de uma definição jurídica da dignidade da pessoa humana, na medida em que, em última análise, se cuida do valor próprio, da natureza do ser humano (SARLET,2001.P.41).
Desse modo, a dignidade humana independe das circunstâncias concretas, sendo inerente a toda e qualquer pessoa humana (é atributo intrínseco), pois, todos são iguais em dignidade (mesmo o maior dos criminosos) enquanto reconhecidos como pessoa, mesmo quando não agem de forma digna, não podendo a dignidade de nenhuma pessoa humana ser desconsiderada.
Segundo extrai-se da doutrina de SARLET, o qual assim conceitua adignidade da pessoa humana.
Assim sendo, tem-se por dignidade da pessoa humana a qualidade intrínseca e distintiva reconhecida em cada ser humano que o faz merecedor do mesmo respeito e consideração por parte do Estado e da comunidade, implicando, neste sentido, um complexo de direitos e deveres fundamentais que assegurem a pessoa tanto contra todo e qualquer ato de cunho degradante e desumano, como venham a lhe garantir as condições existenciais mínimas para uma vida saudável, além de propiciar e promover sua participação ativa e co-responsável nos destinos da própria existência e da vida em comunhão com os demais seres humanos. (SARLET 2001.p 41).
Os direitos da personalidade são absolutos, via de regra, tão só pela existência da pessoa, pois, uma vez que nascem com ela, a existência visível da pessoa já é meio suficiente de publicidade. Assim, o direito à vida, para ser oponível erga omnes, não requer outra forma de publicidade que não a própria existência humana.
Os direitos da personalidade são criação artificial, acolhidos pelo ordenamento jurídico submetido a um Estado de Direito porque trazem consigo valores importantes para a sociedade, conforme demonstra sua evolução histórica. Não são, nem se defende que sejam, valores inatos ao ser humano, no sentido de serem preexistentes e superiores ao ordenamento jurídico com o nome, entretanto, a solução é um pouco diversa.
Em nosso Ordenamento jurídico, os direitos da personalidade ganharam tratamento mais incorporado com a Constituição Federal de 1988 e Código Civil de 2002, ambos tratando expressamente da matéria. Nesse sentido são as lições de Camila de Jesus Mello Gonçalves:
Os direitos da personalidade consistem em proteção do ser humano contra ingerências de terceiros, na salvaguarda de seu eu e funções. Correspondem a direitos essenciais da pessoa humana, voltados à tutela de sua dignidade. Daí se afirma que ilustram a Inter-relação estabelecida entre Constituição Federal e o Código Civil, em consequência dos reflexos do princípio da dignidade da pessoa humana e da tutela constitucional dos direitos da personalidade. (GONÇALVES, 2012, p 568).
O direito à personalidade traz consigo o direito à identidade com fulcro na afirmação do ser humano como pessoa sujeita de direitos, lhe sendo resguardado a manifestação ampla do seu sexo psicossocial. De acordo com Peres.
A identidade de gênero está relacionada com uma questão sentimental, como o indivíduo se sente com relação a sua identidade sexual, o papel de gênero diz respeito à colocação em prática da aprendizagem recebida e tem por objetivo não apenas encenar o papel sócio-sexual como também exteriorizar e retratar a identidade sexual do indivíduo (PERES, 2001, p. 102).
Partindo desse conceito a identidade de gênero representa a maneira como o indivíduo se percebe, expressa e como deseja ser compreendido e reconhecido pela sociedade, independente do seu sexo biológico, ou de sua orientação sexual, pois, o fator determinante diz respeito ao sentimento de como ele se identifica, se do sexomasculino ou feminino (HOGEMANN, 2014, p. 217-231).
Muitas vezes em decorrência da identidade de gênero, as pessoas buscam tratamentos farmacológicos ou realizam intervenções cirúrgicas para mudar a aparência ou a função corporal a fim de alcançar bem-estar físico e mental, ou se identificam com outro modo de vestir, se portar e falar. Neste momento se opera o direito à identidade de gênero, pois deve-se salvaguardar o direito a escolha de suaidentidade e à alteração do nome e do gênero a qual se identificam de modo a reduzir as diferenças (HOGEMANN, 2014, p. 217-231).
4. PRINCÍPIO DA IMUTALIDADE DO NOME
Em regra, o nome da pessoa humana é imutável, pois assim servirá para designar e distinguir o indivíduo de seus pares pelo resto da vida. Historicamente, o princípio da imutabilidade sempre andou de mãos dadas com o direito ao nome já que este é o principal elemento de identificação da pessoa humana .Contudo, podemos dizer que tal imutabilidade hoje é relativa, vez que comporta exceções, com algumas hipóteses de alteração expressamente previstas no ordenamento jurídico, e outras albergadas pela própria jurisprudência, diante de um caso concreto a ser deduzido em uma processo jurisdicional.
O direito ao nome é a manifestação do direito à identidade pessoal, por cuja força os diversos indivíduos, ao nascerem, adquirem a faculdade de serem, em princípio, designados obrigatoriamente por um vocábulo ou um conjunto de vocábulos que se convencionou chamar nome, e que, segundo as legislações ocidentais, deve ser composto, fundamentalmente, de prenome e nome de família.
5. O RECONHECIMENTO DA POPULÇÃO “TRANS” E DA ADEQUAÇÃO DE REGISTRO À IDENTIDADE DE GÊNERO NO DIREITO COMPARADO.
Ainda que o nome seja atribuído para identificar a pessoa humana pelo resto da vida, é fato notório também que pessoa não permanece sendo a mesma durante toda a vida; circunstâncias das mais variadas possíveis alteram não só o “caminho” das pessoas como também sua identificação, de forma que muitos passam, com o tempo, a ser conhecidos por apelidos, outros por pseudônimos ou hipocorísticos.
Nessa esteira, a população transgênero também passa a não mais se identificar com o nome de origem, que recebeu quando de seu registro de nascimento. O mesmo se diz do sexo constante do registro de nascimento, que inclusive é muitas vezes motivo de sofrimento para essas pessoas que não se reconhecem da forma como foram registrados.
É justamente nessa situação que a alteração do nome e gênero no registro civil na hipótese de transexuais que ainda não realizaram a cirurgia de redesignação sexual sempre causou dissenso na jurisprudência. Visto que, nem sempre o procedimento cirúrgico é a terapia adequada ao transgênero e a não mudança do nome e gênero no registro civil dos transexuais pode gerar situações vexatórias e constrangedoras a estes, violando direitos fundamentais garantidos a todos os indivíduos, como a dignidade da pessoa humana. Sendo que, somente, com a recente decisão sobre a Ação Direta de Inconstitucionalidade n.º 4275, julgada em 01 de março de 2018, abriu-se a possibilidade de que os indivíduos transexuais tenham seus direitos tutelados, ao dar interpretação conforme a Constituição Federativa do Brasil de 1988 e o Pacto de São José da Costa Rica ao art. 58 da Lei nº 6.015/73
Contudo a faculdade de que dispõe o titular do pedido de alteração do nome vão de encontro sobretudo com a proteção da comunidade LGBTQI+, já que a mudança do prenome e/ou sobrenome atende a uma necessidade histórica de se adequar a própria identidade ao que se encontra registrado junto aos órgãos públicos, permitindo a uma pessoa realizar os atos da vida civil em conformidade com a sua própria consciência, atitude esta que precisa ser protegida pelo próprio Estado.
Assim, o indivíduo que integra referida comunidade poderá se valer de um procedimento muito mais ágil para alterar o seu nome, sem a necessidade de autorização prévia de um juiz, permitindo assim que o indivíduo possa exercer uma vida dotada de maior dignidade perante a coletividade.
O direito ao nome identifica a situação jurídica decorrente dos direitos da personalidade: o direito à identificação pessoal. É o direito que a pessoa tem de identificar-se através do nome, cuja formação dar-se-á através das normas consignadas pelo ordenamento jurídico. Como bem elucida Rosenvald e Farias (2015, p. 243).
o nome será alterável, tão somente, em situações excepcionais, previstas expressamente em lei, ou por força de situações outras, igualmente excepcionais, reconhecidas por decisão judicial. A situação é justificável. É que o nome implica em registro público e, via de consequência, os registros públicos devem espelhar, ao máximo, a veracidade dos fatos da vida.
O nome é um dos mais importantes direitos da personalidade, uma vez que relacionado diretamente à identidade, servindo à particularização do indivíduo na sociedade.
6- POSICIONAMENTO DO SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL : DA LEI 14.382/2022 QUE ALTEROU O ARTIGO 56 DA LEI 6.015/1973
Com a Lei Federal 14.382/2022, que alterou a Lei dos Registros Públicos, em seu artigo 56 e parágrafos, para permitir a modificação do prenome da pessoa registrada, por meio de requerimento pessoal e imotivado, independentemente de decisão judicial e da oitiva do Ministério Público, objetivou-se tratar com isonomia todos os pedidos de mutação do prenome.
A nova legislação exalta a importância no nome civil como elemento identificador da pessoa e atributo indissociável de sua personalidade, promovendo a desjudicialização de procedimentos em prol da realização de alterações e mudanças diretamente na esfera extrajudicial. Verifica-se, também, que todas as hipóteses de alteração trazidas pela legislação não decorrem de erro imputado ao registrador, de modo que não se aplica a isenção de emolumentos estabelecida pelo artigo 110, da Lei nº 6.015/1973.
Algumas regras já eram praticadas há muito tempo junto às serventias de Registro Civil, destacando-se, por exemplo, a possibilidade de alteração de patronímico em razão do casamento posterior, a exclusão de sobrenome do ex-cônjuge, após a dissolução da sociedade conjugal por divórcio ou falecimento, o acréscimo ao nome do(a) enteado(a) do sobrenome de seu padrasto ou madrasta, dentre outras.
A Lei nº 14.382/2022, no entanto, aumentou o rol de possibilidades de alteração do nome extrajudicialmente, reafirmando a confiança do Estado brasileiro no Registro Civil das Pessoas Naturais como o único e principal repositório biográfico do cidadão.
Dessa forma para que fique ainda mais evidente o entendimento do Supremo Tribunal Federal (STF) que julgou a Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI/4.275), acerca do tema, onde figurou como relator o Ministro Marco Aurélio que julgou procedente a ação na conformidade da ata de julgamento e das notas taquigráficas, por maioria dos votos, vencidos, adotou o entendimento de que a alteração do prenome e do sexo no registro civil é um direito fundamental do transgênero, exigindo-se, para o seu exercício, nada além da manifestação de vontade. Observamos a ementa a seguir:
EMENTA: AÇÃO DIRETA DE INCONSTITUCIONALIDADE. DIREITO CONSTITUCIONAL E REGISTRAL. PESSOA TRANSGÊNERO. ALTERAÇÃO DO PRENOME E DO SEXO NO REGISTRO CIVIL. POSSIBILIDADE. DIREITO AO NOME, AO RECONHECIMENTO DA PERSONALIDADE JURÍDICA, À LIBERDADE PESSOAL, À HONRA E À DIGNIDADE. INEXIGIBILIDADE DE CIRURGIA DE TRANSGENITALIZAÇÃO OU DA REALIZAÇÃO DE TRATAMENTOS HORMONAIS OU PATOLOGIZANTES. 1. O direito à igualdade sem discriminações abrange a identidade ou expressão de gênero. 2. A identidade de gênero é manifestação da própria personalidade da pessoa humana e, como tal, cabe ao Estado apenas o papel de reconhecê-la, nunca de constituí-la. 3. A pessoa transgênero que comprove sua identidade de gênero dissonante daquela que lhe foi designada ao nascer por autoidentificação firmada em declaração escrita desta sua vontade dispõe do direito fundamental subjetivo à alteração do prenome e da classificação de gênero no registro civil pela via administrativa ou judicial, independentemente de procedimento cirúrgico e laudos de terceiros, por se tratar de tema relativo ao direito fundamental ao livre desenvolvimento da personalidade. 4. Ação direta julgada procedente. (STF - ADI nº 4.275/DF - Min. Rel. Marco Aurélio de Mello – julgado em 01/03/2018).
O Ministro Ricardo Lewandowski muito bem salientou que a luta pelo reconhecimento pessoal também deve ser respeitada e garantida pelo ordenamento jurídico, a fim de possibilitar uma plena realização e, com isso, uma vida feliz:
“Realmente, não há espaço para dúvida quanto à importância do reconhecimento para a autoestima, para a autoconfiança, para a autorrealização e para a felicidade. Aliás, relembro que, no âmbito jurisprudencial, este Supremo Tribunal Federal já teve oportunidade de sublinhar, em importante julgado (Ag. Reg. no RE 477.554-MG, Rel. Min. Celso de Mello), que o direito à busca da felicidade é “verdadeiro postulado constitucional implícito e expressão de uma ideia-força que deriva do princípio da essencial dignidade da pessoa humana”.
Atualmente as jurisprudências majoritárias, vem com base na aplicação analógica dos princípios assegurando os direitos dos transgêneros, incluindo o direito à mudança de nome e gênero no registro civil, à igualdade, à não discriminação, à saúde, à educação, à segurança e à dignidade.
Somando a isso veio o Provimento 73/2018 do CNJ para fazer valer a decisão do STF nos cartórios extrajudiciais de que qualquer pessoa maior 18 anos , pode requerer diretamente ao Cartório, ou através da Central de Registro Civil (CRC), a modificação do nome e gênero seu assento de nascimento não necessitando prévia autorização judicial ou da comprovação de realização de cirurgia de redesignação sexual e/ou de tratamento hormonal ou patologizante, assim como de apresentação de laudo médico ou psicológico.
Entretanto para que se possa realizar o ato a pessoa Interessada deverá apresentar os documentos, necessários (4º,§ 6, provimento CNJ nº73/2018). Diante disso se o Oficial suspeitar de fraude, falsidade, má-fé, vício de vontade ou simulação quanto à real intenção de quem postula a alteração do prenome, o mesmo, poderá recusar retificação do registro, ficando desse modo a decisão suscetível de questionamento em âmbito judicial.
O amparo por parte do poder público sobre os direitos da personalidade à identidade e ao nome devem buscar a realização de sua representação social. Sendo necessário o reconhecimento normativo da identidade de gênero das pessoas transexuais, mais ágeis e que respeitem a dignidade da pessoa humana, a personalidade, a privacidade e a autoidentificação.
Conclui-se, portanto, que a exigência de realização da cirurgia de transgenitalização para alteração do nome e sexo registral não mais se justifica, assim como a exigência de um processo judicial para referida modificação, uma vez que a importância conferida ao que a doutrina italiana denomina de “direito à identidade pessoal” tutela tanto direito ao nome quanto ao gênero que a pessoa se identifica, tudo como primeira forma de exteriorização da personalidade.
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Graduanda em Direito pela Universidade Brasil. Campus Fernandópolis.
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: PEREIRA, Francinara Maria. A alteração do sexo e nome da pessoa transgênero: Transgênero pode alterar prenome e sexo no registro civil sem fazer a cirurgia de transgenitalização? Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 15 jun 2023, 04:36. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/artigos/61698/a-alterao-do-sexo-e-nome-da-pessoa-transgnero-transgnero-pode-alterar-prenome-e-sexo-no-registro-civil-sem-fazer-a-cirurgia-de-transgenitalizao. Acesso em: 22 nov 2024.
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