EDUARDO CURY
(orientador)
RESUMO: A exegese pretendida por este trabalho é alcançar nova conscientização sobre a natureza jurídica do benefício de prestação continuada e seus enlaces com o atual cenário econômico brasileiro. Desta feita, intuir-se-á a importância da leitura teleológica na aplicação do benefício assistencial pelos Tribunais Pátrios e quais são as implicações decorrentes da elasticidade cognitiva do julgador no momento da prolação do decreto meritoso. Nesse sentido, o artigo pautou-se em pesquisas exploratórias dedutivas, pesquisa bibliográfica, entre doutrina, jurisprudência e artigo científico por meio de método hipotético-dedutivo com o fim de estatuir o real espírito forjado pelo legislador na criação do beneplácito assistencial e quais são os equívocos perpetrados pelos operadores do direito na análise de sua aplicação. Portanto, a construção do sentido esboçado por este trabalho de pesquisa ruma para a conclusão de que a subsunção da realidade aos requisitos elencados pela Lei Orgânica da Assistência Social é salutar para a perpetuidade e manutenção do benefício assistencial sob o ponto de vista atuarial, de modo que não cabe aos Tribunais a tarefa de ampliar ou restringir condições de elegibilidade ao beneplácito, sob pena de afronta ao postulado da prévia fonte de custeio e separação entre os poderes.
Palavras-chaves: Benefício de Prestação Continuada. Tribunais Pátrios. Lei Orgânica da Assistência Social. Prévia Fonte de Custeio. Separação entre os Poderes.
LEGAL DEMAND: THE TELEOLOGICAL OPTIC ABOUT THE BENEFIT OF CONTINUED SERVICE
ABSTRACT: The exegesis intended by this work is to achieve new awareness about the legal nature of the benefit of continued provision and its links with the current Brazilian economic scenario. In this way, the importance of teleological reading in the application of the assistance benefit by the National Courts will be intuited and what are the implications arising from the cognitive elasticity of the judge at the time of the delivery of the meritorious decree. In this sense, the article was based on exploratory deductive research, bibliographic research, between doctrine, jurisprudence and scientific article through a hypothetical-deductive method in order to establish the real spirit forged by the legislator in the creation of assistance and what are the mistakes made by the operators of the law in the analysis of its application. Therefore, the construction of the meaning outlined by this research work leads to the conclusion that the subsumption of reality to the requirements listed by the Organic Law of Social Assistance is healthy for the perpetuity and maintenance of the assistance benefit from the actuarial point of view, in a way that that it is not up to the Courts the task of expanding or restricting eligibility conditions for approval, under penalty of affronting the postulate of the previous source of funding and separation between powers.
Keywords: Continuing Payment Benefit. National Courts. Organic Law of Social Assistance. Previous Source of Costing. Separation of Powers.
1 INTRODUÇÃO
O Benefício de Prestação Continuada (BPC) traduz-se como instrumento assistencial estatal primado pela consecução dos ideais da fraternidade e do primado do bem-estar comum de direito consubstanciado pela seguridade social fincada pelo art. 203, V, da Carta da República. Nessa perspectiva, infere-se que a principal característica da natureza jurídica do benefício suscitado é a implementação de política de seguridade social sem a necessidade de contribuição ao sistema de custeio previdenciário.
Com efeito, tem-se que o beneplácito cotado no valor de 1 (um) salário mínimo será devido as pessoas portadoras de deficiência incapacitante e aos idosos maiores de 65 (sessenta e cinco) anos que não gozem de outro benefício da cesta de seguridade social, com exceção da assistência médica e pensão especial de natureza indenizatória, e que possuam a renda per capita inferior a 1/4 (um quarto) do salário mínimo, conforme a instrumentalização dos artigos 20 e 21 da Lei Orgânica da Assistência Social que regulamentou o mandamento constitucional atinente à política assistencial brasileira.
Dada a premissa legal, a busca pela exegese da regulamentação realizada pela LOAS se restringirá a análise pormenorizada do que se entende por deficiência incapacitante e capacidade econômica e qual sentido está sendo aplicado pelos Tribunais Pátrios.
O esmiuçamento do conceito de deficiência para a concessão do benefício assistencial constitui importante ferramenta de distinção pragmática, tendo tal diferenciação poder de conferir o beneplácito a quem dele realmente necessita e possua direito, isso porque não há conformidade cognitiva da jurisprudência acerca do assunto, e sendo assim, perceptível é, por análise simplesmente empírica, a concessão do beneplácito a determinado reclamante com características dissonantes ao que a lei prevê.
De igual modo, a suscitação de dúvidas aqui apresentada desaguará no campo da fragmentação subjetiva do que se entende por capacidade econômica e, na realidade, qual seria os efeitos práticos do reconhecimento da nulidade do dispositivo do artigo 34 do Estatuto do Idoso pelo Supremo Tribunal Federal referente a limitação de 1/4 da renda familiar per capita, e como tal tipificação influi no ateste da miserabilidade do reclamante.
As mudanças perpetradas na aferição do critério econômico pela pandemia do coronavírus também reclama melhor análise com o fito de realçar os imbróglios da leitura teleológica pelo julgador singular quanto ao reconhecimento dos requisitos fundantes para a concessão do benefício assistencial.
Contudo, importa frisar que o artigo não se pautará pela afronta ao sistema da persuasão racional do juiz, de modo algum, até mesmo porque a crítica não é ao subjetivismo do julgador que é destinatário final das provas, mas, sim, procura-se realçar pontos controvertidos para melhor compreensão social e pedagógica do instituto, afinal a garantia da perpetuidade do benefício assistencial cumpre anseio constitucional.
2 A ASCENSÃO DO BPC COMO GARANTIA ASSISTENCIAL E SUA RELEVÂNCIA PARA O ATUAL CENÁRIO SOCIOECONOMICO BRASILEIRO
O texto constitucional, ao lapidar o macroorganismo da Ordem Social, trouxe ao sistema jurídico pátrio o primado do bem-estar social por meio da consecução da justiça social, isto é, o legislador constituinte procurou maximizar na Carta da República as garantias inerentes à fraternidade e seus tentáculos para abarcar e suportar o custeio de política pública, sendo apta a garantir ao povo uma cesta de direitos concernentes nas necessidades elementares do indivíduo. Nesse sentido, nas lições do venerando professor Alexandre de Morais (2021, p. 947):
A seguridade social compreende um conjunto integrado de ações de iniciativa dos poderes públicos e da sociedade, destinadas a assegurar os direitos relativos à saúde, à previdência e à assistência social. Determinou a Constituição que a seguridade será financiada por toda a sociedade, de forma direta e indireta, nos termos da lei, mediante recursos provenientes dos orçamentos da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios, e das seguintes contribuições sociais
Diante da roupagem assistencial conferida pela Carta Política, o benefício assistencial sagrou-se pelo modelo de seguridade social não contribuitiva, isto é, o segurado, se preenchido os requisitos legais, ficaria dispensado de verter contribuições ao sistema previdenciário. Daí, a importância de se examinar minuciosamente as condições do demandante quando do petitório pela concessão do benefício.
Com efeito, ante o caráter não contribuitivo do benefício, importa esclarecer que a fonte de custeio do BPC está calcada na propulsão do Fundo Nacional de Assistência Social (FNAS) e não dos fundos do Instituto Nacional do Seguro Social (INSS) como alguns fazem crer, muito embora a contribuição previdenciária seja utilizada como complemento para o financiamento do custeio. O FNAS fora estatuído pela Lei nº 8.742/93 (LOAS) e a ele compete a distribuição em âmbito nacional dos recursos para os demais fundos dos Entes Federados.
Para melhor elucidação, trago à baila o entendimento sistemático do beneplácito professado pelo magistério de Gustavo Garcia (2022, p. 154):
O benefício de prestação continuada tem natureza jurídica assistencial, pois integra a proteção social básica no âmbito do Sistema Único de Assistência Social (SUAS), instituído pelo Ministério da Cidadania, em consonância com o estabelecido pela Política Nacional de Assistência Social (PNAS). O benefício de prestação continuada é constitutivo da Política Nacional de Assistência Social (PNAS) e integrado às demais políticas setoriais, e visa ao enfrentamento da pobreza, à garantia da proteção social, ao provimento de condições para atender contingências sociais e à universalização dos direitos sociais, nos moldes definidos no art. 2º, parágrafo único, da Lei 8.742/1993. A plena atenção à pessoa com deficiência e ao idoso beneficiário do benefício de prestação continuada exige que os gestores da Assistência Social mantenham ação integrada às demais ações das políticas setoriais nacional, estaduais, municipais e do Distrito Federal, principalmente no campo da saúde, segurança alimentar, habitação e educação.
Intui-se, outrossim, que a vista de políticas assistenciais, certo é que o país comunga dos efeitos inerentes ao estado social de Direito, em que pese a criticidade neoclássica que constantemente atenta contra os valores impostos pela Constituição Federal de 1988, ao revés do que pretende seus críticos, a consecução de políticas de distribuição de renda é dever do Estado por força constitucional, ou seja, apesar de louváveis as política governamentais de transferência de recursos, certo é que essas ações cumprem nada mais além do que o mandamento positivado pelo Texto Maior.
Há de se destacar que, com a fulminação do coronavírus e sua classificação pandêmica, a sociedade em geral viu ruir os prognósticos referentes ao desenvolvimento socioeconômico, dado que as restrições advindas para a não propagação do vírus obstou a perpetuidade de várias empresas e, concomitantemente, extinguiu inúmeros postos de trabalhos, levando a maioria dos trabalhadores brasileiros a informalidade.
A informalidade, per si, não significa tão somente a atividade laboral à revelia dos direitos trabalhistas como: FGTS, seguro desemprego, abono salarial, férias etc, mas, sim, revela que a população trabalhadora informal deixará de contribuir com o sistema previdenciário e, geralmente, sem contribuição durante determinado período, tal população ficará à míngua da proteção da seguridade social com a perda da qualidade de segurado.
A perda da qualidade de segurado traduz-se na impossibilidade do usuário do sistema previdenciário em gozar dos direitos inerentes à cesta previdenciária, de modo que se o segurado deixar de contribuir para o custeio do regime previdenciário, certo é que perderá os direitos aos benefícios alocados na cesta social.
Malgrado haja o chamado período de graça que compreende a cobertura previdenciária ao usuário sem que haja contribuição durante determinado período, tem-se que a informalidade do mercado de labor levou inúmeros usuários a assumirem a contribuição facultativa, isto é, recolhimento de integral responsabilidade do usuário e que possui menor período de graça, qual seja, 6 (seis) meses, podendo esse período ser prorrogado a depender da contribuição, consoante art. 15 da Lei de Benefícios.
Muito embora o país tenha sofrido economicamente com a ascensão da pandemia, certo é que o grau de informalidade no mercado laboral brasileiro há muito vem se destacando exponencialmente, conforme explicita Relatório Técnico do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (IPEA) do Governo Federal elaborado em 2019:
Os dados mais recentes mostram que, após ensaiar uma recuperação mais acentuada ao longo do primeiro semestre de 2018, o mercado de trabalho brasileiro voltou a apresentar um cenário de baixo dinamismo, caracterizado pela estabilidade da taxa de desemprego em patamar elevado e pela leve expansão da ocupação e da renda. Estes resultados pouco satisfatórios, entretanto, não chegam a surpreender, tendo em vista que são compatíveis com a lenta trajetória de retomada da economia brasileira. (BRASIL, p. 8)
O relatório aponta, portanto, a timidez do cenário da tomada do crescimento do emprego formal anterior a pandemia. Desta feita, importante frisar que a eclosão da informalidade laboral no mercado de trabalho brasileiro se deu em meados de 2013 e de lá para cá, indubitavelmente, houve um avanço na escalada do desemprego.
Não obstante, o quadro de desaceleração econômica estar acompanhado de superficiais melhoras, o fato é que a população brasileira deixou de contribuir ativamente para o sistema de custeio da seguridade social, sendo essa condição agravada com a precariedade do estado laboral a que está submetida a maior parte dos desempregados brasileiros que, notadamente, não possuem instrução educacional suficiente e acabam sendo recolhidos ao trabalho braçal e penoso.
Deste modo, com a ausência de segurança a saúde do trabalhador, é forçoso intuir que milhares de brasileiros, atualmente, estão sem qualquer cobertura previdenciária e, sendo assim, quando acometidos de alguma patologia incapacitante, não vislumbram outro caminho a não ser se socorrer do assistencialismo estatal.
3 A ADEQUAÇÃO JUDICIAL DO REQUISITO DEFICIÊNCIA E MISERABILIDADE PARA A CONCESSÃO DO BPC
No bojo da situação de precariedade laboral oriunda dos quadros de informalidade empregatícia, quando o trabalhador é surpreendido com o acometimento de alguma moléstia de ordem incapacitante, este, sem titubear, ruma a agência do Instituto Nacional do Seguro Social (INSS) no afã de alcançar algum benefício da cesta previdenciária, como, por exemplo, o auxílio-doença ou aposentadoria por invalidez.
Contudo, diante da recessão econômica, e pelo que demonstram os indicadores sociais, esse trabalhador acaba por não conseguir, diretamente, verter contribuição à previdência social, sendo eventual pedido de aposentação ou auxílio-previdenciário negado por ausência de contribuição ao sistema previdenciário. Nessa senda, o não segurado tenta procurar solução judicial para imbróglio.
A partir deste momento é que nasce a controvérsia realçada por este artigo, pois o operador do direito tende, não raras vezes, adentrar com petitório atinente ao benefício de prestação continuada não se atentando aos ditames do art. 20 da Lei Assistencial, até mesmo porque há precedentes jurisprudencial acerca da flexibilização do que se entende por deficiência incapacitante, considerando, em alguns casos, não o que dispõe a lei, mas as circunstâncias do caso concreto.
Para melhor compreensão, colaciono trecho de julgado análogo ao suscitado da lavra da eminente Desembargadora Federal Diva Prestes Marcondes Malerbi (2019, p.2):
Embora o laudo pericial produzido em juízo conclua pela incapacidade parcial há que ser considerado a idade, o grau de escolaridade e a gravidade de seus problemas de saúde, de modo que deve ser reconhecida sua incapacidade total e permanente para qualquer atividade, amoldando-se ao conceito de pessoa deficiente, nos termos do artigo 20, § 2º, da Lei n.º 8.742/93, com redação dada pela Lei n.º 12.435/2011.
Com a máxima vênia ao entendimento perpetrado pela veneranda julgadora, urge salientar que o sentimento posto pelo legislador é de que o benefício de prestação continuada deve ser restrito às situações de extrema vulnerabilidade social, tanto é que o legislador alçou no dispositivo a necessidade de cumprimento cumulativo dos requisitos, isto é, ter o reclamante deficiência incapacitante ou ser maior de 65 (sessenta e cinco) anos, desde que tenha renda mínima abaixo do fracionamento legal.
Na esteira da premissa realçada, cumpre destacar que a justiça, em linhas gerais, traduz-se na aplicação de regras abstratas criadas pela coletividade para saciar as relações interpessoais com vista ao bem social comum, consoante lição do eminente jurisconsulto Miguel Reale (2012, p.94):
A constante coordenação racional das relações intersubjetivas, para que cada homem possa realizar livremente seus valores potenciais visando a atingir a plenitude de seu ser pessoal, em sintonia com o da coletividade
Não se trata, portanto, de leitura contra misero, haja vista que deve o julgador, na aplicação da lei, atender os fins sociais a que ela se dirige e às exigências do bem comum, conforme exortação da Lei de Introdução ao Direito Brasileiro (LINDB).
Não por acaso, o legislador deu vida ao art. 20-B do LOAS por meio da redação dada pela Lei nº 14.176/2021, consignando que a deficiência deve ser constatada ao rigor do que dispõe a lei nº 13.146/2015, com atenção a especificidade do grau de deficiência e se há necessidade de desempenho de terceiro no auxílio de afazeres básicos do suplicante.
A inclusão do suscitado artigo reforça o caráter exclusivista do benefício assistencial para situações de excepcional quadro de vulnerabilidade socioeconômica, ou seja, o suplicante tem de estar inserido na redoma da incapacitação laboral e da miserabilidade familiar, de modo que a miserabilidade seja caracterizada pela ineficácia da aplicação dos direitos de alimentos por relação consanguínea.
Com efeito, o julgador deverá refletir sobre a possibilidade de o demandante estar inserido em núcleo familiar saudável e que, por vezes, tantos os descendentes ou ascendentes, se o caso, possuem condições de arcar com as despesas e custos de vida do solicitante e, nesse caso, não se restringindo a análise de renda per capita sobre os residentes no mesmo teto, tendo em vista a aplicação do postulado da solidariedade familiar.
No mesmo sentido, a literalidade do art. 230 da Carta da República assegura que família, a sociedade e o Estado têm o dever de amparar as pessoas idosas, assegurando sua participação na comunidade, defendendo sua dignidade e bem-estar e garantindo-lhes o direito à vida, reforçando que a responsabilidade é compartilhada entre família, sociedade e o Estado, não sendo, portanto, ônus tão somente do Ente Estatal.
No mesmo ângulo, o fator econômico para aplicação do benefício assistencial inaugurou grandes debates sobre sua constitucionalidade, isto é, em apertada síntese, a controvérsia encontrou respaldo no princípio da dignidade da pessoa humana em explicitar que não se poderia aferir a miserabilidade tão somente com base no quesito econômico de 1/4 do salário mínimo nacional vigente.
A suscitação de dúvida sobre o teor constitucional do parágrafo 3º do art. 20 chegou ao Supremo Tribunal Federal e, em 2013, por meio dos Recurso Extraordinários 580.963 e 567.895, culminando em recurso com repercussão geral (Tema 312), o Plenário do Excelso Pretório decidiu pela constitucionalidade de tal parâmetro. Não obstante, a Corte entendeu pela decretação de inconstitucionalidade do parágrafo único do art. 34 do Estatuto do Idoso, sem, contudo, haver oposição de nulidade.
O Tribunal Constitucional entendeu pela não proclamação de nulidade, pois caberia ao legislador resolver as inconsistências normativas do que se entende por comprovação de miserabilidade tendo em vista os parâmetros dissonantes havidos em leis posteriores a LOAS, como o próprio Estatuto do Idoso e o Bolsa Família que fixavam objetivamente normas mais flexíveis ao ateste da miserabilidade, depreendendo clara afronta ao postulado da Isonomia.
Nessa toada, importante frisar que, após o aresto do STF, a Lei Assistencial por meio do parágrafo 11, do art. 20, possibilitou a análise do quesito da condição de miserabilidade por outros elementos probatórios a não ser o parâmetro de 1/4 de salário mínimo, entretanto, a Lei 14.176/2021 consignou que o material probatório a ser examinado poderá ser ampliado até 1/2 do salário mínimo por meio de decreto a ser feito pelo Poder Executivo.
A elasticidade da comprovação de penúria se deve, principalmente, as mudanças fáticas que ocorreram com o irromper da pandemia do Coronavírus, conforme tratado anteriormente, mas, de todo modo, o novo atalho cumpre importante função social em abarcar muitas outras situações que pelo texto anterior não seria possível.
O esmiuçamento das condições de miserabilidade e deficiência revela certa preocupação do legislador em fincar o benefício assistencial para aqueles que realmente necessitam da atenção estatal, porquanto não possuem outros meios de subsistência, afinal a palavra de ordem para o alcance do beneplácito é subsistência.
Pelo contexto teleológico, a subsistência deve ser entendida como instrumento social para acesso ao mínimo existencial com vista a garantia da dignidade da pessoa humana, volvendo a relembrar que o Texto Maior, em toda sua magnitude, assentou o BPC como instrumento de distribuição de renda e não de acúmulo de recursos, por isso deve o reclamante pleiteá-lo como insumo para vida e não como fonte de renda para acrescer pretensões patrimoniais.
4 A VALORAÇÃO PROBATÓRIA E O CASO CONCRETO
De início, cumpre informar que o petitório atinente ao benefício de prestação continuada que revelaria a pretensão e o corpo material do caso concreto somente encontrará salvaguarda no Poder Judiciário se houver prévio requerimento administrativo ao Instituto Nacional do Seguro Social, sob pena de configuração de ausência de interesse de agir, fulminando, in limine, a demanda judicial, conforme jurisprudência assentada pelo Supremo Tribunal Federal por meio do Recurso Extraordinário com Repercussão Geral nº 631.240, da lavra do eminente Ministro Roberto Barroso .
A partir deste ponto, o demandante passará pelo crivo da autarquia para que haja decisão administrativa sobre o mérito da súplica, isso não quer dizer que o pretenso segurado precise esgotar a via administrativa, pois o que se pretende é atestar o interesse de agir concernente na disposição da autarquia em conceder o beneplácito sem provocação judicial ou comprovar a resistência do órgão em aplicar o direito, nascendo, no último caso, os elementos indiciários de efetiva lesão ao direito perseguido.
Ademais, instaurada a ação judicial, com a explicitação das principais controvérsias sobre o tema, há de se rememorar o douto voto do Ministro Gilmar Mendes quando da fixação da exegese do Tema 312, o julgador, naquele momento, pontuou que, muito embora o legislador tenha fincado requisitos objetivos para aplicação do beneplácito, certo é que o magistrado de primeiro grau é o filtro necessário para distinguir as reais condições socioeconômicas a que está submetida o suplicante.
Ademais, é cediço que o julgador singular não detém carta branca para bem dirimir o texto legal, ao revés, sob a ótica das alegações preambulares, o juiz utilizará ferramentas processuais eficazes na subsunção da norma a realidade vivenciada pelo solicitante, mormente porquanto a causa versa sobre matéria factual.
Nesse sentido, a prova pericial é, indubitavelmente, necessária para que o magistrado avalie o grau das condições de miserabilidade e, se o caso, analise também as especificidades da deficiência do suplicante.
Além disso, o Código de Processo Civil facultou ao julgador a realização de Inspeção Judicial que, no presente caso, se afigura medida relevante para o deslinde da demanda, uma vez que o juiz estará plenamente integrado dos pormenores das condições econômicas da parte autora, como, por exemplo, no caso de inspeções na residência da suplicante, onde constatará o modo de vida daquele núcleo familiar.
No entanto, a realidade é pragmática, malgrado a Inspeção Judicial seja bom atrativo probatório, o fato é que, com a sobrecarga de trabalho que assola os Tribunais Pátrios, a Inspeção Judicial tem se mostrado pouco utilizada pelos magistrados brasileiros.
Com isso, a prova pericial atinente aos estudos sociais realizados por Assistentes Sociais nomeados pelo juízo tem sido frequente na colheita comprobatória. Esse estudo social concernido na entrevista compreende: a biografia familiar do demandante, as fontes de renda do núcleo familiar e as condições de moradia auferidas pelo núcleo familiar.
Nessa linha, a socióloga Vânia Sierra (2018, p. 154) em seu Poder Judiciário e Serviço Social consignou a importância da entrevista como instrumento de aferição social para elaboração de parecer socioeconômico:
A realização de uma entrevista social faz com que o profissional entre em contato, muitas vezes, com a intimidade de seus usuários, suas condições de vida e as questões que mais afetam sua vida. O cuidado em preservar o sigilo das informações, e de fazer com que a coleta desses dados tenha um efeito real no atendimento aos sujeitos que são submetidos a esse processo é de fundamental importância. Também é importante assegurar que o arquivo que contém esses dados seja inviolá-vel, de forma a garantir o compromisso ético do assistente social para com a população usuária. O sigilo é um direito do usuário e é dever do assistente social assegurá-lo. Um dos elementos mais delicados na entrevista é a identificação dos lugares ocu-pados, tanto pelo entrevistador como pelo entrevistado. A relação que se estabelece traz sempre a marca de uma relação de poder, ainda que o profissional se disponha ao acolhimento do usuário.
Por outro lado, nos casos de ateste de doença incapacitante, o laudo pericial é redigido por médico perito também nomeado pelo juízo e, sendo assim, o profissional realizará parecer sobre a capacidade laboral do demandante, isto é, se o autor possui condições físicas ou mentais para trabalhar.
De toda sorte, o magistrado é o destinatário final das provas, e se eventualmente entender pela desnecessidade de algum material probante poderá fazê-lo desde que fundamente pela sua prescindibilidade, sob pena de cerceamento de defesa. Tal previsão legal é fruto do postulado do livre convencimento motivado do juiz adotado pelo Estatuto Processual Civil.
Malgrado o julgador ordinário tenha o uso da discricionariedade na atribuição valorativa da prova, certo é que o magistrado, enquanto garante da aplicação da norma, deverá discursar acerca dos motivos que o convenceram a classificar os elementos probatórios para o alcance da verdade processual.
Daí o escopo da norma processual em não vincular a atuação do magistrado nas conclusões do laudo pericial. Assim, o julgador poderá obter o deslinde do feito por outras provas acostadas aos autos, salientando-se, por oportuno, que a prova deverá ser sopesada independentemente do sujeito que a tiver promovido.
Alexandre Câmara (2022) entende que a teoria da valoração probatória elencada pelo Código de Processo Civil garante maior coadunação com o Estado Democrático de Direito ao cabo de garantir a fundamentação da decisão judicial sob o prisma do devido processo legal com a oportunização do contraditório em sua plenitude.
É relevante mencionar, por fim, que a percepção do conjunto fático, inequivocamente, perpassa o cenário comunitário onde o requerente está inserido, ou seja, o destinatário da prova, com lastro no empirismo, deverá também cotejar os fatores culturais daquela localidade para alcançar o máximo de expressão da realidade do requerente, uma vez que a prova exigida está estritamente enlaçada nas raízes sociais e econômicas do demandante.
Aliado a essa tônica, o feito poderá receber intervenção do Ministério Público, muito embora haja previsão expressa na Lei Assistencial em seu artigo 31 sobre o poder-dever do Ente Ministerial em atuar nos casos de solicitação do benefício, sob pena de nulidade, entretanto, certo é que a jurisprudência tem entendido que atuação da promotoria de justiça se revela necessária tão somente nos casos de requerentes incapazes.
Portanto, o procedimento exige dilação probatória e está circunscrito a avaliação do grau de deficiência e/ou miserabilidade do demandante com especial vista ao conjunto factual colacionado aos autos.
5 CONCLUSÃO
O cenário econômico brasileiro reflete abruptamente a ausência de crescimento de empregos formais no país e, com isso, muitos brasileiros vivem à margem da perda da qualidade de segurado ante a falta de contribuição ao sistema previdenciário.
Nesse sentido, os benefícios previdenciários ordinários não conseguem abarcar os milhares de casos de inconstância laboral a que a população está subordinada, e assim, a população recorre ao benefício de prestação continuada como salvaguarda disponível para sanar a ausência de vencimentos.
Contudo, o benefício assistencial é reservado aos casos em que há completa ausência de subsistência cumulada a velhice, em casos de idosos maiores de 65 anos, ou no caso de deficientes incapazes de laborar. Deste modo, é perceptível que o beneplácito não se trata de mera complementação de renda, mas, sim, de instrumento hábil a garantir a dignidade da pessoa humana e tornar possível o acesso aos insumos básicos de vida.
Repisa-se, considerando todos os pontos elencados, o juiz deverá averiguar precipuamente os requisitos objetivos para a concessão do benefício assistencial, ou seja, averiguar o escorreito enquadramento da pretensão autoral nas hipóteses conferidas em lei, sob pena de ativismo judicial.
Nessa senda, à luz do quanto discutido, resta imprimir a exegese do texto normativo positivado pelo art. 20 da Lei de Introdução às normas do Direito Brasileiro: “Nas esferas administrativa, controladora e judicial, não se decidirá com base em valores jurídicos abstratos sem que sejam consideradas as consequências práticas da decisão”
A premissa exposta implica diretamente na impossibilidade do julgador em criar condições para o auferimento do beneplácito, uma vez que o papel de ampliar ou restringir as situações impostas na lei é tarefa fulcral do poder legislativo e, sendo assim, não compete ao juiz criar custos não previsto pelo orçamento, resguardando o princípio de prévia fonte de custeio.
Há de se entender que o não cabimento de determinada concessão do Benefício de Prestação Continuada não implica revelia estatal à miséria humana, dado que o poder público possui outros inúmeros programas sociais que podem ser auferidas pelo demandante.
A simbiose entre segurado e assistencialismo brasileiro não pode ser, mutatis mutandis, equacionada por simples manifestação judicial, uma vez que o imbróglio decorre de questões estruturais como o desenvolvimento educacional e econômico.
A partir desta perspectiva, tem-se que os valores fundamentais como a garantia da dignidade da pessoa humana dependem de fonte de custeio solidificada pela seguridade social e, por isso, a prévia análise pormenorizada do preenchimento dos requisitos elencados pelo artigo 20 da Lei Assistencial resulta na perpetuidade e estabilização do benefício para aqueles que o usufruem ou usufruirão em algum remoto tempo.
O presente artigo, outrossim, reconhece como louvável a sedimentação do benefício assistencial pelo legislador originário, haja vista a sensibilidade do constituinte perante parte do espectro social brasileiro totalmente flagelado pela fome e ausência de instrução educacional. Aliás, o que se pretende é justamente a defesa da perpetuidade e da garantia de acesso aos que realmente se enquadrem no auferimento do benefício.
Portanto, imperiosa é adequação cognitiva frente aos petitórios reclamando o benefício de prestação continuada visto que a cognição judicial alcança a irresignação dos cidadãos que tiveram seus pedidos negados e, assim, com entendimento teleológico esboçado por este artigo, tem-se que a prestação jurisdicional será efetivamente realizada.
REFERÊNCIAS
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graduando em Direito pelo Centro Universitário de Santa Fé do Sul, UNIFUNEC
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: LOZANO, GABRIEL DE SOUZA. Demanda judicial: a ótica teleológica sobre o benefício de prestação continuada Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 21 jun 2023, 04:35. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/artigos/61762/demanda-judicial-a-tica-teleolgica-sobre-o-benefcio-de-prestao-continuada. Acesso em: 24 nov 2024.
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